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PRATICA IV - PSICOLOGIA UNIFOR - Moradores de rua da saída de casa até a recuperação na religião

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Prática integrativa IV
Curso de Psicologia - CCS
Universidade de Fortaleza
Agosto/2016
Moradores de rua: da saída de casa até a recuperação na religião
João Lucas Braga Barroso / Rafaela Cavalcante
Prof Orientador: Angela Teresa Nogueira de Vasconelos
Resumo 
Analisando o processo de evolução do “eu”, das configurações familiares ao longo do tempo e de conceitos como Instituições e comunidades, iremos investigar neste artigo a relação entre todas essas ideias e um projeto social de uma comunidade religiosa voltado para moradores de rua e dependentes químicos. Para chegar às articulações entre esses temas, utilizamos do método de pesquisa etnográfica, para depois unificar o conteúdo estudado teoricamente e o conteúdo por nós observado durante nossas visitas a campo.
Palavras-chave: Instituições. Cultura. Comunidade. Projeto Social. Família
Introdução
O presente artigo trata-se de um trabalho desenvolvido para a disciplina de Prática Integrativa IV, do curso de Psicologia da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, e tem como principal objetivo desenvolver observações e discussões sobre um projeto de ação social de uma comunidade religiosa com usuários de substancias psicoativas e moradores de rua cuja finalidade é tirá-los do meio em que propicia a continuidade na vivência de dependência química. Abordaremos também a respeito da dinâmica nas relações familiares e como ela influencia nas tomadas de decisões dos usuários de drogas.
	Abordaremos no decorrer do artigo a influência das relações familiares no processo de conscientização de ser dos usuários. Tendo em vista a família como uma instituição complexa que congrega trajetórias individuais que se expressa em arranjos diversificados e em espaços únicos ligados diretamente às transformações da sociedade. Esse sistema plural se reveste de diversas definições e controvérsias e há relevância no que se refere aos processos de crescimento e desenvolvimento de seus membros sendo que nela acontece o primeiro processo de socialização. (Padilha e Moreira, 2015)
	Por meio da consideração acima, vemos a família como a primeira instituição da qual uma pessoa participa e sofre influências, sendo ela a responsável pelas diversas consequências das atitudes e escolhas de um indivíduo. No momento em que esta instituição falha ou é mal estruturada, torna os participantes dela vulneráveis a situações de risco. Dentro do contexto de dependentes químicos e moradores de rua, relataremos como esta desestabilização da família afeta a dificuldade de recuperação e humanização dos mesmos.
Levando em consideração a realidade das famílias e dos membros desta em situação de vulnerabilidade social, emocionais e relacionais, vemos a importância de estudar, pesquisar e colher informações acerca das condições humanas e falta de atenção às necessidades de sobrevivência delas e bem-estar físico e emocional, por parte do governo. Tornando essencial a ajuda de instituições, em sua maioria religiosas, que acolhem e dão a assistência mínima a eles, porém vemos as dificuldades de recursos destas para atender ás vítimas em situação de rua ou dependência química. Desta forma, faz-se necessário aludir acerca da realidade enfrentada pelas instituições, causadas pelo descaso do estado, pela falta de políticas públicas e pelo aumento do número da demanda de indivíduos carentes. 
Desta forma, a escolha da instituição e do tema teve como objetivo trazer a importância da intervenção das instituições religiosas para o retorno de uma vida mais digna das pessoas que sofrem do desamparo social e político. Assim, mostrando a relevância da atenção ao modo como estas pessoas estão recebendo ajuda e sendo resgatadas, ou até mesmo salvas pela mediação de pessoas voluntárias com a disposição para retirar os “irmãos” da situação de rua. 
Portanto, este trabalho foi de fundamental importância por podermos aqui discutir acerca deste tema tão recorrente nos dias de hoje e que levam algumas pessoas que apenas condenam os viciados em drogas ou moradores de rua a repensarem e conhecerem a situação e as causas que fogem da escolhas deles em ter uma família que proporcionaria toda uma base e suporte emocional, tendo que viver diariamente com o conflito interno, buscando algum modo de preencher e lidar com as frustações e experiências que viveram e assim perceber o quanto é difícil a mudança de vida para eles.
Metodologia 
Neste artigo, foi realizada uma pesquisa de caráter exploratório. Gil (1987, p. 41) discorre sobre esse tema em:
Estas pesquisas têm como objetivo proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a constituir hipóteses. Pode-se dizer que estas pesquisas têm como objetivo principal o aprimoramento de idéias ou a descoberta de intuições. Seu planejamento é, portanto, bastante flexível, de modo que possibilite a consideração dos mais variados aspectos relativos ao fato estudado.
Além do caráter exploratório, a pesquisa foi feita utilizando-se o método qualitativo. Baseando-se em Gaskell (2002), podemos afirmar que, diferentemente do método quantitativo que foca em medir ou enumerar eventos, utilizando-se de questionários estruturado, estatísticas, entre outras técnicas, o método qualitativo tem como foco descrever e analisar dados, demonstrando maior interesse pelo processo do que pelo resultado em si.
Optando por essa pesquisa qualitativa, foi escolhida a etnografia como método de investigação. Inspirando-se em Spradley (1979) podemos definir esse método como a descrição de um sistema de significados culturais de um determinado grupo. Na prática etnográfica, o pesquisador deve estar presente no local em que vivem os grupos investigados. Para Laplantine, 
O pesquisador compreende a partir desse momento que ele deve deixar seu gabinete de trabalho para ir compartilhar a intimidade dos que devem ser considerados não mais como informadores a serem questionados, e sim como [anfitriões] que o recebem e mestres que o ensinam. Ele aprende então, como aluno atento, não apenas a viver entre eles, mas a viver com eles, a falar sua língua e a pensar nessa língua, a sentir suas próprias emoções dentro dele mesmo. (LAPLANTINE, 1997, p. 75-76)
Resaltando a importância da observação na etnografia, utilizamos da observação participativa como ferramenta de obtensão de informações. Segundo Correia,
A Observação Participante é realizada em contacto directo, frequente e prolongado do investigador, com os actores sociais, nos seus contextos culturais, sendo o próprio investigador instrumento de pesquisa. Requer a necessidade de eliminar deformações subjectivas para que possa haver a compreensão de factos e de interacções entre sujeitos em observação, no seu contexto. (CORREIA, 2009, p. 31)
Durante nossa presença no local investigado, utilizamos diários de campo para anotar o que por nós era observado ao longo das nossas seis visitas. Laplantine (1997, p. 156) discorre sobre a importância dessas anotações ao dizer que “no campo, tudo deve ser observado, anotado, vivido, mesmo que não diga respeito diretamente ao assunto que pretendemos estudar”.
O local era uma casa, comandada por uma instituição religiosa e movimentado por voluntários, que tem como objetivo oferecer um processo de “humanização” (banho, comida) para moradores de ruas e adictos. Utilizam de bases religiosas para fundamentar suas ações, sejam nesses momentos de “humanização” ou em momentos de roda de oração, onde os voluntários tentam mostrar aos dependentes químicos o bem que fariam a suas vidas vencendo o vício. 
Recebemos permissão do local para realizar essas visitas. A análise dos dados foi realizada entre os autores do artigo e foram utilizados artigos para fundamentação e comparação. 
Contamos com orientação e supervisão de nossa professora orientadora da disciplina ao longo de todo o processo de realização do trabalho. Além disso, é importante salientar que as informações e dados coletados apenas serão divulgados dentro do contexto acadêmico,
preservando os nomes das pessoas entrevistadas.
O trabalho foi realizado entre agosto e novembro de 2016.
Resultados e Discussão
O conceito de instituição passou por uma série de evoluções até se tornar o que conhecemos hoje. No século XIX, o termo dizia respeito ao direito, da lei e dos sistemas jurídicos. No século XX, Durkheim acredita que a sociologia deveria ser a ciência das instituições, dando a elas uma função de “regulação social”. Lourau e Lapassade ao abordar esse conceito retornam a ideia de regulação social, afirmando que a instituição não é localizável (Sampaio, 2009). 
Uma conceituação mais recente é feita por Enriquez (1997, p.73), que, sobre as instituições, afirma que elas “se apresentam como conjuntos formadores, referindo-se a um saber teórico legitimado, que tem por função garantir uma ordem e certo estado de equilíbrio social”. Além dessa função reguladora, outras funções que podem ser atribuídas as instituições são a de manutenção do “status quo”, mascarar conflitos, proteger o homem contra o próprio homem, impor limites, propiciar alívio as proibições e oferecer um sentimento de pertencimento(Sampaio, 2009).
Freud (1921/1980) apud Sampaio (2009) apresenta algumas características que configuram as instituições. Elas são: durabilidade, artificialidade, organização e estrutura bem definidas, impossibilidade de escolha em ingressar, abandono seguido por punição e presença de um líder e uma ilusão de amor por ele. Podemos observar essas características na religião e em instituições religiosas, inclusive no cristianismo. As pessoas tendem a ter sensação de que a religião cristã existe desde o surgimento do homem, o que é abordado no aspecto da durabilidade; na artificialidade, observamos fortes mecanismos de coerção que impedem a pessoa a sair de grupos relacionados a instituição; os papéis e hierarquias são claramente estabelecidos e existe no cristianismo, um líder, no caso, Jesus Cristo, que amaria a todos os homens igualmente, o que é uma forte ferramenta para a manutenção da união grupal. 
Fomos possibilitados de realizarmos nossa pesquisa etnográfica por uma comunidade católica, composta por integrantes de ambos os sexos e das mais variadas idades e reunidos por meio dos ideais cristãos. Nessa comunidade, são realizados grupos de oração, projetos de ação social, retiros e outros eventos com o intuito de louvar a Deus e estudar e refletir sobre seus ensinamentos e valores. Eles têm como objetivo colaborar para a construção de uma sociedade mais justa por meio de projetos de uma ação social voltada para a valorização da dignidade humana.
A comunidade citada anteriormente foi fundamental para nosso trabalho. Segundo Albuquerque (2001, p.51), “o conceito de comunidade é empregado, nos séculos XIX e XX, para todas as formas de relacionamento caracterizadas por intimidade, profundeza emocional, engajamento moral e continuidade no tempo”, características essas que podemos observar na comunidade por meio das definições dadas por voluntários e durante as nossas observações.
Um dos objetivos citados anteriormente da comunidade que possibilitou nossa pesquisa foi o de valorização da dignidade humana por meio de projetos de ação social. Visitamos uma casa onde é uma das sedes dessa comunidade, localizada no centro da cidade de Fortaleza, e lá foi o local no qual realizamos nossa pesquisa etnográfica. Sustentada por doações e trabalho voluntário, essa casa tem como objetivos realizar acolhimentos e resgatar a dignidade humana de pessoas menos favorecidas, em especial de moradores de rua. 
É considerado recuperar a dignidade o processo no qual o indivíduo é abrigado pela casa e ganha alimentação, higienização e possibilidade de descansar. A estratégia da comunidade é fazer que eles se sintam, por meio desse processo, amados e que possam recuperar um pouco da sua autoconfiança, pois, nas ruas, geralmente são tratados com descaso e desprezo pela sociedade. Após isso, é trabalhado pelos voluntários da Casa a questão da ressocialização, visando tirar o indivíduo da rua por meio de acompanhamento espiritual, humano e psicológico. Tentam fazer com que o morador crie um forte desejo interior de sair das ruas, trabalhando a autoestima deles e mostrando que eles não precisam se manter naquela situação. Acreditam que a espiritualidade é a forma mais produtiva de realizar essa mudança. No caso de dependentes químicos, quando um busca voluntários para pedir para ir para algum centro de reabilitação, a Casa se organiza para conseguir manda-lo o mais breve possível. Quando possível, os voluntários vão visitar o indivíduo para saber como ele está.
Na nossa visita, conseguimos observar certa rotina na casa: aproximadamente às oito e meia da manhã, voluntários iam para a entrada e realizavam uma oração coletiva com os moradores de rua. Após isso, os moradores entram ordenadamente para retirar fichas numeradas, deixando, se for da sua vontade, seus pertences em uma sala, retirando outra ficha numerada. Na entrada, dois seguranças fazem revistas neles. Antigamente isso não ocorria, mas, desde que ocorreu uma briga por membros de gangues rivais, a Casa se viu na necessidade de realizar esse procedimento. Após essa retirada de fichas, ganham café da manhã, podendo depois descansar, se higienizar e lavar suas roupas. Seguidamente, havia as rodas de oração e, para terminar, os voluntários ofereciam almoço aos moradores de rua.
Auxiliando os voluntários, realizamos algumas atividades como entrega de fichas, de sabão e de sabonete; ajudamos na cozinha, cortando verduras e vegetais e organizando os alimentos da Casa, que recebe os mesmo por meio de doações uma vez por mês e de arrecadação dos voluntários; colocamos terços em sacos plásticos para serem distribuídos para os moradores.
A questão da ressocialização se dá principalmente nas rodas de oração. Nela, os voluntários abordam bastante o tema da dependência química. Alguns deles tiveram também problemas com vício, seja químico ou não, e tentam levar suas experiências para tentar ilustrar para os moradores exemplos de superação, para mostrar que eles também são capazes de tal feito. Nessa atividade, a dinâmica se assemelha bastante com a de uma grupoterapia.
 Zimerman et al. (1997, p.23), se referindo as grupoterapias, criadas por J. Pratt em uma enfermaria com tuberculosos no ano de 1905, afirma que
Esse método, que mostrou excelentes resultados na aceleração da recuperação física dos doentes, está baseado na identificação desses com o médico, compondo uma estrutura familiar-fraternal e exercendo o que hoje chamamos “função continente” do grupo. 
Podemos observar que essa identificação é justamente o que buscam os voluntários, para mostrar aos moradores que eles também são capazes de superar o vício e lutar por uma melhor qualidade de vida. Também buscam passar essa estrutura familiar, além de se apoiar bastante em conceitos e ideais cristãos. 
Essas rodas de oração sempre vinham acompanhadas de músicas. Voluntários cantavam e outro tocava violão. Alguns dos moradores se mostravam bastante empolgados com esse momento e cantavam junto dos voluntários enquanto outros pareciam incomodados de estarem ali. A comunidade é católica, mas alguns protestantes se encontravam presentes na roda. O clima era, de maneira geral, bem descontraído. 
Os voluntários pareciam possuir certa intimidade com alguns moradores, reconhecendo eles e suas histórias, além de fazerem brincadeiras e demonstrarem afeto com os mesmos. Alguns dos moradores ajudam os voluntários nas tarefas da casa e contam de suas conquistas: empregos, casas, documentos adquiridos. Conversamos com ex-moradores de rua que graças ao programa da comunidade mudaram bastante seu estilo de vida, saindo das ruas, entrando na comunidade e agora atuando também como voluntários.
Após orarem, eles conversaram sobre a questão do vício e sobre sair das ruas. Além dos voluntários, como já citado, se utilizarem como exemplo, utilizavam moradores que estava há um tempo fora das
ruas e/ou sem usar drogas para esse mesmo fim. Buscavam relacionar passagens da bíblia com o momento vivido pelos moradores para tentar mostrar a eles que Deus os ama. Entre os temas abordados nos encontros os quais presenciamos estava o livre arbítrio, a felicidade “perdida”, sobre deixar as coisas para o amanhã, o amor de Deus pelos pecadores e a necessidade de força na fé.
Sobre a droga, pelos depoimentos, vimos que o crack e a bebida eram os vícios mais frequentes dos moradores. Os voluntários afirmam que a droga é uma ilusão, enquanto a verdadeira felicidade só se encontra em Deus. Afirmam que a droga só afasta as pessoas de perto, sendo ela a verdadeira culpada das desgraças por quais os moradores passam. Para se ter uma vida nova, deve se ir atrás de fazer coisas novas e conhecer gente nova, pararem de jogar fora os “dons” que Deus deu para eles, pois, para sustentar o vício, os moradores trabalham pra pessoas que não se importam com eles enquanto deixam de lado o relacionamento que seria mais importante, que é o com Deus.
Como pudemos ver, é bastante frequente o contraste Deus e drogas. Ressaltam a necessidade de uma intimidade com Deus, pois, na falta do mesmo, a pessoa se sente frustrada. Para incentivar esse relacionamento mais constante, os voluntários arrecadam bíblias e dão elas para alguns moradores. Muitos moradores, por meio de seus relatos, revelam que graças ao acompanhamento oferecido pela Casa vem conseguindo mudar de vida. Um morador relatou que o “não” vinha salvando a vida dele, que por causa dos conselhos ele vem usando menos drogas. 
Muitos sentiam essa necessidade de “cura” e veem isso como fundamental, pois, como relatado por um dos moradores, “existe coisa pior do que a droga, o mau caráter”. Muitos moradores novos chegavam semanalmente em cada encontro em busca dessa “cura” e era constante o discurso por parte tanto dos moradores quanto dos voluntários que é preciso querer mudar para conseguir fazê-lo. Mas, nem todos se sentem muito satisfeito com o modo de agir dos voluntários. Um caso observado pelo grupo foi o deu um morador que, irritado com a repetição dos temas, afirmava que o voluntário “cansava a cabeça do cara, só falando a mesma coisa”. 
A Casa também oferece acompanhamento psicológico por meio de um psicólogo aposentado que oferece “aconselhamentos” para os moradores de rua em uma sala individual. Muitos dos moradores que ganham esse aconselhamento vão atrás dos voluntários para conseguirem esse momento e alguns o possuem com certa frequência. Em uma conversa com um dos voluntários, foi afirmado que a comunidade vê o papel do psicólogo como fundamental no local de realização do projeto de ação social. Antes de possuírem um trabalhando lá, o trabalho era ineficaz, segundo o voluntário. A Casa agia apenas de forma “auxiliadora” em muito dos casos, não havendo uma verdadeira mudança no indivíduo.
Desde o Renascimento no final do século XIV, o modo da pessoa ver o seu “eu” mudou bastante. Nesse movimento, o humanismo retornou e se tornou um dos princípios fundamentais de sua época, afirmando o homem como o “rei” do mundo natural, ele se torna o centro do mundo e todos os objetos estariam para sua contemplação e seu uso. Essa concepção de “eu” não era possível na idade média, pois o centro de tudo era Deus, representado na terra pela bíblia e pela igreja. Deus, como ser onipresente, oniciente e onipotente, não estaria a parte de nada no mundo, ou seja, não poderia se esconder nada de Deus, nunca estaríamos realmente sozinhos (Santi, 2005).
Com a perda desse referencial sólido da Idade Média graças ao Renascimento, há uma enorme valorização do homem como um todo e um indivíduo. A fé em Deus não foi abalada, mas agora ele seria visto como um autor pairando sobre sua obra, a qual possui vida própria. Justamente com a perda dessa referencia absoluta, surgem as ideias de liberdade, solidão e responsabilidade. O homem se torna responsável pela sua vida. Sobre esse assunto, Santi (2005, p.37) afirma
Impõe-se ao homem, a partir de agora, escolher o seu caminho. Essa escolha implica em uma construção de identidade, e todos os exemplos mostram-nos como isso exige um esforço brutal, quase sobrehumano; o homem deve dominar a dispersão que o mundo é. 
Nas nossas visitas, conseguimos observar que muitos dos moradores de rua se consideravam como responsáveis por suas ações. Em uma conversa com um morador que possui vício em crack, ele afirmou ser o responsável não só por sua condição, mas também por sair dela. Essa condição de responsável pelo seu próprio destino faz com que surja uma enorme culpa nesses moradores e é por isso que a questão da autoestima tem que ser trabalhada como acredita a Casa. Pois, só com uma autoestima alta que o adicto pode tentar superar a dependência. Sobre essa questão da culpa, vemos outro trecho de Santi (2005, p.40) abordando o tema em
A crença na liberdade humana absoluta, que diz que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos, envolve um forte sentimento de culpa: se somos o que fazemos de nós, esta infelicidade na qual nos encontramos foi produzidas por nós, nós a merecemos.
Por fim, com todas essas mudanças advindas do Renascimento, o posicionamento da Igreja teve que se adaptar a essa nova visão de “eu”. Eles utilizaram essa ideia de liberdade humana apenas para associa-la a perdição do homem. A salvação, segundo a religião, seria justamente abrir mão absolutamente dessa liberdade, transferindo-a de boa vontade para a autoridade religiosa. O preço a se pagar por um repouso em uma certeza absoluta seria a total submissão do indivíduo (Santi, 2005).
Nas observações, essa ideia podia ser identificada de forma menos radical. Os voluntários falavam em várias ocasiões sobre “deixar as coisas na mão de Deus”. Falavam sobre você só encontrar o caminho para se livrar das drogas aceitando e amando Deus, ou seja, se submetendo a Deus. Mesmo que não de forma absoluta, é prolongada a ideia de que apenas Deus pode proteger o homem de si mesmo e de suas más decisões. 
Também podemos perceber no desvelamento das falas dos acolhidos pela instituição que existe uma multifatoriedade do consumo de drogas e da moradia na rua, sendo a transmissão geracional como um dos principais fatores e ainda geradora de uma repetição. 
Desta forma, para Iglez-Mazzarella (2006), a repetição está relacionada com a transmissão psíquica geracional. Pôr a primeira está sempre em busca da simbolização que só será alcançada por meio das palavras, mas quando isto não ocorre, o indivíduo tende a reviver o que não conseguiu simbolizar. É isto que ocorre com os membros de muitas famílias que estão inseridas em um meio de vulnerabilidade social. Muitos deles passam por situações conflituosas ou de vivência em meio a viciados em substancias químicas, sendo negligenciados pelos pais responsáveis, gerando uma diversidade de sentimentos que não podem ou não conseguem expressar, mas quando crescem tendem a reproduzir o que os pais viveram como uma tentativa inconsciente de “resignificar” a sua infância. 
A negligência familiar pode ser ainda explicada pela necessidade financeira, em que os pais são submetidos a trabalhos no período da manhã e da noite e passam a não ter controle sobre a rotina dos filhos, sem um tempo para o aconselhamento e condução das escolhas. Este fator pode ser caracterizado pela ausência do amor parental a qual é evidenciado por esse distanciamento ou privação de uma relação com os pais, tornando estes filhos carentes de suporte familiar, ocasionando jovens que não conseguem lidar com a tristeza, incompreensão e frustração. Assim, podendo considerar o lar como ambiente facilitador e um dos responsáveis pelo consumo de drogas e/ou abandono do lar.
 	Diante da dificuldade em lidar com as frustações, geralmente, causado pela ausência parental, pôde-se constatar em um momento de reflexão feito por um dos coordenadores do projeto que o motivo pelo qual o “irmão” abandonou a vida sadia pode ter ocorrido por um trauma
ou perda irreparável vivida por ele. A qual foi enfatizado que ele não está naquela vida por ser “ruim” e que as atitudes e escolhas tomadas eram proveniências de circunstancias presenciadas por ele em que não soube lidar com a dor passada. 
Assim, Padilha e Moreira dissertam sobre a droga como refúgio: 
Percebe-se que, inicialmente, as drogas eram utilizadas como uma forma de obter forças para suportar as dores emocionais durante alguns momentos(...) o qual expressa que a droga é utilizada como refúgio diante da frustração(...)o efeito esperado ao consumir qualquer droga é o de provocar um refúgio anestésico e amnésico capaz de aliviar as dificuldades vivenciadas, as dores e as angústias naquele momento. (2015, p. 5-6)
Portanto, podemos considerar que mediante a falta de suporte familiar, da participação em uma família disfuncional e assim, não possuir um equilíbrio emocional, a droga por ser tão disseminada hoje e ser proclamada por alguns como algo bom e que “te faz ficar leve”, o indivíduo que vivencia tristeza, perda, solidão ou qualquer experiência frustrante para ele insuportável, se torna muito sucessível a usar a droga como refúgio, como um recurso apaziguador, no qual a dor intolerável passa a ser substituída por um sentimento de plenitude satisfatória. Logo, o usuário procura ter sob o controle a realidade externa quanto a interna, transformando as menos ameaçadoras.
Entretanto, quando se torna dependente, a droga passa a controlar o usuário, sendo impotente ao vício. Esta falta de controle em que o sujeito se depara com sua dependência e toma consciência da sua perda de controle sob a situação, ele passa a usar a droga agora para reduzir a sua angustia. Desta forma, aquele momento que trazia uma satisfação e prazer, se transforma em algo ameaçador e destrutivo. 
Retomando o contexto familiar, observamos em alguns depoimentos dos acolhidos pelo projeto de ação social da comunidade, o sentido de família perante toda sua realidade atual. Para uma parte deles família se remete a um grupo de pessoas que estejam lutando por um mesmo propósito ou enfrentando uma mesma situação, unindo-se para garantir a sobrevivência, sendo considerado como família todos aqueles amigos ou parentes que estejam vivendo com eles em uma mesma realidade. Passam a acreditar nisso para amenizar a angustia do abandono e despreocupação da família parental com a situação dele ou ainda como um pensamento que o afasta da responsabilidade com os filhos, a esposa ou os pais, buscando preencher o vazio de um suporte familiar no agrupamento com outras pessoas que estão em situação de vulnerabilidade social. 
Porém, considerando ainda o assunto da falta de responsabilidade perante as pessoas as quais eles são encarregados de cuidar, constatamos em muitos relatos deles um sofrimento por ter abandonados os filhos e é nesta culpa que a comunidade se articula com eles, para gerar uma força e uma decisão em sair da dependência química. Portanto, reparamos a importância do significado, da representação da família e como ela se torna essencial e indispensável na busca por uma ajuda e conscientização deles para conseguir sair da vivência com as drogas. 
Considerações Finais
O presente artigo teve como objetivo, conhecer o funcionamento e o modo de intervenção de uma comunidade frente ao acolhimento de pessoas vítimas da vulnerabilidade social, observando através da fundamentação nas disciplinas de Instituições e Organizações, Psicologia e Cultura e Psicologia da Família. Sendo o seu principal propósito analisar e relacionar os dados obtidos para que possamos conhecer e concretizar na prática as teorias e perceber como se dá o desenvolvimento das temáticas abordadas em questão.
Através das observações que foram participativas podemos ter um maior contato nas atividades proporcionadas pelo projeto de ação social da comunidade, possibilitando uma maior coleta de informações e opiniões tanto dos acolhidos como dos voluntários e coordenadores do projeto. Trazendo uma visão mais aprofundada, real e consistente sob como se procede e se vivencia para eles toda a realidade de desamparo social e de um vício. Facilitando a associação com os nossos estudos sobre o conteúdo a qual utilizamos para relacionar com os relatos feitos por eles. 
Tendo como base a análise dos resultados obtidos, através método etnográfico e levantamento de material didático, foi possível constatar que uma comunidade religiosa proporciona um ambiente de oportunidade de “cura”, reconstrução de vida e da integridade humana. Trazem ainda a ressignificação da droga, sendo ela apenas uma ilusão de felicidade e que a felicidade real estaria em Deus, esta concepção leva a conscientização de que não existe nenhuma vantagem em permanecer sob a utilização de uma substancia química e que a procura por esse Deus é que irá trazer a satisfação plena para eles.
 Então, podemos considerar que o papel desempenhado pela comunidade é a de reinterpretar o modo como eles entendem a sua vivencia e isto os leva a ter força para enfrentar o vício e tomarem uma decisão na mudança de vida. Ainda podemos constatar que o contexto familiar é um dos principais constituintes na multifatoriedade da dependência química, pois no momento que a dinâmica familiar é falha, acarreta uma série de deficiências, problemas e que torna o indivíduo vulnerável para entrada do mesmo no mundo das drogas.
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