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Professora Conteudista Carlos Eduardo Queiroz Pessoa Revisão de Linguagem Jonas Magno Lopes Amorim Designer de Linguagem Clecia Assunção Silva Designer Pedagógico Paulo Henrique Cunha Projeto Gráfico e Diagramação Luis Macartney Serejo dos Santos Designer Gráfico Yuri Jorge Almeida da Silva Reitor Gustavo Pereira da Costa Vice-Reitor Walter Canales Sant´ana Pró-Reitora de Graduação Andréa de Araújo Núcleo de Tecnologias para Educação Ilka Márcia Ribeiro S. Serra - Coord. Geral Sistema Universidade Aberta do Brasil Ilka Marcia R. S. Serra - Coord. Geral Lourdes Maria P. Mota - Coord. Adjunta | Coord. de Curso Coordenação Designer Educacional Cristiane Peixoto - Coord. Administrativa Maria das Graças Neri Ferreira - Coord. Pedagógica UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO Pessoa, Carlos Eduardo Queiroz Hermenêutica [ebook]. / Carlos Eduardo Queiroz Pessoa. – São Luís: UEMA; UEMAnet, 2018. 77 f. ISBN: 1. Hermenêutica como arte. 2. Hermenêutica Filosófica. 3. Hermenêutica Contemporânea. I. Título. CDU: 165.1 Os matérias produzidos para os cursos ofertados pelo UEMAnet/UEMA para o Sistema Universidade Aberta do Brasil - UAB são licenciadas nos termos da Licença Creative Commons – Atribuição – Não Comercial – Compartilhada, podendo a obra ser remixada, adaptada e servir para criação de obras derivadas, desde que com fins não comerciais, que seja atribuído crédito ao autor e que as obras derivadas sejam licenciadas sob a mesma licença. SUMÁRIO Hermenêutica como arte de Interpretar 1.1 Hermenêutica tradicional: etimologia da palavra hermenêutica 10 1.2 A Hermenêutica no contexto da reforma protestante 12 1.3 Hermenêutica Romântica 15 1.4 A hermenêutica de Friedrich Schleiermacher 17 1.5 Wilhelm Dilthey e a busca pela objetividade histórica 22 Hermenêutica Filosófica 2.1 Hermenêutica e linguagem 30 2.2 O sentido do ser como questão fundamental 32 2.3 O sentido do ser em geral: Dasein (ser-aí) e ser-no-mundo 35 2.4 Estrutura hermenêutica do existir 38 2.5 Linguagem como discurso 40 Hermenêutica Contemporânea a partir de Gadamer 3.1 A obra de arte na perspectiva hermenêutica 45 3.2 Compreensão hermenêutica da história 48 3.3 A linguagem como experiência de mundo 50 3.4 A universalidade da Hermenêutica 53 Hermenêutica em Paul Ricoeur 4.1 Filosofia e linguagem 58 4.2 Influência da fenomenologia 63 4.3 A virada hermenêutica de Ricoeur 65 4.4 Mundo do texto: a linguagem como discurso 68 4.5 A relação da fala com o texto 71 Atenção - destaca informações imprescindíveis no texto, indica pontos de maior relevância no texto; Referências - estão relacionadas no final de cada aula/Unidade, de acordo com as normas da ABNT; Sugestão de áudios ou músicas - músicas com temas relacionados ao conteúdo do texto. Avaliação de atividades - atividades em diferentes níveis de aprendizagem para que o aluno possa conferir seu aproveitamento e domínio do tema estudado; www Sugestão de sites - para obter mais informações sobre o assunto abordado na aula ou Unidade; ÍCONES 6 APRESENTAÇÃO Caro (a) estudante, Este e-Book, tem por objetivo disponibilizar um referencial bibliográfico amparado nas melhores autoridades científicas consagradas academicamente, para fornecer aos acadêmicos de Filosofia, arcabouço teórico como recurso didático de apoio para os estudos referentes ao tema da Hermenêutica Filosófica. Cumpre dizer que este e-Book foi elaborado com a preocupação de não perder o respaldo técnico-científico, ao contrário, o material se dedica a desenvolver desde a concepção clássica até os principais hermeneutas contemporâneos, apresentando os fundamentos epistemológicos e metodológicos desse caráter fundamental da filosofia compreensiva, que é o círculo hermenêutico, considerado, para muitos filósofos, como uma expressão da estrutura fundamental dos seres humanos. Então, compreender é essencialmente um processo humano. Não conseguimos viver sem dar sentido ao existir como ser no mundo. Por isso, é necessário se dedicar a conhecer a trajetória de formação da Hermenêutica Filosófica como ramo do conhecimento humano dedicado, sobretudo, tendo como finalidade principal desvelar o acontecer próprio da compreensão, que pode ser sempre considerado como o resultado do esforço do intérprete, enquanto processo de formação de um novo projeto de sentido a partir do próprio ser no mundo. Bons estudos! 7 INTRODUÇÃO A História da Filosofia quase sempre foi construída em busca de compreender a realidade, a partir de pressupostos teóricos que fundamentassem o conhecimento, sob o domínio de bases metodológicas capazes de tornar possível a revelação da verdade. Deste modo, o conhecimento integra-se ao processo de reflexão da Filosofia, à medida que ela tenta compreender o processo de conhecimento enquanto problema filosófico. Por essa razão, é preciso caracterizar a Hermenêutica enquanto campo do conhecimento filosófico, a partir de uma perspectiva crítica do processo de desenvolvimento de suas concepções epistemológicas e metodológicas. Esta empreitada tem por finalidade compreender a trajetória de formação das ideias que forjaram a reflexão da interpretação hermenêutica, inicialmente, considerada mera ferramenta metodológica de interpretação filosófica. Portanto, neste e-Book apresentaremos o significado específico de uma interpretação filosófica, seu sentido histórico, sua possibilidade e sua relevância metódica. Dessa forma, a Hermenêutica rompe com o paradigma técnico, enquanto arte de interpretação clássica, para irromper-se como reflexão filosófica, a partir da compreensão do discurso como horizonte de interpretação da linguagem cifrada, baseada sobretudo em textos. Assim, Schleiermacher é considerado uma figura marcante de contribuição indispensável neste processo de construção da Hermenêutica, sendo, a partir dele, possível uma mudança significativa no procedimento interpretativo: do âmbito técnico científico para o filosófico. Por isso mesmo, ele é considerado como o criador de uma “doutrina da arte”, ou seja, a arte da interpretação. A Hermenêutica, então, considera como fundamental objeto de interpretação a própria linguagem, que é o horizonte que permite o acesso ao mundo de sentido para uma compreensão filosófica, na medida em que permite a interação entre o 8 leitor e o texto. Mas nada pode ser interpretado estando desvinculado da perspectiva histórica, visto que a linguagem expressa justamente as condições culturais de sua época, exigindo sempreuma interpretação atualizada. Nesse sentido, a compreensão torna-se o fundamento do processo filosófico que se estabelece e une historiador e hermeneuta para construirem um conhecimento que institua algum sentido ao mundo histórico. Nesse sentido, Schleiermacher integra-se a um grupo seleto de hermeneutas protestantes que procuram superar as vastas distâncias temporais apresentadas nos livros das Sagradas Escrituras, a fim de superar os sistemas alegóricos para interpretação da bíblia pela escola medieval. Wilhelm Dilthey, principalmente, procura fundamentar uma base epistemológica para a consolidação das ciências do espírito (Geisteswissenschaften), cuja finalidade era principalmente tentar contrapor o método hermenêutico ao modo de proceder das ciências naturais, convertendo a história em objeto ao inaugurar como procedimento a compreensão enquanto método próprio das ciências do espírito. Entretanto, pode-se dizer que somente Martin Heidegger, influenciado pela fenomenologia transcendental de Edmund Husserl, foi quem possibilitou compreender o mundo por meio da perspectiva histórica, como condição fundamental de filosoficamente refletir-se sobre o sentido do ser, a partir do próprio homem no mundo. A compreensão, portanto, para o filósofo alemão, tratava-se de uma filosofia que se elaborou como uma fenomenologia hermenêutica. Gadamer, nesse contexto, partiu dos pressupostos teóricos e metodológicos heideggerianos, sobretudo acerca da questão da compreensão, para, enfim, assumir como tarefa hermenêutica: o postulado, segundo o qual, a consciência histórica é o princípio norteador para a compreensão de uma ontologia hermenêutica. Por isso, somente é possível criar significados a serem compreendidos porque, para Gadamer, ocorre o que se denomina de fusão de horizontes (Horizontverschmelzung), ou seja, um acontecimento de linguagem necessário, mediando constantemente a tradição e 9 o presente. Assim, Gadamer considera a Hermenêutica, a partir do conceito de pré- compreensão enquanto fundamento histórico no campo das Ciências do Espírito, possível somente no horizonte da compreensão e da linguagem. Finalmente, Paul Ricoeur, apresenta o ser humano compreendido como um ser de linguagem, que por sua condição existencial busca o tempo todo interpretar-se e também compreender o mundo. As intepretações que o ser humano realiza tornam então a Hermenêutica, em sua dimensão textual, um processo de compreensão de si mediado pela Hermenêutica, estabelecido sobre a relação dialogal entre autor e leitor, a partir do mergulho sobre o “Mundo do Texto”. Assim, a Hermenêutica se destinará, principalmente, a explicitar o ser-no-mundo revelado propriamente pelo texto. Neste mundo, revela-se a possibilidade de o intérprete poder ingressar e, sobretudo, apropriar-se das possibilidades que ele propicia enquanto horizonte de sentido instituído pela linguagem, que é também um mundo proposto pelo texto no qual o leitor pode habitar. 10 UNIDADE 1 Hermenêutica como arte de Interpretar Objetivos • Apresentar a Hermenêutica como ramo do conhecimento filosófico; • Compreender a perspectiva filosófica de uma hermenêutica universal em Schleiermacher; • Analisar a experiência existencial como horizonte para a compreensão histórica a partir da hermenêutica de Dilthey. 1.1 Hermenêutica tradicional: etimologia da palavra hermenêutica A perspectiva histórica, revela seguramente que a origem da palavra hermenêutica reside no verbo grego hermeneueuein. Etimologicamente, o verbo pode ser traduzido por interpretar, mas que seu substantivo hermeneia indica interpretação. Por essa 11 ____________________________________________________ 1 Glossário - Hermes Trimegisto, deus grego mensageiro-alado-hermes, filho de Zeus e de Maia, portava atributos invejáveis aos homens como astúcia e inventividade, domínio sobre as trevas, interesse deliberado pela atividade humana, além psicopompia. Esta é uma característica daquele capaz de saber transmitir toda ciência considerada secreta. A partir disso, foi confundido por Paulo, depois que em Listra realizou um milagre, visto que Hermes é aquele que lhe dirigia a palavra. (CAMARGO, 1994). razão, tradicionalmente existe uma referência com Hermes1, considerado na mitologia grega o mensageiro mediador entre os deuses e os mortais. (CAMARGO, 1994). As mensagens, portanto, não se caracterizavam como meras comunicações de informações, mas sobretudo explicações das ordens diretas dos deuses, que deveriam necessariamente ser traduzidas para língua humana, exigindo do mensageiro a capacidade interpretativa da palavra, a fim de decodificar as informações dos deuses em condições de torná-las compreensíveis aos mortais. Então, enquanto mediador entre os deuses e os homens, Hermes torna-se o mensageiro da palavra e intérprete da linguagem e da escrita, que, por via de consequência, inaugura uma nova possibilidade de entender a Hermenêutica como processo de compreensão através da linguagem. (GRONDIN, 1999). Apesar de haver controvérsias acerca da relação entre o surgimento da palavra hermenêutica com o mito de Hermes (CAMARGO, 1994), estabelecem-se três posições filosóficas clássicas importantes para se compreender o vocábulo hermenêutica: expressar no sentido de dizer ou falar; expor com intensão de interpretar e traduzir; além de traduzir, ou seja, ser intérprete. São categorias que se assemelham e que, por isso, podemos concluir que, etimologicamente, a Hermenêutica se caracteriza como um processo interpretativo pela busca do sentido “verdadeiro” como paradigma filosófico indispensável para a reflexão acerca do problema da compreensão. 12 O termo Hermenêutica foi cunhado primeiramente pelo filósofo Johann Conrad Dannhauer entre 1603-1666. Termo concebido em sua obra Hermeneutica sacra sive methodus exponendarum sacrum litterarum de 1654, dando ênfase à lógica aristotélica como técnica de interpretação e pressuposto para se identificar discursos lógicos e ilógicos, a partir de uma inovação fundamental durante o século XVII. (FALCÃO, 2000). Ainda no contexto da Reforma Protestante, que afirmou o princípio interpretativo da liberdade da consciência crítica e a liberdade como critério para a compreensão bíblica, Dannhauer, inova em revelar que a verdade hermenêutica é universal, ou seja, esta universalização como pressuposto filosófico de aplicação, compreensão e interpretação de textos, sendo a Hermenêutica Filosófica propedêutica de todas as ciências. (GRONDIN, 1999). 1.2 A Hermenêutica no contexto da reforma protestante As hermenêuticas sacras tornaram-se, historicamente, por necessidade eclesial de afirmação hegemônica do religioso, o centro da interpretação teológica dos textos bíblicos, a partir de uma compreensão exegética. Nesse sentido, a intepretação bíblica foi reconstruída por meio das investigações de Martinho Lutero2 (1483-1546) como ruptura substancial com o paradigma profundamente dogmático enquanto ____________________________________________________ 2 Saiba mais - Nascido em Eisleben, na Saxônia (1483), ingressou na ordem dos agostinianos, após concluir seus estudos teológicos, ordenou-se padre e em 1517 publica noventa e cinco teses em contraposição ao poder eclesial diante das contradições morais da igreja e contra o posicionamento da pregação das indulgências. Após excomunhão da Igreja Católica, na Dieta de Worms (1521), rompe radical e definitivamente com a Igreja de Roma, apoiado inclusive por muitos príncipes, bispos, padres e leigos alemães. Na sua imensa produção teológica o destaque é para os comentários bíblicos, sendo célebres três breves ensaios: À nobreza cristã da nação alemã; O cativeiro babilônico da Igreja e a Liberdade Cristã. 13 ____________________________________________________ 3 Glossário- Etimologicamente, surge do termo grego allegoría e significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do sentido determinado de modo literal”. Em substituição à perspectiva estabelecida por Plutarco (c.46-120 d.C.), apoiado em um termo mais antigo hypónia que tinha sentido preponderantemente “significação oculta”, termo utilizado para interpretar. A análise de uma alegoria depende de uma leitura intertextual, que possibilite compreender num sentido abstrato um sentido mais profundo, quase sempre de caráter moral. Ainda na Idade Média, inclusive, a alegoria tornou-se instrumento de defesa de teólogos, que adotaram como método interpretativo alegórico da Bíblia para superarem todas as dúvidas heréticas. principal método de alegoria3 hermenêutico do período medieval. Figura 1 – Martinho Lutero Fonte: https://www.google.com.br/ search?q=MARTINHO+LUTERO&rlz=1C1RLNS_ pt-BRBR757BR757&tbm=isch&source=iu&i ctx=1&fir=sLgpYyUYb8bSBM%253A%252C UvrZvI9dNLgxoM%252C_&usg=AFrqEzfShn Hj-6FZod2JGew31Aj5SZSLwQ&sa=X&ved= 2ahUKEwjEtceloffcAhVChJAKHUFGCpAQ_ h0wEnoECAoQDQ#imgrc=sLgpYyUYb8bSBM O cristianismo primitivo encontrava-se marcado com uma tensão inerente ao processo de revelação bíblica entre a história especial do povo hebreu, caracterizada pelo processo de salvação teologicamente anunciada no Antigo Testamento, e pela encarnação de Jesus com sua revelação universal do Reino de Deus no mundo, como profecia de uma nova história para a humanidade, baseada nos escritos do Novo Testamento. O processo de interpretação exegético, então, apresentava dois caminhos de compreensão teológica dos escritos: interpreta de modo literal o conjunto dos livros antigos, e passa a compreender a história de salvação a partir de uma nova perspectiva espiritual de renovação do anúncio profético do cânon bíblico. Deste 14 modo, a alegoria torna-se o instrumento técnico para equacionar essa tensão de opostas interpretações, que no âmbito do cristianismo foi assumido pela escola de Alexandria, entre os séculos II e III. Orígenes assume o protagonismo de afirmar categoricamente que existe uma radical oposição entre o sentido literal ou histórico e o sentido espiritual. (FALCÃO, 2000). Em face desse posicionamento, adota-se o critério de leitura baseada na interpretação acerca da verdade, produzida a partir da negação teologicamente absoluta da letra do texto sagrado, elevando-o a um patamar além das experiências do mundo vivido. A tradição hermenêutica do período medieval, portanto, ocasionou por meio do domínio do método alegórico, o surgimento de duas correntes teológicas de interpretação bíblica: o conteúdo histórico foi negado como fonte de compreensão das sagradas escrituras, sendo toda bíblia apenas simbólica; além disso, existia o posicionamento de quem radicalmente entendia que a escritura deveria ser tomada somente a partir de sua compreensão literal do texto escrito. (GRONDIN, 1999). Lutero, nesse contexto empreende uma interpretação literal da bíblia, utilizando metodologicamente do princípio Sola Scriptura, com pressuposto da Reforma Protestante para adotar, de modo secundário, o pressuposto retórico do todo e da parte. Diante desse processo, verificou-se que o problema da interpretação não se resolveria apenas com a leitura do texto pelo texto, mas era preciso intentar-se uma abordagem histórico-crítica de restauração do contexto de vida a que se integrava os documentos, ampliando significativamente o conceito de Hermenêutica por meio da ideia de circularidade do todo e da parte, a partir de sua situação histórica. Assim, cada texto particular pertencia à totalidade do processo de formação social de sua época. Gadamer (1999, p. 274), filósofo alemão, ao aludir sobre este método, tece sua crítica: [...] esta relação circular do todo e das partes não é, em si, nenhuma novidade. A retórica antiga já sabia disso, ela que compara o discurso perfeito com o corpo orgânico com a relação entre a cabeça e os membros, por isso é contundente ao dizer que o que da hermenêutica bíblica interessa enquanto pré-história da hermenêutica moderna das ciências do espírito é o princípio escriturístico da Reforma, radicado no princípio da retórica clássica, trazida por Lutero e seus seguidores para o campo da compreensão. 15 Essa transformação teórica e metodológica de perspectiva hermenêutica e o inevitável desenvolvimento de uma consciência histórica, possibilitaram o surgimento das concepções subjetivistas-objetivistas de Schleiermacher e Dilthey sobre o problema da interpretação, partindo do ideal iluminista mediante uma análise gramatical, filosófica e sobretudo histórica. 1.3 Hermenêutica Romântica Historicamente, o Romantismo surgiu como movimento filosófico nos últimos anos do século XVII, inserido no contexto das transformações políticas, econômicas e sociais, integrando as tendências do pré-romantismo e do classicismo, a partir da perspectiva do idealismo filosófico. A sociedade moderno-industrial torna-se a esteira de mobilizações sociais que ensejam contradições culturais inerentes ao processo de desenvolvimento capitalista e suas consequências dramáticas para toda humanidade, após graves episódios de conflitos bélicos e destruição socioambiental. Nesse sentido, Schmidt (2012) esclarece que o Romantismo surgiu como movimento articulado a partir da Alemanha, por volta de 1800, e se ampliou após conquistar a Inglaterra, além de encantar a França. Por via de consequência, irradiou-se, substancialmente, para a cultura literária e científico-filosófica europeia e americana, declinando profundamente depois das consequências nefastas das revoluções de 18484. ____________________________________________________ 4 SAIBA MAIS - O período de grandes revoluções populares ficou marcado a partir de 1848 como “Primavera dos Povos”, sobretudo na Europa, nas cidades da França, do Império Austro-Húngaro, dos estados alemães. A população empobrecida, entre desempregados e trabalhadores, forjou um levante popular de proporções inimagináveis no contexto da exploração do sistema capitalista, após o advento da Revolução Industrial. O mundo se dividia entre as ideias político-econômicas liberais para preservar as monarquias absolutistas europeias e as concepções político-ideológicas dos trabalhadores e camponeses organizados como movimento contestatório, amparados pelos ideais socialistas de Karl Max e Fredrich Engels quando lançaram o Manifesto Comunista. 16 O Romantismo, portanto, tem como panorama histórico propulsor de seu surgimento, principalmente, o período denominado de Séculos das Luzes, fundamento ideológico de ruptura entre a visão teocêntrica e teológica judaico-cristã. Como processo considerado revolucionário, o Iluminismo, caracteriza-se pela aposta desmesurada na razão humana como fonte inesgotável de compreender o mundo e os mistérios da natureza, tendo como pressuposto de seu desenvolvimento a ciência como instrumento de dominação do conhecimento comprovado e o Liberalismo como sistema econômico. Figura 2 - A Liberdade sobre as Barricadas. (Eugene Delacroix) O pressuposto de emancipar o ser humano por meio do progresso técnico-científico, estimulado pelo crescimento econômico em escala global e baseado nos princípios da liberdade, igualdade e fraternidade, segundo os interesses da nova classe social ascendente, a burguesia, transformou o mundo em catástrofe: forjou uma civilização inflexivelmente racionalista e materialista, conforme preconiza (FALCÃO, 2000). Deste modo, considerada como uma escola de pensamento, o Romantismo tem influências decisivas para a gênese do Nazismo, Marxismo e também do movimento modernista. Fonte:https://www.google.com.br/search? q=revolu%C3%A7%C3%A3o+de+1848+primavera+ dos+povos&rlz=1C1RLNS_pt-BRBR757BR757& source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwiZrKulgPjcAhVDG5AKHW1IDbsQ_ AUICygC&biw=1517&bih=735#imgrc=2cuxl _Wyarr2VM 17 A partir das experiências traumáticas da sociedade capitalista sob a hegemonia burguesa como projeto de dominação econômica internacional, a produção romântica na Alemanha é divulgada pelos irmãos Shlegel na revista Athenãum, por volta de 1880. A “Escola Romântica” é caracterizada por um desejo de unidade ou reconciliação do homem entre a dimensão interna e a realidade externa, tentando reconhecer todas as potencialidades do ser, por meio, sobretudo, da possibilidade de compreender efetivamente a interioridade humana em sua singularidade. (SAFRANSKI, 2010). Este retorno às experiências subjetivas do próprio eu e ao cultivo das emoções, intuitivamente foi preconizado pelo Romantismo. Falcão (2000), destaca que Schleiermacher tornou possível integrar ao processo de compreensão das vivências existenciais humanas a fé e a ciência. Assim, estabeleceu que a comunicação é uma condição necessária para expressar a manifestação da divindade interior de qualquer indivíduo. Por isso, despertou interesse pela interpretação do singular e do todo que se revela por meio da experiência e se compreende pela linguagem, transcendendo o conhecimento meramente sistemático, por constituir sua teoria hermenêutica no âmbito do conhecimento teológico e a partir da escola do pensamento romântico. 1.4 A hermenêutica de Friedrich Schleiermacher Friedrich Schleiermacher (1768-1834) foi considerado um dos principais expoentes que contribuiu especialmente para as principais reflexões hermenêuticas a partir do início do século XIX, inclusive consagrado ainda como o fundador da Hermenêutica contemporânea. Importa dizer que com Schleiermacher, a Hermenêutica torna-se autônoma, como disciplina dedicada à “arte de compreender” adequadamente o pensamento que se encontra na base do discurso. 18 Figura 3 - Friedrich Schleiermacher Fonte: https://www.google.com.br/ search?q=Friedrich+Schleiermacher&rlz=1C1RLNS_pt- BRBR757BR757&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ve d=0ahUKEwiAxcOzmM3cAhVMHJAKHdGIAMMQ_ AUICigB&biw=1514&bih=713#imgrc=naYLCaSxleSm-M. No âmbito da reflexão racional e inspirado pela tradição retórica, o teólogo, filólogo e filósofo contribuiu para a superação do paradigma de múltiplas hermenêuticas. Por considerar, meramente, um conhecimento instrumental do teólogo, do jurista ou do filólogo, o pensador polonês idealizou um projeto para fundar uma teoria geral da Hermenêutica. Metodologia inovadora fundada na descrição unificada dos processos de compreensão, a partir da interpretação de todos os textos, escritos ou orais, religiosos ou mundanos, antigos ou modernos. A Hermenêutica foi deslocada para o campo filosófico, visto que os problemas fundamentais de interpretação estão fundados nos desafios do processo de compreensão. Isso porque a interpretação busca revelar também o caráter intencional do ser histórico, que forja seu discurso falado ou escrito situado em um horizonte histórico-linguístico específico, marcado pela inevitável inseparabilidade de pensamento e linguagem. Diante disso, a função primordial da Hermenêutica é superar a diferença ou a distância entre leitor e autor para tentar compreender corretamente a ideia do texto. (GRONDIN, 1999). 19 A Hermenêutica visa pensar o universal e o particular, o ideal e o histórico a partir da perspectiva dialética. Assim, o processo de conhecimento é uma possibilidade de pensar o concreto como etapa de mobilizar a capacidade racional, para compreender intelectualmente a realidade como reconstrução histórica e divinatória, considerando os elementos objetivos ou subjetivos de um determinado discurso oral ou escrito. Deste modo, busca-se captar o pensamento do autor, efetuando uma análise de sua linguagem, que concomitantemente torna necessário reconhecer o contexto de sua produção através de um retorno ao momento de seu surgimento ou gênese. (SCHLEIERMACHER, 2006). O termo divinação de Schleiermacher (2006), significa tentar compreender adequadamente em seu contexto de origem, o contexto de elaboração do projeto de publicação da obra do autor. Em outras palavras, captar a singularidade estilística do autor, que é singular e único. Mesmo sabendo que, assim como existe uma distinção entre os indivíduos, não se alcançará uma identificação perfeita entre a peculiaridade estilística de determinado texto e sua compreensão pelo leitor ou intérprete. (SCHMIDT, 2012). O que de fato se pretende hermeneuticamente é realizar uma compreensão por aproximação, que sempre poderá ser aprimorada, constituindo-se como um fator relevante de norteamento e motivação para se buscar o aperfeiçoamento da compreensão. Ademais, a perspectiva da hermenêutica revela que o processo de interpretação nunca ocorre de uma vez, mas é um processo ou uma busca interminável, construído pelo recurso da linguagem e pela faculdade da imaginação. (SCHLEIERMACHER, 2006). A interpretação é arte então, por se constituir como um processo baseado em um permanente ir e vir entre o universal e o particular. Por isso, cada discurso é, principalmente, a elaboração de um determinado finito que se constrói a partir de um indeterminado infinito, que é a linguagem. Já a linguagem deve ser considerada infinita, no sentido de que os signos linguísticos podem ser determinados de uma maneira particular pelos demais. Por outro lado, o mesmo também se torna possível afirmar sobre o aspecto psicológico, uma vez que cada intuição de alguém especificamente é infinita. 20 Nesse sentido, a relação de interdependência entre o todo e as partes diz respeito especificamente à possibilidade de se compreender o todo, ou seja, o sentido conjuntural das condições de produção de um texto somente é efetivamente compreendido a partir do domínio de interpretação das partes, pois a linguagem como discurso torna-se mediadora entre a produção do autor e a interpretação que se pode realizar de seu texto pelo leitor. Então, expressa em determinado contexto situado cultural e historicamente, com uma linguagem específica, a linguagem como discurso revela-se, para Schleiermacher, o objeto, o instrumento e o resultado da hermenêutica, conforme estabelecido. (SCHMIDT, 2012). Schleiermacher (2006) utiliza dois métodos indissociáveis para empreender a correta compreensão da linguagem: um gramatical (comparativo) e o outro psicológico (divinatório). A partir disso, ele defende que a Hermenêutica tem como objetivo fundamental não somente compreender o texto escrito, mas sobretudo revelar o seu sentido expresso na linguagem como horizonte possível para se interpretar adequadamente a individualidade criadora, ou seja, a todo texto interpretado há seu contexto como pressuposto para entender cada momento de produção livre do autor. Diante disso, é importante entender que toda produção de expressão humana faz parte de um processo criador que envolve compreender o comportamento do autor. Por isso, caracteriza-se como um processo que causa estranheza. Para Schleiermacher (2006), portanto, a função de sua hermenêutica é dedicar-se a compreender o sentido do texto, porém sem que se perca de vista a leitura que inter-relaciona o sujeito (autor) e o objeto (geralmente o texto). Por esse motivo, a interpretação literal dos signos deve pressupor metodologicamente a busca constante pela compreensão da individualidade do seu autor. Assim, a compreensão somente se torna possível de ocorrer quando há algo em comum entre o autor e o intérprete. 21 Nisto reside o que se denomina chamar de círculo hermenêutico5, já que do ponto de vista metodológico, a interpretação deve ocorrer a partir da união de dois métodos: o gramatical, centrado no texto, e o psicológico (técnico), centrado no autor, a fim de superar-se a superficialidadeda interpretação meramente gramatical. Por esse motivo, Schleiermacher estabelece sua perspectiva de compreensão hermenêutica a partir de duas condições fundamentais inovadoras: a consciência livre e criadora do sujeito e a linguagem. Com efeito, tornam-se as possibilidades do processo de compreensão e da interpretação porque também constituem a base do discurso que instaura o sentido. (GRONDIN, 1999). A compreensão de qualquer gênero literário de determinado texto, portanto, exige fundamentalmente que se compreenda o sentido dos termos utilizados a partir de seu contexto histórico, para que seja possível conhecer o repertório linguístico utilizado pelo autor conforme sua época. Nisto consiste o processo hermenêutico de interpretação gramatical, visando a compreensão do discurso, enquanto articulação da estrutura de uma língua. Além disso, uma interpretação especificamente psicológica inclui, imprescindivelmente, como objeto de interpretação a própria vida do autor, em busca de se perscrutar o sentido dos possíveis “motivos” que o levaram a escrever. Significar dizer que é preciso compreender as circunstâncias históricas que conduziram o autor para escrever, considerando-o não como uma figura abstrata, mas situado em um contexto, que socialmente o constitui como pessoa humana. ____________________________________________________ 5 SAIBA MAIS - Para Friedrich Schleiermacher, em cada processo de interpretação desenvolve-se o que se denomina de círculo hermenêutico. Deste modo, a compreensão de um texto completo somente é possível a partir das partes que o integram, além de ser necessário, principalmente, conhecer a vida do próprio autor da obra. Este enquanto sujeito histórico também está submetido à cultura de sua época, fazendo com que haja o conhecimento e o reconhecimento das condições sócio-históricas que marcam sua vida. Assim, somente se torna possível conhecer o texto completo à medida que se conhece a cultura que propiciou o projeto original de seu autor. 22 Nesse sentido, cumpre interpretar o “projeto originário” do autor como processo de interpretação situado na tensão entre a vontade ou intenção de comunicação do autor, sobretudo a partir da compreensão das formas possíveis do uso da linguagem de que ele dispõe para a sua manifestação textual. Assim, apesar de as categorias da linguagem consideradas tradicionais, bem como suas convenções artísticas poderem limitá-lo, a construção linguística expressa em seu discurso pode superar as condições históricas de seu tempo, através da imaginação como processo de construção criativo de novas formas de produção estilística do autor. (FALCÃO, 2000). Deste modo, o vínculo estabelecido entre estilo ou tendência do texto, remete- se a um permanente processo de imaginação, que anuncia previamente toda a construção da obra de seu autor, que consegue elaborar projetos, deixando neles sua marca pela sua peculiaridade de pensamento, estilo de escrita e objeto da interpretação técnica. Por isso, segundo Grondin (1999), a Hermenêutica empreendida por Schleiermacher era uma metafísica estética da individualidade, pois procurava instaurar um fundamento para viabilizar a compreensão de todo tipo de texto, sempre na perspectiva de entender cada momento de produção livre, a partir da reflexão sobre a individualidade criadora do autor, a fim de, sobretudo, tentar captar um modo de comportamento do sujeito. Schleiermacher buscou tornar possível uma equiparação da nossa interpretação com as intenções do autor. 1.5 Wilhelm Dilthey e a busca pela objetividade histórica A visão hermenêutica tradicionalista foi rompida historicamente a partir da perspectiva crítico-teórica, deixando seu caráter estritamente técnico, por meio do romantismo de Schleiermacher. Deste modo, a Hermenêutica Romântica é superada por meio de uma peculiaridade reflexivamente inovadora, enquanto elemento fundamental para a compreensão dos fatos históricos, passando de uma metodologia meramente de interpretação dos sentidos imanentes dos textos, para 23 uma metodologia que buscava uma adequada identificação dos sentidos imanentes dos processos históricos. Fonte: https://www.google.com.br/ search?q=Wilhelm+Dilthey&rlz=1C1RLNS_pt-BRBR757BR757 &source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0ahUKEwig2PSbteLcAh WSPpAKHQWFCpAQ_AUICigB&biw=1514&bih=713#imgrc=y- PXV1eqhlLMTM. Figura 4 - Wilhelm Dilthey Foi justamente Wilhelm Dilthey (1833-1911), nascido na Alemanha, cidade de Biebrich, que se dedicou profundamente a tentar explicar o processo de compreensão a partir de uma Crítica da Razão Histórica, fundamentando as ciências do entendimento sobre categorias próprias, ou seja, Dilthey (2010) tentou fixar a Hermenêutica como uma metodologia para as ciências do espírito. Assim, ele acreditava que no âmbito dos estudos humanísticos era preciso se dedicar a compreender as manifestações da vida, distintamente do modelo científico estabelecido às ciências da natureza e às normas de causalidade e rigidez de um pensamento mecanicista e basicamente quantitativo. Essa posição elevou Dilthey como expoente crítico ao paradigma positivista baseado em Comte e John Stuart Mill, que acreditavam, essencialmente, na impossibilidade de fundar-se uma metodologia específica aplicada às ciências humanas, pois deveriam adotar igualmente o método consagrado nas ciências da natureza. Diante disso, Dilthey (2010) defende que o método adequado para a compreensão das questões humanísticas deve fundamentar-se epistemologicamente no âmbito das ciências do espírito, pois é a história que deve ser o objeto de análise hermenêutica, uma vez que não terá qualquer efeito tentar captar as intenções psicológicas que motivaram a produção de um texto. 24 Na concepção hermenêutica histórica de Dilthey (2010), torna-se imperioso dizer que compreender é compreender uma expressão, relação considerada como processo de vivências histórias individuais, uma unificação do interno e do externo, que se tornou vida. Por este motivo, a fundamentação do conhecimento histórico deveria ser encontrada nos fatos da consciência. Deste modo, o que Dilthey (2010) descobre é que a própria “vida humana” deve ser considerada objeto de análise do conhecimento, ou seja, as ciências do espírito propostas exclusivamente pelo filósofo alemão investigam as manifestações da vida humana que ele denomina realidade histórico-social. Nesse contexto, Dilthey estabelece metodologicamente dois tipos de etapa procedimentais que devem ser empregados pelas ciências do espírito. A explicação (Eklarüng) relaciona-se com a atividade construtiva das ciências, e a compreensão (Vehstehen) torna-se a base do processo de construção das condições de possibilidade das ciências analíticas. A explicação consiste na atribuição de uma causa eficiente a um determinado evento, e é o mecanismo básico de constituição da ciência moderna, pois todo o progresso das ciências empíricas se baseou na eficácia da explicação dos fenômenos. A explicação lógica dos fenômenos representa a superação dos fundamentos metafísicos do conhecimento pré-moderno, e, ao mesmo tempo, Dilthey (2010) restaura filosoficamente os pressupostos epistemológicos, almejando de modo particular, a partir da descoberta da “vida humana” como centro da realidade cognoscível, repensar a ciência. Não obstante, há que se ter clareza sobre os limites de toda ciência, visto que a historicidade da vida humana torna possível a construção do conhecimento científico do mundo histórico, pois o conhecimento desenvolvido no âmbito das ciências naturais deve ser perfeitamente integrado ao conhecimento produzido pelas ciências do espírito. (FALCÃO, 2000). Assim, a pressuposição cientificista de Dilthey pressupõe que o domínio do mundo físico descoberto pelas práticas desenvolvidas pelas ciências da naturezapoderá, principalmente, contribuir para a construção de uma compreensão científica das 25 leis do mundo do espírito, aumentando as possibilidades de reconstruir, através de métodos próprios instrumentalizados pelas ciências humanas, efetivamente as condições de intervenção sobre a realidade histórico-social, a fim de descrever regularidades e estabelecer normas a partir de relações já constituídas humanamente, para tornarem-se compreendidas cientificamente por construções teóricas fundamentadas em uma multiplicidade de princípios explicativos. (PALMER, 1986). Portanto, o método das ciências do espírito destina-se a descobrir, no processo de formação histórica, fatos concretos que permitam a ação científica sobre a própria realidade humana, para fundamentar explicativamente os fenômenos de seu campo de investigação e de compreensão. Deste modo, o procedimento da explicação faz parte da construção do conhecimento científico, mas, por outro lado, toda ciência deve ter fundamento no ato de compreender. Por isso, o cientista do espírito deve atribuir-se técnico e cientificamente de todos os meios teóricos e metodológicos possíveis a fim de construir o aparato explicativo de sua ciência. Nesse contexto, Dilthey utiliza-se metodologicamente de dois tipos consagrados de procedimentos adotados pelas ciências do espírito: primeiramente, a explicação (Eklarüng) que estrutura a base epistemológica de construção de qualquer atividade das ciências, além da compreensão (Vehstehen) que fornece as condições de possibilidade das ciências analíticas. A base das explicações das ciências modernas, foi forjada na atribuição de uma causa eficiente relacionada diretamente a um evento determinado, pressuposto indispensável para a explicação eficiente dos fenômenos, medida adotada em contraposição aos fundamentos metafísicos do conhecimento pré-moderno. Diante disso, todo o progresso das ciências empíricas se baseou fundamentalmente na explicação lógica dos fenômenos, ou seja, a lógica torna viável explicar determinada realidade a partir de uma articulação entre os fatos de uma teoria e pela mobilização das diversas teorias existentes entre si, porém consagram-se no âmbito científico somente pela explicitação também do contexto em que a teoria foi construída, 26 principalmente, por sua relação com a totalidade da realidade sócio-histórica. (PALMER, 1986). Por essa razão, a perspectiva explicativa dos fenômenos é uma condição necessária para o conhecimento científico, de modo que se apresenta como etapa necessária, uma vez que toda ciência do espírito é uma atividade reflexiva. Para Dilthey, então, os conceitos explicativos somente se tornam efetivos no plano científico porque derivam das circunstâncias históricas da experiência ao mesmo tempo em que refletem igualmente os limites sócio-históricos. Desse modo, o conhecimento explicativo, durante o processo de apreender as determinações gerais dos fenômenos, estabelece procedimentos que definem os meios através dos quais se intervém nas situações concretas e particulares. A explicação no âmbito científico torna-se resultado da produção de tecnologia de conhecimento. Assim, explicar é estabelecer um fundamento para as coisas, porém abstratamente em relação ao conhecimento efetivo da realidade considerada histórico-social. (FALCÃO, 2000). Além disso, a concepção diltheyneana de ciência moderna, dedica-se a fundamentar filosoficamente a necessidade de fazer com que cada ramo do conhecimento científico se dedique a compreender sua historicidade, a partir de suas condições baseadas na experiência da ‘vida humana’, em busca de construir uma articulação com as demais ciências, apontando especialmente para o fato de que existem limites para a possibilidade científica do conhecimento, visto que este se elabora como realidade histórico-social. Em resumo, a compreensão é o pressuposto filosófico básico sobre o qual se fundamentam as ciências do espírito. A compreensão é intrínseca à explicação pressuposta, conquanto, presente em toda ação humana. Dilthey apresenta sua fundamentação das ciências do espírito em referência ao fenômeno da compreensão, a partir de uma perspectiva tridimensional: 27 inicialmente, o homem compreende as situações historicamente, situado em seu contexto próprio em circunstâncias específicas de vida; por conseguinte, enquanto ser histórico, a realidade é percebida como fato histórico, ou seja, o homem se mobiliza na história. A compreensão possibilita ao homem se situar historicamente no mundo, avaliando circunstâncias de vida sempre a partir de certas crenças, que estão implicadas na própria estrutura histórica da compreensão. Por último, a compreensão enseja um posicionamento consciente para a tomada de decisões, baseadas no julgamento interpretado com fundamento em juízos de valores historicamente elaborados. Neste sentido, a compreensão é o que permite a fundamentação enquanto fato de toda possibilidade de construção do conhecimento científico, posto que para Dilthey o objeto mais amplo da epistemologia das ciências do espírito é justamente a análise do fenômeno da compreensão. SUGESTÃO DE LEITURA O artigo A Hermenêutica e o Romantismo Alemão discute a proposta hermenêutica de Schleiermacher a partir de uma revisão da literatura que analisa a interpretação técnica e psicológica. Disponível em:<http://e-revista.unioeste.br/ index.php/diaphonia/article/view/17209/11439>. O artigo O círculo hermenêutico: Que problema é este? discute o método conhecido como Círculo Hermenêutico, apontando para um possível problema no âmbito ontológico ou metodológico para as ciências sociais e humanas. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ts/v26n2/v26n2a04.pdf>. O artigo A Hermenêutica de Wilheim Dilthey e a Reflexão Epistemológica nas Ciências Humanas Contemporâneas apresenta as contribuições de Wilheim Dilthey como proposta teórica e metodológica dentro do movimento da “hermenêutica romântica” alemã para as ciências humanas contemporâneas. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/se/v17n2/v17n2a03.pdf>. 28 ATIVIDADES Como caracterizar o círculo hermenêutico preconizado por Schleiermacher para se compreender o sentido de um texto completo, considerando que o todo não poder ser inteligível sem compreensão das partes? A Hermenêutica, enquanto método de interpretação, torna possível a compreensão do sentido de um determinado texto situado em seu contexto histórico? A linguagem pode ser considerada produto histórico? Com base nesta informação, é imprescindível interpretar o sentido do texto historicamente? RESUMO Nesta Unidade, apresentamos analiticamente a Hermenêutica como processo de interpretação filosófica, tendo na figura de Schleiermacher o fundador de um novo paradigma metodológico, evitando a fragmentação da Hermenêutica, e propondo que a operação hermenêutica dedique-se a uma superação da distância estabelecida entre leitor e autor, pois compreender um texto é sobretudo compreender fundamentalmente uma individualidade, o comportamento do sujeito que deu origem ao texto e que é parte integrante indissociável da história. Em busca de fundamentar uma razão histórica, nesse sentido, Dilthey se apropria da realidade humana, tomando-a como objeto do conhecimento científico. Deste modo, o mundo da vida humana é construção histórica, o mundo do espírito. Assim, a função específica de uma ciência do espírito é dedicar-se a conhecer em sua própria estrutura o mundo histórico. 29 REFERÊNCIAS BLEICHER, J. Hermenêutica Contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1992. CAMARGO, N. M. de; AMARAL, P. Período clássico da hermenêutica filosófica na Alemanha. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1994. DILTHEY, W. A construção do mundo histórico nas ciências humanas.São Paulo: UNESP, 2010. FALCÃO, R. B. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. GRONDIN, J. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Unisinos, 1999. PALMER, R. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1986. ROHDEN, L. Hermenêutica filosófica: Entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2002. SCHLEIERMACHER, F. D. E. Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2006. SCHMIDT, K. L. Hermenêutica. Petrópolis: Vozes, 2012. 30 UNIDADE 2 Hermenêutica Filosófica Objetivos • Compreender a Hermenêutica como campo de reflexão filosófica; • Analisar a existência como sentido de compreensão do ser; • Caracterizar a hermenêutica como conhecimento do existir humano. 2.1 Hermenêutica e linguagem Para Heidegger, importa considerar que a perspectiva hermenêutica como filosofia, se constitui como um processo de busca através da interpretação do sentido das condições de possibilidade da própria compreensão, ou seja, intenta-se, portanto, filosoficamente refletir sobre o sentido do próprio compreender. Por isso, a intenção do autor se dedica a abordar o sentido da estrutura humana de conhecer, que é fundamentalmente linguística. Assim, o conhecimento como produto da condição 31 existencial humana somente é possível no homem enquanto ser que se conhece por meio da linguagem. (PAISANA, 1992). Fonte: https://www.google.com.br/ search?q=heidegger&rlz=1C1RLNS_pt-BRBR7 57BR757&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved= 0ahUKEwjt-5rqzLndAhXGEZAKHWQsCwEQ_ AUICygC&biw=1517&bih=735#imgrc=ZwcSNdwSNqaehM Figura 5 - Heidegger Na perspectiva heideggeriana, então, trata-se de reconhecer o problema do conhecimento por meio de conhecer a estrutura do conhecimento, ou seja, o “como” da compreensão. Poderemos deste modo afirmar, em suma, que este “como” integra analiticamente determinados elementos, tais como: a implicação do humano (humano “como” humano) como um interesse, uma fonte de questionamento situada; uma maneira de constituir sentido (expresso na filosofia através de argumentos e conceitos); a linguagem, considerada principalmente em seu aspecto filosófico mais próximo ao logos, como condição de inteligibilidade e interpretabilidade, além de reconhecer a necessidade intrínseca de que este sentido seja compartilhado num diálogo. (MAC DOWELL, 1993). Por isso mesmo, cabe compreender a maneira como o ser humano pode, sendo o ser que tem linguagem, conhecer o mundo em que se apresenta, como vir a ser conhecido também, bem como a própria linguagem. Por outro lado, neste intento está pressuposto que conhecer é compreender o que se “dá” enquanto “constituído para”, relação sempre estabelecida com alguma outra coisa, pressupondo- 32 se no desenvolvimento da analítica existencial, captar o sentido da linguagem como discurso, remontando o pensamento filosófico à tradição grega, sobretudo posicionando-se em oposição à interpretação redutora da tradição filosófica que o tomou como razão, fundamento e juízo. 2.2 O sentido do ser como questão fundamental O filósofo alemão Heidegger, certamente, figura entre os mais proeminentes pensadores do mundo moderno, sobretudo a partir de sua publicação mais expressiva academicamente, Ser e Tempo (ST), uma das obras mais citadas no século XX. As contribuições do pensador da Floresta Negra se desenvolvem, tendo como pressuposto epistemológico e metodológico, os estudos sistemáticos das distintas épocas do saber filosófico, especialmente, retomando os grandes temas da filosofia grega, com destaque entre: o período pré e pós-socrático, da Escolástica, da filosofia moderna, de Kant e dos idealistas, além dos sistemas analíticos dos filósofos contemporâneos ao seu contexto histórico marcante de vida. Apesar da complexidade que envolve o pensamento filosófico heideggeriano, pode- se dizer que o substrato teórico que norteia todo o seu empreendimento teórico dedica-se a compreender qual o sentido do ser? A partir de qual horizonte filosófico se configura a determinação simples e unitária do ser, mesmo prevalecendo entre as múltiplas significações do ente? Diante disso, instaura-se o problema fundamental da filosofia de Heidegger que deve buscar então se dedicar à questão em torno do ser, discussão a qual ele vai tentar responder durante toda a sua vida, no desenvolvimento de sua filosofia. (PAISANA, 1992). Heidegger inicia Ser e Tempo convicto de que se torna necessário revisitar a tradição filosófica fundada em Platão e Aristóteles, acerca do conceito do ser para aprofundar suas bases de definição, ou seja, a necessidade de se reconstruir a pergunta pelo sentido do ser em vista de aprofundar os pressupostos que possibilitaram sua formulação. Por isso, para Heidegger a preocupação da filosofia 33 não é trazer necessariamente algo novo para o horizonte de compreensão, mas o que interessa é compreender de maneira radical e profunda a própria estrutura do compreender histórico existencial. Deste modo, o projeto original da obra Ser e Tempo formula um conceito inovador da própria filosofia: “a filosofia é uma ontologia fenomenológica e universal que parte da hermenêutica do ser-aí, a qual, enquanto analítica da existência, amarra o fio condutor de todo questionamento filosófico no lugar de onde ele brota e para onde retorna”. (MAC DOWELL, 1993). Nesta perspectiva, o método hermenêutico é caracterizado de uma maneira modificada em relação à tradição, rompendo inclusive com o binômio todo-parte, pois para Heidegger a estrutura circular da compreensão do filosofar constitui a partir da colocação da questão para o sentido do ser. Assim, a estrutura circular da compreensão se vinculará à própria atitude interrogativa fundamental do filosofar e, por conseguinte, se relacionará à repercussão que esta atitude enseja ao colocar em movimento o caráter existencial e histórico da questão como tal. (STEIN, 2005). A dimensão hermenêutica deve ser entendida também no plano fático da vida (mundana), visto que as experiências não se instauram exclusivamente em uma dimensão puramente formal, mas se instituem no mundo, sobretudo a partir de uma concepção de campo de manifestação dos entes em geral e dos comportamentos dos homens. A dimensão hermenêutica, portanto, considerada histórica, afirma que todas as possibilidades de comportamento humano (prático ou teórico) são estabelecidas pelas estruturas prévias insculpidas historicamente no interior desse horizonte fático. 34 Desse modo, cabe entender que as condições fundamentais que integram a estrutura formal da questão do sentido do ser: o questionado, o interrogado e o perguntado, estão relacionadas às atitudes constitutivas e necessárias de uma reflexão possível filosoficamente e de caráter hermenêutico no âmbito do questionamento, como modos de ser do ente que nós mesmos somos. O ser questionado é compreendido a partir do modo de ser do ente, que de fato “é”, enquanto questiona. Neste processo, encontra-se uma determinada situação ôntico-existenciária, ou seja, o interrogado na questão do ser é o próprio ente que formula a questão, porque em sua condição existencial por ser, em seu ser, fundamentalmente compreensão de ser, o ser-aí6 existe sempre como possibilidade em condições de levantar a questão do ser. (CAPUTO, 1998). ____________________________________________________ ABC ou Glossário 6 Ser-aí – Pode-se afirmar que o ser-aí é o ente único capaz de questionar seu próprio ser e que, por isso, possui um primado ontológico, ou melhor, pré-ontológico, visto que sendo, ele compreende ser. Assim, é importante dizer que o ser-aí está sempre de algum modo se relacionando com seu ser, colocando seu ser em jogo. A partir disso, o ser-aí somente se descobre em seu serna medida em que, existencialmente, assume um modo possível de ser. A existência, por isso mesmo, torna-se uma determinação exclusiva do ser-aí, pois enseja relação entre ser e ser-aí, que estabelece uma dinâmica a partir da compreensão fundada, em que existindo o ser-aí é seu modo de ser, e assim ele se determina, mas nunca se conclui. O ser-ontológico do homem é ser a abertura (o aí) onde os entes se mostram e ele – homem – se mostra para si mesmo. 35 Para Heidegger, a situação hermenêutica estabelecida na analítica do ser-aí, integrada a um círculo hermenêutico que constitui a natureza da repercussão do questionado (o ser) no próprio questionar (modo de ser do ente), auxilia a própria compreensão pré-ontológica do ser, que sendo tem a possibilidade de formular a questão, pois na perspectiva do seu ser, o ser-aí é originariamente o ente que existe. 2.3 O sentido do ser em geral: Dasein (ser-aí) e ser-no-mundo7 Em Ser e Tempo, Heidegger, estabelece as bases de uma fenomenologia hermenêutica, a partir da vivência do próprio homem que se compreende como ente, que é o que pode compreender-se como ser. Deste modo, o Dasein8 é analisado a partir de sua existência fática e, por meio da fenomenologia, torna-se possível o acesso à questão filosófico-hermenêutica fundamental, o sentido do ser. Pelo método fenomenológico, o sentido verdadeiro do ente que se compreende ser é desvelado, se encontra velado ou permanece dissimulado, não é um simples ente, mas sim o ‘ser do ente’. Assim, a fenomenologia procurará transformar em fenômeno aquilo que se oculta como busca pela compreensão de como se manifesta, tornando o ser interpretado como fenômeno. (STEIN, 2005). ____________________________________________________ ABC ou Glossário 7 Ser-no-mundo – Para Heidegger, é preciso entender que o homem é um ente que se diferencia dos demais, principalmente por compreender e dar significado ao mundo. Assim, a expressão ser- no-mundo remete-se ao ente que nós somos e indica que, sendo, estamos sempre juntos ao mundo e existimos sempre em um mundo. Deste modo, significa dizer que o homem é ser-em e ser-junto ao mundo. Esse conceito de ser-no-mundo pretende, então, caracterizar a simultaneidade de mundo e homem, pois revela que a existência do homem somente tem sentido a partir da sua relação com o mundo, uma vez que este ganha sua significação por meio do homem. Nessa relação de simultaneidade, ser-no-mundo diz sempre ‘já-ser-junto-ao-mundo’, ocupar-se com as coisas do mundo, “deter-se” ou demorar-se junto ao mundo. Enquanto ocupação, o ser-no-mundo é tomado pelo mundo de que se ocupa. 8 Dasein - O ente adotado por Heidegger, para fundamentar o questionamento filosófico acerca do sentido do ser, é o Dasein. O Dasein, portanto, é o ente cuja essência (ser) coincide necessariamente com a existência, visto que é a partir desta que seu ser se realiza como ser no mundo. Assim, é próprio do Dasein ter de ser. (ABBAGNANO, 2007). 36 A categoria Dasein historicamente foi utilizada, mas Heidegger incluiu uma nova definição no âmbito filosófico. Para Heidegger, o substantivo Dasein é utilizado de maneira restrita aos seres humanos, no sentido de ‘ser-aí’: ‘Da’ como ‘aí’ e ‘sein’ como ‘ser’, portanto, Da-sein. Então a compreensão de mundo deve integrar também a compreensão deste ente (não como uma totalidade de entes, mas relativa ao ser humano), de modo que Heidegger não se utiliza da terminologia consagrada se remetendo a homens ou pessoas, mas sempre se remete como Dasein. O homem é o seu ‘Da’, significando também o ‘Da’ como fundamentalmente ‘abertura’ (Erschlossenheit) deste ente. Para Stein (2005), a concepção inovadora de ‘abertura’ tratou de romper com a categoria de ‘consciência’ de Husserl, a fim de substituir a ideia de consciência intencional para estabelecer um conceito e uma terminologia mais ampla (CAPUTO, 1998). A existência própria do Dasein é um projeto de abertura ao ser, no sentido de “ter- que-ser”, determinando seu modo de viver que se constitui a partir de um tempo de duração da existência, estabelecido entre um começo e um fim. Portanto, viver torna-se uma condição estruturada como um modo de ser especial de existir, pois como possibilidade torna-se um processo para manter-se na existência, ou seja, “um processo de autoconservação”. A existência, por isso, é compreendida a partir do Dasein que, por sua vez, sempre se encontra determinado por sua facticidade como possibilidade ao existir enquanto um poder-ser, ou seja, o ser-aí é um ente que só pertence a si mesmo, a partir de suas múltiplas possibilidades de ser. Não obstante, a existência ou ek-sistência remete-se ao ser como possibilidade, ao existir enquanto ser-para-fora, significa dizer, então, que o ser-aí é um ente que determina a sua essência a partir de seu existir. A partir disso, a compreensão fenomenológica, como via de acesso à intepretação do sentido do ser, se torna tarefa principal da ontologia. A pergunta pelo sentido do ser deverá reconstruir-se pela analítica existencial de um ente que deve ser questionado propriamente, visto que a fenomenologia como ontologia dedica-se à compreensão do ser e ao sentido do ser, processo de reflexão hermenêutica de 37 interpretação tanto ôntico como ontologicamente, sobre o ‘ser-aí’, o Dasein. Por essa razão, a analítica das estruturas fundamentais do Dasein deve ser analisada filosoficamente, a partir do método fenomenológico que assume uma perspectiva hermenêutica, de interpretação e explicitação. Heidegger procura estabelecer um projeto hermenêutico fenomenológico fundado numa analítica existencial, a partir de uma investigação filosófica de caráter existencial, porém não preocupa-se só em buscar tematizar a existência como interpretação do ser lançado como ente dentro do mundo, nem meramente dedica- se a compreender a existência sob um viés de caráter ontológico. É preciso entender que a existência, enquanto ser-no-mundo, é ser-em-um-mundo disposto facticamente enquanto um estar-lançado aí, aberto e desnudo no que é e tem de ser, tratando-se de uma condição essencial à compreensão existencial, fazendo com que através do método hermenêutico fenomenológico procure despertar a nossa existência histórica para o sentido dessa questão. O ser-no-mundo do Dasein, entretanto, não se constitui com uma condição espacial diretamente relacionada às coisas concretas, mas principalmente deve ser entendido como um modo de residir, habitar e permanecer, estar familiarizado com ou estar acostumado. Assim, não se caracteriza como uma perspectiva de justaposição do ente Dasein com o ente mundo, pois conforme Azúa (1997, p. 49), para Heidegger “o mundo não é configurado como a totalidade das coisas concretas conhecidas de uma maneira indeterminada, mas como condição ontológica para que os entes intramundanos nos ‘venham-ao-encontro’”. Nesse sentido, o Dasein somente é enquanto pode ser-no-mundo, pois esta condição é um elemento transcendental da estrutura do Dasein. Existencialmente, como ser-no-mudo o Dasein é poder-ser, enquanto possibilidade entregue a si mesmo, como projeto lançado ao existir, sendo e tornando-se responsável por seu ser, por sua existência. É, portanto, a possibilidade de ser livre para o poder-ser mais próprio, que existindo compreende-se como ente que gesta o mundo e sempre se assume como tal. 38 2.4 Estrutura hermenêutica do existir A condição do ser-aí, como possibilidade de ser-no-mundo e como projeto aberto ao existir, é compreendida a partir dos caracteres hermenêuticos da disposição, compreensão, interpretação e discurso interpretados por Heidegger como os existenciais9 que caracterizam a estrutura do ser-aí em seu estar-aberto. A disposição (Befindlichkeit) caracteriza o modo do ser-aí no mundo, que exprime os distintos modos de sentir-secomo alguém está e se torna em cada possibilidade existencial, seja em relação ao ente e ao ser, ou seja, revela com quem convive, de que modo se encontra com os outros, em razão de algum afazer ou tarefa específicos na cotidianidade. Deste modo, a disposição possibilita ao ser-aí, estabelecer relação com os outros e ser tocado enquanto se apresenta como uma possibilidade, uma condição existencial que pode analisar-se a partir de uma compreensão dos modos de sentir-se e estar do ser-aí em seu mundo, e ainda com o que lhe vem ao encontro. Na atitude interpretativa da atividade hermenêutica como tal, o mundo está presente como aquilo que, em função do qual o ser-aí é enquanto possibilidade de projetar seu ser em direção ao existir, se pretende ser-no-mundo, como poder ser-no-mundo do ser-aí. Por isso, compreender permite construir-se uma visão cuja finalidade é captar compreensivamente toda a abertura do ser-no-mundo, por meio através dos modos de ser essenciais de sua constituição, que são a circunvisão na ocupação e a consideração na preocupação (Besorge e Fürsorge). Existencialmente, é necessário dizer que o caráter projetivo da compreensão constitui, então, uma condição fundamental do Dasein que se denomina visão (Sicht). (CAPUTO, 1998). ____________________________________________________ ABC ou Glossário 9 Existencial - Na analítica existencial heideggeriana, ao considerar a existência do ser-aí a partir de seus modos fundamentais de ser, a existência torna-se a “essência” do ser-aí. Por isso, o filósofo alemão chama de existenciais as estruturas ontológicas constitutivas do ser-aí. No entanto, não são “estruturas” através das quais, analiticamente, se compõe “todo o ser”, ou seja, a “essência” do ser-aí. Existenciais são, então, os elementos, as modalidades de ser do ente chamado ser-aí, cuja constituição fundamental é ser-no-mundo. (ABBAGNANO, 2007). 39 Para Caputo (1998), a transparência do Dasein em relação ao seu próprio existir aponta para a integridade de como se compreende como projeto aberto ao ser-no- mundo, através do autoconhecimento de suas estruturas essenciais, que pode ser um compreender próprio como ser autêntico ou inautêntico, pois o compreender enquanto poder-ser torna-se um projeto de ser sempre antecipado na vida fática cotidiana do ser-aí. O Dasein enquanto compreende, encontra-se aberto como projeto para possibilidades de desenvolvimento de seu próprio ser, que Heidegger denomina como interpretação (Auslegung). Assim, “a interpretação se funda na compreensão e não vice-versa [...] A interpretação consiste na elaboração das possibilidades projetadas no compreender”. (HEIDEGGER, 1998, p. 172). A interpretação então, se funde a partir de uma posição prévia, estabelecida pelo referencial da vida cotidiana do ser-no-mundo, tendo como pressuposto uma totalidade de significados previamente compreendidos, articulados sempre a partir da palavra e da linguagem. As palavras, que neste concreto solo significativo estão enraizadas e mostram propriamente, por assim dizer, o seu sentido, vêm a determinar e exprimir significado, e isto num contexto preciso de referencialidade já articulado dentro da significância conjuntural da compreensão. O discurso, como articulação das possibilidades do processo de compreender através da palavra, abre-se no horizonte existencial do Dasein, que se projeta aberto ao sentido de uma determinada conjuntura de significância articulada no estar lançado no mundo, forjando duas atitudes fundamentais possíveis do ser-aí: o silêncio e a escuta. Deste modo, para Heidegger (1998, p. 163): Escutar é fundamentalmente estar aberto enquanto condição existencial do ser-aí como ser-com os outros. Enquanto escuta da voz do amigo que todo ser-aí traz consigo, o escutar constitui até mesmo a abertura primordial e própria do ser-aí para o seu poder-ser mais próprio. O ser-aí escuta porque compreende. Como ser-no-mundo estruturado em compreensões com os outros, o ser-aí obedece na escuta à co-existência e a si próprio, ‘pertencente’ a essa obediência. O escutar recíproco de um outro, onde se forma e elabora o ser-com, possui os modos possíveis de seguir, acompanhar e os modos privativos de não ouvir, resistir, defender-se e fazer frente a. 40 Nesse sentido, a exteriorização do discurso é principalmente a linguagem. Trata- se de uma interpretação hermenêutica do próprio mundo, enquanto representa sempre um universo possível de significações. O discurso viabiliza a relação compreensiva do estar-no-mundo como um momento estrutural e constitutivo da abertura do Dasein, visto que é a condição de possibilidade – existencial - (plano ontológico) para que se viabilize a linguagem (plano ôntico). Assim, a compreensão do sentido de algo existente sempre se articula ao discurso, antes mesmo que possa surgir alguma interpretação que o tente explicitar, que se empreende a partir de um mundo de significações hermenêuticas que se conforma através do discurso. Somente pelo discurso ocorre a compreensão, de maneira que a linguagem, como uma totalidade de línguas, trata-se de uma condição ôntica do discurso, ou seja, uma efetivação histórica e cultural do existencial discurso. (MICHELAZZO, 1999). 2.5 Linguagem como discurso É relevante destacar que, a partir da constituição existencial da abertura do Dasein na perspectiva de Heidegger, se antecipa a possibilidade da linguagem como discurso à disposição (Befindlichkeit). A disposição, por isso, está relacionada à condição existencial compreendida como afetos em contraposição à concepção racional, uma vez que na sua cotidianidade o Dasein experimenta como disposição os humores. Assim, a disposição torna-se o caráter ontológico desta possibilidade de afetação do Dasein em seu sentido ôntico, surgindo da facticidade do Dasein, enquanto ser-lançado10 (geworfen). (MICHELAZZO, 1999). ____________________________________________________ ABC ou Glossário 10 Ser-lançado - O sentido de “ser”, ou “estar-lançado” indica que o Dasein não se “projeta” a si mesmo, ele já se encontra vinculado às condições fatuais e históricas do mundo. É o que faz o Dasein “ter de ser” (ST1, 189), enquanto ser-no-mundo, o dasein tem de ser e é sua abertura (ABBAGNANO, 2007). 41 Nesse sentido, derivando-se igualmente da constituição como também da abertura do Dasein, surge da condição de possibilidade de afetação por parte da disposição, a compreensão. Por isso, para Heidegger (1998, p. 198), “toda disposição sempre possui a sua compreensão, mesmo quando a reprime. Toda compreensão está sempre sintonizada com o humor”. Deste modo, ser, como possibilidade de existir, está sempre dirigido pela compreensão do próprio Dasein, ou seja, “a pre-sença é de tal maneira que ela sempre compreendeu ou não compreendeu ser dessa ou daquela maneira” (1998, p. 199). Por essa razão, torna-se fundamental a compreensão como horizonte de abertura do ser do Dasein, constituída a partir de uma dupla possibilidade hermenêutica: compreensão do ser e de si mesmo. Assim, a disposição e a compreensão são características existenciais do Dasein que possibilitam a linguagem. A compreensão torna-se fundamental como possibilidade de manifestação discursiva daquilo que o Dasein, enquanto abertura para o mundo, enquanto totalidade significativa, possibilita e condiciona para a interpretação do todo conjuntural aberto pela compreensão do Dasein enquanto ser-no-mundo. O discurso é, por conseguinte, a possibilidade de o Dasein expor o que interpreta, integrando sentido e usando as palavras como manuais. Segundo Heidegger, a própria escuta torna-se um momento constitutivo fundamental do discurso. No mundo circundante, o Dasein sempre se move a partir de um horizonte de interpretação, pois “a escuta é constitutiva do discurso [...] escutar é o estar abertoexistencial da pre-sença enquanto ser-com os outros”. (HEIDEGGER, 1988, p. 222). Assim, a própria escuta é parte constitutiva do discurso, uma vez que a possibilidade de interpretação, a partir do mundo circundante, revela que escuta e silêncio têm o mesmo fundamento existencial, sendo o ouvir uma escuta compreensiva. A palavra torna-se algo então que apenas se pode ser integrado a partir do sentido empregado no “uso” que o Dasein, ao dizer do mundo, faz dela, interpretando e se apropriando da compreensão. Deste modo, em Ser e Tempo, discorrer é discorrer “sobre” algo. 42 Assim, concluimos que como o homem nem sempre é capaz de compreender o ser, e por conseguinte o ente, enquanto coisa a ser compreendida, ele não se encontra sempre na condição de abertura e desvelamento (alétheia). Dito de outro modo: o ente encontra-se também velado em sua essência. Portanto, para Heidegger, a característica principal da liberdade como essência da verdade é o deixar-ser. Deixando ser o ente, o homem abandona a si mesmo e pode compreendê-lo. Isso somente é possível porque a relação que autoriza o ente a se manifestar enquanto tal, é estabelecida por uma relação de liberdade. Por meio dela, o ente manifesta- se, posta-se na sua modalidade de descoberta. E também, o homem é livre dentro dessa possibilidade aberta à compreensão. (MICHELAZZO, 1999). RESUMO Nesta Unidade, estudamos que a investigação heideggeriana apresentada, sobretudo em sua obra Ser e Tempo dedica-se também a compreender pelo método hermenêutico, a partir da fenomenologia, o sentido do ser como possibilidade filosófica de explicitar, em termos existenciais, a estrutura ontológica do ser do homem como ser no mundo, com os outros, enquanto horizonte fundamental de exercer uma tarefa histórico-hermenêutica e como atitude questionadora do ser-aí fáctico. SUGESTÃO DE LEITURA Para saber mais sobre a analítica existencial de Martin Heidegger, leia o texto que está disponível no link a seguir. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/ pdf/rnufen/v8n2/a09.pdf>. Para saber mais sobre a ontologia fundamental do projeto de Ser e Tempo, leia o texto que está disponível no link a seguir. Disponível em: <http://www.uel.br/ eventos/sepech/arqtxt/PDF/marceloasilva.pdf>. Para saber mais sobre a hermenêutica filosófica de Heidegger, leia o texto que está disponível no link a seguir. Disponível em: <http://www.ufjf.br/eticaefilosofia/ files/2009/08/17_2_mello.pdf>. 43 REFERÊNCIAS AZÚA, J. B. R. De Heidegger a Habermas: Hermenéutica y fundamentación última en la filosofía contemporánea. Barcelona: Herder, 1997. p. 49. CAPUTO, John D. Desmistificando Heidegger. Tradução portuguesa de Leonor Aguiar. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. HEIDEGGER, M. Ser y Tiempo. 2. ed. Santiago do Chile: Editorial Universitaria, 1998. p. 172. INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Trad. L. Holanda. Rio de janeiro: Zahar, 2002. MAC DOWELL, João A. A Gênese da Ontologia Fundamental de Martin Heidegger: Ensaio de caracterização do modo de pensar de Sein und Zeit. São Paulo: Loyola, 1993. MICHELAZZO, José Carlos. Do Um como princípio ao Dois como unidade: Heidegger e a reconstrução ontológica do real. São Paulo: FAPESP, 1999. PAISANA, João. Fenomenologia e Hermenêutica: a relação entre as filosofias de Husserl e Heidegger. Lisboa: Presença, 1992. PALMER, Richard E. Hermenêutica. Tradução de Maria Luisa Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1986. STEIN, Ernildo. Seis estudos sobre “Ser e tempo”. Petrópolis: Vozes, 2005. VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Trad. João Gama. Lisboa: Edições 70, 1989. 44 UNIDADE 3 Hermenêutica Contemporânea a partir de Gadamer Objetivos • Compreender a hermenêutica filosófica de Gadamer; • Revelar a importância do contexto histórico para o processo de compreensão; • Analisar a consciência histórica como acesso à interpretação do mundo. Fonte: https://www.google.com.br/ search?q=gadamer&rlz=1C1RLNS_pt-BRBR7 57BR757&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved =0ahUKEwjtre6zmNDdAhXLjJAKHeW-CcYQ_ AUIDygA&biw=1517&bih=730#imgrc=TOvbc3t0Ad7sMM: Figura 6 - Hans-Georg Gadamer 45 3.1 A obra de arte na perspectiva hermenêutica Gadamer sistematiza seu arcabouço filosófico no campo hermenêutico a partir da exposição de três estruturas fundamentais: a experiência da arte, a historicidade da compreensão e a linguagem. Elencadas na sua obra Verdade e Método e publicada na sua primeira edição, em 1960. Ocasião histórica relevante em que o filósofo pensa a Hermenêutica como a possibilidade do compreender filosófico não mais como uma postura do sujeito, mas como o modo de ser da existência enquanto tal, segundo Heidegger. A obra de arte, para Gadamer, torna-se um horizonte de reflexão filosófica necessária à compreensão acerca da experiência sobre a ontologia da obra de arte, que se pressupõe algo no mundo insistentemente convidativo, atrativo para um mundo diferente dela, alheio, mas que se encontra sempre aberto a um posicionamento, ou seja, aberto a uma forma questionadora, diferente, consciente de ver as coisas. Nesse sentido, o homem diante de uma obra de arte, independente de sua relação ou mesmo a dimensão de conhecimento referente à obra, encontra-se em uma situação hermenêutica, que busca fundamentalmente um significado, a partir de um jogo, a saber: o de compreensão estabelecida, sobretudo, a partir da obra de arte e em relação à sua própria existência e seu próprio ser. (LAWN, 2007). Por isso, o compreender significa, principalmente, sentir-se entendido na coisa, e diante desta relação posteriormente é possível também compreender a opinião do outro como tal. Esta é a razão de a pré-compreensão ser a primeira de todas as condições hermenêuticas, ou seja, a Hermenêutica deve partir do fato de que quem quer compreender. (GADAMER, 1999, p. 79): [...] está ligado à coisa que vem à fala na tradição, mantendo ou adquirindo um vínculo com a tradição a partir de onde fala o texto transmitido. Por outro lado, a consciência Hermenêutica sabe que não pode estar ligada a esta coisa nos moldes de uma unanimidade inquestionável e óbvia, como no caso da continuidade ininterrupta de uma tradição. Dá-se uma polaridade entre familiaridade e estranheza, sobre a qual se baseia a tarefa da Hermenêutica. 46 Assim, diante de toda realidade em sentido de busca pela compreensão de sua própria existência, o homem transforma em arte todas as emoções e experiências significativas engendradas neste contato transcendental reflexivo. Diante disso, Lawn (2007, p. 165) redireciona a intepretação acerca do círculo hermenêutico de Gadamer, quando discorre sobre a presença dos pré-conceitos (coisas) na interpretação “que se inicia com pré-conceitos, estes são substituídos por conceitos mais adequados”. Este processo interpretativo viabiliza a compreensão de novos espaços de modo que nos leva a perceber nossa realidade anterior, pois revela historicamente nosso constante vir a ser como estrutura fundamentalmente necessária para nos firmarmos enquanto ser. Apesar disso, a linguagem da arte não revela uma reflexão cujo conteúdo se pressupõe refletido nos domínios da razão, visto que se torna um processo que se deve realizar à medida que temos contato com a obra de arte, ou seja, o contato nos modifica e temos que exercê-lo para que a arte não se constitua como um objeto qualquer, sem as condições de favorecer um modo reflexivo baseado no confronto de nós mesmos com o diferente. Assim, Gadamer, redefine a importância do campo aberto pelo próprio espaço da linguagem, a partir da experiência da arte como o lugar onde a verdade se expõe. Neste sentido, o pensamento hermenêutico se constrói e se torna possível a partir da relação estabelecida pela provocação vinda da obra de arte, a fim de
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