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Hades: O medo da Igualdade – um elogio à Vida e à Morte
Ian Ferri
A Morte sempre foi objeto de mistério, apreensão e medo entre as mais diversas culturas. Alguns estudiosos afirmam que, sem a morte, a consciência humana acerca de sua própria mortalidade e inexorável finitude, não haveria a necessidade de religião. A Religião serve primeiramente, segundo esses estudiosos, para resolver um dos problemas centrais que, desde a aurora dos tempos, atormenta a humanidade: Para onde vamos depois da morte? 
	Na tentativa de responder a essa e outras perguntas os povos criaram os seus sistemas de crenças, suas religiões, povoadas de narrativas que ensinavam o homem a viver uma vida digna e respeitosa - para com as divindades e os seus – mesmo sabendo, ou melhor, não sabendo, o seu destino final. A essas narrativas convencionou-se chamar de mitos; do grego mythos, derivado do sânscrito mytha, narrativa, história; e ao conjunto de mitos, Mitologia. Existem milhares de mitologias no planeta, algumas das quais, como por exemplo, a hindu; ainda fazem parte do sistema de crenças de um povo, sendo tidas, portanto como parte da religião deste. Outras, apesar de não serem consideradas religiões, influenciam e influenciaram muitas características das sociedades modernas sendo, portanto, parte de um importante substrato cultural, esse é o caso da Mitologia Grega. 
	Na Mitologia Grega, a morte e o mundo pós-morte, são explorados e bem detalhados. A primeira menção deste último nos é fornecida naquele que é considerado o texto fundador de toda a tradição grega e, para muitos, ocidental: a Ilíada de Homero, poema que narra a guerra entre gregos e troianos. Ali, o nome do submundo, ou mundo-inferior, é chamado de Hades, o mesmo nome do deus que o controla e reina absoluto sobre os mortos. 
	Afinal quem é Hades? Na tradição grega, como foi dito, Hades serve para designar tanto o deus quanto o reino sobre o qual ele reina. Na Ilíada esse reino se encontra após o mítico Rio Oceano, um rio que, segundo os gregos, dava nove voltas em torno da Terra, por eles considerada plana. Somente em outro poema fundador da tradição grega, a Teogonia de Hesíodo; que narra a criação do universo e dos deuses; é que Hades (o reino) é descrito como um lugar abaixo da terra. Nesse mesmo poema vemos o nascimento do deus Hades. Segundo Hesíodo, ele é o mais velho dos filhos homens dos titãs Cronos e Réia. Os titãs eram uma raça de divindades anterior aos deuses propriamente ditos (Hades e seus irmãos) filhos do Céu (Ouranós- Urano) e da Terra (Gaýa- Gaia). Cronos e Réia governavam o Universo quando foi-lhes previsto que um de seus filhos os destronaria, assim, imediatamente após o nascimento destes, Cronos os engolia inteiros. Fez isso por cinco vezes consecutivas, no sexto nascimento Réia, ultrajada, decidiu enganar o marido e escondeu o recém-nascido – que viria ser o futuro rei dos deuses, Zeus – em uma caverna, dando a Cronos uma pedra embrulhada em panos em seu lugar. Futuramente, Zeus, crescido, decide vingar-se e dá a Cronos uma bebida que o faz vomitar seus irmãos, que sendo divindades imortais permaneciam vivos. Saem da barriga de Cronos, Héstia, a futura deusa do lar, Deméter, deusa da agricultura, Hera, futura esposa de Zeus e rainha dos céus, Poseidon, futuro deus do mar, e Hades. Os deuses então, chefiados por Zeus, entram em guerra contra os titãs pelo controle do universo a qual, ao final, saem vitoriosos e prendem os titãs no Tártaro um profundo poço abaixo ainda do Mundo Inferior. Zeus e seus irmãos, Poseidon e Hades, partilham entre si o universo, a Zeus caberá os céus, a Poseidon os mares e a Hades o mundo inferior, sendo a Terra propriedade compartilhada. 
	Hades desde então reina supremo como Senhor dos Mortos no mundo inferior onde reside, segundo diz Homero, em um palácio de obsidiana e bronze. É casado com Perséfone filha de Zeus e Deméter. Hades a raptou, completamente apaixonado, e levou-a para o mundo inferior, desesperada Deméter correu o mundo à procura da filha, mas esta, residindo no mundo inferior, não era encontrada em lugar algum. Furiosa, Deméter prometeu que, enquanto sua filha não fosse devolvida, nada cresceria sobre a terra. Imediatamente as plantações murcharam, o gado morreu, assim como os homens. Preocupados, os deuses pediram auxílio a Zeus, este, porém, não querendo contrariar Hades, nada revelou. Hélio, o deus-sol, apiedou-se de Deméter e revelou-lhe o paradeiro da filha, a deusa exigiu a intervenção de Zeus, jurando que caso não o fizesse, ela iria renunciar à sua divindade e viver como mortal. Zeus então interviu: ordenou o retorno de Perséfone, dissimulado, Hades alegou que tal ato seria impossível, já que Perséfone havia comido sementes de romã enquanto hóspede do Rei dos Mortos, estando, portanto, para sempre ligada ao mundo inferior. Para satisfazer os dois lados, Zeus determinou que, durante oito meses, Perséfone ficaria junto de sua mãe e nos quatro seguintes junto do marido. Assim, quando Perséfone está na terra, Deméter, feliz, faz as flores se abrirem e as plantações crescerem, primavera e verão, quando sua filha vai para junto do marido, as plantas murcham e morrem, sentindo a tristeza da deusa, inverno e outono.
	Por este mito vemos que Hades tinha, no imaginário grego, muito mais importância e controle além daquele exercido sobre a Morte, aliás, ele não é a Morte propriamente dita, os gregos possuíam um deus específico Tânatos (thanátos) que representava a morte. Ele era visto como um anjo de asas negras que gentilmente levava os mortais ao descanso final. Hades, por outro lado, por intermédio de Perséfone, exerce controle sobre as plantações da terra sendo visto como um deus da fertilidade, da terra, por isso mesmo essencial para os gregos. Era tido como o senhor dos metais e pedras preciosas, visto que essas afloram do chão, aliás, seu nome em latim, Plutão, vem do grego Pluto que significa rico. Outra vertente para a imensa riqueza de Hades seria o fato de que ele detém o controle sobre as populações de mortos, imensamente maior do que a dos vivos. Com tantos para controlar Hades tinha de ser rígido e muitas vezes inflexível. Ele detinha o controle sobre a mais fundamental das leis que regiam o universo, a lei da morte, todas as criaturas devem morrer e o papel primeiro de Hades é garantir que isso se cumpra à risca. Nenhuma alma pode retornar ao mundo dos vivos. Por isso ele promulga leis que controlam rigidamente seu reino. Aliás, como seria o reino homônimo de Hades? 
	A Odisseia de Homero, poema seguinte à Ilíada, que narra a volta de Ulisses, um dos heróis da Guerra de Troia, à casa, nos fornece uma detalhada descrição do Hades (reino). Homero nos diz que, para se chegar ao Hades, toda a alma deve passar pelo Rio Aqueronte, conhecido pelo codinome de rio da dor, lá um barqueiro, Caronte, filho da Noite, aguarda para fazer a travessia, contudo para fazê-la é preciso que a alma pague a Caronte um óbolo, moeda que os antigos colocavam na língua do morto, se não o fizesse a alma estaria condenada a vagar eternamente às margens do Aqueronte. Atravessando-o a alma, em grego psyké (psique), encontrava-se em frente aos portões do Hades, lá, montando guarda, estava um terrível cão de três cabeças, Cérbero, ele, gentilmente, deixava a alma passar, mas caso ela tentasse retroceder se transformava em um monstro raivoso. Ao adentrar o Hades a alma era conduzida a julgamento acerca das ações praticadas em vida. Ela era julgada por três juízes: Minos, Éaco, e Radamanto, os três foram grandes reis em vida e, por isso, foram escolhidos como juízes de todas as almas, cabia a eles decidir o destino de cada pessoa após a morte. Se a pessoa havia feito coisas ruins, matado, desrespeitado a família ou os deuses era enviada para o Tártaro, a mesma prisão dos titãs, para sofrer por toda a eternidade nas mãos de terríveis monstros alados, filhas de Urano, as Erínias. 
Casos emblemáticos são os de Tântalo e Sísifo, o primeiro, tendo dado o filho de comer aos deuses, foi condenado a passar,a eternidade, imerso em um lago do qual não conseguia beber uma gota, quando o fazia o lago secava, próximo a ele estava um pé carregado de frutas, ao tentar pegá-las elas distanciavam-se, assim o infeliz sofria literalmente um “Suplício de Tântalo”, vivendo na fome e sede eternas. Sísifo, astuto, por enganar e prender a Morte e tripudiar do próprio Hades, fora condenado a empurrar uma pesada pedra até o cume de uma montanha, quase chegando ao final, a pedra escapava-lhe das mãos e ele era obrigado a descer e recomeçar o trabalho.
Se o indivíduo fora um herói em vida, bom, valoroso, justo, respeitador dos costumes e obediente aos deuses, iria para os Campos Elíseos, versão grega do Paraíso, presente, contudo, no submundo, já que o céu era propriedade exclusiva dos deuses. Lá, rios de leite e mel corriam, tudo crescia sem precisar ser plantado, as flores mais cheirosas e os frutos mais doces cresciam, e um sol artificial brilhava, e todos bebiam e cantavam. Se o indivíduo escolhesse a reencarnação, e por três vezes voltasse aos Elíseos, era enviado à Ilha dos Bem-Aventurados, ou Abençoados, onde somente os mais valorosos heróis, tais como Hércules e Perseu, estavam. Àqueles que só viveram e não tiveram nenhuma realização, nem boa ou má, relevante na vida, - portanto a maioria das almas-, eram enviados aos Campos dos Asfóledos, uma planície onde as almas vagavam por toda a eternidade. 
	Além do Aqueronte corriam pelo Hades outros rios, próximo aos Asfóledos corria o Lete, o rio do esquecimento, uma só gota de sua água e a alma se esquecia de quem se fora em vida, todas as almas eram obrigadas a se banhar no Lete, por isso eram chamadas de o s sem-nome e sem-rosto, morte para os gregos implicava em esquecimento, daí a tentativa do homem ser imortal por seus feitos, lembrado. Outro rio que corria, este no Tártaro, era o Flágeon, o rio do fogo, paralelo à ele estava o Cócito, o rio de gelo, feito das lágrimas humanas. O último rio e mais importante era o rio da Imortalidade, o Estige, quem se banhasse em suas águas se tornaria invulnerável, vide Aquiles, os deuses faziam juramentos solenes em seu nome.
	Vê-se que os gregos tinham, pela morte, grande medo e respeito, o mesmo, portanto, tinham por Hades, o deus que a controlava. Tamanho eram o medo e respeito, que os gregos jamais invocavam seu nome, com medo de atrair-lhe a ira, quando precisavam fazê-lo, usavam epítetos, títulos, tais como Plutão ou Dis, o Incorruptível. O faziam porque jamais podia saber-se se Hades não estava à espreita, trajando o terrível Elmo da Escuridão que o deixava invisível.
	Com tantas características soturnas não se admira que Hades fosse posteriormente identificado, pela tradição cristã, como o Diabo, ou a personificação do mal. Nada mais equivocado, Hades não era mal, era apenas justo, representa a inefabilidade da morte, o destino final e certo a todos, não distingue bons ou maus. Representa essa justiça irreversível e incorruptível, por uma única vez permitiu que uma alma retornasse - o caso de Orfeu e Eurídice - e isso terminou mal. Mas se Hades é identificado com a morte, é, antes de tudo, identificado com a vida, um deus da terra, da colheita, que provém aos homens o que lhes é essencial para sobreviver, afinal não há morte sem vida, e Hades parece representar aquele pai distante e frio que, apesar disso, nos acolhe. Possui, com Zeus, essa similaridade, e também no que diz respeito à justiça. Mas, enquanto Zeus representa a justiça máxima, a ordem suprema, a Justiça de Hades é uma justiça ligada à terra, ao antigo, à tradição, ao respeito, mas mais do que isso, é uma justiça afirmativa, pois afirma contundentemente a condição humana, de mortal, tanto renegada pelos homens
	Conclui-se que talvez daí advenha o desconforto em relação à morte e, consequentemente à figura de Hades, a morte é, para nós humanos, aquela “pulga atrás da orelha”, “o mistério do indecifrável” que cantam os românticos, o “Mistério” de Cruz e Souza, a “indesejada das gentes” de Saramago, ela é o desconhecido, mas mais do que isso, é a angústia, pois sabemos que independente do que fizermos em vida somos todos iguais perante a morte, independente da crença de cada um. “Do pó vieste e para o pó retornarás”, diz a Bíblia, aceitar que somos pó não é nada fácil, e, ainda sim viver uma vida digna, é mais difícil ainda, talvez o desconforto com Hades venha do fato de que, na Mitologia Grega, ao contrário de outras religiões, não há a perspectiva de salvação, há os Elíseos, mas o que garante que todas as nossas ações serão bem-aventuradas a ponto de recebermos tal dádiva? Impossível. O que nos resta é a igualdade. Somos todos iguais, e essa perspectiva – de não sermos dignos de um melhor destino por nossas ações- nos aterroriza, apavora. Daí o medo e repulsa de Hades e a tendência de identificá-lo com o mal, temos medo da justiça e igualdade que ele representa. 
	Diante de tal inefabilidade o que fazer? Daí é que surge, para mim, a grande sabedoria dos mitos: Nada. Não há nada que se possa fazer além de aceitar a inefabilidade, viva a vida da melhor maneira possível sabendo que ela termina, e talvez esse final possa ser determinante, já que, talvez, pelo fato de estar ciente de sua finitude o ser - humano consiga fazer a vida valer à pena, sendo humilde, e respeitando os outros, cultivando amor e amizade, procurando estar com quem realmente importa, vivendo, como diz o poeta latino Horácio, em Carpe Diem, aproveitando o dia, o momento. Aproveite ao máximo essa vida porque ela é única, essa é a mensagem que nos passa Hades, uma que precisamos, mais do que nunca, hoje.