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Garanta o direito de todos os alunos ao promover igualdade de gênero

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Garanta o direito de todos os alunos ao promover igualdade de gênero
Não faz diferença se menina veste azul e menino, rosa. Mas por que ainda é tão difícil romper os estereótipos de gênero e educar igualme
“Minha vida é mais fácil porque sou menino. Ando sem medo de alguém me olhar de modo ameaçador. As pessoas em geral não me subestimam”, diz Yang Nakazawa, 14 anos, aluno do 9º ano da Emef Desembargador Amorim Lima, em São Paulo. Sua amiga Yasmin da Costa também tem 14 anos e está na mesma turma, mas sente o oposto: “É mais difícil ser menina. Somos consideradas mais fracas, incompetentes, incompletas”. Por que Yang e Yasmin têm pontos de vista distintos, mesmo em contextos tão parecidos? Por que tratamos meninos e meninas de jeitos diferentes? E o que tudo isso significa para a escola? 
A questão, muito mais complexa e matizada do que polarizações sobre quais cores de roupa são adequadas para meninos ou meninas, não é nada fácil, mas não pode mais ser ignorada no contexto escolar. Ao longo desta reportagem, você encontrará reflexões, informações e dicas práticas de como trabalhar o assunto com os alunos.
Em 2017, a pesquisa Percepções sobre Educação Sexual, realizada pelo Ibope sob encomenda da ONG Católicas pelo Direito de Decidir, mostrou que 67% dos entrevistados concordavam plenamente com a escola falar sobre igualdade entre homens e mulheres. “As questões de gênero já estão na escola. Evitar o tema reforça a estrutura hierárquica da sociedade e propaga estereótipos”, afirma Vanessa Leite, pesquisadora associada do Centro Latino-Americano de Sexualidade e Direitos Humanos (Clam) e doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Para ela, falar da igualdade de gênero implica dar às meninas e aos meninos o mesmo espaço e direitos na sociedade.
Segundo Denise Carreira, coordenadora institucional da Ação Educativa e defensora de Educação de Meninas e Mulheres do Fundo Malala, o gênero é uma categoria que nasceu nos anos 1950 para questionar a naturalização de desigualdades ancorada no discurso biológico de que as mulheres eram mais propensas a determinadas atividades, como cuidar da casa e dos filhos. “Colocar em xeque a desigualdade de gênero hoje significa favorecer a transformação de relações de poder em trocas e convívio mais democráticos e dignos entre as pessoas”, explica. Longe de ser um assunto teórico, a diferença de tratamento entre homens e mulheres traz consequências práticas para a sociedade, que vão desde uma mulher receber menos do que um homem pela mesma função, passando pelas expectativas de aprendizagem diferentes para meninos e meninas na escola até o feminicídio. Em 2015, a então diretora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka, alertou que a violência contra as mulheres, endêmica no Brasil, é a pior manifestação da desigualdade de gênero.
“Não existe nenhum fator biológico que justifique discriminar, reduzir, segregar e punir uma mulher por ser mulher e um homem por ser homem”, diz Paula Ribeiro, coordenadora do Grupo de Pesquisa Sexualidade e Escola da Universidade Federal do Rio Grande (UFRG). É também preciso considerar que os papéis sociais também mudam ao longo do tempo. No início do século 20, por exemplo, as mulheres não podiam votar, muitas eram proibidas de estudar e ficavam restritas ao trabalho doméstico. Hoje, no século 21, o quadro é bem diferente, mas ainda persistem grandes desafios. É importante lembrar que a desigualdade de gênero e os estereótipos associados ao que é ser homem ou mulher afetam meninas, mas também os meninos, reforça Viviana Santiago, gerente de gênero e incidência política da Plan International no Brasil, explicando que o trabalho infantil, por exemplo, incide principalmente sobre o gênero masculino. Além disso, se por um lado as meninas são socializadas para o cuidado e reprimidas em alguns contextos, a expressão de sentimentos como a tristeza é frequentemente tolhida nos meninos. Em 2013, a jornalista Sílvia de Araújo tratou do tema de maneira acessível no manifesto “Pelos Direitos dos Meninos”: “Que ele possa aprender a dançar livremente, sem que lhe digam que isso é coisa de menina. Que ele possa chorar quando se sentir emocionado, e que não lhe digam que isso é coisa de menina”.
Mas, como abordar essa desigualdade na sala de aula? Em 2018, antes de anunciar para a turma que as aulas de Língua Portuguesa seriam focadas em textos com personagens mulheres, Aline Pinheiro deixou claro que a desigualdade existe em vários aspectos. “Num primeiro momento, um aluno ficou com a sensação de que eu estava tratando os homens como menos importantes. Na verdade, são elas que, por serem tratadas coomo desimportantes, precisam ser colocadas em evidência”, explica a professora do 8º e do 9º anos do CED 08 - Gama, na cidade satélite de mesmo nome. Durante o projeto, os estudantes escreveram biografias de heroínas da Primeira Guerra Mundial, criaram um final diferente para o texto Moça Tecelã, de Marina Colassanti, além de entrevistarem mulheres da família que consideram inspiradoras e criarem tutoriais, slogans e hashtags para uma campanha sobre violência contra a mulher. Com o trabalho e o diálogo, o tema fez sentido para os estudantes. “O projeto me fortaleceu porque às vezes passo por situações que me sinto menosprezada por ser menina”, conta Beatriz Ferreira, 14 anos. O estudo também foi importante para Douglas de Farias, 17 anos: “Eu era machista, me incomodava até com a roupa de algumas meninas. Aprendi a respeitar, afinal, elas são livres como qualquer homem é”, diz.
Na Emef Professor João de Oliveira Martins, em Rio Grande (RS), o ponto de partida foi o texto A Revolta das Princesas (Editora Saber e Ler). A partir dele, a professora Marisa Pires desenvolveu a peça de teatro Mulheres, que aborda a desigualdade de gênero, com os alunos do 9º ano. “Escolhemos as princesas Cinderela e Sherazade e as colocamos em situações contemporâneas, como assédio em uma festa. Apresentamos dados de feminicídio, o assassinato de mulheres pela sua condição de gênero, no Rio Grande do Sul para alertar a plateia”, conta a docente. Situações exploradas no espetáculo ajudaram algumas alunas a pedir ajuda, já que o assunto não é fácil e nem é discutido por todas as alunas. Em uma das cenas, Cinderela é assediada numa festa por usar uma roupa considerada provocante por outro personagem. “Muita gente se emocionou porque é uma situação frequente”, conta Dérik de Araújo, 16 anos, que interpretou o papel do segurança. Já Mari Hellen Faria, 18 anos, além de atuar, sugeriu a inclusão da frase “sim, em briga de marido e mulher, se mete a colher” na cena em que uma mulher é agredida fisicamente pelo marido. A ideia surgiu porque, no bairro da garota, uma mulher morreu espancada pelo marido. “Os vizinhos sabiam, mas demoraram a tomar providências”, conta.
Gênero sem medo
Cercado de polêmicas, polarizações e desinformação, o termo “gênero” nem sempre é compreendido e encontra resistência em alguns setores da sociedade. Durante a discussão sobre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ele foi suprimido do texto após pressão de alguns grupos. Para eles, inserir o tema no currículo poderia gerar uma crise de identidade nos alunos, afetando a família e a integridade moral e intelectual dos jovens. Também defenderam o ponto de vista de que o gênero não é uma construção social e trouxeram um argumento técnico: como esses temas estavam fora do Plano Nacional de Educação (PNE), acrescentá-los na BNCC iria contrariar o que foi aprovado pelo Congresso Nacional em 2010. Posto isso, o MEC retirou da terceira versão da Base os termos “gênero” e “orientação sexual”, afirmando que o tema gênero havia provocado muita controvérsia.
Para Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a supressão descumpre marcos nacionais e compromissos internacionais firmados pelo Brasil, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, que preveem uma Educação sem discriminação de gênero e uma postura ativa do Estado no estabelecimentode políticas de equidade. “O Brasil é signatário e atua na contramão dessa forma”, ressalta a coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Apesar de excluído o termo gênero, a ideia de diversidade continuou presente nas habilidades e competências dos documentos. Com isso, é permitido e possível abordar a desigualdade de gênero na escola.
O assunto, porém, nem sempre é fácil de entrar na sala de aula. Uma das primeiras barreiras é enfrentar o medo de não dar conta do tema. Em 2007, o MEC produziu o curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE) - Formação de Professoras/es em Gênero, Sexualidade, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais, atualmente indisponível. No entanto, é possível buscar materiais na internet e estudar por conta própria. Professor da rede municipal de Camboriú (SC), Robson Fonseca acredita que a formação o deixou mais sensível às questões de gênero e mais capacitado para intervir em situações concretas. “Durante o curso, fiquei muito mais sensível às questões de gênero e também de violência. Passei a prestar mais atenção ao que os alunos vivenciam. Pude ajudar duas estudantes, ambas violentadas pelo padrasto, e o Conselho Tutelar pôde agir para cuidar dos casos. Aprendi também a identificar preconceitos que todos temos”, diz Robson.
Outro medo comum é a reação contrária da família. De fato, muitos pais e mães podem sentir desconfiança e expressar o desejo de que o assunto não seja abordado com os seus filhos. Há ainda confusões, como entender que, ao falar da importância da igualdade de gênero, os professores enveredariam pela sexualidade ou falariam de Educação Sexual. Por isso, o diálogo e o acolhimento das dúvidas das famílias são fundamentais. “Nenhum pai quer que a filha sofra nas mãos de um namorado que a humilhe ou a violente. Não quer também que ela deixe de seguir estudando porque tem de casar, como se fosse uma obrigação, uma via sem saída. Quando explicamos que falar sobre igualdade de gênero tem a ver com isso, eles se sentem apoiados pela escola”, explica Miriam Grossi, professora do Departamento de Antropologia e coordenadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Por isso, convidar a família para conversar a respeito é a melhor estratégia. Nesse momento, é importante trazer dados concretos, pesquisas e estudos que contextualizem e mostrem a relevância do tema.
Por fim, uma terceira barreira que pode aparecer é a comparação de relevância entre os componentes curriculares. Diante de tantos desafios para a escola brasileira e tantos conteúdos que os alunos devem aprender, há espaço para falar de gênero? “Evidentemente, a situação é dramática, mas todas as disciplinas são importantes. Alfabetização não é mais importante do que gênero. O mundo tal como é precisa de muitos campos de conhecimento e habilidades, além de espaços de diálogo variados”, defende Miriam.
EDUCAÇÃO SEM DESIGUALDADE DE GÊNERO
Saiba como trabalhar o tema na escola do Ensino Infantil ao Médio
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Faz de conta 
Promova com as crianças brincadeiras como limpar a casa, trabalhar ou dirigir. Todos devem assumir o papel que quiserem.
Amizade para todos
Reforce que os amigos podem ser de qualquer sexo. Se surgir a frase “são namoradinhos”, explique que crianças não namoram. Crianças brincam e têm amigos.
Sem barreiras 
Disponibilize todos os tipos de brinquedos para as crianças e amplie o repertório com jogos, instrumentos e outras opções menos marcadas pela questão de gênero.
ORIENTAÇÕES PARA O FUNDAMENTAL I
Sem estereótipos 
Discuta características associadas às mulheres (como a fragilidade) e aos homens (como a força). Debata: essa forma de julgar as pessoas limita a vivência delas? Por quê?
Papel de todos 
Dialogue sobre a responsabilidade de todos para superar a desigualdade de gênero: o que é possível fazer na escola? Os estudantes enxergam desigualdades em quais situações?
Meninos e meninas
Converse com as crianças sobre a existência de diferentes formas de ser menina e menino. As regras sobre isso podem e devem ser mudadas.
ORIENTAÇÕES PARA O FUNDAMENTAL II
Amor desigual
Questione como os relacionamentos podem ser afetados por desigualdades de gênero. Por exemplo: meninas podem ser proibidas de usar determinadas roupas?
Na minha família 
Como a cultura e os papéis de gênero impactam a criação de filhos e filhas? Como é na família de cada um? Há diferenças de responsabilidade para meninos e meninas?
Valores e instituições
Incentive os estudantes a refletir sobre seus valores pessoais e a analisar criticamente a atuação de instituições para a desconstrução da desigualdade.
Fontes: Caderno Orientações técnicas de Educação em Sexualidade para o Cenário Brasileiro: tópicos e objetivos de aprendizagem, da Unesco, Vanessa Leite (CLAM) e César Nunes (Unicamp e Abrades
https://novaescola.org.br/conteudo/16418/garanta-o-direito-de-todos-os-alunos-ao-promover-igualdade-de-genero

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