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ATIVIDADE AGRÁRIA COMO EIXO CENTRAL DO CONCEITO DE DIREITO AGRÁRIO LUCAS ABREU BARROSO Mestre em Direito pela UFG Doutor em Direito na PUC/SP Professor da PUC/MG 1. CONCEITO DE DIREITO AGRÁRIO De início, cumpre-nos ressaltar a advertência do professor PAULO TORMINN BORGES1: “só podemos definir um instituto se lhe conhecemos os elementos essenciais”. Acrescenta-se a esta a de FERNANDO PEREIRA SODERO que, segundo o professor BENEDITO FERREIRA MARQUES2, esclarece: “no Brasil, ainda sem doutrina, iniciando os primeiros estudos sobre a matéria, é, na realidade, um pouco cedo para conceituarmos o Direito Agrário. Na verdade, há que haver um grande trabalho dos nossos futuros juristas agrários, para, delimitando o seu conteúdo, definindo os seus institutos, firmando sua doutrina, defini-lo com precisão”. Esta é a razão das inúmeras definições que o Direito Agrário recebeu entre nós nesses últimos anos, pois sendo um direito novo, ainda em formação, cada autor procurou dar um conceito ao mesmo, o que prejudicou de forma considerável um consenso em torno deste. Quanto a uma definição supranacional, tem-se que esta não seja possível, haja vista que este ramo do direito apresenta particularidades que variam de acordo com a realidade de cada país. 1. BORGES, Paulo Torminn - Institutos básicos do Direito Agrário. 10. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 14. 2. MARQUES, Benedito Ferreira - Direito Agrário brasileiro. Goiânia: AB, 1996. p. 5. 2 O professor PAULO TORMINN BORGES3 conceitua o Direito Agrário como: “o conjunto sistemático de normas jurídicas que visam disciplinar as relações do homem com a terra, tendo em vista o progresso social e econômico do rurícola e o enriquecimento da comunidade”. Por sua vez, FERNANDO PEREIRA SODERO, apesar de sua consideração que inicialmente expusemos, apud NELSON DEMÉTRIO4, assim define o Direito Agrário: “conjunto de princípios e de normas de direito público e de direito privado, que visa a disciplinar as relações emergentes da atividade rural, com base na função social da terra”. Explica NELSON DEMÉTRIO5 que “a expressão atividade rural é aqui empregada no sentido de compreender o uso, posse, fruição e administração da terra, das várias modalidades, quer a agrícola, quer a pecuária, agro-industrial ou extrativa”. Nesse sentido, RAYMUNDO LARANJEIRA6 traça o conceito de Direito Agrário: Direito Agrário é o conjunto de princípios e normas que, visando a imprimir função social à terra, regulam relações afeitas à sua pertença e uso, e disciplinam a prática das explorações agrárias e da conservação dos recursos naturais. Vê-se, pois, claramente pela interpretação dos conceitos acima expostos, que estes “guardam, entre si, pontos de convergência, quando colocam a atividade agrária como centro de suas preocupações, na medida em que somente por ela se oportuniza a relação homem-terra”7. E é justamente este o nosso intuito: demonstrar que a atividade agrária encontra-se sempre presente nos conceitos de Direito Agrário, embora formulados por autores de diferentes países, em épocas distintas. 3. BORGES, Paulo Torminn - Ob. cit. p. 17. 4. DEMÉTRIO, Nelson - Doutrina e prática do Direito Agrário. 2. ed. Campinas: Julex, 1987. p. 36. 5. idem, ibidem. 6. LARANJEIRA, Raymundo - Propedêutica do Direito Agrário. São Paulo: Ltr, 1975. p. 58. 7. MARQUES, Benedito Ferreira - Ob. cit. p. 6. 3 A explicação para este fato é que a atividade agrária é elemento essencial para o Direito Agrário, pois uma vez que se não a exerça, este direito não tem aplicabilidade, permanecendo no plano abstrato, isto é, a lei antes de sua efetivação prática. A atividade agrária é quem realiza o Direito Agrário, quem o põe em movimento, tornando- o concreto à consecução de seus objetivos. Prosseguindo entre os conceitos de autores pátrios, temos o formulado por OCTÁVIO MELLO ALVARENGA que, como nos informa NILSON MARQUES8, entende ser o Direito Agrário o “ramo da ciência jurídica, composto de normas imperativas e supletivas que regem as relações emergentes da atividade do homem sobre a terra, observados os princípios de produtividade e justiça social”. Este renomado agrarista deixa perceptível a presença do elemento atividade agrária, apesar de não o mencionar explicitamente. Ao contrário, J. MOTTA MAIA apud ALCIR GURSEN DE MIRANDA9 deixa tão visível em seu conceito a atividade agrária, que chega a colocar o Direito Agrário por sua conta: “...Direito Agrário, o conjunto de disposições reguladoras da atividade agrária...”. ALCIR GURSEN DE MIRANDA10 também elabora seu próprio conceito. Para ele, o Direito Agrário “é o ramo jurídico que regula as relações agrárias, observando-se a inter-relação homem/terra/produção/sociedade”. Fechando a análise dos conceitos de alguns jusagraristas nacionais, PINTO FERREIRA11 igualmente destaca a atividade agrária quando afirma ser o Direito Agrário “um complexo normativo, com princípios gerais próprios e específicos, disciplinando relações entre os sujeitos e os bens agrários no exercício da atividade agrária”. Entre os estrangeiros, trazemos à colação o conceito de ANTONINO VIVANCO, este argentino que é considerado o maior teórico do Direito Agrário, para quem, de acordo com 8. MARQUES, Nilson - Curso de Direito Agrário. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 17. 9. MIRANDA, Alcir Gursen de - Teoria de Direito Agrário. Belém: Cejup, 1989. p. 55. 10. idem, ibidem, p. 65. 11. FERREIRA, Pinto - Curso de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 2. 4 RAFAEL AUGUSTO DE MENDONÇA LIMA12, “o Direito Agrário é a ordem jurídica que rege as relações sociais e econômicas, que surgem entre os sujeitos intervenientes na atividade agrária”. ISMAEL MARINHO FALCÃO13 traz a lume o conceito de RODOLFO CARRERA, da mesma forma destacando, como seu compatriota ANTONINO VIVANCO, a atividade agrária como centro das relações de Direito Agrário, quando diz que este “es la ciencia jurídica que contiene los principios y normas que reglan las relaciones emergentes de la actividad agraria a fin de que la tierra sea objeto de una eficiente exploración que redunde en una mayor y mejor producción, así como en una más justa distribución de la riqueza en beneficio de quien la trabaja y de la comunidad nacional”. Do México, mencionamos MARTHA CHAVEZ P. VELAZQUEZ que conceitua o Direito Agrário, segundo nos informa ISMAEL MARINHO FALCÃO14, como sendo: ...o conjunto de normas (teóricas e práticas) que se referem ao tipicamente jurídico, enfocando ao cultivo do campo e ao sistema normativo que regula o que é relativo à organização territorial rústica e às explorações caracterizadas como agrícolas, pecuárias, florestais. Outro mexicano que destacamos, LUCIO MENDIETA Y NUÑES apud PINTO FERREIRA15 apresenta o seu conceito nos seguintes termos: o Direito Agrário é o conjunto de normas, leis, regulamentos e disposições em geral, doutrina e jurisprudência que se referem à propriedade rústica e às explorações de caráter agrícola. Na Espanha, o professor JUAN JOSE SANZ JARQUE16 assim conceitua o Direito Agrário: 12. LIMA, Rafael Augusto de Mendonça - Direito Agrário. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. p. 13. 13. FALCÃO, Ismael Marinho - Direito Agrário brasileiro - Bauru: Edipro, 1995. p. 46. 14. idem, ibidem. 15. FERREIRA, Pinto - Ob. cit. p. 2. 5 es aquel conjunto de normaspor las que se regula la propiedad y tenencia de la tierra, a la vez que la explotación y la empresa agrarias, para el mejor cumplimiento de las finalidades de las mismas, y una continuada acción de adaptación y reforma, de ellas, cuando así es necesario, en armonía con la ordenación del territorio, al objeto inmediato de la defensa del agricultor, de la producción de materias primas y alimentos vegetales y animales suficientes en cantidad y calidad para todos los hombres, de la estabilidad social, del desarrollo y del equilibrio ecológico y de ambiente. O também espanhol e insigne agrarista ALBERTO BALLARIN MARCIAL, como demonstra o professor PAULO TORMINN BORGES17, afirma que: o direito agrário é o sistema de normas, tanto do direito privado como do direito público, especialmente destinadas a regular o Estatuto do empresário, sua atividade, o uso e a posse da terra, as unidades de exploração e a produção agrária em seu conjunto, segundo determinados princípios gerais peculiares a este ramo jurídico. Nítido ficou em todos os conceitos transcritos da doutrina agrária alienígena que, de maneira idêntica à nossa, nela a atividade agrária configura-se elemento essencial do conceito de Direito Agrário, sendo seu eixo central. 16. JARQUE, Juan Jose Sanz - Curso de Derecho Agrario Comparado. Granada: Editorial Comares, 1995. p. 11-12. 17. BORGES, Paulo Torminn - Ob. cit. p. 14. 6 2. ATIVIDADE AGRÁRIA A professora GISELDA M. F. NOVAES HIRONAKA18 nos traz o conceito de atividade agrária formulado por FERNANDO PEREIRA SODERO: A atividade agrária é o complexo das operações realizadas pelo rurícola, profissionalmente, visando à produção da terra, num processo agrobiológico no qual participa ativamente, sendo certo que seus atos não se executam isoladamente, mas com a colaboração ativa do processo evolutivo da própria natureza. Portanto, a atividade agrária resulta da atuação do homem sobre a terra em busca de um objetivo que é a produção, auxiliado pela participação efetiva da natureza. Neste sentido é a orientação de EMILIO ALBERTO MAYA GISCHKOW19, quando afirma que a atividade agrária “é o resultado da atuação humana sobre a natureza, em participação funcional, condicionante do processo produtivo”. Prossegue, ressalvando que: “Essa participação, o chamado processo agrobiológico, não se exaure com a atividade do homem sobre a terra, pois é condicionante de outras relações de ordem social. Em função da referida atividade, os homens estabelecem relações também de conteúdo econômico e jurídico”. Os critérios para a caracterização da atividade agrária são oferecidos por três teorias: 1) Critério de CARRERA: Teoria Agrobiológica; 2) Critério de CARROZZA: Teoria da Agrariedade; e 3) Critério de VIVANCO: Teoria da Acessoriedade. 18. HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes - Atividade Extrativa (Parte Geral). Revista de Direito Civil, a. 9, n. 33, p. 67-83. São Paulo, Revista dos Tribunais, jul./set. 1985. p. 72-73. 19. GISCHKOW, Emilio Alberto Maya - Princípios de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, l988. p. l. 7 A Teoria Agrobiológica, elaborada por RODOLFO CARRERA, tem como fulcro a terra e o processo agrobiológico, que, segundo a professora GISELDA M. F. NOVAES HIRONAKA20, para ele, “são os fatores que, primordialmente, constituem a atividade agrária e lhe dão a especificidade da qual se reveste para diferenciar-se das demais atividades”. CARRERA ensina, ainda, que, uma vez caracterizada a atividade agrária, deve ser lembrado o trabalho do homem na terra a fim de fazê-la produzir, pois é o labor humano, aliado à terra mais o processo agrobiológico, que realiza “o ciclo produtivo agrário próprio da atividade agrária”21. Formulada pelo italiano ANTONIO CARROZZA, a Teoria da Agrariedade parte da verificação de que o fundamento da teoria clássica (agrobiológica) não mais satisfaz como caracterizador da atividade agrária. Entende o referido autor ser necessário “estabelecer um novo critério capaz de traçar uma característica comum a todos os institutos que informam o ramo jurídico denominado Direito Agrário”22. Para a obtenção do novo critério que caracterizasse a atividade agrária, CARROZZA abandona qualquer um dentre os anteriormente utilizados, “quer fossem relacionados ao sujeito da relação jurídico-agrária, ou ao tipo de produto obtido, ou ao fim ao qual se destina a produção. Rejeitou, até mesmo, a referência a uma suposta categoria particular de atos, por entender obsoleto isolar um ato agrário como oposto a um ato de comércio ou outro, de natureza diversa”23. A teoria da agrariedade sujeita o ciclo biológico - principal elemento da teoria de CARRERA e que atribui especificidade à atividade agrária - aos riscos da natureza, ou seja, subordina aquele às intempéries, “cuja ocorrência escapa totalmente ao controle do homem”24. Vale ressaltar que este risco é correlato, pois há uma relação mútua entre o ciclo biológico e os riscos da natureza, uma vez que as intempéries inviabilizam a concretização do primeiro. 20. HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes - Ob. cit. p. 74. 21. idem, ibidem. 22. idem, ibidem. 23. idem, ibidem. 24. idem, ibidem, p. 75. 8 A sujeição do ciclo biológico aos riscos da natureza é que diferencia a atividade agrária das atividades comercial e industrial, pois enquanto na primeira o ciclo biológico está condicionado às forças da natureza - sobre as quais nem sempre o homem pode intervir -, nas demais ele é totalmente controlável pela ação do produtor, exceto em caso de catástrofe. Destarte, acredita CARROZZA ter encontrado o elemento caracterizador da atividade agrária e “denominador comum a todos os institutos que informam o Direito Agrário, de maneira a torná-los harmônicos e homogêneos entre si, tendo em vista a formação de um verdadeiro sistema”25. A Teoria da Acessoriedade, de autoria de ANTONINO VIVANCO, tem como ponto de partida dois tipos de relação que, segundo observa, advêm da atividade agrária: um entre o homem e a terra, e o outro entre os homens. Este aspecto econômico-social, além dos demais caracteres típicos da atividade agrária, é o que a diferencia das atividades humanas, comerciais e industriais: “Nela se reconhece, portanto, (...) relações de ordem econômica e relações de índole social”26. VIVANCO, baseando-se no caráter sócio-econômico, propõe critérios para caracterizar a atividade agrária. São eles: 1) critério da necessidade; 2) critério da prevalência; 3) critério da autonomia; 4) critério da normalidade; 5) critério da ruralidade; e 6) critério da acessoriedade. 25. idem, ibidem. 26. idem, ibidem, p. 76. 9 Concluindo pela inconsistência de cada um destes critérios à medida em que os estudava, VIVANCO aponta, finalmente, o da acessoriedade como o melhor para caracterizar a atividade agrária. O critério da acessoriedade consiste em verificar se a atividade agrária desenvolvida exerce a função principal na utilização da terra, deixando as atividades de transformação e venda como complementares. Assim, tem-se a qualificação da atividade como agrária. Caso contrário, tornando-se a atividade agrária meio para se atingir as atividades de transformação e venda, a atividade desempenhada é industrial oucomercial. VIVANCO desta forma expressa o seu entendimento acerca da caracterização da atividade agrária, demonstrando através do critério da acessoriedade que “la actividad agraria productiva deve ser la que desempeña el papel principal dentro del ámbito rural, mientras que las actividades transformadoras y comerciales constituyen el accesorio o complemento de aquella. Cuando dejan de serlo y pasan a desempeñar el papel fundamental, dejan de ser agrarias, para transformarse en industriales o comerciales”27. A professora GISELDA M. F. NOVAES HIRONAKA28 apresenta restrições ao critério estabelecido por VIVANCO e aponta o modo ideal para se caracterizar a atividade agrária: o critério da acessoriedade eleito por Vivanco como o mais razoável e prático, apresenta também alguns pontos falhos, pelo que seu emprego não pode ser encarado como ideal à caracterização de uma atividade agrária como tal. O melhor sistema, por vezes, será aquele que congrega os aspectos favoráveis de cada critério, aproveitando o que cada um deles oferece de mais próximo à realidade. A intenção há que ser sempre uma só: a tentativa de se obter 27. idem, ibidem, p. 77. 28. idem, ibidem, p. 78. 10 uma regulação jurídica a mais harmônica possível da atividade agrária. De acordo com sua teoria, VIVANCO apud RAFAEL AUGUSTO DE MENDONÇA LIMA29 assim classifica as atividades agrárias: As próprias: 1) atividades produtivas; 2) atividades de conservação; 3) atividades de preservação. As acessórias: 1) atividade extrativa; 2) atividade de captura (caça e pesca). As conexas: 1) atividade de manufatura (indústria ou beneficiamento); 2) atividade de transportes; 3) atividade lucrativa, sempre que se realiza pelo produtor como forma complementar à sua atividade produtiva agrária; 4) atividade de processamento. Finalmente, devem ser consideradas as atividades vinculadas, que são as atividades lucrativas, quando exercidas sem relação com a produção. 29. LIMA, Rafael Augusto de Mendonça – Ob. cit. p. 16. 11 RAYMUNDO LARANJEIRA segundo o professor BENEDITO FERREIRA MARQUES30, estabelece a seguinte classificação para as atividades agrárias: Explorações rurais típicas – que compreendem a lavoura, a pecuária, o extrativismo vegetal e animal e a hortigranjearia; Exploração rural atípica – que compreende a agroindústria; Atividade complementar da exploração rural – que compreende o transporte e a comercialização dos produtos. Por sua vez, EMILIO ALBERTO MAYA GISCHKOW31 diz que a atividade agrária pode ser considerada sob três aspectos: a) Atividade imediata, tendo por objeto a terra, considerada em sentido lato, abrangendo a atuação humana em relação a todos os recursos da natureza. b) Os objetivos e instrumentos dessa atividade, compreendendo a preservação de recursos naturais; a atividade extrativa de produtos inorgânicos e orgânicos; a captura de seres orgânicos (caça e pesca) e a produtiva (agricultura e pecuária). c) Atividades conexas, como o transporte de produtos agrícolas, os processos industriais e as atividades lucrativas, ou seja, o comércio propriamente dito. 30. MARQUES, Benedito Ferreira – Ob. cit. p. 10. 31. GISCHKOW, Emilio Alberto Maya – Ob. cit. p. 2-3. 12 Fato curioso no que diz respeito à atividade agrária é que, embora esta seja um dos principais elementos do Direito Agrário e centro das conceituações dadas a este ramo jurídico, ela não se encontra conceituada no Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964), mas, como lembra ISMAEL MARINHO FALCÃO32, está presente “de modo literal, no corpo do art. 92, quando esse canon se refere à ‘atividade agrícola e pecuária’”. Preceitua o Art. 92 do Estatuto da Terra: Art. 92 – A posse ou uso temporário da terra serão exercidos em virtude de contrato expresso ou tácito, estabelecido entre o proprietário e os que nela exercem atividade agrícola ou pecuária [grifo nosso], sob forma de arrendamento rural, de parceria agrícola, pecuária, agroindustrial e extrativa, nos termos desta lei. Uma vez que este diploma legal prevê como requisito à posse ou uso temporário da terra que nela se exerça a atividade agrária, e por ser de grande relevância jurídica, trataremos agora da distinção entre posse agrária e posse civil, tendo em vista que as regras do Direito Civil não satisfazem às exigências contidas no Direito Agrário. 3. POSSE AGRÁRIA E POSSE CIVIL Analisando as teorias possessórias que lograram maior êxito dentro do Direito Civil, ou seja, a Teoria Subjetiva de Savigny, a Teoria Objetiva de Ihering e a Teoria de Saleilles, nota-se claramente que as mesmas não são suficientes para a caracterização da posse agrária. 32. FALCÃO, Ismael Marinho – Ob. cit. p. 50. 13 O fundamento para esta afirmativa encontra-se na inadequação existente nas regras da doutrina civilista, quando observadas sob a ótica do Direito Agrário, haja vista que este exige muito mais que a simples apreensão da coisa, o poder de dispor do bem, a visibilidade do domínio e a intenção de dono. Além disso, o Código Civil admite – o que de forma alguma aceita o Direito Agrário – que “esta posse seja realizada em nome de outrem, por interposta pessoa, por procurador, com ou sem mandato, desde que ratificados os atos nesta última hipótese”33. O Direito Agrário apresenta regras próprias para a caracterização da posse, baseadas na função que o imóvel deve desempenhar em proveito da sociedade. Portanto, para que se verifique a posse agrária faz-se necessário que sobre o imóvel se exerça a atividade agrária, fazendo-o produzir, de forma a aproveitar racionalmente a área, condicionando o seu uso ao bem-estar da comunidade. No que concerne ao usucapião, a posse agrária, para que se converta em propriedade, requer mais que a posse sob o enfoque da doutrina do Direito Civil: exige o labor efetivo do homem sobre a terra. Tanto é assim, que o tempo de posse exercido pelo antecessor no âmbito rural não pode ser aproveitado pelos herdeiros, a menos que estes também exerçam a atividade agrária no imóvel. Mesmo considerando a evolução ocorrida no disciplinamento da posse civil, esta ainda “não se revela suficiente para abarcar e explicar o fenômeno possessório agrário que, entre outras finalidades, inegavelmente se dirige à fixação do homem às atividades agrárias e à terra onde as exerça (...), o que bem mostra que o Direito Agrário não pode, pura e simplesmente, apropriar-se dos conceitos de posse comum para definir o que seria a posse agrária” 34. Questão que não se pode deixar de ressaltar é a que diz respeito ao tratamento dispensado pela legislação no tocante à posse agrária. Esclarece o professor GETÚLIO TARGINO LIMA35: A legislação agrária brasileira, principalmente consubstanciada no Estatuto da Terra (Lei n. 4.504, de 30- 33. LIMA, Getúlio Targino – A posse agrária sobre bem imóvel: implicações no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 47-48. 34. idem, ibidem, p. 49. 14 11-64) e Decretos regulamentadores, não tratou da posse com a importância que a mesma tem no complexo agrário, não chegando sequer a ter uma posição definida quanto ao termo. Por todos estes motivos, entendemos que as regras contidas no Direito Civil, em relaçãoao fenômeno possessório, são insuficientes e inadequadas para atender às exigências contidas no Direito Agrário, sendo que a principal razão para isto encontra-se na destinação social – além da econômica – que este apresenta. 4. ATIVIDADE AGRÁRIA COMO EIXO CENTRAL DO CONCEITO DE DIREITO AGRÁRIO Depois de restar amplamente demonstrada a presença constante da atividade agrária nos conceitos formulados de Direito Agrário, quer pela doutrina agrária brasileira, quer pela estrangeira, e após discorrermos sobre a mesma, podemos afirmar que o fato desta se encontrar como eixo central das conceituações existentes acerca desse ramo jurídico não é mera coincidência, mas conseqüência lógica que dele advém, pois, como lembra ALCIR GURSEN DE MIRANDA36, ao se conceituar “o fator mais importante é contemplar o objeto com precisão”. É oportuno que se faça a distinção jurídica entre objeto e conteúdo, uma vez que ambos não se confundem, pelo contrário se mostram bastante distintos, cada qual exercendo função imprescindível para a caracterização de um direito: “o objeto é o que é disciplinado e o conteúdo é o que disciplina; o objeto é o normatizado e o conteúdo são normas jurídicas”37. 35. idem, ibidem, p. 50. 36. MIRANDA, Alcir Gursen de – Ob. cit. p. 53. 37. idem, ibidem, p. 65. 15 RAFAEL AUGUSTO DE MENDONÇA LIMA38 deixa claro o objeto do Direito Agrário, quando prescreve: “O Direito Agrário tem como objeto o âmbito rural e este âmbito se constitui de diversos elementos, a saber: a estrutura agrária, a empresa agrária e a atividade agrária”. Acrescenta-se a estes a política agrária. Podem surgir críticas à afirmação que fizemos, no sentido de que, sendo quatro os elementos que compõem o objeto do Direito Agrário, não poderíamos assegurar ser a atividade agrária o eixo central do conceito deste direito, desprezando os demais. Na verdade, nossa intenção não é desacreditar a estrutura agrária, a empresa agrária e a política agrária como elementos importantes na composição do Direito Agrário, mas apenas demonstrar que a atividade agrária é o seu elemento principal. Isto porque, de nada adianta uma estrutura agrária bem definida e elaborada, se sobre ela não se exercitar a atividade agrária. Por sua vez, a empresa agrária é decorrência que surge da feita que se exerça a atividade agrária. Por fim, a política agrária, que assim como a atividade agrária é elemento dinâmico, faz com que esta se torne mais factível, ou seja, possibilita condições mais favoráveis à sua execução, sem, contudo, retirar-lhe da condição de maior relevância em que a pusemos, pois a atividade agrária com o esforço daqueles que a exercem, mesmo sem uma política agrária eficaz, o que é comum em nosso país, pode ser realizada. Destarte, o que queremos ressaltar é que a atividade agrária configura-se como o principal elemento conceitual do Direito Agrário, tendo em vista que em função dela forma-se uma estrutura agrária, surge a empresa agrária e é executada uma política agrária, razão de ser entendida como o eixo central do conceito deste que é, sem dúvida, o mais fascinante ramo do Direito. 38. LIMA, Rafael Augusto de Mendonça – Ob. cit. p. 14. 16 Bibliografia BORGES, Paulo Torminn - Institutos básicos do Direito Agrário. 10. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 1996. BRASIL - Estatuto da Terra / organização dos textos, notas remissivas e índices por Juarez de Oliveira. 11. ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1995. DEMÉTRIO, Nelson - Doutrina e prática do Direito Agrário. 2. ed. Campinas: Julex, 1987. FALCÃO, Ismael Marinho - Direito Agrário brasileiro. Bauru: Edipro, 1995. FERREIRA, Pinto - Curso de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 1994. GISCHKOW, Emilio Alberto Maya - Princípios de Direito Agrário. São Paulo: Saraiva, 1988. HIRONAKA, Giselda M. F. Novaes - Atividade Extrativa (Parte Geral). Revista de Direito Civil, a. 9, n. 33, p. 67-83. São Paulo, Revista dos Tribunais, jul./set. 1985. JARQUE, Juan Jose Sanz - Curso de Derecho Agrario Comparado. Granada: Editorial Comares, 1995. LARANJEIRA, Raymundo - Propedêutica do Direito Agrário. São Paulo: Ltr, 1975. LIMA, Getúlio Targino - A posse agrária sobre bem imóvel: implicações no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1992. LIMA, Rafael Augusto de Mendonça - Direito Agrário. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. MARQUES, Benedito Ferreira - Direito Agrário brasileiro. Goiânia: AB, 1996. MARQUES, Nilson - Curso de Direito Agrário. Rio de Janeiro: Forense, 1986. MIRANDA, Alcir Gursen de - Teoria de Direito Agrário. Belém: Cejup, 1989.