Buscar

Esquerda e Direita na Política Europeia

Prévia do material em texto

",liN II/ n. \ \11 \ 
V ~~11~~1!~ jlll!I)I!111 
Esquerda e direita na politica europeia 
Portanto, a abordagem essencialista de Laponce enfatiza as conexoes da 
divisao entre esquerda e direita no vocabuhirio politico com os seus antece. 
dentes religiosos. Ou seja, antes de entrar na esfera politica, a referida divi. 
sao estava profundamente impregnada com simbolismo social e religioso: 
na Europa crista, a direita estava universalmente associada a n09ao de pri· 
vilegio, de domina9ao e de sagrado, com 0 <dado de Deus»; esta associa,ao 
era e e, alias, a norma mundial, com excep9ao da China (Laponce, 1981 , 
pp. 10, 29-46 e 69-92). 
lQUADRO N.· I.I J 
Conceitos assoctados a divisao esquerda-dlrcita 
de forma consistente 
Esquerda Direita 
Contrastes politicos ..................................... ........ ........... . 
Contrastes econ6micos ... . 
Contrastes religiosos ......................................... . . 
Orienta9ao face ao tempo 
Fonte: Laponce (1981), p. 119. 
Igualilaria 
Pobre 
Livre Pcnsamento 
Descontinuidade 
Hierarquica 
Rico 
Religiao 
Continuidade 
Nota: Os conceitos associados ao conftito esquerda-direita de forma consistente foram 
aqueles em rela~ao aos quais Laponce DaO detectoD discordancia nas respectivas [cntes. 
Com 0 intuito de detectar os elementos estaveis, temporal e espacial· 
mente, do c6digo politico em analise, Laponce (1981, p. 116) recorreu a 
varias fontes, sobretudo francesas, mas tambem da Europa Continental, da 
Gra·Bretanha e dos EUA: historiadores, para as analises referentes a perio· 
dos mais recuados; cientistas sociais e politicos, para os partidos, ideolo· 
gias e movimentos contemporaneos; «compila90es populares de respostas a 
quest6es sobre 0 significado de esquerda e direita», para aferir os pontos de 
vista de actores politicos, jomalistas, fil6sofos e ensaistas. Desta prime ira 
abordagem resultou a !isla de lemas usados de forma consislente (isto e, 
nao contradit6ria) entre as diferentes fontes (v. quadro n.· 1.1). Para La· 
ponce (1981, p. 119), sao os tres primeiros contrastes (politicos, econ6mi· 
cos e religiosos) que melbor definem os elementos essenciais desta divisao 
ideologica: a direita, a afirma9ao de wna ordem sociopolitica hierarquica e 
de wna bierarquia transcendental ligando 0 bomem Ii divindade; a esquer· 
da, a nega9ao destas duas bierarquias. 
48 
~. Wi 
-:1<> 
Teoria e metodo 
Nwn segundo passo, Laponce (1981, pp. 121-137) socorreu·se de dois 
inqw!ritos aplicados a estudantes universitarios dos EUA, Canada e Fran,a, 
em 1962 e 1968, sobre 0 significado da referida divisao. Comparando os 
resultados encontrados atraves destes inqueritos com os dados das fontes 
anteriormente referidas, 0 autor identificou os elementos nucleares e peri. 
fericos do sentido da divisao esquerda·direita: os primeiros sao os referidos 
de forma consensual para categorizar cada wna das areas ideologicas pelos 
estudantes e pelas outras fontes a que 0 autor recorreu; os tra90s perifericos 
sao aqueles que foram usados de forma consensual apenas pelos estudantes. 
Daqui resultararn os seguintes elementos nucleares: a direita, a aceita9aO 
das hierarquias sociais e religiosas; it esquerda, a afirma9ao da igualiza,ao 
das condi90es de vida atraves do desafio da domina9iio de origem divina 
(<<de Deus») e secular (<<do principe»). Como tra,os perifericos da divisao 
entre direita e esquerda temos: para 0 primeiro sector politico, 0 passado, 0 
status quo, a livre empresa e os EUA ; para a segunda orienla9iio ideologica, 
o futuro, a mudan9a, a interven9ao do Estado na economia e a URSS. Por· 
tanto, daqui ressalta 0 canicter central da ordem (social, politica e religiosa) 
hierarquica para a defini9ao desta divisao politica, ao contrario das questi'ies 
economicas e relacionadas com 0 papel do Estado. 
Na sua obra ja celebre, Direita e Esquerda, Norberto Bobbio (1994), 
urn eminente filosofo italiano, tarnbem procura encontrar os tra90s funda· 
mentais da divisao esquerda·direita: «Se, apesar das tao frequentes contes· 
ta9i'ies, a distin9ao entre direita e esquerda continua a ser usada, 0 problema 
passa a ser outro: 0 que importa ja nao e comprovar a sua legitimidade, 
mas analisar os criterios propostos para a sua legitima,ao (Bobbio, 1994, 
p. 58).» 
Bobbio (1994, pp. 58-62) come,a par classificar 0 estudo de Lapon· 
ce como «a obra rna is irnportante sobre este assunto, ponto de cbegada 
das analises anteriores e ponto de partida dos estudos posteriores» (1994, 
p. 58); porem, a seguir desenvolve wna serie de criticas sobre 0 referi· 
do estudo. Destas, destacamos aquela que nos parece mais fundamental: a 
associa9ao entre 0 sagrado/a religiao com a direita e 0 profan% ateismo 
com a esquerda, que 0 fil6sofo Italiano considera «muito parcial» e «por· 
tanto inadequada» (Bobbio, 1994, p. 62). E da os exemplos de varios mo· 
vimentos da direita europeia nao re1igiosos e pagaos, como, por exemp10, 
a nouvelle droite da epoca actual. Poderiamos ainda acrescentar 0 nazismo 
e 0 fascismo enquanto doutrinas e fon;as simultaneamente de direita e se· 
culares. Adicionalmente, voltando a perspectiva de Bobbio sobre as leses 
do psic610go canadiano, a visao de Laponce n1l0 permite ineluir os igua· 
litarismos de inspira9110 religiosa na esquerda: por exemplo, a teologia da 
49 
Esquerda e direita na politica europeia 
liberta~ao (Bobbio, 1994, p, 62), Apesar de tudo, sobretudo em !ermos de 
doutrinas e for~as de esquerda, os exemplos de Bobbio referem-se a for~as 
relativamente marginais na politica de massas modema, Portanto, apenas 
parciaImente infirmam as teses de Laponce, 
Na nossa perspectiva, hit que considerar ainda os sistemas partidarios 
europeus onde existem partidos de direita secular e partidos religiosos (Ro-
landa, Suecia, Belgica, etc,), para ver que em materia de temas morais e re-
ligiosos os partidos confessionais estao sempre mais a direita do que os pri-
melros e sao eles os defensores das causas religiosas; em termos de politica 
econ6mica passa-se geralmente 0 inverso (Laver e Runt, 1992, pp, 43-68), 
Para Bobbio, 0 criterio fundamental para distinguir a esquerda da direita 
e a diferen~a de atitude dos homens face ao ideal da igualdade (1994, p, 76), 
Mas 0 fil6sofo Italiano adverte que este conceito nao e absoluto, Por isso, 
supoe sempre a resposta a tres questoes fundamentais: entre quem devem 
os bens ou os encargos ser repartidos? Quais os bens ou encargos a repartir? 
Qual 0 criterio usado na reparti~ao? Segundo 0 autor, as respostas a estas 
quest5es podem ser muito variadas e, por isso, 0 espectro de respostas/ideolo-
gias pode ser bastante diverso, seja entre as filosofias mais igualitarias, seja 
entre as mais inigualitarias: 
Os individuos podem ser todos, muitos ou poucos, ou urn so; os bens 
a distribuir podem ser direitos, vantagens ou facilidades economicas, 
posi~oes de poder; os criterios podem ser 0 merito, a capacidade, a clas-
se social, 0 esfor~o ou outros ainda, e mesmo, em ultima hipotese, a 
ausencia de qualquer criterio, que caracteriza 0 principio supremamente 
igualitario, a que proponho seja dada a designa,ao de «igualitarista»: «0 
mesmo para todos» (Bobbio, 1994,77-78), 
Bobbio adverte que as diferen,as sao eutre uma esquerda tendencial-
mente mliis igualitaria e uma direita tendenciaImente mais inigualitaria, 
mas nem a primeira e sempre igualitarista, longe disso, nem a segunda e 
sempre inigualitarista (Bobbio, 1994, pp, 78-87), 
Para distinguir as varias familias polfticas no seio de cada area ideol6gi-
ca, Bobbio recorre a urn criterio adicional, <diberdade versus autoridade», 
relacionado com a atitude perante os procedimentos democraticos, Este ele-
mento permite diferenciar os extremistas dos moderados em cada campo: 
na extrema-esquerda estao os movimentos simultaneamente igualitarios e 
autOlitarios, osjacobinos e seus continuadores; no centro-esquerda esta 0 
«socialismo liberah) e a social-democracia, simultaneamente igualitaria e 
«libertaria»; situados no centro-direita estao os movimentos e doutrinas si-
50 
\ . 
Teoria e metoda 
multaneamente <<iibertarios» e inigualitarios; na extrema-direita situam-se 
as familias politicas antiliberais e anti-igualiwias (Bobbio, 1994, pp, 88-94, 
especiaImente p, 93), , 
o empreendimento de Bobbio afigura-se-nos bastante bem sucedldo, 
embora tambem com alguns problemas, Primeiro, e pouco claro como e 
que 0 criterio da igualdade se aplica para diferenciar as foryas politicas em 
materia dos temas ecol6gicos, Neste caso, a igualdade refere-se a quem? 
Entre 0 homem e a natureza? Entre as gera<;oes presentes e as futuras? Ou 
este principio deve aqui ser concebido como 0 caracter mais ou menos igua-
litario da reparti<;ao dos custos associados a' protec<;ao da natureza? Nes-
te caso tedamos enta~ a possibilidade de <Nerdes» de direita e <Nerdes» 
de esquerda, Segundo, M varios temas em que a luta pela igualdade pode 
surgir associ ada a for<;as (pelo menos actualmente) situadas a direita: por 
exemplo, a defesa da igualdade dos cidadilos perante a lei, associada aos 
partidos e ideologias liberais; ou ainda a igualdade de oportunidades, que 
varias foryas de direita nile terao muita dificuldade em subscrever (sobre 
alguma ambiguidade ideol6gica do tema da igualdade, v. Eatwell, 1992, 
pp. 53-55; sobre as familias de partidos liberais e radicais, nomeadamente 
em termos das respectivas ideologias, v, Beyme, 1985, pp, 31-46), 
o polito logo e publicista portugues Jaime Nogueira Pinto tambem pro-
cura os tra90s essenciais da divisao entre esquerda e direita: 
Parece-nos que 0 mellior caminho para a caracteriza<;ao pode partir 
de uma perspectiva de alguma hip6tese de empirismo organizador, Pers-
pectiva sugerida na frase ja citada de Prezzolini: «A direita e 0 conjun-
to das direitas, das que recordamos e das que esquecemos»; aqui havera 
como ponto de partida que procurar, nos pensadores, nos modelos, nos 
movimentos ou partidos autoclassificados ou reconhecidos sem contro-
versia como «de direita», principios, valores, estilos, denominadores co-
muns (pinto, 1996, p, 30), 
Ou seja, apesar de Nogueira Pinto enfatizar a diversidade dos movi-
mentos, partidos e ideologias de cada area ideologica, acaba por procurar 
tambem os elementos essenciais da divisao politica em analise, 0 resultado 
de tal empreendimento concretiza-se na definiyao de sete elementos que 
caracterizam as direitas e de dez tra<;os fundamentais das esquerdas (v, qua-
dro n." 1.2). 
Urn primeiro elemento fundamental de diferencia<;1io consiste naquilo 
que Nogueira Pinto designa de optimismo e pessimismo antropol6gico, res-
pectivamente para a esquerda e a direita, principios dos quais decorrem va-
51 
Esquerda e direita na politica europeia 
rias caracteristicas de cada uma das duas familias politicas. a pessimismo 
antropologico da direita consiste na recusa da visao de Jean Jacques Rous-
seau sobre a «bondade natural do homem», estando esta familia politica 
mais proxima da visao de Thomas Hobbes. au seja, a direita defende que 0 
estado da natureza seria nao uma especie de paraiso perdido, mas sim urna 
situa,iio caracterizada pela ,<Iuta de todos contra todos». Daqui decorre a 
rejei,ilo da ideia sobre a possibilidade de constru,iio racional da sociedade 
perfeita (utopia), bern como da concep,ao linear da evolu,iio hurnana e da 
crenya no progresso (Pinto, 1996, p. 31). Peto contnirio, a esquerda acredita 
que 0 «homem e urn ser naturalmente bom» e, na senda do racionalismo ilu-
minista, cre nas possibilidades de transformayao da rauo e ac,iio hurnanas. 
Daqui decorrem as cren,as na possibilidade de construyilo de sociedades 
idealmente perfeitas e justas (igualitanas), bem como na ideia de progresso 
e de evolu,ao linear da historia. 
Temas essenciais na divisao entre direita e esquerda 
[QUADRO N." 1.21 
D1reita 
Pessimismo antropol6gico. 
AnliUlopismo . ............... . 
Organicismo ......... ..... ..... .. . 
Diretro it diferen9a ..... 
Elitismo .................................. ................. ............. . 
Propriedade e anlieconomicismo .... ..................... .. 
Nacionalismo .......... ..... . 
Fonte: Pinto ( 1996), pp. 30-43. 
Esquerda 
Optimismo antropol6gico 
Utopismo 
Raciotl slismo 
Linearismo evolutivo 
Igualitarismo 
Socialismo 
Dcmocratismo 
Economicismo 
Intemacionalismo 
Humanitarismo 
. Adicionalmente, a direita caracteriza-se por acentuar «a perspectiva hie-
rarquica e eiitista de qualquer sociedade e considera a anarquia e 0 iguali-
tarismo como utopias ou discurso justificativo de oligarquias dominantes 
que govemam sociedades desiguais em nome de tais 'formulas politicas 
igualitarias'» (Pinto, 1996, p. 33). Esta familia ideologica da ainda prio-
ridade its comunidades <<naturais» sobre 0 individuo: organicismo (Pinto, 
1996, p. 32). 
52 
(" 
Teoria e metodo 
Niio vale a pena avan,ar mais na descri,ao dos varios elementos carac-
terizadores da direita e da esquerda constantes do quadro n.o 1.2, ate p~r~ue 
muitos deles foram ja sendo referidos ao longo da exposll'iio das posll'oes 
dos outros autores. Pelo contnirio, 0 elemento que nos parece mals Impor-
tante sublinhar e que 0 contributo de Jaime Nogueira Pinto, para alem dos 
'ritos associados a urna maior exaustividade na descri,ao da(s) dlrelta(s) 
::a(s) esquerda(s), enferma de duas limital'oes fundamentais. Primeiro, ,a 
tentativa de sumariar os elementos essenciais de cada uma das duas falTIl-
lias politicas apresenta urn claro Mfke de parcimonia. Segundo, e obvio 
que muitos dos elementos caracterizam algumas correntes de determmada 
familia ideologica, mas sao bastante parclals. 
Vejamos quatro exemplos. Primeiro, as ideologias, partid~s e movim~n­
tos liberais entroncam na tradi<;:ilo iluminista e, por ISSO, partllham tambem 
de urn certo optimismo antropologico, na esperanya de que e possivel trans-
formar a sociedade, no sentido do aumento da felicidade e do bem-estar 
dos homens, atraves da mudan<;:a das suas institui,oes e das oportunidades 
concedidas aos individuos (Baradat, 1997, p. 21 ; Beyme, 1985, pp. 31-46), 
Segundo, estas mesmas for,as politicas tenderao a enfatizar. a_importan~ia 
central do individuo na sociedade e, por ISSO, a rejeltar uma visao organlcls-
ta da mesma, mais proxima da fami lia conservadora ou da extrema-direita 
fascista. Mais (pelo menos), mesmo entre os conservadores dos EUA ha 
uma tendencia ideologica (<<os empresarios») que enfatiza 0 individualismo 
(Baradat, 1997, pp. 27-28). Terceiro, a «familia politica liberal», actual-
mente iI. direita, mas que se situava II esquerda no seculo XVIII e em parte do 
seculo XIX, tem sido sempre defensora da igualdade dos cidadaos ante a lei, 
da primazia II economia sobre a politica e convive mal com os entraves II 
circulayao de mercadorias (capitalista) geralmente associados iI. perspectiva 
nacionalista. Quarto, ja referimos as contradi,oes da esquerda em materia 
de «democratismo» e «intemacionalismQ», mas tamMm a rejei,ao do eli-
tismo esta longe de ser isenta de tensoes internas: basta pensar na ideia de 
<<vanguarda» politica em Lenine. 
Silo estas e outras contradi,oes intemas nas abordagens essencialistas 
da direita (e da esquerda) que levam Roger Eatwell (1992, pp. 48-59) a 
defender que a forma mais adequada de entender a natureza da direita (e da 
esquerda) e considen,-Ia em termos de «uma variedade de estilos de pensa-
mento» (Eatwell, 1992, p. 60). Este autor ve dois problemas basicos com 
as abordagens essencialistas. Primeiro, os conceitos usados em representa-
1'5es unilineares ou circulares da competis:ao politica sao multifacetados. 
Segundo, as ideologias sao dinfunicas e necessitam de urn enquadrarnento53 
Pedro
Highlight
	1
	2
	3

Continue navegando