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capítulo 1 • 23 1.3 Periodização da História da Ética 1.3.1 As Origens Com a vitória da democracia escravista, no século V a.C., surgem na Grécia, parti- cularmente em Atenas, os primeiros pro- blemas éticos referentes à vida pública na pólis (cidade) ocasionados pelo novo regime político. É nesse sentido que a Ética relacio- na-se de maneira primordial com a Po- lítica, isto é, com o comportamento humano na vida em sociedade. Ou, como será definida mais tarde, como a práxis do bem comum. Originalmente, a pólis grega é a fortaleza dos homens livres, capazes de se defenderem, incluindo aí a defesa à propriedade da terra, porque o direito à cidadania, naquele momento histórico, é inseparável da posse da terra. A partir do século V a.C., a cidade-fortaleza se transforma na pólis democrá- tica, na qual a nobreza, ligada à propriedade de terras, terá de repartir o poder com a aristocracia surgida do comércio. A pólis se constitui como o Estado (ci- dade-estado) dos homens livres, que possuem o direito à cidadania, à proteção das leis e à participação nos destinos sociais (políticos, econômicos e militares) da cidade. Dessa sociedade estão excluídos, portanto, os não livres: estrangei- ros, mulheres, crianças e os escravos, que são considerados como instrumen- tos de trabalho (“mercadorias”: drapodon, que significa criatura vivente com pés humanos), equivalentes a um bem móvel do proprietário de terras. Nesse período, a virtude objetiva – que fundamenta as relações humanas na polis – é a justiça. Ela é a síntese de todas as virtudes morais subjetivas, pelo fato de conferir-lhes um sentido social. É por ela que o homem virtuoso torna-se um bom cidadão. Assim sendo a justiça é a virtude da sociedade e da cidadania. É nesse contexto que os jovens aristocratas devem ser preparados para a vida política, ou seja, para participarem das assembleias (agôn) em praça pú- blica (ágora) sobre o destino da pólis. SE RG II K OR SH UN | D RE AM ST IM E. CO M 24 • capítulo 1 Com Sócrates tem-se o ensino da virtude através da dialética; teve participação ativa na vida da cidade, dominada pela desordem intelectual e social, submetida à demagogia dos que sabiam falar bem. Convidado a fazer parte do Conselho dos 500, manifesta sua liberdade de espírito combatendo as medidas que julgava injustas, mantendo-se inde- pendente em relação às lutas travadas entre os partidos da democracia e da aristocra- cia. Acreditando em uma voz interior, realiza a tarefa de educador público e gratuito. “O homem mais justo de seu tempo”, diz Platão, foi condenado à morte sob acusação de impiedade e de corrupção da juventude. Seria sua morte o fracasso da filosofia diante da violência dos homens? Ou não, indicaria ela que o filósofo é um servidor da razão, e não da violência, acreditando mais na força das ideias do que na força das armas? (JAPIASSÚ, 2001, p. 251-252). Em Platão, a educação, tem uma finalidade claramente política: conduzir o cidadão pelo caminho da luz, da virtude e da justiça, para desempenhar com adequação o seu papel na polis. Para Platão, conhecer o Bem, significa tornar-se virtuoso. Aquele que conhece a justiça não pode deixar de agir de modo justo. Dois pontos fundamentais emergem da discussão platônica sobre questões éticas. O indivíduo que age de modo ético é aquele que é capaz de autocontrole, de “governar a si mesmo”. Entretanto, a possibilidade de agir corretamente e de tomar decisões éticas depende de um conhecimento do bem, que é obtido pelo indivíduo por meio de um longo e lento processo de amadurecimento. Finalmente, em Aristóteles, aponta-se para uma educação sistemática, que enaltece os valores intelectuais e éticos subordinando os valores materiais e sensíveis. NI CK OL AY V | D RE AM ST IM E. CO M capítulo 1 • 25 A Ética a Nicômaco, de Aristóteles foi o primeiro tratado de ética da tradi- ção ocidental e também pioneiro no uso do termo “ética” no sentido em que empregamos até hoje, como um estudo sistemático sobre as normas e os prin- cípios que regem a ação humana e com base nos quais essa ação é avaliada em relação a seus fins. Na concepção aristotélica, a felicidade está relacionada à re- alização humana e ao sucesso naquilo que se pretende obter, o que dá se aquilo que se faz é bem-feito, ou seja, corresponde à excelência humana e depende de uma virtude (areté) ou qualidade de caráter que torna possível essa realização. Algum tempo depois, a destruição da autonomia das cidades-estado, causa- da pela ascensão dos grandes impérios (macedônio e romano), leva os filósofos estóicos e epicuristas a não mais relacionar a Ética com a pólis, mas sim com o kósmos (universo) e assim, não depender mais de uma determinada comunida- de, caracterizada por sua organização social. ATENÇÃO Compreende-se educação como atribuição do Estado a fim de dar condições para o cidadão (animal político) desenvolver suas potencialidades, participando da vida política e, com isso, atingir a felicidade. Sua concepção é de que o homem, é um “animal político” submetido ao Estado que, pela educação, obriga-o a realizar a vida moral, pela prática das virtudes: a vida social é um meio, não o fim da vida moral. A felicidade suprema consiste na contemplação da realização de nossa forma essencial (JAPIASSU, 2001). A passagem do mundo antigo para o mundo medieval ocorre por volta do sé- culo IV, quando o cristianismo torna-se a religião oficial, e o modelo escravista é substituído pelo regime de servidão. A fragmentação econômica e política é característica do mundo feudal, no qual a religião cristã desponta como a única fonte de unidade social. A Ética, nesse contexto, aparece profundamente impregnada por um senti- mento religioso. A natureza humana, que anteriormente achava sua realização na pólis, agora a encontra na transcendência do mundo, na cidade celeste. O cristão, além de ser cidadão do mundo, exercitar as qualidades e virtudes morais e defender uma ordem social justa, é, também, aquele que crê em Deus, criador de tudo e doador da vida, e, pela virtude da fé, espera que a vida históri- ca, pessoal e social tenha uma dimensão eterna. 26 • capítulo 1 Surge, então, uma norma moral baseada na revelação de Deus. Essa acaba estabelecendo a Filosofia como serva da Teologia (philosophia ancilla theologiae). Sendo assim, a Ética, no mundo medieval, é compreendida como uma dou- trina moral, e a Justiça se aproxima da piedade e da santidade, condicionada pelas formulações sacras do Direito Canônico. Para os primeiros pensadores cristãos, como Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), o Direito Natural, que por razão do pecado original vinculou-se à corrup- ção, parece, muitas vezes, não se conformar com a vontade divina. Essa constatação leva a Igreja a refletir sobre a relação entre a lei divina e a lei do mundo, concluindo sobre a necessidade de se restaurar o Direito Natural, o qual deveria ser entendido como a imagem da lei divina na alma humana. O Direito Canônico, no qual a lei humana, como as necessidades e atividades jurídicas dos fiéis, estava subordinada à autoridade da Igreja, que tinha o dever de zelar por uma ordenação justa e santa da vida social. Outra concepção filosófica importante na idade média é o tomismo. Os princípios fundamentais da metafísica tomista giram em torno da noção de es- sência e existência de SER Supremo que é Deus, enquanto criador de tudo o que existe, é a expressão da perfeição e da bondade, bem como é o responsável por todas as leis que regem o movimento do universo – sua criação. Dentro dessa perspectiva, o homem é um ser racional, social e político (con-cepção aristotélica) que participa da essência de seu criador e tem nele a cau- sa suficiente para a sua existência (concepção tomista). A existência do mal no mundo é fruto da capacidade de liberdade, inerente ao homem, e que o torna capaz de optar entre o bem e o mal, servindo-se dos atributos da vontade e da razão que são os fundamentos do agir humano e, portanto, de seu comporta- mento ético/moral. Mas essa maneira de pensar ultrapassou os muros dos con- ventos e os monastérios e foi além da idade moderna. ATENÇÃO A questão social, sob a ótica da Igreja Católica, perde sua conotação clássica e transforma- se numa questão de ordem moral: a única forma de salvar a humanidade das sequelas da questão social e das propostas comunistas e liberais estava na cristianização dos indivíduos, da família e da sociedade. Assim, a questão social se transforma numa questão de moralismo. capítulo 1 • 27 Embora os primeiros problemas éticos do Ocidente tenham surgido com os gregos, o problema da distinção entre Ética, Moral e Direito só aparece na mo- dernidade, com a autonomia das ciências e a passagem do teocentrismo para o antropocentrismo (VASQUEZ, 2000, p. 279-281). Verifica-se, então, uma separação entre o bem (ideal) e o que é bom (real), entre o legal (jurídico) e o legítimo (justo). Enquanto na Idade Média, a Filosofia está subordinada à Teologia, e ética e religião estão estreitamente ligadas; a Igreja se torna guardiã da moral exercendo um controle rigoroso sobre a conduta dos cidadãos, associada ao poder civil, na modernidade (séc. XVI-XIX), começa a se desenvolver uma nova tendência que desvincula definitivamente o agir do homem de uma concepção teocêntrica de mundo. As guerras de religião dos séculos XVI e XVII acentuam as divergências entre as Igrejas cristãs e contribuem para despertar a busca de uma moral “na- tural” ou “puramente racional”, que esteja acima das diferenças confessionais. Há uma ruptura entre Metafísica e Ética e, consequentemente, com a tutela religiosa. A Ética, originada dessa tendência, atingirá seu ponto culminante no pensamento do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), para quem o ho- mem, e não mais Deus, apresenta-se como legislador supremo. De acordo com Immanuel Kant, o faktum moral é sempre constituído da mesma forma: pelo dever e pela liberdade. O dever é incondicionado, expres- sando uma necessidade que se pronuncia, não pela natureza, mas pela razão, através de uma norma e de um fim. Em outras palavras, espera-se que o dever tenha seu fundamento, não na sensibilidade empírica ou na contingência das circunstâncias, mas unicamente nas leis racionais, válidas para todos os ho- mens em todas as condições. A liberdade, por sua vez, deve ser entendida como capacidade de eleger uma ação possível. Trata-se, tal como o dever, de um faktum a priori da razão que en- frenta, como algo absoluto, a realidade espaço-temporal. Nesse sentido, dever e liberdade estão incorporados na essência do homem. O projeto moderno, sintetizado no lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade), não ficou isento de críticas, na tentativa de enqua- drar tudo na razão e na ciência, a modernidade acabou identificando a razão com o poder. 28 • capítulo 1 1.3.2 Ética na Grécia antiga Segundo Valls (1986), a reflexão grega sobre a ética se deu como uma pesquisa sobre a natureza do bem moral, na busca de um princípio absoluto da conduta procede do contexto religioso, onde pode-se encontrar o início de muitas ideias éticas, tendo como formulações mais conhecidas: “nada em excesso” e “conhe- ce-te a ti mesmo”. Sócrates usava o método da maiêutica que consistia em interrogar o inter- locutor até que este chegue por si mesmo à verdade, sendo o filósofo uma espé- cie de “parteiro das ideias”. Há uma procura da verdade no interior do próprio homem, através do questionamento busca-se fazer um “parto” desta verdade interior. Tal ato era realizado em duas partes: 1. No primeiro momento levava seus interlocutores a duvidarem de seu próprio conhecimento a respeito de determinado assunto. 2. Em um segundo momento os leva a conceber de si mesmos uma nova ideia, uma nova opinião sobre o assunto em questão. Y IA NN IS P AP AD IM IT RI OU | D RE AM ST IM E. CO M Sócrates acreditava que o conhecimento poderia ser encontrado pelas res- postas a perguntas propostas de forma perspicaz. Nome: Sócrates (Σωκράτης) Escola/Tradição: Filosofia grega Data de nascimento: c. 469 / 470 a.C. Local: Atenas Data de falecimento 399 a.C. * Local: Atenas Principais interesses: Epistemologia, ética Influenciado por: Parmênides Influências: Filosofia ocidental, mais especificamente Platão, Aristóteles, Aris- tipo, Antístenes capítulo 1 • 29 [...] Sócrates foi chamado, muitos séculos depois, “o fundador da moral”, porque a sua ética (e a palavra moral é sinônimo de ética, acentuando talvez apenas o aspecto de interiorização das normas) não se baseava simplesmente nos costumes do povo e dos ancestrais, assim como nas leis exteriores, mas sim na convicção pessoal, adquirida através de um processo de consulta ao seu “demônio interior” (como ele dizia), na ten- tativa de compreender a justiça das leis. (VALLS, 1986, p. 19) Assim, Sócrates, passou a ser considerado como o primeiro grande pensa- dor da subjetividade. Platão parte das ideias de que todos os ho- mens buscam a felicidade, sendo que a maioria das doutrinas gregas colocava a busca de felici- dade no centro das preocupações éticas. Ao pes- quisar as noções de prazer, sabedoria prática e virtude, colocava-se sempre a questão: onde está o Sumo Bem? Parece acreditar numa vida após a morte e por isso prefere uma vida de virtudes ao prazer terreno. Dessa forma os homens deveriam procurar a con- templação das ideias, tendo como o conceito mais importante a ideia do Bem. O sábio não é, então, um cientista teórico, mas um homem virtuoso ou que busca a vida virtuosa e que assim consegue estabelecer, em sua vida, a ordem, a harmonia e o equilíbrio que todos desejam. O sábio faz penetrar em sua vida e em seu ser a harmonia que vem do hábito de submeter-se à razão. Dialética e virtude devem andar juntas, pois a dialética é o caminho da contemplação das ideias e a virtude é esta adequação da vida pessoal às ideias supremas. (VALLS, 1986, p.26) Aristóteles foi discípulo de Platão e este de Sócrates; Aristóteles foi um es- critor enciclopédico e sistematizador, sua produção revelou seu vasto conheci- mento nos mais variados campos. Para Aristóteles, Platão escreveu a Repúbli- ca não só com intenções metafísicas, mas com intenções de levantar questões NI KO S PA VL AK IS | D RE AM ST IM E. CO M 30 • capítulo 1 como política e consequentemente ética, esta última como sendo a conduta coletiva e individual dos homens. Partindo da correlação entre o Ser e o Bem, Aristóteles insiste sobre a varie- dade dos seres e daí conclui que os bens devem variar, pois para cada ser deve haver um bem, conforme a natureza ou essência deste ser. O homem se diferencia das outras espécies por ser uma entidade racional, capaz de tecer ideias próprias, portanto, pode-se considerar o pensamento como algo extremamente especial, divino, assim quem o valoriza e pratica esse exercício racional é sábio, não necessitando de muitas outras coisas. De acordo com Valls (1986), para Aristóteles, a função do homem era fazer com que sua alma encontrasse o equilíbrio entre a virtude e a razão. As virtudes humanas se dividiam em duas: a intelectual ligada à busca pela sabedoria e a virtude moral enfatizandoa ação ponderada, atitudes moderadas, prudentes. Esse movimento de interiorização da reflexão e de valorização da subjetivi- dade ou da personalidade se inicia com Sócrates e parece culminar com Kant, já no final do século XVIII. 1.3.3 A ética de Kant Kant buscava uma ética de validade universal que se apoiasse apenas na igual- dade fundamental entre os homens, sua filosofia se volta sempre, em primeiro lugar, para o homem, e se chama filosofia transcendental porque busca encon- trar no homem as condições de possibilidade de conhecimento verdadeiro e do agir livre. No centro das questões éticas, aparece o dever, ou obrigação moral, uma necessidade diferente da natural, ou da matemática, pois necessidade para uma liberdade. O dever obriga moralmente a consciência moral livre, e a von- tade verdadeiramente boa deve agir sempre conforme o dever e por respeito ao dever. (VALLS, 1986). Kant por influência do movimento iluminista1 acredita na igualdade básica entre os homens, desse modo, precisa chegar a uma moral igual para todos, uma moral racional, a única possível para todo e qualquer ser racional. 1 Segundo o dicionário Aurélio, o movimento iluminista partia da confiança na razão e nas ciências como motores do progresso. capítulo 1 • 31 Esta moral não se interessa essencialmente pelos aspectos exteriores, empíricos e históricos, tais como leis positivas, costumes, tradições, convenções e inclinações pes- soais. Se a moral é a racionalidade do sujeito, este deve agir de acordo com o dever e somente por respeito ao dever: porque é dever, eis o único motivo válido da ação moral. (VALLS, 1986, p. 20) De acordo com Valls (1986), Kant considera que os conteúdos éticos nun- ca são dados do exterior, assim cada um de nós tem uma forma de dever, essa fórmula se expressa em várias formulações, no chamado imperativo categórico, desta forma “devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que minha máxima se torne uma lei universal”. W IK IM ED IA 1.4 Quadro de doutrinas éticas fundamentais ao longo da História da Filosofia 1.4.1 A ética no sistema filosófico aristotélico Na filosofia aristotélica, ética e política constituem as chamadas ciências práti- cas, aquelas que têm no homem seu fundamento e sua finalidade, ou seja, dife- rentemente das teoréticas, como a física e a metafísica, que versam sobre objetos universais cuja existência independe de qualquer interferência ou vontade hu- 32 • capítulo 1 mana, o conhecimento das ações humanas lida com o que pode ou não acon- tecer, de acordo com a decisão do agente. A ética, portanto, refere-se ao estudo da natureza humana e das possibilidades nela inscritas, isto é, corresponde ao exame da finalidade natural da vida humana, o que explica sua afluência com a política, posto que para Aristóteles o homem é um ser essencialmente político 2 . Os estudos de Aristóteles em filosofia moral são desenvolvidos coerente- mente ao conjunto de seu sistema filosófico. Sabemos que esse filósofo, dife- rentemente de seu mestre Platão, localiza os inteligíveis necessariamente nos sensíveis, admitindo sua dissociação apenas sob o ponto de vista conceitual, ou seja, sua teoria renuncia ao dualismo ontológico platônico para o qual o plano dos inteligíveis e o plano dos sensíveis existem separadamente. Assim, no sistema filosófico aristotélico, em que as formas existem exclusivamente na matéria, adquire relevância a tese das quatro causas, que pretende explicar a formação de todas as coisas que observamos no mundo e confere sentido acen- tuadamente teleológico ao pensamento de Aristóteles. Para situarmos os problemas éticos no horizonte da filosofia de Aristóteles, convém relembrarmos brevemente os pontos cardeais de sua teoria. As quatro causas são a material, a eficiente, a formal e a final. A causa material consiste na matéria de que uma coisa é feita; a eficiente corresponde ao elemento que age sobre a matéria, transformando-a; a formal é precisamente o conteúdo que define algo como sendo o que é; e a final compreende o fim previamente deter- minado para o qual se destinam os seres, isto é, o motivo último pelo qual exis- tem. Há, nessa concepção, uma supremacia da causa final, que, subordinando todas as outras causas a si, quer dizer, fazendo delas simples meios para sua re- alização, evidencia o sentido teleológico expresso na atualização de potências. Nas relações aristotélicas entre ato e potência, vigora o pressuposto de que o fim de algo – sua forma final – está potencialmente contido em seu começo e, consequentemente, a completa atualização de uma potência é a realização plena da natureza de um ser. Nesse devir, as coisas tornam-se naturalmente o que são ou, em termos mais claros, cumprem-se as potencialidades presentes em sua natureza. 2 É preciso destacar que a palavra política em Aristóteles, bem como nos gregos antigos em geral, tem significado amplo e profundo, abrangendo a totalidade das relações sociais que configuram a pólis, desde os meios pelos quais os seres humanos asseguram sua sobrevivência até o domínio público constituído pelos cidadãos. Nesse sentido é que se deve entender a definição aristotélica do homem como ser naturalmente político, densamente registrada no início de sua obra A política, quando declara que o homem fora da sociedade não é propriamente um homem, mas uma besta ou um deus (2202, p. 5). capítulo 1 • 33 Sob esse prisma é que Aristóteles desenvolve suas reflexões éticas, a saber, concebendo-se a dimensão moral do homem em perfeita equivalência com a finalidade prescrita pela natureza para a vida humana. Nesse sentido, a exce- lência humana, a areté, é a atualização da potência contida na natureza dos ho- mens ou, em outras palavras, é a consecução da função humana estabelecida pela natureza. A expressão função humana tem significado muito bem defini- do na filosofia de Aristóteles, especificamente por seu citado aspecto teleológi- co, pelo qual os seres desenvolvem-se no horizonte de sua forma plena. Assim sendo, função humana é sinônimo de fim para o qual tende naturalmente o ho- mem, a explicitação total de sua forma, o que torna a ética aristotélica o estudo sistemático sobre a finalidade natural da vida dos homens. Entretanto, Aristóteles observa que a atualização da potência é menos cer- ta nos seres humanos do que nos demais seres da natureza, pois o percurso dos homens à areté é afetado pelas intervenções dos próprios agentes huma- nos, com seus desejos e suas escolhas que, com relativa frequência, contra- riam sua capacidade racional para a vida virtuosa. Afinal, se a excelência hu- mana, como veremos, é a vida racional virtuosa, por outro lado, a natureza do homem é mista, abrigando também faculdades irracionais que são constante ameaça à primazia natural da razão. 1.4.2 A finalidade da vida humana e a felicidade como bem supremo A investigação minuciosa das questões morais é efetuada por Aristóteles em seu livro Ética a Nicômaco, no qual, coerentemente aos seus conceitos filosóficos mais gerais, dedica as primeiras reflexões à identificação da finalidade da vida dos ho- mens. Em termos exatos, as páginas iniciais procuram delimitar filosoficamente o significado do bem, que, em sua expressão máxima, coincide com a função hu- mana. E mais uma vez é necessário indicar o distanciamento de Aristóteles perante Platão, pois, na concepção do filósofo estagirita, o bem não é uma ideia suprema e intangível, acima da existência concreta dos seres humanos, sendo, ao contrário, algo passível de ser atingido pelas atividades dos homens. Em sua acepção ampla, o bem aristotélico é justamente a finalidade dos seres e das práticas humanas. Assim,recorrendo a alguns exemplos, o bem da medi- cina é a saúde, o bem de uma construção é o edifício, o bem da alfaiataria é a vestimenta, e o bem do escravo é servir a seu senhor. Em todas essas situações, os bens mencionados são igualmente meios para outros fins: a saúde e os préstimos 34 • capítulo 1 da escravidão são meios para se viver, bem como as roupas e as casas são meios para vestir e morar. Considerando-se que, na filosofia de Aristóteles, a superiori- dade de algo é sempre diretamente proporcional ao seu grau de autossuficiência, um bem supremo é o que é necessariamente um fim em si mesmo, sem jamais ser meio para outro fim. Portanto, todos os bens exemplificados concorrem para uma função maior, contribuindo para a finalidade da vida humana. Esse bem supremo para os homens – a finalidade de suas vidas –, segundo Aristóteles, é a felicidade. A autossuficiência da felicidade explicita-se no fato de que ela é perseguida pelos seres humanos invariavelmente como um fim em si mesmo, e jamais como aquisição intermediária que proporciona o acesso a um bem maior. De acordo com o filósofo, para que tal conclusão seja aceita, basta ob- servar que muitos homens procuram as riquezas com a convicção de que em sua posse reside a felicidade, outros dedicam-se a atrair para si as honrarias públicas, julgando o prestígio social como fonte de felicidade, e há ainda os que se empe- nham no desenvolvimento de suas virtudes, identificando-as com a felicidade. O ponto comum dessas diferentes escolhas é o fim visado pelos homens: a felicida- de. Em contrapartida, não é factível supor que alguém busque a felicidade para com ela alcançar as riquezas, as honrarias ou as virtudes. A felicidade, portanto, é o bem excelente porque é exclusivamente um fim para os seres humanos, nada havendo além dela que possa ser almejado pelos homens 3. Ao constatar a felicidade como o bem autossuficiente para os homens, e tendo antes declarado a equivalência deste com a finalidade da vida dos seres humanos, Aristóteles elabora a seguinte interrogação filosófica: qual é o fim a que se destina naturalmente a vida humana? Com as reflexões de- senvolvidas em torno dessa questão, o filósofo pretende evidenciar o con- teúdo da felicidade, conceito central em sua teoria ética. Trata-se, então, de investigar aquilo que é específico nos homens, dotando-lhes de uma finali- dade vital diferente daquelas que caracterizam os demais seres vivos, tema este que é claramente contemplado no trecho seguinte: 3 Na história da filosofia moral, o bem recebe diferentes conceituações. Nas teorias éticas hedonistas, caso, por exem- plo, da escola epicurista na Grécia helenística, o bem ou bom é sinônimo de prazer. Nas filosofias utilitaristas, como são as teses de Jeremy Bentham e de John Stuart Mill, o bem equivale àquilo que é vantajoso ou o útil para o maior número de pessoas na sociedade. Em Immanuel Kant, conforme estudaremos nos próximo capítulo, o bem consiste na boa vontade. capítulo 1 • 35 Estaríamos nós autorizados a supor que enquanto o carpinteiro e o sapateiro têm funções ou ocupações que lhes são pertinentes, o ser humano como tal não tenha alguma e não esteja, por natureza, destinado a desempenhar qualquer função? Não devemos nós, ao contrário, supor que, como o olho, a mão, o pé e cada um dos membros do corpo tem conpiscuamente uma função própria, do mesmo modo um ser humano tem, igualmente, uma certa função que supera todas as funções de seus membros particulares? Qual, en- tão, poderia ser essa função precisamente? O mero ato de viver parece ser compartilhado pelas mesmas plantas e estamos buscando a função peculiar do ser humano. Diante disso, devemos pôr de lado a atividade vital de nutrição e crescimento. A seguir na escala vemos alguma forma de vida sensitiva, porém esta, igualmente, parece ser compartilhada por cavalos, bois e animais em geral. Resta, assim, o que pode ser denominado de vida ativa da parte racional do ser humano. (ARISTÓTELES, 2007, p. 49-50). Assim, Aristóteles ressalta que, como na natureza e na pólis todas as coisas prestam-se a um fim, é lícito supor uma função específica para os seres huma- nos. Afirma, em seguida, que o propósito da vida humana não consiste na sim- ples atividade vital de nutrição e crescimento, condição que compartilha com a totalidade dos seres vivos, tampouco se localiza nas sensações, posto que a vida sensitiva é comum aos animais. A finalidade natural da vida dos homens encontra-se na faculdade que existe exclusivamente na alma humana, isto é, o princípio racional. Dessa forma, o fim ao qual se direcionam os homens é a atividade racional virtuosa ou, em linguagem diferente, a felicidade é exercício contínuo da razão ao longo de uma vida. Sendo assim, no horizonte filosófico aristotélico, a felicidade não coincide com os bens do corpo, a sensualidade e o deleite de objetos materiais, o que man- teria o homem como ser indiferenciado no conjunto da animalidade, do mes- mo modo que não está no prestígio social das honrarias públicas, pois estes são sempre exteriores ao próprio homem, e a vida feliz não pode se realizar na de- pendência de opiniões alheias. A felicidade corresponde, isto sim, à efetivação da natureza do ser humano em uma existência virtuosamente orientada pela razão 4. 4 É importante salientar que, embora Aristóteles afirme que os bens do corpo e os bens exteriores são inferiores aos bens da alma, ele não declara que são totalmente dispensáveis É certo que a vida consagrada aos prazeres do corpo e ao acúmulo de riquezas perverte a natureza, mas também é correto que a satisfação das necessidades corporais e a posse de bens materiais são elementos sem os quais não se atualizam as virtudes dos seres humanos, quer dizer, não há propria- mente felicidade. Também é necessário acrescentar que o filósofo não ignora que circunstâncias adversas representem riscos à felicidade, mas considera que o homem virtuoso tem condições de reagir de maneira equilibrada diante delas. 36 • capítulo 1 1.4.3 O homem como ser político Essa definição da felicidade como atividade humana racional torna-se mais compreensível se a situarmos na concepção teleológica aristotélica, segundo a qual as coisas transcorrem adequadamente se seguem o curso determinado pela natureza, no qual os inferiores são submetidos aos superiores e o todo é sempre mais perfeito do que as partes. Para Aristóteles, a natureza dispõe a fê- mea ao domínio do macho, o escravo ao domínio do senhor, as crianças ao do- mínio dos adultos e a alma irracional ao domínio da alma racional. A vigência da razão virtuosa, por seu turno, é viável apenas na sociedade política, natural- mente superior aos indivíduos, portanto. Em seu livro A política, Aristóteles descreve essa hierarquia natural a par- tir das relações domésticas, a primeira unidade social para a qual se inclinam os seres humanos (2002, p. 9-65). No interior desses núcleos familiares, escra- vos, crianças e mulheres estão sob a dependência do homem livre, ou melhor, submetidos, respectivamente aos poderes despótico, paternal e marital. Nessa ordenação natural, sublinha-se o predomínio da razão sobre aquilo que é irra- cional, caracterizando uma supremacia que se verte em benefícios para todos. O poder paternal sobre os filhos e marital sobre a esposa é justificado pela carência de razão das crianças e das mulheres, que, consequentemente, depen- dem do comando racional do homem – pai e marido – para a condução de suas vidas, com a única diferença de que os descendentes do sexo masculino, ao al- cançarem a idade adulta, serão plenamente capazes de usar sua própria razão, emancipando-se do princípio racional paterno. Nãoé diferente a fundamentação aristotélica do poder do senhor sobre os escravos, explicada na suposta inferioridade natural destes últimos, que, con- quanto capazes de perceber a razão em seu senhor, não conseguem jamais fazer uso próprio da razão, limitando sua contribuição à sociedade ao labor de seus corpos. Desse modo, ainda que o poder do senhor sobre o escravo, despótico, seja exercido para atender somente aos interesses do primeiro, a dominação é estabelecida pela natureza em benefício de ambos, pois o escravo teria pior sorte se fosse entregue a si mesmo. Não sendo naturalmente capaz de liberda- de, tem no senhor a dimensão racional que lhe falta. Sendo a virtude sempre algo conforme a natureza, o mérito do escravo é resignar-se ao domínio do seu senhor, executando devidamente os serviços que lhe são ordenados. capítulo 1 • 37 Nesse sentido, Aristóteles estende sua argumentação à composição da pó- lis ou sociedade política, compreendida como construção prescrita pela na- tureza aos homens, não apenas por permitir maior estabilidade econômica e segurança militar, mas, sobretudo, pela finalidade de promover o bem viver dos homens, ou seja, a vida racional virtuosa. Dito de outro modo, assim como escravos, crianças e mulheres não têm autonomia e não podem existir por si, mas somente integrados no poder da sociedade doméstica, os indivíduos e as associações intermediárias não existiriam verdadeiramente fora do todo, quer dizer, da sociedade política para a qual são naturalmente propensos. O poder político, por sua natureza, diferencia-se dos poderes despótico, paternal e mari- tal. Esses poderes domésticos, afinal, são exercidos por um superior sobre seus inferiores, e, além disso têm por fim o benefício específico de alguns, enquanto o poder do Estado é partilhado entre iguais, os cidadãos, e visa o bem comum. Essa sociabilidade inscrita na natureza dos homens, na qual os seres hu- manos realizam concretamente sua humanidade, exprime-se no conceito de philia, sobre o qual Aristóteles discorre em Ética a Nicômaco (2007, p. 235-264). Definida pelo filósofo como uma das exigências indispensáveis da vida, pois não seria pensável alguém escolhendo uma existência sem amigos, a philia ou amizade é discriminada em três tipos, de acordo com os motivos nos quais se sustentam: o útil, o agradável e o bem. Na amizade alicerçada na utilidade, os amigos se vinculam apenas por inte- resses próprios, ou seja, pelos benefícios que se possam extrair da relação, sendo que esta termina tão logo deixe de oferecer vantagens às partes envolvidas. Si- tuação análoga verifica-se na amizade que se sustenta naquilo que é agradável, isto é, no prazer que se obtém na companhia do outro, sem que haja um afeto autêntico entre os amigos, pois desaparecendo o bem-estar que a presença de determinada pessoa proporciona, encerra-se também a amizade que se sente por ela. Ambas as formas de amizade, erguidas sobre a utilidade ou sobre o agradá- vel, são imperfeitas, segundo Aristóteles, porque não existem pelo que os amigos são em si mesmos, mas pelo benefício pessoal ofertado pela amizade. A amizade perfeita é aquela em que os amigos se associam pelo afeto desin- teressado que nutrem um pelo outro, desconsiderando-se qualquer benefício adicional que a relação apresente. Na amizade pelo bem, os amigos admiram- se pelo que, de fato, são e desejam o melhor um ao outro, constituindo-se o sen- so de comunidade no qual vigora a noção de bem comum, finalidade natural da sociedade política. 38 • capítulo 1 1.4.4 A ética do justo meio A conceituação aristotélica da felicidade como a vida racional virtuosa, o bem su- premo do homem que se concretiza na sociedade política, não deve nos condu- zir à falsa conclusão de que o filósofo preconiza um controle repressivo da razão sobre as inclinações irracionais da alma humana. Ao contrário, Aristóteles não apenas reconhece a importância dos apetites e das paixões na vida dos homens, como atribui ao desejo uma condição motriz no ser humano: os homens são seres desejantes cujas ações visam sempre a um fim agradável ou não doloroso. Apro- ximando-se naturalmente do que promete prazer e evitando o que acena com a dor, os homens revelam sua semelhança com os animais. Porém, relacionando- se adequadamente com o prazer e a dor, afirmam-se como seres virtuosos. O homem virtuoso não ignora o prazer e a dor, estabelecendo, isso sim, uma relação racional com ambos, pela qual experimenta os sentimentos certos nas ocasiões pertinentes. Ao invés do conflito entre razão e desejo, temos a conflu- ência de ambos, de tal modo que não se deseja nada além daquilo que é condi- zente com a finalidade da vida, ou seja, sente-se prazer em agir virtuosamente. Nessa perspectiva, o filósofo situa a mediania moral como ponderação en- tre os extremos, localizando o vício na carência e no excesso. O vício é o con- trário da virtude. Enquanto esta é a excelência moral, o que, em Aristóteles, consiste na vida racional do homem em sociedade, o vício é a imoralidade do homem. Como vimos, de acordo com a filosofia moral aristotélica, o bem situa- se sempre na natureza, é conforme o que é natural, e o mal é o que se desvia do que é prescrito pela natureza. Assim, se a finalidade natural humana é a exis- tência racional, o homem que se movimenta somente pelas paixões perverte sua natureza, enredando-se nos vícios. A mediania ou, como é mais conhecida, a ética do justo meio corresponde ao ajuste entre a intensidade dos sentimentos experimentados pelos indivídu- os e as exigências apresentadas pelas situações. Portanto, dentre as virtudes enumeradas por Aristóteles, estão a coragem, a generosidade, a brandura, a espirituosidade e a moderação, que são termos médios, respectivamente entre temeridade e covardia, prodigalidade e mesquinhez, irascibilidade e desalento, bufonaria e indelicadeza, e desregramento e insensibilidade5 . 5 Aristóteles alerta que algumas paixões implicam necessariamente o mal, não admitindo a virtude da mediania. É o caso da malevolência, da inveja e da impudência. capítulo 1 • 39 A coragem é a virtude do homem que teme as situações que, de fato, devem ser temidas, por apresentarem riscos desnecessários para si e para as pessoas de sua comunidade, mas que não hesita em enfrentar os perigos quando as cir- cunstâncias exigem tal postura para a preservação do bem comum. O covarde, por sua vez, a tudo teme, aterrorizando-se com quaisquer ameaças, ainda que sejam mínimas ou improváveis. Na outra extremidade, o temerário excede-se em ousadia, expondo-se a toda sorte de situações adversas e comprometendo a própria finalidade da vida ou, o que é pior, muitas vezes fazendo questão de exibir uma coragem que sequer sente. Justa medida igualmente é a generosidade, que consiste no uso apropriado dos recursos financeiros em benefício das pessoas que necessitam e que têm merecimento para tanto. O generoso dispõe suas riquezas ao bem comum nas ocasiões certas, sem negar aos outros auxílios ao alcance de suas possibilida- des e sem se desfazer de seu patrimônio em gastos supérfluos. Na deficiência da generosidade existe a mesquinhez, o apreço exagerado aos valores econô- micos, impedindo a cessão de dinheiro em circunstâncias que justificariam as doações. Em sentido oposto age quem é tomado pela prodigalidade, que des- perdiça seus bens materiais utilizando-os sem critérios, frequentemente em- pregando-os com pessoas e situações impróprias, ou mesmo em quantidades que ultrapassam largamente sua base financeira. A brandura, por seu turno, é a virtude relativa à ira. O homem brando sen- te cólera nas ocasiões que assim o exigem, quando, por exemplo,alguém de sua estima é vítima de uma injustiça, manifestando-a de modo ponderado e sem inclinar-se a procedimentos vingativos. Desalento e irascibilidade são os vícios dessa paixão. No primeiro caso, constata-se a indisposição de indignar- se ante quaisquer situações, por mais absurdas ou agressivas que sejam. No segundo caso, a cólera assume proporções descontroladas e não diferencia os acontecimentos que realmente a solicitam daqueles em que esse sentimento é inoportuno, estendendo-se ainda para além dos momentos em que a ensejam e, comumente, resultando em ações profundamente ofensivas. A espirituosidade é o meio termo entre a indelicadeza e a bufonaria. Indeli- cado é quem não reage educadamente em encontros sociais de entretenimen- to, persistindo em um mau humor explícito nas mais descontraídas conversa- ções. O bufão, por outro lado, destaca-se por valer-se de sua irreverência com o propósito de chamar a atenção para si, fazendo de tudo objeto de diversão e, com isso, tornando seu humor desmedido e sua presença inconveniente. Nes- 40 • capítulo 1 sas questões, é o espirituoso quem procede com mediania (equilíbrio), condu- zindo-se de maneira bem-humorada e divertindo-se com outros nas ocasiões que favorecem a descontração sem o risco da vulgaridade. A moderação ou temperança, por fim, concerne aos prazeres do corpo – be- bida, alimentação, sexualidade –, aos apetites que são comuns aos seres huma- nos e aos animais em geral. Remetem, portanto, claramente às relações entre razão e desejo sob o prisma aristotélico da virtude, pois a moderação pode ser definida justamente como a harmonização do desejo com a racionalidade, na qual os prazeres são vividos na intensidade e nas ocasiões oportunas, sem ca- rências ou excessos. Uma vida pervertida nos prazeres corporais excessivos in- corre no vício do desregramento, pelo qual o homem mistura-se à animalidade. Uma vida que despreza completamente os prazeres corporais – situação muito rara, segundo Aristóteles – é acometida de uma insensibilidade que nega a pró- pria natureza humana. 1.4.5 As ações voluntárias e a vida virtuosa Após explanarmos sobre algumas das virtudes da mediania aristotélica, é im- portante examinarmos como o filósofo caracteriza as ações nas quais se pode identificar a presença ou a ausência de virtude nos indivíduos. O ponto de par- tida de Aristóteles para a investigação das condutas que se prestam à avaliação moral é a divisão do comportamento humano em dois tipos básicos: ações in- voluntárias e ações voluntárias. No capítulo anterior, assinalamos que são involuntárias as ações perpetradas por compulsão ou ignorância. Aristóteles usa a palavra ignorância, nesse contexto, não em seu significado geral de ausência de saber, referindo-se, isto sim, ao des- conhecimento, por parte do agente, das circunstâncias que envolvem a execução de um ato. Nas ações desse tipo, o indivíduo não tem à sua disposição todas as in- formações necessárias à ponderação sobre as implicações de sua conduta e, assim sendo, não pode ser responsabilizado pelas consequências – exceto se a condição de ignorância das circunstâncias for resultado de sua negligência. Como compulsórios o filósofo designa os atos cujas origens são absolutamente exteriores aos indivíduos que os praticam, isto é, trata-se de condutas nas quais os agentes não têm a mínima possibilidade de escolha, sendo integralmente conduzidos por uma força externa a capítulo 1 • 41 se comportar de determinada maneira. É o que ocorre quando alguém, subjugado fisicamente por outros indivíduos, é impedido de agir como gostaria ou obrigado a proceder de um modo que, na ausência da compulsão, não procederia. Aristóteles observa, porém, que, entre as ações absolutamente compul- sórias e as praticadas livremente pelos indivíduos, existem condutas mistas, nas quais os agentes realizam escolhas, embora estas sejam profundamente restringidas e condicionadas pela especificidade das situações em que estão envolvidos. Nessas ocasiões extraordinárias, a margem de escolhas é extrema- mente reduzida, e o indivíduo, dispondo de poucas alternativas, opta por aque- la que lhe parece menos prejudicial, conduzindo-se de maneira diferente do que faria em situações cotidianas comuns. Um exemplo de ação desse tipo é quando um sujeito, sob ameaça de terceiros, é forçado a escolher entre a morte de um familiar que é mantido em cativeiro e a realização de uma operação financeira ilegal. Ao agente, nesse caso, oferecem-se duas possibilidades, sendo muito provável, entretanto, que nenhuma delas seja do seu agrado e que ele jamais as escolheria em um contexto de total liberdade. Por esse motivo, ações dessa natureza são denominadas por Aristóteles de intrin- secamente involuntárias e circunstancialmente voluntárias (2007, p. 89). As ações voluntárias, por seu turno, são aquelas que têm seu autêntico ponto de partida no agente que conhece as circunstâncias que envolvem sua conduta, o que inclui as condutas derivadas das paixões, como a ira e o dese- jo. Dessa maneira, segundo Aristóteles, as ações voluntárias não transcorrem necessariamente sob o princípio da razão, abrangendo também as práticas hu- manas que classificamos como impulsivas ou intempestivas, como do mesmo modo o são as ações dos animais e das crianças. Em outras palavras, as ações voluntárias nem sempre implicam a realização de uma escolha. Para esclarecer convenientemente a questão, o filósofo deli- mita o conceito de escolha, recorrendo, para tanto, ao seu cotejamento com o desejo, a vontade e a opinião. Muito embora a escolha não desconsidere os desejos, escolha e desejo não são sinônimos, o que é constatado pelo fato de que é possível desejar algo e, en- tretanto, escolher não fazê-lo. Nem ao menos à vontade, que, na filosofia aristo- télica, distingue-se do desejo por envolver a dimensão racional, a escolha pode ser absolutamente identificada, pois a vontade referencia-se em objetos que 42 • capítulo 1 nem sempre são passíveis de serem alcançados pela ação. Para usarmos um exemplo oferecido pelo próprio Aristóteles, um homem pode ter vontade de ser imortal, mas jamais poderá escolher ser imortal, posto que não se trata de algo que ele seja capaz de atingir com suas ações. Por fim, escolha não deve ser con- fundida com opinião, pois, embora seja comum que alguém escolha fazer ou deixar de fazer algo em decorrência da opinião que se tem sobre isso, a opinião versa sobre os mais diversificados temas, não se atendo ao que efetivamente pode ser transformado pela interferência dos homens. A escolha, portanto, é definida como a ação voluntária antecedida por deli- beração, que consiste no exame das alternativas disponíveis à conduta humana e na investigação racional sobre os meios adequados para se alcançar os fins moralmente pretendidos. Nessa perspectiva, a deliberação contempla aquilo que tem nas ações humanas o seu fundamento, não se relacionando com coisas eternas ou imutáveis, como os ciclos da natureza ou a posição dos astros celes- tiais, pois estes não são objetos de escolha. Essas ações voluntárias escolhidas contêm um valor moral, realizando a virtude na forma de um desejo delibera- do, ou melhor, na confluência do princípio desejante com o princípio racional. Essa convergência entre desejo e razão, característica do comportamento virtuoso, não é decorrência necessária e imediata do conhecimento do bem, ou seja, desviando-se da ética intelectualista socrática, o filósofo declara que a sa- bedoria não é condição suficiente da virtude. Nesse momento, é importante fri- sar que Aristóteles diferencia as virtudes intelectuais das virtudes morais, sen- do que as primeirasconsistem no conhecimento em si, e as últimas, das quais estamos tratando neste texto, dizem respeito ao comportamento humano 6. É certo que as virtudes morais não existiriam sem o conhecimento, sen- do, aliás, uma das virtudes intelectuais, a prudência, a sabedoria prática que permite aos homens a escolha dos meios corretos para a consecução de ações virtuosas. Entretanto, o acesso às virtudes intelectuais não se desdobra natural- mente em virtudes morais, sendo imprescindível o desenvolvimento do hábito para a confluência entre razão e desejo. Para auxiliar a compreensão dessa necessidade de atualização moral pelo há- bito, é interessante acompanharmos a definição formal que Aristóteles apresen- ta da virtude, quando tenta concebê-la como paixão, capacidade ou disposição: 6 Neste texto, exceção feita a esse momento específico, ao empregarmos a palavra virtude, estamos nos referindo às virtudes morais. capítulo 1 • 43 Um estado de alma é ou uma paixão, uma capacidade ou uma disposição, de modo que a virtude tem que ser uma dessas três coisas. Por paixão quero dizer desejo, ira, medo, confiança, inveja, júbilo, amizade, ódio, saudade, ciúme, compaixão e geralmente aqueles estados de consciência (ou sentimentos) que são acompanhados por prazer ou dor. As capacidades são as faculdades em função das quais se pode afirmar de nós que somos suscetíveis às paixões, por exemplo, sermos capazes de sentir ira, dor ou compaixão. As disposições são os estados de caráter formados devido aos quais nos encontramos bem ou mal dispostos em relação às paixões; por exemplo, estamos mal dispostos para a ira se estivermos predispostos a nos enraivecer com demasiada vio- lência ou sem violência suficiente; estamos bem dispostos para a ira se habitualmente sentimos uma raiva moderada – analogamente com respeito às outras paixões. De acordo com Aristóteles, portanto, as virtudes não são sinônimas de paixão porque ninguém pode ser julgado bom ou pervertido por suas paixões, mas pelo modo como as experimenta; também porque as virtudes expressam escolhas, en- quanto não escolhemos as paixões que sentimos. Em sentido igual, não se pode identificar a virtude com a capacidade de sermos afetados pelas paixões, uma vez que isso nada informa acerca da bondade ou da maldade de um homem. A virtude, então, como o próprio texto citado indica, é uma disposição, particularmente aquela pela qual um ser humano atualiza sua potência para a areté ou, em linguagem mais direta, torna-se um ser moral. Assim sendo, na concepção aristotélica, a virtude não nos é dada pela natureza, tampouco se desenvolve em direção contrária a esta; ela consiste, precisamente, em uma dis- posição natural que deve ser concretizada na introdução do hábito. Os hábitos virtuosos, diz Aristóteles (2007, p. 67-68), são assimilados pela educação, compreendida, em termos práticos, como um conjunto de exercí- cios virtuosos constantes. Nos exemplos oferecidos pelo próprio filósofo, assim como os construtores tornam-se mestres em seu ofício à medida que constro- em casas e os tocadores de liras tornam-se músicos exímios pelo exercício de seu ofício, os homens tornam-se moderados, corajosos e justos ao praticarem a moderação, a coragem e a justiça. Em uma só expressão, tornam-se virtuosos ao praticarem a virtude.
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