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ETIMOLOGIA - COLETÂNEA DE TEXTOS

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ETIMOLOGIA – COLETÂNEA DE TEXTOS
1 - VAMOS LER?
Mário Eduardo Viaro
Como tantas palavras derivadas do Latim, ler originalmente teve um significado que provém da agricultura. Nesse idioma, LEGERE queria dizer primitivamente “colher, escolher, recolher”, como quando as pessoas selecionam e retiram do pé os melhores frutos, os melhores cachos.
Passou ao sentido atual de “obter informações através da percepção das letras” porque fazer isto indica uma capacidade de escolher e definir corretamente letras e palavras. É equivalente à expressão latina legere oculis, “colher com os olhos”. Como outro resultado, a leitura pode proporcionar também uma colheita de utilidades e prazeres que acompanham a pessoa pela vida afora.
Dessa palavra surgiu uma grande quantidade de outras que usamos a toda hora. Vamos ler algumas delas:
LEGÍVEL – aquilo que é passível de ser lido, tanto pela apresentação visual como pelo sentido compreensível. Assim, um texto pode ser ilegível tanto porque a letra do autor é um conjunto indecifrável de garranchos, riscos e flechas para lá e para cá como porque o conteúdo é um amontoado indigesto desprovido de coerência interna.
LEITOR – aquele que lê. Artigo raro atualmente. O ato que ele faz se chama leitura.
Muitas vezes a gente vê num filme em Inglês a palavra lecture traduzida prontamente como “leitura”, o que é errado. Uma lecture é uma “conferência”, uma “palestra”. Há lecturers que ganham muito dinheiro com isso. Basta ser famoso por qualquer motivo que vai aparecer gente querendo pagar para ouvir seja o que for.
ELEGER, ELEIÇÃO – trata-se, como se vê na origem da palavra, de uma escolha, de determinar entre várias possibilidades a que mais convém. Nem sempre dá certo.
LENDA, LEGENDA – do gerundivo latino legenda, literalmente “a serem lidos”.
Nos monastérios medievais, as narrativas sobre as vidas dos mártires e dos santos receberam esse nome porque eram lidas perante todos em certos momentos, como às refeições. Como o exagero e um desejo pelo maravilhoso predominavam nessas histórias, a palavra acabou tendo o significado de “mito, história fabulosa, narrativa tradicional”, em boa parte desprovida de verdade.
A palavra também tem o significado de um título numa ilustração ou inscrição numa moeda, bem como da tradução que aparece na parte inferior da imagem de um filme. Como já vimos, esta tradução nem sempre corresponde à verdade.
LEGIÃO – legio, em Latim. Originalmente, era entendida como um grupo de homens escolhidos entre outros como aptos para o serviço militar.
Da citação do Evangelho, quando o Demônio responde a Jesus “Legião é o meu nome, porque somos muitos”, a palavra passou a designar “o que existe em grande quantidade”. Napoleão Bonaparte, em 1802, criou uma comenda para reconhecimento de mérito, tanto civil como militar, chamada Légion d′Honneur, “Legião de Honra”.
Originalmente ela se dividia em categorias com número fixo de participantes, num máximo de 6.105 pessoas. Mais tarde, uma reforma eliminou o limite numérico. Os agraciados com a Légion d′Honneur, quando não estão usando a medalha propriamente dita, usam um pequeno emblema redondo de seda vermelha na lapela do casaco.
COLEÇÃO, COLECIONAR – escolher entre objetos para formar um conjunto com características comuns. Como se vê, a noção de escolha se manteve firme através dos séculos. Vem de co- mais legere.
INTELIGÊNCIA – fazer a escolha adequada entre diversas opções não é fácil. É preciso ter uma qualidade especial de pensamento que permita avaliar ao máximo as vantagens e desvantagens. Esta palavra vem de inter, “entre” e o nosso conhecido legere.
ELEGÂNCIA, ELEGANTE – mas até aqui? Sim, até nos desfiles de moda a Etimologia nos permite reconhecer a mão do antigo agricultor do Lácio. Não é bonito?
ELIGERE, outra forma de dizer escolher em Latim, deu elegans, que inicialmente indicava uma pessoa muito exigente, que escolhia muito, que não aceitava facilmente o que lhe apresentavam.
Depois a palavra passou a indicar “escolhas bem feitas, bom gosto”. Na verdade, a elegância transcende os aspectos materiais para se firmar como extremamente importante na conduta pessoal. Há pessoas que nunca compreenderam isto e se dedicam apenas a andar sempre na moda, julgando que isto basta para estarem elegantes.
DILETO, PREDILETO – de dis, “entre”, e legere. Diligere tinha o significado de “amar, apreciar, considerar”, com base na escolha e na reflexão. Um amigo dileto é o que vale a pena, é aquele que não fala mal pelas costas. Os outros não são diletos. Nem amigos.
DILETANTE – trata-se de pessoa que faz algo por prazer, sem ter obrigação ou ser profissional no assunto. Esta situação acontece muito entre etimologistas, por exemplo. Aqui, a base é diligere, com a acepção de “apreciar o que se faz”.
DILIGÊNCIA 1 – ao ler esta palavra, logo nos vem à mente o veículo puxado por cavalos que aparecia nos filmes de faroeste, hoje tão fora de moda. Geralmente a diligência aparecia sendo perseguida por hordas de índios ou de bandidos, interessados no ouro ou na mocinha que iam dentro. Ou nos dois.
Era comum o vigia que ia ao lado do cocheiro derrubar alguns inimigos a tiro antes de levar uma flechada ou balaço nas costas e ter uma queda espetacular.
Como é que ele conseguia atingir alguém do alto de um veículo que se sacudia daquele jeito – ou ser atingido – sempre foi um mistério para quem entende de armas.
Pois esta diligência vem do Francês voiture de diligence, “veículo de diligência”, ou seja, de cuidados com as necessidades do viajante. Transmite a idéia de se gostar dele a ponto de providenciar meios para que ele não precise se deslocar a pé. O fato de as viagens serem sempre pagas parece que é outro assunto.
DILIGÊNCIA 2 – Trata-se da ação que um órgão ou serviço oficial desenvolve quando existe uma necessidade por parte de cidadãos. Liga-se ao verbo diligere pelo aspecto do zelo, do cuidado, que não deixa de ser uma forma de gostar. É esse cuidado que alguns políticos querem dar a entender quando declaram aos jornais que “Estamos diligenciando arduamente para que sejam prontamente atendidas as justas reivindicações da laboriosa população de…”
DILIGENTE – não, não é o condutor da diligência. Este é o indivíduo dedicado, zeloso, cuidadoso, trabalhador, aquele que se dedica a uma causa ou obrigação. Aquele tipo de político acima citado gosta também de se declarar “Um modesto e diligente lutador em prol da causa do povo de…”
2- HISTÓRIA DAS ORIGENS 
 
Esta palavra latina vem de uma fonte Indo-Europeia gen- ou gnê-, “gerar, engendrar, fazer nascer”. Ela gerou uma quantidade enorme de outras palavras que fazem parte de nosso vocabulário e se mostram indispensáveis nas mais diversas áreas do conhecimento.
GÊNESE – o começo de tudo. Pelo menos na Bíblia.
Em Grego, genesis queria dizer “criação, força produtiva, origem”, de genos, “nascimento, família, raça”, da raiz Indo-Europeia acima citada.
GENITOR – em Latim, genitor e genitrix queriam dizer “pai” e “mãe”, ou seja, “aqueles que geram”. A progenitura é a “geração, a descendência”.  É interessante observar que hoje em diaprogenitor se usa para os pais, quando na origem designava avós ou antepassados mais distantes. Era formada por pro-, “à  frente, antes”, mais genitor.
PRIMOGÊNITO – de primus, “primeiro, o que veio antes de todos”, mais genitus, “nascido, gerado”.  Existe gente, contudo, que anuncia o nascimento de “seu segundo primogênito”, “seu terceiro primogênito”, etc.
GENITAL – do Latim genitalis, “relativo à geração”.  Aplicou-se aos órgãos reprodutivos em geral.
GENITIVO – esta palavra quase só é conhecida de quem estuda Latim ou outros idiomas com declinações, como o Alemão. Em Gramática, quer dizer “o que marca a origem”.
GENTE – vem do Latim gens, “raça, clã, família em sentido amplo, família nobre”.  O sentido mudou e agora ela designa “número indeterminado de pessoas, pessoas com interesses semelhantes”.
GERME, GERMINAR – do Latim germen, derivado de gen-men, “broto, crescimento,
descendência”.  Em Latim, germinanus, “o que é da mesma descendência, irmão”, passou agermanus.
Em Português, “germano” se usa para designar os irmãos que têm o mesmo pai e a mesma mãe. Também porta o significado de “puro, verdadeiro, sem mistura”.
Em Espanhol passou a hermano, “irmão”. Note-se bem que esta palavra nada tem a ver com sua homófona e homógrafa  germano, usado como sinônimo de “alemão”. Esta foi usada primeiramente por Júlio César ao descrever suas andanças pela Gália, talvez em referência a uma tribo específica que encontrou pelo caminho.  Provavelmente tem origem céltica, querendo dizer “barulhento”.
GÊNERO – do Latim genus, “raça, extração”.
DEGENERAR –  “corromper-se, perder as qualidades essenciais”,  do genus acima citado.
GENEROSO – originalmente “de bom nascimento, de família nobre”, fixou o sentido no aspecto de “aquele que reparte com largueza”, o que devia acontecer bastante.
REGENERAR – de regenerare, formado por re-, “de novo, outra vez”, mais generare, “gerar”, queria dizer “fazer viver novamente”.
Uma pessoa que regenera seus hábitos e deixa de lado uma carreira criminosa ou o uso de drogas é como se tivesse nascido de novo.
GERAL – de generalis, “o que pertence a um gênero”, atualmente  implicando mais em “genérico, universal”.
GENERAL – Este deriva da expressão francesa capitaine général, “capitão-geral”, “comandante em sentido amplo, com maior abrangência”. Note-se que o cargo era capitaine, a outra palavra era apenas um qualificativo.
GÊNIO – de genius. Tratava-se, segundo os romanos, de uma divindade particular de cada pessoa, nascida com ela, que sobre ela velava e que com ela desaparecia.
Havia quem dissesse que uma criança nascia com dois gênios, um bom e um mau. Nos dias em que ela se mostrava uma peste, dizia-se que ela estava “de mau gênio”. Por alguma razão, o bom gênio nunca era lembrado, uma injustiça. Ao gênio individual se atribuíam certas capacidades proféticas. Lá pelo século XVII o adjetivo genial passou a ter o significado de “talento ou inteligência inatos”.
ENGENHO, ENGENHOSIDADE – de ingenium, “qualidades inatas”, ingeniosus, “o que tem naturalmente todas as qualidades de inteligência”.
É interessante notar que, em Inglês, ingenuity não quer dizer “ingenuidade”, como tantos tradutores de filmes pensam; significa “talento inventivo, engenhosidade, esperteza”.
INDÍGENA – de in-, “em”, mais genitus: “gerado no lugar, nascido dentro do país”.
3- CORAÇÃO DAS PALAVRAS
A longa história dos derivados do termo “coração”, órgão com núcleo semântico misto: porque se refere a algo que é concreto, mas em parte também abstrato
Mário Eduardo Viaro
Não é incomum encontrarmos pessoas encantadas com as etimologias. A sua capacidade de associações e de explicações é tão grande, que, desde a Antiguidade, pelo menos desde as justificativas dos nomes pessoais no Gênesis ou desde o diálogo platônico do Crátilo, temos amostras desse fascínio. Quando se desenvolveram as chamadas leis fonéticas para os estudos etimológicos, no século 19, muita fantasia foi abandonada e uma segurança científica foi paulatinamente desenvolvida. Ainda hoje, os amantes da etimologia não estão livres de associações duvidosas, imprecisas ou até errôneas, mas conhecer a rede de cognatos de um termo continua sendo uma viagem pelos tempos e valores.
A palavra coração, por exemplo, nos ensina muito. Apesar de próxima do espanhol corazón, é um pouco diferente das outras línguas vindas do latim: francês coeur, italiano cuore, catalão cor, provençal cor, romanche cor ou cour, friulano cûr. O romeno tem outro étimo, uma vez que diz inima, que provém do latim anima, “alma”.
De cor
A palavra latina era cor, da qual as línguas-irmãs do português não se afastam muito. Mas, para se chegar ao espanhol, é preciso partir de um outro étimo, que foi reconstruído pelas leis fonéticas como *coratio ou, mais precisamente, por meio da forma acusativa *corationem. Do acusativo provém a esmagadora maioria das palavras não-eruditas do português. Essa forma acusativa indicava inicialmente apenas a palavra sendo usada como objeto direto ou direção de um movimento. Aos poucos, foi assumindo todas as posições na frase. A terminação *-atio(nem) é um sufixo formador de palavras abstratas.
Como isso é possível? De fato, a etimologia parecerá fantasiosa se não houver outras formas paralelas que a justifiquem. Ora, o coração e a cabeça são partes do corpo que têm um núcleo semântico misto: em parte se referem a algo concreto; em parte, a algo abstrato: a cabeça não é só o rosto, os cabelos ou o crânio, mas a sede dos pensamentos, da mesma forma que o coração não é apenas o órgão, mas a sede dos sentimentos. Também cabeça tem uma etimologia semelhante: a palavra latina caput sobrevive no romeno cap, mas, nas demais línguas, há outras etimologias, como no francês tête, italiano testa, que vêm de um uso latino (como gíria) da palavra testa, “tipo de vaso de argila, caco, telha” (da mesma forma que dizemos hoje faço o que me der na telha).
Cabeça e coração
Para se chegar a cabeça em português ou cabeza em espanhol, parte-se de *capitia, que tem uma terminação -ia, igualmente formadora de abstratos. Coração e cabeça são partes especiais do nosso corpo que podem conduzir a essa reconstrução por meio de abstratos, diferentemente de partes que não permitem facilmente essa leitura (cotovelo, pulmão etc.). No entanto, as palavras latinas cor e caput sobrevivem em expressões portuguesas como falar de cor, isto é, a partir do coração, ou de cabo a rabo, ou seja, da cabeça até o rabo. Da expressão de cor nasceu o verbo decorar e o povo não tardou em tachar pejorativamente o ato de decorar um assunto, comparativamente inferior ao de dominá-lo, com o sonoro decoreba.
Mas cuidado: decorar uma casa não tem nada a ver. Vem do latim decus (acusativo decorem), que quer dizer “enfeite”. Não se informar quanto a isso dá margem a explicações fantasiosas. Nem tudo que soa parecido está relacionado.
Analisemos mais de perto a palavra latina cor. Seu radical é, na verdade, cord- e provavelmente era assim que se pronunciava num período arcaico do latim, tendo perdido a última consoante (*cord > cor). Prova disso é o plural de cor, a saber, corda, apenas para citar um caso da flexão da palavra.
Daí quando dizemos que alguém é cordial, queremos dizer que suas atitudes provêm do coração. A palavra não existia entre os antigos, mas desenvolveu-se na Idade Média. Concordar com alguém é partilhar do mesmo coração, isto é, das mesmas idéias e sentimentos; discordar, por sua vez, é o movimento contrário. Os dois verbos já existiam em latim: concordare/discordare. Quantos pares de palavras assim não se formaram a partir desse prefixo com- que reúne, concilia, congrega e dis- que espalha, dissipa, dispersa: convergir / divergir, compor / dispor, contribuir / distribuir etc. Quando todos concordam, há concórdia, quando todos discordam, há discórdia. Mesmo em assuntos de gramática, quando se fala da concordância nominal, ali está, no fundo, a compatibilidade entre as palavras, como se elas tivessem um coração.
Variantes
No latim ainda havia outras palavras parecidas que, por acaso, não foram ressuscitadas pelos românticos: vecordia era a ausência de coração, a loucura, a insensatez; socordia (ou secordia), o afastar-se do coração, a covardia, a indolência, a apatia. Ao contrário dessa última palavra, um adjetivo *coraticum, “próprio do coração”, desenvolveu, em francês, a palavra courage, que veio para o português sob a forma coragem.
Já a palavra misericórdia sobrevive ainda hoje: a primeira parte da composição é a palavra miser, “pobre, miserável, lamentável”, ou seja, ter misericórdia é ter o coração contrito. O alemão, imitando essa palavra, criou a palavra Barmherzigkeit, composta de erbarmen “ter piedade”, Herz “coração” e os sufixos formadores de abstratos femininos -ig+keit.
Ir para perto do coração de alguém, ou seja, das idéias e dos sentimentos do outro, fazendo, assim, desaparecer as diferenças,
é fazer um acordo. Quem concorda, aliás, é cordato. Em latim, cordatus é, no entanto, quem tem coração, melhor dizendo, raciocínio: é quem é prudente, sábio, sagaz.
Um acordo entre as notas musicais é um acorde, palavra que veio do francês accord. Dessa palavra formou-se a palavra alemã Akkordion, que, via francês, accordéon, chegou ao português como acordeom.
Trazer de volta ao coração lembranças perdidas é recordar. Em espanhol, diz-se, no entanto, para este sentido, acordar. Já o português acordar vem de acordado, palavra que no século 13 tinha o mesmo sentido do cordatus, ou seja, quem tem o juízo aguçado. Só está plenamente acordado quem tem a razão em pleno funcionamento, assim como esperto e despertar tem uma semelhança formal.
Outras línguas
A palavra latina cor, sob a forma antiga *cord, encontra parentes mais antigos em outras línguas: no germânico se dizia *hert (gótico hairto, inglês heart, alemão Herz, holandês hart, sueco hjärta, islandês hjarta, norueguês e dinamarquês hjerte); em eslavo, *serd (russo serdce, polonês serce, tcheco e eslovaco srdce, esloveno e croata srce, búlgaro sarce); no grego *kard (antigo kardía, moderno kardiá), o armênio sirt, o lituano sirdis, o letão sirds e línguas tão antigas quanto o hitita karts e o sânscrito hrd remontam a um indo-europeu *krd, *kerd, mostrando, dessa forma, quão longe uma palavra pode penetrar no passado, da mesma forma que a profusão de idéias que se lhe associam mostram o quão vivas eram e ainda são as línguas. O ditado está errado: nem tudo que está longe dos nossos olhos, está, portanto, longe do coração
4- UM ALEGRE JOGO DA ORIGEM
Mário Eduardo Viaro
Entender os destinos da palavra "ludo" pode iluminar o que sabemos sobre a ilusão humana.As raízes das palavras são portas para atingirmos o seu significado. No caso do português, os vocábulos de origem latina evidenciam essa afirmação. Há um jogo de tabuleiro chamado ludo, para até quatro pessoas, as quais devem deslocar peças por casas, no número de vezes indicado pelo resultado do lançamento de dados. O objetivo é chegar quatro peças ao final, completando um percurso obstado pelos outros participantes ou por situações especiais indicadas no tabuleiro.
Essa palavra "ludo", para o falante nativo, pode parecer um nome comercial ou um nome inventado arbitrariamente, no entanto, mesmo os nomes comerciais muitas vezes escondem motivações. É o caso do leite em pó Molico®, que tem uma sequência de consoantes m…l…c… que lembra a palavra "leite" em diversas línguas (inglês milk, alemão Milch, russo moloko etc) ou o creme dental Tandy®, que tem a palavra "dente" (tand em dinamarquês, holandês e sueco).
Ludibriar
O jogo conhecido como ludo, que se popularizou na década de 70, talvez deva parte de seu sucesso a uma motivação subconsciente produzida por outras palavras, associáveis ao seu nome, como veremos. Nos dicionários, porém, "ludo" tem entre suas acepções um arcaísmo semântico ("jogo", "brinquedo", "divertimento"), provavelmente ressuscitado por puristas, uma vez que o latim ludus, de onde veio a palavra, possui esses sentidos.
Se é verdade que provavelmente só poetas parnasianos usavam a palavra nessa acepção etimológica, o radical da palavra está entranhado em vários outros vocábulos, de forma menos óbvia. Em latim, ludibrium era o ato feito por brincadeira, por zombaria, com efeitos de escárnio. Tal termo já aparece no século 18 em português, aportuguesado como "ludíbrio", e, desde então, significa não só o escárnio em si, mas também o objeto da irrisão (como no exemplo dado pelo dicionário Houaiss "poetas e intelectuais, ludíbrio dos poderosos"). De "ludíbrio" nasceram "ludibriar", "ludibrioso", "ludibriável", "ludibriante", "ludibriador" etc.
Tais deslocamentos do centro semântico são comuns nas palavras. Por exemplo, em latim, o termo ludus no plural, a saber ludi, já tinha o sentido de "jogos públicos" (com caráter oficial ou religioso). Esse sentido aparecia no derivado ludicrum (e seu adjetivo ludicer), que se especializou no sentido de "jogo público, divertimento, diversão" e foi aportuguesado no Renascimento como "lúdicro" (ou na forma "lúdrico", mais popular em outros períodos do português).
Hibridismos
A consciência do radical latino fez surgirem várias palavras. Assim, entre os verbetes dos dicionários, encontram-se hibridismos com radicais gregos:
Ludologia – Formado do latim ludus mais o radical grego lógos (discurso) e do sufixo grego -ía, segundo o dicionário Houaiss é a "esfera de conhecimento que abrange tudo o que diz respeito a jogos (esp. de mesa) e passatempos, brincadeiras infantis etc.";
Ludomania ou ludimania – Formado do latim ludus mais o radical grego manía (loucura, demência), "impulso incontrolável dejogar; apego demasiado ao divertimento";
Ludoterapia – Composto do latim ludus mais a palavra grega therapeía (atendimento aos doentes), "tratamento que se vale de jogos e divertimentos, até mesmo de competições esportivas, para aliviar angústias dos pacientes, sejam doentes mentais ou não".
Derivado curioso é a palavra "ludopédio", criada por puristas do início do século 20, formada bizarramente por meio de dois radicais latinos com a vogal de ligação -o- (e não "ludipédio", com -i-, que seria normativamente mais adequada, como em "pern-i-longo", "aur-i-verde" etc.). O segundo elemento ped- é o radical do latim pes (pé). Apesar do apelo purista, trata-se de palavra malformada e são raros os casos de termos formados desse modo que sobreviveram, como "necrotério", "cardápio" e "convescote".
Um hibridismo que vingou foi a palavra "lúdico", com radical latino e sufixo de origem grega (a saber, -ikós), bastante produtivo. Datado em português pela primeira vez na década de 50 do século passado, trata-se de empréstimo do francês ludique, que já aparece em 1910. No dicionário Petit Robert vemos outras palavras, como ludoéducatif e ludothèque, que poderiam ser palavras do português (ludoeducativo, ludoteca).
Aludir
Apesar de não existirem nos dicionários, encontramo-las, contudo, na internet. Obviamente, a existência de uma palavra não se mede por verbetes, que dependem dos dicionaristas e não dos falantes. Uma pesquisa simples pelo Google nos mostra umas oitenta ocorrências de "ludoeducativo" (a maioria em espanhol) e quase quinhentas de "ludo-educativo" (com hífen). A palavra "ludoteca" tem mais de 11 milhões de ocorrências. Foi-se a época em que se podia afirmar tranquilamente algo como "tal palavra não existe porque não está dicionarizada".
O latim ainda dispunha de outras palavras vinculadas ao mesmo radical que podem ressurgir a qualquer momento nas línguas modernas: ludius era o encarregado de proporcionar a diversão (palhaço, dançarino ou gladiador), ludificare era "zombar de alguém" e ludificatio, a zombaria.
Mais longe, porém, do significado básico, há palavras insuspeitas. De fato, o verbo em latim para conceitos como "jogar, divertir-se, brincar, gracejar, imitar brincando, ridicularizar, zombar" era ludere, cujo particípio era lusus. Por meio de prefixos, esses significados alteram-se significativamente.
Com o prefixo ad- (para perto de) se forma alludere (com assimilação do -d com o l- inicial do verbo, o que promove a geminação da consoante). Etimologicamente, significa "gracejar, aproximando-se (do sentido da palavra)", daí, alludere formou o verbo português aludir, cujo substantivo derivado, "alusão", provém de uma derivação a partir do particípio allusus.
Ilusão
Com o prefixo in- (para dentro de), por meio da mesma assimilação forma-se o verbo illudere(brincar, zombar, insultar), donde o substantivo illusio (ironia), cujos correspondentes em português são, respectivamente, "iludir" e "ilusão". É notável que uma aproximação gere uma alusão e que a intromissão gere um insulto. De qualquer forma, o sentido de "ilusão" como "engano dos sentidos ou do entendimento" é mais moderno.
Em francês arcaico, illosiun era o gracejo, como no sentido etimológico, mas já no século 17 encontramos o sentido moderno, que,
provavelmente, migrou para o português. De fato, a "ilusão" é um dos temas preferidos da literatura, escultura e pintura barrocas. A ilusão entrevê-se já na figura do Malin Génie de Descartes – que teria o poder de enganar nossos sentidos – e é central na filosofia de Berkeley.
Esse sentido já se encontra no pouco conhecido latim medieval e, mais para trás, vemos seus ecos no livro de Eclesiastes. Do conceito vago para a palavra inequívoca, porém, requerem-se séculos. Não é possível imaginar esse sentido da palavra "ilusão" no português medieval, muito menos no indo-europeu. Para expressar essa ideia, serviam-se de metáforas. E algumas, bem-sucedidas, desbancam os sentidos básicos: no caso de "ilusão", observa-se um sentido muito distinto do latim clássico illusio. De fato, uma das acepções da palavra é seu oposto do sentido original: "promessa de prazer, felicidade, durabilidade etc. que se revela decepcionante, dolorosa ou efêmera; esperança vã; decepção, desilusão".
O paradoxo que vemos em "ilusão" ser sinônimo de "desilusão" prova quão facilmente uma palavra se afasta do sentido original. Embora onipresente na literatura e filosofia do pós-guerra, as quais influenciaram o modo de enxergar as coisas típico do homem atual, é preciso, contudo, para dar o peso correto às palavras, entendendo-as no seu entorno sincrônico, se não quisermos cometer anacronismos. Mais do que qualquer um, o etimólogo deve estar atento a isso. Palavras como "débil" e "imbecil" remontam ao latim debilis  e imbecillis, significando "fraco". A mudança de sentido de cada uma mostra trajetórias que envolvem outras línguas de cultura (sobretudo o francês). Além disso, arcaísmos semânticos se mantêm em alguns discursos ou nos dicionários. O sentido hoje incomum era o básico de outrora. Como as águas de Heráclito que nunca param, os significados das palavras fluem, sem dono, de uma língua a outra. Reconstruir o trajeto de tantas palavras, para entender sua complexidade, é obra ainda por fazer. Para isso, a história de seus radicais ajuda muito.
Fonte: Revista Língua – http://revistalingua.uol.com.br/
5- CAVALOS, BURROS E ZEBRAS
É consenso, entre os antropólogos e historiadores, que a nossa civilização não poderia ser assim como é se os nossos antepassados não tivessem, no final do período Neolítico, começado a domesticar os equinos e a aproveitar a sua força e a sua velocidade. Com a rapidez do cavalo, o homem ampliou radicalmente as distâncias que podia percorrer, permitindo o surgimento de sociedades que se estendiam por imensos territórios. Com a força e a resistência dos asnos e das mulas, ele praticamente decuplicou a quantidade de trabalho que podia desempenhar, afetando, desta forma, toda a estrutura de sua economia. 
Assírios, egípcios, gregos, romanos e mongóis, todos eles tiveram, como eles próprios faziam questão de admitir, um imenso débito para com estes animais que convivem conosco há muitos milênios. Para medir a influência que os equinos tiveram no nosso destino, alguns especialistas sugerem que façamos um curioso exercício de imaginação histórica: o que teria acontecido à humanidade se fossem as civilizações da América pré-colombiana — principalmente os astecas e os incas — que tivessem domesticado o cavalo, e não os povos da Ásia e da Europa? Pode parecer um exagero, mas provavelmente um Cristóvão Colombo indígena teria atravessado o Atlântico para descobrir a Europa, onde encontraria tribos atrasadas vivendo ainda na Idade da Pedra Polida.
cavalo — No Latim clássico, o termo usado para os cavalos de corrida e de combate era equus, cujo radical até hoje pode ser visto em equestre ou equitação; foi de seu feminino, equa, que se derivou o nosso égua. O Latim popular, no entanto, tinha outro vocábulo, caballus, usado para designar o animal de serviço, de baixa qualidade, geralmente castrado. Foi esta a forma que entrou nas línguas românicas: cavallo (It.), cheval (Fr.), caballo (Esp.). O nome científico, equus caballus, espelha muito bem essa origem dúplice. Se burro e asno, em sentido figurado, significam um indivíduo de pouca inteligência, cavalo (especialmente no seu derivado cavalgadura) designa a pessoa rude e grosseira. Entre ele e os demais equinos há uma clara hierarquia, como se vê na expressão popular “passar de cavalo a burro”, que significa piorar de situação. 
asno — Vem do Latim asinus, “asno”, o nome original para o animal que também chamamos de jumento (cujo nome científico, não por acaso, é equus asinus). Entrou no Francês como âne, no Espanhol como asno, no Italiano como asino e no Inglês como ass (onde cria inúmeras confusões, com um vocábulo homógrafo, ass, traduzível elegantemente por “traseiro”). Como seus colegas quadrúpedes, é um vocábulo muito usado para insultar a inteligência do nosso semelhante, como se pode avaliar pelo comuníssimo asneira. A forma latina aparece na conhecida frase asinus asinum fricat (literalmente, “o asno esfrega o asno”), usada para criticar pessoas que trocam entre si elogios exagerados ou injustificados sobre qualidades que não possuem.
jumento — No Latim, jumentum era o nome genérico para qualquer animal de carga ou de tração; o vocábulo teve destinos diferentes, ao entrar nas línguas românicas. No Francês, jument designa, até hoje, a fêmea do cavalo, a que chamamos de égua (nosso tradicional provérbio “coice de égua não mata cavalo” fica Jamais coup de pied de jument ne fit mal à cheval — apesar do tom chique, continua nada elegante). No Português, designa o simpático animal que chamamos popularmente de jegue ou jerico. O termo também é muito usado, em sentido figurado, para insultar a inteligência de alguém — o que decididamente é uma injustiça para com este animal, mais esperto que o próprio cavalo. Sua má-fama, à qual se alia também a pecha de ser teimoso, deriva exatamente por seu grande senso do perigo, o que faz com que não aceite cegamente os comandos de seu condutor, recuando ou empacando diante de situações em que o cavalo obedeceria. Como diz ironicamente um especialista, é preciso ser mais inteligente que os jumentos para saber como lidar com eles…
burro — Sua origem até hoje não foi esclarecida, mas a hipótese mais provável é que venha do Latim burrus (“ruço, pardo avermelhado”), como parte da expressão asinus burrus (“asno ruço”). Neste caso, os falantes privilegiaram o adjetivo e desconsideraram o substantivo, fato análogo ao que aconteceu com o pêssego, conhecido como malum persicum (“fruto da Pérsia”, porque os romanos pensavam que ele tivesse sido trazido de lá pelos soldados de Alexandre Magno). É interessante notar que o feminino burra também designava, em Portugal, uma arca de madeira, reforçada com couro e metal, usada para guardar dinheiro. Sem saber isso, não conseguiríamos entender a passagem de O Cortiço, de Aluísio Azevedo, quando escreve “E o dinheiro a pingar, vintém por vintém, dentro da gaveta, e a escorrer da gaveta para a burra, aos cinqüenta e aos cem mil-réis, e da burra para o banco, aos contos e aos contos”.
potro — (Também aparece como poldro). Provavelmente veio do Latim pulliter ou pullitru, “cavalo jovem”, derivado de pullus, termo genérico para “filhote de animal” e que passou a ser usado apenas com relação a aves — de onde vem poule (Fr.), pollo (Esp.), polo (It.) e o nosso antiquado pôlo, que cedeu lugar ao atual frango, não antes de nos deixar o derivado poleiro. O vocábulo também designava um temido instrumento de tortura da Inquisição; o dicionário de Morais (1813) ainda registra, como um de seus sentidos, “cavalete de atormentar”. Construído em várias versões, o potro consistia basicamente numa estrutura de madeira em que deitavam o condenado e amarravam seus braços e pernas em torniquetes, apertando-os até os ossos se desconjuntarem. É a ele que se refere Saramago, no Memorial do Convento, quando escreve: “e só de pensar nisso sofre como se o estivessem a apertar no potro“.
mula — Veio do Latim mulus, feminino mula. No Português, o termo designa indiferentemente o híbrido de um jumento
com uma égua (o mais comum) ou o de um cavalo com uma jumenta. Outras línguas românicas, no entanto, têm vocábulos diferentes: mulet e bardot (Fr.), mulo e bardotto (It.), mulo e burdégano (Esp.). Como insulto, é usado principalmente para criticar pessoas teimosas. Produziu vários derivados, entre eles a muleta e a mulita (espécie de tatu que tem as orelhas voltadas para trás, como uma mula). Mulato, antigo diminutivo de mula usado no séc. XVI, era usado como sinônimo genérico de mestiço, até que definitivamente passou a designar o filho de pai negro e mãe branca, ou vice-versa. 
zebra — De todos os equinos, este é o único cujo nome não proveio do Latim. Os romanos conheciam a zebra e a incluíam entre os animais que figuravam nos espetáculos circenses, ao lado do leão, do rinoceronte e do tigre, mas chamavam-na de hippotigris (literalmente, “cavalo tigre”). Em Portugal, usava-se zevro, zevra, desde o séc. XIII, para designar uma espécie de burro selvagem que existiu na Península Ibérica; por isso, quando se lançaram na exploração da costa africana, era natural que os navegadores portugueses que viram as primeiras zebras, no sul da África, aplicassem a elas o termo já conhecido. Zebra é um autêntico portuguesismo, isto é, uma das raras contribuições de nosso idioma às outras línguas: zebra (Ing.), cebra (Esp.), zèbre (Fr.), zebra (It.).
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6- VOCÁBULOS LIGADOS A DINHEIRO
Nossa civilização sempre teve uma atitude ambígua para com o dinheiro: alguns o adoram, outros o desprezam, mas todos o respeitam e acabam precisando dele. Independentemente de nossa posição política ou filosófica, nós convivemos com o dinheiro entre os limites de duas verdades indiscutíveis, que não chegam a se opor: ninguém vive sem dinheiro, mas ele não pode comprar tudo. As palavras usadas para falar nele mostram um pouco da história desta convivência.
moeda — Vem do Latim moneta, derivada do verbo monere (“avisar, aconselhar, lembrar”) — da mesma família, portanto, de monumento (“o que deve ser lembrado”) e de premonição (“aviso prévio de que algo vai acontecer”). Moneta (“a que avisa”) era um dos nomes dados à deusa Juno, porque os romanos acreditavam que ela os havia advertido várias vezes da iminência de desastres militares e de catástrofes da natureza. No grande templo dedicado a Juno Moneta, que se erguia no Capitólio, foi instalada uma casa de cunhagem de dinheiro metálico, que logo passou a ser designado de moneta. Daí vieram moeda e monetário (Port.), moneda (Esp.), moneta (It.), monnaie (Fr.) e money (Ing.).
pecuniário — Vem do Latim pecus, “gado”, o mesmo radical que produziu pecuária. Antes da instituição do dinheiro como elemento de troca, a fortuna de alguém era avaliada pelo número de bois, ovelhas, cabras ou porcos que possuía; chamava-se de pecunia essa riqueza medida em cabeças de gado. Quando metais como o bronze, a prata e o ouro começaram a ser usados nas transações, os lingotes traziam estampadas figuras desses animais, o que faz supor que indicavam o valor, em gado, da peça metálica. Uma lei do séc. 4 a.C. estabelecia a proporção “1 boi = 10 ovelhas = 1 libra de bronze”. Este costume está presente até hoje em povos pastoris do Oriente Médio e da África, em que o noivo oferece camelos, jumentos ou bois em pagamento aos pais da mulher com quem pretende casar. Daí também veio o pecúlio (Lat. peculium, que designava o pequeno rebanho que um escravo conseguia juntar, pouco a pouco, geralmente para comprar sua própria liberdade) e o peculato (Lat. peculatus, desvio do dinheiro público).
tributo — No início da civilização romana, o povo estava dividido em várias tribos — em latim, tribus, vocábulo que produziu vários derivados conhecidos: o tribuno era o magistrado da tribo, enquanto o tributo era a contribuição a ser paga pelos membros da tribo. O termo logo generalizou-se para abranger todo imposto ou taxa cobrado dos cidadãos romanos, passando a designar também o valor que um povo vencedor obrigava o povo vencido a pagar como símbolo de submissão e obediência. Naquela época, como até hoje, os poderosos raramente pagavam tributos, que eram suportados pelos comerciantes mais humildes, os camponeses e os pequenos proprietários. Esse infeliz contribuinte era chamado de tributarius — designação que se aplica, por metáfora, aos rios que vão desaguar em um rio maior: “o rio Tapajós é um dos mais importantes tributários do Amazonas”. 
capital — A origem remota de capital é o Latim caput (“cabeça”). Inicialmente, o adjetivo capitalis significava “o que está acima dos outros; principal, dominante” — como se vê ainda hoje, quando dizemos que algo é de capital importância, quando falamos nos sete pecados capitais e quando chamamos de capital a cidade em que fica a sede do governo. No Renascimento, os famosos banqueiros italianos passaram a usar o termo capitale para designar a parte principal de uma quantia investida, excluídos os juros e os rendimentos que ela pudesse trazer. Pouco a pouco, com o desenvolvimento da Economia Política, o sentido foi sendo ampliado, até que, no séc. XIX, passou a significar “a riqueza considerada como meio de produção”, por oposição ao “trabalho”, relação que Marx analisou no clássico O Capital. 
lucro — Vem do Latim lucrum, “ganho, vantagem”. Na sociedade romana, ao contrário do que aconteceria durante o Cristianismo, nos séculos seguintes, o lucro era visto como um ganho legítimo que se auferia com uma atividade econômica bem sucedida. Em Pompéia, sob as cinzas e a lava do Vesúvio, encontraram uma casa que trazia escrita em seu portal a expressão Salve, lucrum! (“Bem-vindo, lucro!”), enquanto o mosaico do assoalho formava a frase Lucrum gaudium! (“O lucro é alegria!”). Os antigos já entendiam, no entanto, o lado perverso do lucro, como se vê pelo velho provérbio Lucrum unius est alterius damnum — “O lucro de um é o prejuízo de outro”. A doutrina cristã, ao associar o lucro à usura, prática que sempre condenou, apagou a distinção entre lucro legítimo e ilegítimo, dando ao vocábulo uma carga pejorativa que só hoje, aos poucos, começa a se dissipar. É significativo que, do mesmo radical latino, nosso idioma formou também a palavra logro, que tinha inicialmente o mesmo significado de “ganho, vantagem”, mas hoje significa “engano, embuste”.
dinheiro — Vem do Latim denarius, moeda de prata que valia dez asses, uma tradicional moeda de cobre. Por ser a moeda mais utilizada em Roma, tanto no Império quanto na República, o nome adquiriu valor genérico e passou a designar qualquer espécie de meio circulante. Entrou também no espanhol como dinero, no francês como denier (embora a forma preferida por aquele idioma seja argent — literalmente, “prata”) e no italiano como denaro (embora a forma preferida seja soldo). O termo chegou até o árabe, que, em contato com os povos da Península Ibérica, importou a forma dinar. No fim da Idade Média, Portugal e Espanha chegaram a cunhar dinheiros de prata; é por isso que nas traduções mais antigas do Novo Testamento para nosso idioma, Judas não vende Jesus por trinta moedas de prata, mas por “trinta dinheiros“.
juros — É uma palavra de origem ainda obscura, que entrou no nosso léxico por volta do séc. XII, quando o idioma ainda estava se formando. Muitos autores — entre eles, Houaiss, no seu excelente dicionário — derivam-na de jus, juris (“direito, justiça”): os juros seriam o que é direito receber pelo aluguel de uma determinada quantia. Das línguas românicas, só o português usa este termo; as demais usam o equivalente ao nosso interesse, que também podemos usar como sinônimo de juro: interés (Esp.), interesse (It.), intérêt (Fr.). 
Muitos foram os filósofos e pensadores que condenaram a cobrança de juros, sob o princípio de que uma entidade como o dinheiro, sendo estéril, não deveria produzir filhotes. O Cristianismo os diabolizou ainda mais, ao usar o termo como sinônimo da usura, que sempre combateu. Só no séc. XVIII, quando as leis da Economia começam a ser
estudadas cientificamente, é que se propõe a distinção entre os dois vocábulos, usando-se juro para designar a taxa de remuneração pelo uso do dinheiro, e usura para o empréstimo de dinheiro a taxas superiores às legais (o que, no Brasil atual, não tem muita diferença).
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7- A ORIGEM DOS PECADOS
O estudo etimológico por classes semânticas - a saber, grupos de palavras inter-relacionadas pelo significado - pode revelar-se atraente, pois se vincula, muitas vezes, a noções mais básicas e nem sempre óbvias para o falante comum. A palavra "pecado", por exemplo, é um dos inúmeros casos de substantivos formados por meio de um particípio, a saber, do verbo "pecar". Na verdade, apesar da obviedade dessa afirmação, há um erro etimológico nela, pois o latim peccatum já existia, o qual era a forma neutra do particípio passado peccatus, do verbo peccare. 
Desse modo, o português assumiu ambas as formas como suas. Em latim, peccare era "cometer uma falta": o sentido religioso só viria bem mais tarde, quando os romanos se tornaram cristãos. Na verdade, o sentido mais antigo da palavra era "tropeçar" e tudo indica (sobretudo as consoantes geminadas) que o radical pecc- esteja ligado à mesma raiz de pes (genitivo pedis) "pé". De *ped-cus teria vindo, por assimilação regressiva, *peccus "perneta, manco", donde viria peccare *"mancar" e, posteriormente, "tropeçar". O sufixo -cus se vê também em mancus, "maneta". Curiosamente, manco em português não tem a ver com as mãos, mas com os pés, mas isso é uma inovação. 
Em espanhol e em galego, manco mantém o sentido antigo de "maneta". Essa diferença de significados pode surpreender, mas encontra sua explicação na generalização do que foi considerado deficiência. Observe-se que, em espanhol e em galego, zurdo é o canhoto, palavra de origem desconhecida (cognata do português churdo, "ruim") e não tem relação com a palavra "surdo", do português, que vem do latim surdus, com o mesmo significado, como o espanhol sordo e o galego xordo. Os termos usados para "manco" em latim eram claudus ou claudicans (donde o verbo claudicar). Para manco ou perneta, em espanhol, se diz cojo e no galego (e português clássico), coxo, ambas provindas de um latim vulgar *coxum "manco", formado a partir de coxa "quadril, coxa". Dessa forma, para o discurso religioso, o pecado é um defeito para a alma, assim como as deficiências o são para o corpo.
Pecados
Na doutrina católica, há o pecado original, os pecados veniais e os mortais. Os principais seriam os pecados capitais, em número de sete: "soberba", "avareza", "inveja", "ira", "luxúria", "gula" e "preguiça". Vejamos os étimos de todos eles. 
- Inicialmente a "soberba", palavra que provém do latim superbia. O termo deriva do adjetivo superbus, "que está acima dos outros", formado pelo advérbio super, "sobre, acima de". Desde cedo, superbus passou a designar aquilo que é de fato melhor do que os outros (magnífico) ou, por metáfora, aquele que se imagina acima dos outros (o orgulhoso). O sufixo -bus acrescentado ao advérbio super não está isolado, mas também se encontra em probus, "que brota bem" (sentido agrícola), daí "bom" e, mais especificamente, "íntegro, leal, probo". Essa palavra também é derivada de um advérbio, pro "para a frente", donde probus seria inicialmente *"aquilo que vai para a frente". De probus provém probare "achar bom, aprovar", donde "provar um vinho", como a forma clássica "gostar um vinho" (de gosto, transitivo direto, com o sentido de "saborear um vinho"). Também probare é "achar correto", donde "provar um teorema". Desse sentido matemático é que virão, por metáfora, expressões como "provar a inocência". 
- A "avareza" provém do latim avaritia, "desejo de riquezas", que é um derivado de avarus "avaro, avarento". Na verdade, o primeiro sentido de avarus, se assemelha ao de seu cognato avidus "ávido", o que indica ser o sentido de avarus uma especialização, pois o sentido antigo era mais genérico e não se vinculava apenas a dinheiro ou a bens. Ambas as palavras se vinculam ao verbo avere "desejar ardentemente", de origem obscura. 
- Já "inveja" é uma palavra proveniente do latim invidia, com o mesmo sentido, embora no latim também se mesclem sentidos como "má vontade", "ódio" e "antipatia". Trata-se de uma forma abstrata de invidus "invejoso, ciumento, ínvido", formada a partir do verbo invidere "lançar mau-olhado, ter inveja ou ciúmes de alguém". A formação de invidus é irregular, mas parecida com avidus, portanto, é possível que tenha havido uma falsa segmentação e, consequentemente, uma etimologia popular que segmentava a+vidus, com um falso prefixo a- que foi substituído por in- em in+vidus. O sentido básico do verbo invidere é *"olhar (videre) para dentro de (in-)", donde "olhar demasiadamente para", por isso sua regência se fazia no caso dativo, que marcava o objeto indireto. Esse sentido inicial, porém, passou a ser mais usado por outro verbo sinônimo, inspicere. 
- A "ira" é uma palavra culta (em latim também se diz ira, grafado eira nos textos mais antigos). A etimologia dessa palavra, como é comum em palavras muito pequenas, é de difícil determinação, embora haja quem a associe com o sânscrito isirah ou com o grego homérico ierós, que têm o significado de "vivo", mas a mudança semântica é bastante complexa. 
- A "luxúria" é outro cultismo. O termo latino luxuria significava inicialmente "excesso, superabundância", donde o excesso de bens ("suntuosidade, fausto, luxo") ou o excesso como vício, do ponto de vista moral ("arrebatamento, volúpia, dissolução"). Por isso a forma luxurians, "luxuriante", se emprega, desde o latim clássico, para plantas que produzem flores ou frutos com abundância. A luxúria, assim, acabou por confundir-se com a "lascívia", que em latim nada mais era que "brincadeira, diversão, galhofa" ou com a "concupiscência", termo formado sobre o verbo latino concupisco, "desejar ardentemente (bens materiais ou sexo)".
- O sentido atual de "gula" é uma abstração, por metáfora, da palavra latina gula, "garganta, goela". De fato, a palavra portuguesa "goela" vem do seu diminutivo no latim vulgar, a saber, *gulellam e, em romeno, gura significa "boca". O sentido abstrato, contudo, já aparece na época imperial. A palavra também é um cultismo, caso contrário, teria havido a queda do -l- intervocálico.
- Por fim, a "preguiça" vem do latim pigritia. Do latim vulgar, a palavra virou pereza em espanhol, sendo que os -i- breves se tornaram e, a sequência ti+vogal se tornou z e o -g- do encontro consonantal -gr- caiu, regularmente. Em português e em galego (língua em que se diz preguiza), o segundo -i- se manteve por influência do iode de -ti- e houve o deslocamento do -r- da sílaba tônica original (-gri-) para a primeira sílaba (pigritiam > *pegriça > "preguiça"). Obviamente, o -u- na sílaba -gui- é puramente ortográfico e não precisa ser explicado à luz dos metaplasmos. Do século 15 ao 18, a julgar pelo Dicionário Houaiss, convivia com a forma pigriça e no 19 também há um perguiça. O deslocamento do -r- tem o nome de hiperbibasmo em estudos etimológicos e nesse caso específico, atuou-se analogicamente as palavras prefixadas em pre-, já que não é comum haver hiperbibasmos em que o -r- saia de uma sílaba tônica pesada (com duas consoantes iniciais, a saber, -gri-) e vá para uma leve (pi-): o contrário é o que costuma ocorrer, como em "vidro" > vrido. A palavra latina pigritia é um substantivo abstrato formado sobre o adjetivo piger, "preguiçoso". Os dicionários também abonam pigro, mas tal palavra é muito erudita. Esse adjetivo latino se aproxima do verbo piget, "fazer devagar, ser moroso, fazer de má vontade" (mais tarde: "estar desgostoso, ter pena" e, inversamente "causar aborrecimento, contrariar") e, de fato, um derivado de piger, a saber, o verbo pigrari também significa "fazer lentamente, ser lento". O dicionário etimológico latino de Ernout & Meillet não encontra nenhuma etimologia para essa palavra.
Meandros
semânticos
Fazer estudos semelhantes aos que acabamos de apresentar, sobre campos semânticos, revela vários meandros das palavras, os quais desconhecemos, com os quais não estamos acostumados ou para os quais estamos desatentos. De fato, a polissemia das palavras portuguesas não se deve somente à riqueza ou ao gênio da nossa língua, embora, desde o Renascimento, o discurso nacionalista das gramáticas tenha calado fundo. Muito dos sentidos de nossas palavras são provenientes já do latim ou vieram de outras línguas e somente uma pesquisa histórica pode de fato nos mostrar quais foram. É interessante perceber que uma palavra como "pecado" possa ser usada com outras acepções. Em romeno, pacat é uma interjeição de lástima, equivalente a "que pena!". Na verdade, se pensarmos bem (e se investigarmos, para compensar o nosso desconhecimento de parte da língua), há momentos e lugares específicos em que se usa a mesma expressão: "que pecado!". Por quê? Somente uma investigação etimológica pode responder (e não chutes). 
Também quando dizemos que algo está "impecável", temos de voltar ao latim, uma vez que impeccabilis é "quem não cometeu uma falta", ou seja, o inocente. Algo que não comete faltas não tem falhas, por isso, quando dizemos que alguém "fala um inglês impecável", é nesse sentido que se sustenta a metáfora. No entanto, a expressão não é portuguesa, uma vez que a encontramos o mesmo sentido no francês impeccable (aliás, tão frequente que na língua coloquial, existe a forma impec, "excelente"). É mais provável que, por modismo, tenha vindo do francês, que influenciou as línguas de toda a Europa por séculos. O contrário seria difícil de imaginar.
Um dos melhores métodos de entender a Semântica, área pouco prestigiada pelos estudos da linguagem, é investigar a sua história. Para tal, são necessários bons instrumentos: dicionários etimológicos confiáveis, coletâneas de textos antigos e, sobretudo, método, como já mostramos em outros momentos.

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