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AULA 3 PSICOMOTRICIDADE, JOGOS E RECREAÇÃO Profª Diná Corbetta da Silveira 02 CONVERSA INICIAL Olá! Estamos fazendo um processo progressivo de informações, das quais já tecemos algumas especificidades da Psicomotricidade, dos jogos e da recreação, títulos de nossas aulas anteriores. Procuramos abordar uma compreensão conceitual desses três termos, além de passarmos pelas suas características, princípios e funções. Ao abordarmos esses assuntos, vimos que tanto a Psicomotricidade como os jogos e a recreação têm relação entre si, e trazem o lúdico como fator prioritário para estimular o desenvolvimento integral da criança. Neste sentido, se entende que cabe à Educação Infantil pautar suas ações em uma prática pedagógica que prime por espaços que possibilitem a criança desenvolver, ampliar e potencializar suas habilidades e competências, sejam elas motoras, cognitivas, afetivas ou sociais e, para tanto, compreendê-la na sua totalidade é fundamental. No entanto, para que o profissional compreenda a criança na sua totalidade, ele necessita pensar a Educação de forma integral, o que leva à necessidade de perceber essa criança não apenas pelo seu processo de desenvolvimento, mas ampliar seu olhar e compreendê-la a partir do espaço, de sua organização espacial, e consequente organização da sua identidade. Desta forma dedicamos esta aula à discussão sobre o processo de desenvolvimento da criança sob algumas teorias, trazendo concepções e vertentes, enfatizando o desenvolvimento psicomotor, bem como um olhar mais aprofundado sobre o esquema corporal, a organização espacial e ainda a relação entre espaço e corporeidade. A aula está estruturada nos seguintes tópicos: 1. Desenvolvimento infantil, concepções e vertentes. 2. Desenvolvimento psicomotor. 3. Esquema corporal. 4. A estruturação da organização espacial. 5. Percepções e corporeidade. CONTEXTUALIZANDO “Meu nome é Joakim”, falei. “E eu sou Mika. Por que você está de cabeça para baixo?” Não pude deixar de rir. E acho que ele ficou meio envergonhado, pois de repente enfiou o polegar na boca e começou a chupar o dedo feito um bebê. Isso me fez cair na risada outra vez. “É você que está de cabeça para baixo!”, falei. 03 Mika tirou o polegar da boca e começou a esticar e abanar todos os dedos. Daí falou - “Quando duas pessoas se encontram e uma delas está de cabeça para baixo, não é tão fácil dizer qual delas está na posição certa.” Fiquei tão perplexo diante dessa resposta que não consegui pensar em nada para dizer. Ele apontou para o chão. “Mesmo assim, seria muito bom se você me ajudasse a subir até o chão deste planeta!” “Descer!”, exclamei. “Não, subir!”, disse Mika. [...] Mika apontou para a grama. “Achei que isso aqui fosse em cima.” Daí apontou para o céu. “E achei que aquilo lá fosse embaixo.” (Gaarder, 2003, p. 14-15) Publicada pela primeira vez em 1952, Ei! Tem alguém aí? – de Jostein Gaarder – é uma literatura filosófica que encanta crianças e adultos. Além de divertir, este livro leva a criança a pensar sobre a origem da vida, os princípios da evolução e a extinção dos dinossauros. O diálogo entre Joakim e Mika é um dos trechos que trata das questões sobre o espaço, trazendo uma reflexão que provoca a percepção de si mesmo, do seu corpo e do espaço que ocupam cada um dos meninos e como isso pode ter percepções distintas dependendo de onde cada um se encontra. Mika nos mostra, por meio das palavras que dirige à Joakim, que para sabermos em que ponto o espaço determina a posição certa de cada um, temos que reconhecê-lo a partir de onde nosso corpo se encontra. Problematização Para que se perceba o espaço, lugar onde cada um se encontra, é preciso termos nosso próprio corpo como referência, ou seja, o corpo é um ponto fixo e invariante. Sendo assim, é fundamental que o sujeito reconheça seu corpo, não apenas suas características anatomo-fisiológicas mas também enquanto espaço habitado por um ser, ele mesmo que pensa, sente e se expressa, relacionando- se com o mundo que o cerca. No contexto pedagógico é consenso que a criança necessita desenvolver a percepção sobre si mesmo, reconhecendo as partes de seu corpo, para que possa construir sua identidade e autonomia. Sendo assim, podemos dizer que o corpo é quem somos, o que nos leva as ideias de Merleau- Ponty (2004), o corpo é o espaço. Mas como a criança desenvolve essa capacidade de percepção? Como ela reconhece seu corpo como espaço, e por meio dele reconhece o espaço que ocupa? 04 TEMA 1 – DESENVOLVIMENTO INFANTIL, CONCEPÇÕES E VERTENTES Quando falamos do desenvolvimento infantil, permeamos nossos saberes por diversas teorias, cada uma delas com suas características, fases, etapas, enfim com denominações distintas, devido à abordagem de cada um dos autores. Dentre elas destacamos as ideias de Wallon (1989), Piaget (1975), Vygotsky (1989) e Freud (1905/1989), embora haja outros que contribuíram para a compreensão do desenvolvimento da criança, são essas as teorias que mais se envolvem com o contexto educacional e com a psicomotricidade. Piaget (1975) nos coloca que o primeiro estágio de desenvolvimento infantil ocorre entre o nascimento e os dois anos de idade, o qual ele denomina de sensório-motor. Embora ainda de forma precária, é neste período de tempo que a criança realiza a descoberta física, percebendo a existência e as funções das partes de seu corpo interagindo com o meio (espaço, objetos e pessoas – adultos e crianças). A criança nessa fase já apresenta os reflexos, que são atos mais sistematizados. A sequência do desenvolvimento, segundo sua teoria, se dá entre os dois e sete anos de idade aproximadamente, denominada de período pré- operatório, momento em que a criança adquire as habilidades da função simbólica ou semiótica, ou seja, período de passagem entre sensório-motor e o das representações. É, portanto, nesse período, que a criança contata com os esquemas conceituais, pois interioriza a ação e aprende a exprimir os significados pelos significantes. É sabido que ainda amplia sua teoria para as etapas seguintes período das operações formais entre 7 e 11 anos e dos 12 anos em diante o período das operações concretas, períodos os quais não nos preocupamos em descrever, pois não contemplam a criança da Educação Infantil. Para Wallon (1989), a criança, do nascimento até os seis anos, passa por diversas fases. São elas a impulsiva (recém-nascido), na qual o bebê apresenta uma dependência total em relação ao meio; a tônico-emocional (6 aos 12 meses), fase em que a motilidade e a sensibilidade são aprofundadas e os movimentos esboçam significado; a sensório-motora (12 aos 24 meses), período no qual a criança apresenta sua orientação para o mundo externo, ou seja, seus movimentos são sempre voltados para o outro. O motor e a sensação estão integrados, o que favorece o surgimento do andar, e suas emoções e percepções estão mais organizadas, trazendo a possibilidade de gestos eficazes (também chamado de gesto inteligente); projetiva (entre 3 e 4 anos), também reconhecida como os períodos de oposição e de agrado, pois a criança já 05 apresenta autonomia postural e suas ações (ato motor) são produto da atividade mental. Esse é um momento de importantes conquistas motoras. Por fim, a personalística (dos 5 aos 6 anos), fase em que a criança, pela consciência de sua pessoa, apresenta a afirmação sedutora da personalidade, o que leva suas ações (ato motor) a esboçarem seus desejos. ParaVygostsky (1989), existem dois níveis de desenvolvimento: o real e o potencial. Nas ações em que a criança realiza sozinha as atividades partindo dos conhecimentos que já possui, acontece o que o autor denomina de real. Já quando a criança necessita da ajuda do adulto ou de seus companheiros mais experientes, é o que Vygotsky chama de potencial. Tais níveis complementam- se com a zona de desenvolvimento proximal, a qual os permite perceber que o desenvolvimento e a aprendizagem humana pressupõem “[...] uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na visão intelectual daqueles que a cercam [...]” (p. 99), e que o aprendizado é “[...] um aspecto necessário e universal dos processos de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas” (p.100-101). Para melhor compreender, podemos dizer que o brincar traduz a cultura quando é interpretado e faz analogias com atividades humanas, ou seja, quando é significado por um meio cultural que lhe dá sentido. Freud (1905/1989), ao escrever seus construtos sobre o aparelho psíquico, traz conteúdos referentes ao processo evolutivo global da criança, denominados por ele como estágios da personalidade, que no seu olhar vão refletir no comportamento da vida adulta quando os conflitos não são resolvidos no tempo adequado, dependendo sempre de seus impulsos de prazer, vinculados a áreas corporais. Considera o desenvolvimento a partir da fase oral, ao longo do primeiro ano de vida, momento em que a criança tem a área da boca, língua e lábios como a parte mais sensível de seu corpo, e inicia seu processo de percepções frustrantes, pelo início do desmame. A fase anal, período entre 2 e 3 anos, é o momento em que o interesse da criança está no reto e no ânus, desenvolvendo o controle sobre as funções esfincterianas, além de atividades que expressam a raiva, agredindo ao ser contrariada, quebrando e lançando objetos, começando a compreensão entre o bem e o mau. Na sequência vem a fase fálica, que ocorre entre os 4 e 5 anos, e o interesse da criança está na região genital. Momento em que identifica sua identidade sexual, menino ou menina, e ocorre a identificação do “eu”, percebendo-se igual ao pai ou a mãe. Assim a criança toma consciência 06 de seu poder, dos seus desejos de destruição, surgindo o ciúme, a inveja, a sedução, potencializados pela brincadeira de faz de conta. Neste sentido destacamos as colocações de Lapierre e Lapierre (1987), por considerarem a importância de todas essas teorias, percebem que as várias abordagens do desenvolvimento trazem olhares distintos, embora confluentes e inter-relacionados, na compreensão da criança ao longo do seu processo de desenvolvimento e aprendizagem, apontando que sua metodologia amplia as potencialidades de auxílio do profissional para as crianças pequenas. Ressaltam ainda os autores que é preciso compreender que a aquisição de conhecimentos se situa como parte integrante de uma dinâmica de afirmação da pessoa ao seio de um grupo social e não apenas como uma meta em si. Isto porque o desejo de aprender na verdade é um componente secundário ao desejo de agir, ao desejo de ser. Complementam suas ideias afirmando que “a expressão abstrata também não passa de um outro meio de afirmação, que vai tomar progressivamente o lugar da expressão motora, ao assegurar a continuidade e assumir todo o conteúdo simbólico” (Lapierre; Lapierre, 2010, p. 42). TEMA 2 – DESENVOLVIMENTO PSICOMOTOR Quando tratamos do desenvolvimento a partir do pensamento psicomotor, entende-se que este acontece num processo conjunto de todos os aspectos do desenvolvimento. Ou seja, os desenvolvimentos motor, intelectual/cognitivo, emocional/afetivo e expressivo/social acontecem dialeticamente; portanto, pensar o desenvolvimento psicomotor da criança significa compreendê-la na sua totalidade. Segundo nos apontam Lapierre e Aucouturier (1982), para pensarmos o desenvolvimento psicomotor é preciso considerar que a criança atua no mundo por meio de seus movimentos, estabelecendo uma relação com o mundo por intermédio da sua carga tônica pessoal, a qual é construída no dia a dia a partir dos estímulos e limitações que o próprio meio e as pessoas (adultos e outras crianças) impõem a ela. Portanto, afirmam os autores que o desenvolvimento psicomotor se caracteriza pela maturação que integra o movimento, o ritmo, a construção espacial, o reconhecimento dos objetos, das posições, da imagem do corpo e a palavra. Ou seja, inclui os aspectos físicos ou motor, afetivo-social ou relacional e cognitivo ou intelectual. 07 Le Boulch (2001) aponta que o desenvolvimento psicomotor tem como princípio básico que todo sujeito passa pelas seguintes etapas do desenvolvimento: Céfalo-caudal – acontece de forma ordenada e previsível; as aquisições iniciam-se na cabeça e vão em direção aos pés, o mesmo acontecendo com a evolução do sistema nervoso. Próximo-distal – acontece da região central para as extremidades corporais, ou seja, o controle corporal se dá do tronco para braços, mãos e dedos, o mesmo acontecendo nos membros inferiores. Geral paraespecífico – o controle motor se dá inicialmente por movimentos simples e generalizados e gradativamente se tornam específicos e refinados. Segundo Le Boulch (2001) o desenvolvimento psicomotor também pode ser compreendido em períodos, fases ou estágios, dependendo das tendências das escolas europeias, americanas, soviéticas entre outras. Neste sentido Masson (1985) aponta que muitos estudiosos consideram o desenvolvimento psicomotor considerando apenas o período da infância, enquanto outros entendem que ele acontece ao longo de toda a vida, pois, conforme o sujeito passa pelo seu processo evolutivo, necessita se reorganizar corporalmente, o que leva a alterações com ganhos e perdas no seu desenvolvimento. Sendo assim, considera o autor que o desenvolvimento psicomotor cronologicamente pode ser organizado e compreendido da seguinte forma: primeiro ano de vida, infância (entre 12 meses e 12 anos aproximadamente), adolescência, vida adulta (adulto jovem e adulto), e terceira idade. Pensando na criança da Educação Infantil, descrevemos algumas características do desenvolvimento psicomotor da criança no primeiro ano de vida e no período da infância que compreende até seis anos de idade. Masson (1985) destaca que no primeiro ano de vida, ao nascer o bebê, se relaciona com o mundo de forma instintiva, etapa denominada de organização instintiva, pois seus movimentos não são autônomos (de vontade própria, volitiva), eles são movimentos reflexos (de moro, de sucção, entre outros). São características importantes a serem consideradas nesse período do desenvolvimento. Entre o primeiro e terceiro mês a criança comunica-se pelo choro, emite sons, brinca com as mãos, passa a comunicar-se pelo sorriso e sai do estágio reflexo. Entre o quarto e o sexto mês, passa a orientar-se no espaço, 08 brinca de se esconder, desenvolve a preensão, senta-se com apoio, utiliza seu corpo e objeto no espaço. Do sétimo ao nono mês simboliza presença e ausência, adquire a preensão ativa do polegar evoluindo para movimento de pinça, chora quando a mãe não está perto (crise da angústia distônica), se reconhece no espelho, vocaliza sílabas evoluindo para primeiras palavras de duas silabas (inclusão da memória), engatinha e fica em pé com apoio. Do décimo mês até o décimo segundo, bebe com copo, interrompe a ação ao ouvir ordens e entende frases curtas (aumento das perspectivas de pensamento), fala as primeiras palavras evoluindo paratrês ou quatro palavras, institui-se a noção de defesa e proibição, fica de pé sozinho, evoluindo para a marcha com domínio do espaço físico e simbólico. Lapierre e Aucouturier (1982) contribuem com essas colocações afirmando que em cada etapa de seu processo maturacional, a criança busca movimentar- se por estímulos do meio ou suas necessidades básicas como fome, dores, faltas (necessidade de sentir seu corpo no corpo do outro), entre outras. No que se refere à infância Le Boulch (2001) afirma que por se tratar de um período muito longo, entre 12 meses e 12 anos aproximadamente; é um período de grandes transformações no desenvolvimento psicomotor da criança. Dessas transformações destacamos algumas ao longo do período entre 12 meses e seis anos. Entre 12 meses e 2 anos a criança passa a andar sozinha, sua linguagem corporal tem cadência rítmica e amplia a verbal, usa diversos recursos não verbais para se comunicar, e ocorre a maturação neurológica para o controle esfincteriano. Entre dois e três anos salta com os dois pés, tem noção de totalidade corporal (mas não relaciona as partes), o real confunde-se com a fantasia, controle total dos esfíncteres, reconhece diferenças sexuais, amplia seu vocabulário. No período entre três e quatro anos utiliza o “eu”, tem consciência de si, a praxia fina aperfeiçoa-se, consegue classificar, identificar e comparar, é a idade dos “porquês”. O período compreendido entre os quatro e cinco anos passa a relacionar fatos (início da abstração), distinguir frente e costas, e algumas cores, explorar a manipulação sexual, desenhar (rabiscos) e associá-los a escrita. No período entre cinco e seis anos reconhece esquerda e direita em si, apresenta simpatia e empatia pelo outro, distingue todas as cores, desenha traços e formas. Ao observarmos as características do desenvolvimento apontadas pelos autores supracitados, podemos perceber que corpo, espaço e movimento, são elementos básicos para que se possa melhor compreender o processo de desenvolvimento 09 aprendizagem da criança, temas que abordaremos nos próximos temas, e nas próximas aulas. TEMA 3 – ESQUEMA CORPORAL Como estudamos na aula 1 dentro do tema 3 que tratou sobre os fundamentos da psicomotricidade, o esquema corporal (conduta funcional) é determinante para a construção da personalidade da criança, pois, como afirma Wallon (1989) este é a representação relativamente global, científica e diferenciada que a criança tem do seu corpo. É importante compreender que, além de estar ligada à atividade motora e às necessidades biológicas, a noção de esquema corporal também está vinculada com alguns aspectos emocionais, razão pela qual o esquema corporal se organiza por intermédio de duas capacidades a imagem corporal e o esquema corporal propriamente dito. Vamos inicialmente falar sobre o esquema corporal propriamente dito, que, segundo nos coloca Le Camus (1986), é a capacidade responsável pela regulação da postura, equilíbrio e a própria imagem corporal. Ou seja, é a capacidade que a criança constrói pelas suas sensações quando pelas percepções táteis vai elaborando a consciência do próprio corpo. Portanto, é por meio do esquema corporal que ela, a criança, identifica as partes e as funções do seu corpo, objeto espacial que habita para conhecer e se relacionar com o mundo que a cerca. No entanto, destaca ainda Le Camus (1986) que essa noção do esquema corporal só está completa quando a criança constrói as impressões de seu próprio corpo, o que se denomina como imagem corporal, esta também mediada pelas experiências vividas, mas neste caso pelas suas relações sociais e culturais que ela estabelece. É nessas relações que a criança cria uma visão sobre si mesma, das suas ações, atitudes, enfim do seu corpo. Desta forma fica claro porque Wallon (1989) afirma que a noção de esquema corporal está ligada também aos aspectos emocionais, além das atividades motoras e biológicas da criança. Sendo assim, podemos dizer que, quando a criança tem uma imagem corporal favorável de si, ela interage mais com as pessoas e o mundo a sua volta, isto porque a possibilidade de se perceber como referência para o outro e para o meio amplia. Portanto, podemos dizer que o esquema corporal se organiza pela experiência corporal, o que leva a criança a descobrir, explorar e criar diferentes possibilidades de ação, levando-a a uma construção mental das possibilidades de seu corpo, suas funções e características. 010 Wallon (1989) nos aponta que uma boa formação destes pré-requisitos é que leva a criança a perceber seu corpo como um ponto seguro de referência, o qual servirá de sustentação e princípio para a aprendizagem de todas as noções e definições que são necessárias e obrigatórias para a alfabetização da criança. Dentre elas a lateralidade, ou a organização espacial que possibilitara compreender e definir conceitos como: em cima, embaixo, na frente, atrás, esquerda, direita, alto, baixo, permitindo desse modo que ela desenvolva o equilíbrio corporal e tenha a capacidade de dominar seus atos motores de acordo com as os limites impostos, seja pelo espaço onde seu corpo se encontra, seja pela folha de papel, ou contornos dos desenhos, na apropriação e controle motor da sua praxia fina. Ou seja, é preciso compreender que uma criança que não tenha seu esquema corporal bem trabalhado não conseguira coordenar bem seus movimentos e poderá apresentar diversas dificuldades, sejam de locomoção, de orientação no espaço, ou mesmo de escrita e de construção de sua caligrafia por exemplo. O que nos leva ao fato de que os estudos sobre o esquema corporal advêm, segundo Costallat (2002), de Bonnier (1905), que buscou entender as sensações vindas de dentro e de fora do corpo, acabando por identificar que algumas alterações patológicas podem gerar o surgimento de distúrbios, como por exemplo, a asquematia, que significa a perda da percepção do corpo. Esta por sua vez pode ser classificada como hiperesquematia1, hipoesquematia2, e parasquematia3. Partindo desses entendimentos, podemos melhor compreender o que nos apresenta Le Boulch (2001) quando fala que, no plano gnósico, a interiorização das sensações garante a representação mental do seu corpo, dos objetos e do meio que a cerca, sendo ela (representação mental) responsável pelo aparecimento do membro fantasma (ilusão de um membro amputado, mantendo as sensações, de presença, sentindo dor, frio, calor). Costallat (2002) destaca ainda que, complementando esses estudos, Pick (1908) discute a relação existente entre as sensações percebidas pelo corpo e a representação visual que é estabelecida pelo sujeito sobre seu próprio corpo, o que leva a identificar qual parte do corpo está recebendo o estímulo vindo do ambiente externo, favorecendo assim a orientação do seu corpo no espaço. 1 A representação do corpo ocupa uma área maior do que deveria. 2 A representação do corpo ocupa uma área menor do que deveria. 3 Quando existe uma confusão mental na representação do corpo de forma imprópria ou não existente. 011 Contribuindo com estes conhecimentos, Costallat (2002) nos remete as ideias e proposições de Head (1893) ao apresentar três tipos de esquema corporal (na sua totalidade, esquema e imagem corporal), o postural, o de superfície do corpo, e o temporal, sendo eles os responsáveis pela representação tridimensional do corpo. Cabe ainda destacarmos as contribuições de Freud (1989) para o entendimento da construção do esquema corporal pela criança, quando, em seus estudos, aponta o corpo como espaço de inscriçãodas experiências de prazer e sofrimento, sendo que estas percepções são estabelecidas pela criança a partir da sua sensação de satisfação ou não de uma necessidade existente. TEMA 4 – A ESTRUTURAÇÃO DA ORGANIZAÇÃO ESPACIAL Como apontado por Wallon (1989), Le Boulch (2001), Costallat (2002) e outros estudiosos que contribuíram com a psicomotricidade, sabemos que, para que a criança estruture sua organização espacial, ela necessita ter um esquema corporal bem desenvolvido, mesmo que essas capacidades/condutas funcionais sejam construídas concomitantemente. Independentemente de sua relação dialética é preciso que a criança tenha a consciência corporal (assunto que abordaremos em outra aula) e com isso reconheça seu corpo como objeto único e invariante, espaço de referência para poder se relacionar com o meio que a cerca. Portanto, para que ela possa se localizar no espaço, o reconhecimento de seu próprio corpo como espaço de referência é fundamental, pois somente assim ela, a criança, conseguirá organizar conceitos, como de um lado, de outro, à frente, atrás, entre outros, em que o corpo é o ponto de referência para estabelecer sua posição em relação ao objeto, ou mesmo ao espaço físico. Então vamos caminhar um pouquinho sobre os construtos que tratam sobre a estruturação da organização espacial. Segundo nos aponta Piaget (1975), é por meio da relação entre sujeito, objetos e seus deslocamentos viabilizados pelas ações destes que se constitui as propriedades do espaço, ou seja, a construção do conhecimento espacial se dá por intermédio dessa relação. Afirma ainda o autor que a representação espacial tem seu início nas ações reflexas dos bebês e se torna inicial em nível de consciência quando bebê está entre 16 e 24 meses, período em que constrói sua noção de espaço topológico. 012 Na sequência de seu desenvolvimento, a criança passa estabelecer a diferenciação entre o seu corpo e entre um objeto e outro, pois aprende a distinguir os objetos em suas formas e grandeza, assim descobre que pelos seus movimentos, deslocamento (denominado pelos autores de operações reversíveis) do seu corpo no espaço ou dos objetos, pode modificar sua visão sobre estes. Desta forma, enfatizam os autores, ocorre o desenvolvimento a construção do espaço projetivo e euclidiano (formas simples – espaços, escritas, entre outros), isto porque a criança toma consciência dos próprios movimentos que ocorrem fora do seu campo de percepção, e ainda das inter-relações espaciais. Sendo assim, podemos dizer que se estabelece o sistema de referências de coordenadas (horizontal, vertical), que posteriormente se amplia para a construção de retas e ângulos, condições básicas para a construção do espaço tridimensional4. Em seus estudos, Piaget e Inhelder (1993) destacam que as relações espaciais mais primitivas ou topológicas são constituídas por vizinhança ou proximidade, separação, ordem ou sucessão espacial, inclusão ou envolvimento, e continuidade. Já relações espaciais projetivas são constituídas pela estruturação de grandezas e formas aparentes. E as euclidianas são constituídas por linhas horizontais e verticais como forma de descolamento. Salientam ainda os autores que as relações espaciais projetivas e euclidianas, são independentes e de constituem simultaneamente. Importante considerar que são diversos os motivos que levam a criança a encontrar dificuldades de não desenvolver de forma adequada sua noção espacial, dentre elas podemos destacar a dificuldade de compreensão do esquema corporal que leva a dificuldade de interiorização, a falta de integração da dominância lateral (reconhecimento do lado dominante), dificuldades de integrar termos abstratos como os conceitos básicos de localização (dentro, fora, direita, esquerda, entre outros), dificuldade de representação mental das diversas partes do corpo, entre outras. Partindo desses entendimentos, é possível afirmar que o corpo é mediador entre o sujeito e o mundo onde ele se situa, e onde estão situadas suas experiências, portanto, em certo sentido, esse campo primordial, o corpo, é a origem do espaço objetivo, sendo ele a origem de toda a dimensão e de toda a 4 Espaço tridimensional, aquele em que os objetos se deslocam em relação reciproca como, por exemplo, esquerda-direita, acima-abaixo, dentro-fora, entre outros. 013 orientação da espacialidade, ou seja, o próprio corpo é o espaço, como nos aponta Merleau-Ponty (2004). TEMA 5 – PERCEPÇÕES E CORPOREIDADE Conforme apresentado na aula 1, quando tratamos dos fundamentos da psicomotricidade, e das capacidades/condutas funcionais, tema 3, as percepções, são essenciais para que a criança possa construir sua conduta de esquema corporal. Ao aprofundarmos os estudos sobre o esquema corporal, e sobre a estruturação da organização espacial, deparamos mais uma vez com a importância das percepções para o desenvolvimento dessas condutas na criança. Sabemos que é por intermédio das percepções que conhecemos e reconhecemos os estímulos que se mostram externos ao nosso corpo, e que pela capacidade de identificação do nosso esquema corporal, o qual permite a internalização das percepções, de tudo que nos cerca, podemos compreender este estímulo, e dar uma resposta ao meio. Ou seja, conforme nos coloca Le Camus (1986) é a partir da identificação e do reconhecimento dos estímulos sensoriais que a criança organiza e classifica seus saberes. Portanto, podemos entendê-las como fundamentais para a estruturação da organização espacial e temporal, as quais auxiliarão a criança mais tarde a organização das palavras, da escrita, enfim de suas ações (movimentos). Importante salientar que temos 6 formas de percepções. São elas: audição, gustação, olfato, tato, visão e propriocepção, sendo esta última entendida como a sensação do próprio corpo. A propriocepção é responsável por elaborar as sensações sinestésicas interceptivas (internas e externas), ou seja, é pela propriocepção que nosso corpo identifica, reconhece e denomina as sensações, sejam elas internar ou externas. A capacidade do corpo de fazer uso das percepções deve ser entendida como consciência vivenciada, conforme apontam Wallon (1989), Piaget (1975) e outros. A consciência vivenciada nos remete às contribuições de Lapierre e Aucouturier (1982), entre outros autores que trazem proposições sobre a conduta relacional denominada de corporeidade. Para Lapierre e Aucouturier (1982), são as experiências motoras da criança, principalmente as globalizantes (aquelas em que o corpo está totalmente engajado), que vão permitir que a ela construa sua noção de totalidade. Essa imagem global que a criança constrói de seu corpo, ou seja, de si mesmo, é que vai constituir sua noção de corporeidade, a qual está 014 intimamente ligada à noção de identidade e à consequente compreensão do esquema corporal. Sendo assim, podemos dizer que a corporeidade, conforme nos coloca Damásio (2000), constitui-se das dimensões física (composta pelas estruturas orgânicas, biofísicas, motoras, organizadoras de todas as dimensões humanas), emocional-afetiva (instinto, pulsão-afeto), mental-espiritual (cognição, razão, pensamento, ideia, consciência), e a sócio histórico cultural (valores, hábitos, costumes, sentidos, significados, simbolismo). Partindo dessas proposições, é possível entender, conforme já posto, que a noção de corporeidade se dá pela consciência da criança de que seu corpo é uma unidade. Ou seja, que ela é seu corpo, é uma totalidade corporal, a qual se manifesta pela expressividade psicomotora,a que se dá pelas relações que a criança estabelece com o espaço, com o tempo, com os outros, com os objetos e com ela mesma. Desta forma surge então a necessidade de compreendermos um pouco mais sobre o corpo, assunto de nossa próxima aula. FINALIZANDO Nesta aula estudamos sobre o desenvolvimento geral sob a ótica de alguns autores, identificando cada fase/etapa/período do desenvolvimento da criança. Caminhamos pelos construtos do desenvolvimento psicomotor, destacando o período do primeiro ano de vida e dos 12 meses até os 6 anos de idade. Conhecemos um pouco sobre a estruturação do esquema corporal e da organização espacial, estabelecendo a importância dessas condutas psicomotoras para a construção da identidade da criança. Vimos que a construção da identidade está relacionada à noção de corporeidade, a qual estabelece a noção de unidade corporal para a criança. Por fim, entendemos que, para que a criança tenha noção de sua unidade corporal, as condutas de percepção, espaço e esquema corporal são fundamentais. Estes conhecimentos nos levam ao entendimento de que a noção de unidade corporal mediada pela corporeidade é uma construção que a criança organiza a partir de seu nascimento, acompanhando-a ao longo de seu processo de desenvolvimento. Por outro lado, sem uma estruturação adequada das condutas da percepção, do esquema corporal e da organização espacial, a criança pode apresentar dificuldades de aprendizagem, de movimento, de conhecimento de si e do meio que a cerca. 015 Revendo a Problematização Merleau-Ponty (2004) afirma que o corpo é o espaço, é o lugar onde se habita, é nele e por ele que a criança percebe o mundo a sua volta, mas para isso necessita perceber seu corpo, se reconhecer, se identificar, explorando esse espaço externo ao seu corpo pelos seus movimentos, pelas suas sensações, agindo sobre os objetos, o outro e, assim, perceber a si próprio. Essa forma de pensar o corpo e o espaço ultrapassa as propostas de desenvolvimento que compreendem o sujeito fragmentado, (sob o olhar de uma ou outra vertente do desenvolvimento). Ou seja, precisamos compreender o desenvolvimento global nas suas diversas vertentes, e relacioná-las a ponto de assim integrarmos a compreensão do desenvolvimento sob a ótica psicomotora e, consequentemente, nos apropriarmos de uma dimensão da sua totalidade do sujeito. Somente assim, nos será possível bebermos das palavras de Merleau-Ponty e entendermos a criança e seu desenvolvimento, como uma unidade corporal, unidade esta que se estrutura, prioritariamente, a partir da construção das noções de esquema corporal, organização espacial e corporeidade, sendo que a estruturação dessas condutas se organizam a partir da capacidade do corpo de identificar e reconhecer as sensações captadas e emanadas pelas percepções, sejam elas auditivas, gustativas, olfativas, visuais, táteis, ou proprioceptivas. Portanto, o corpo passa a ser espaço legitimado de um sujeito, que sente, pensa, e age, mediado pelo prazer e desprazer das suas relações consigo, com os objetos, com o ambiente, e com o outro. E, para que possa se desenvolver de forma integral, é preciso que o profissional faça escolhas a respeito de sua concepção de educação e de seu processo didático-pedagógico, pois, diante de tantas teorias, precisa escolher aquela que lhe oferece um caminho mais prazeroso para mediar o processo ensino aprendizagem. 016 REFERÊNCIAS COSTALLAT, D. et al. A psicomotricidade otimizando as relações humanas. São Paulo: Arte e Ciência, 2002. p. 187-199. DAMÁSIO, A. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. FREUD, S. Um caso de histeria: três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1989. V. 7. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (1905). GAARDER, J. Ei! Tem alguém aí? Tradução Isa Mara Lando. Ilustração Paolo Cardini. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 1997. LAPIERRE, A.; AUCOUTURIER, B. El cuerpo y el insconsciente em educación y terapia. Barcelona: Ed. 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