Prévia do material em texto
Construindo o seu texto Elemento Textual – Bloco 1 1. História da Língua Portuguesa Caro aluno, nesta disciplina você vai conhecer a história do nascimento da língua portuguesa. Certamente, você já sabe que a “última flor do Lácio inculta e bela” vem do latim. Daí, Olavo Bilac chamá-la de última flor do Lácio. Sabe por quê? Porque Lácio era a região em que se falava o latim. Essa região compreende o território onde hoje se localiza Roma, na Itália. Pois foi aí que nossa história linguística começou. O latim, idioma falado pelos romanos, foi se expandindo à medida que o Império alargava suas fronteiras. Essa língua perdurou por séculos e quando o Império Romano ruiu, também a língua latina se transformou. Do contato das línguas faladas nas diversas regiões que se formaram, independentes do Império, juntamente com o substrato latino – originaram-se as neolatinas (novo latim), também denominadas línguas românicas: português, espanhol, francês, italiano, romeno. Após a queda do Império Romano do Ocidente, a língua latina deixou de ser a língua falada pelos povos daquele imenso território. Assim, foram aos poucos se formando novas línguas - as neolatinas ou românicas, nascidas em parte, dos vários falares regionais somados às influências do latim que não desapareceu completamente. Ainda mais, houve as várias invasões bárbaras ao longo das várias antigas províncias romanas. Esses povos também deixaram marcas nas novas línguas em formação. Portanto, as línguas neolatinas e, dentre elas o português, são línguas que trazem marcas do latim que deixou de ser falado pelo povo, das línguas dos povos bárbaros invasores, com suas inúmeras contribuições e, ainda, dos falares regionais de populações anteriores ao período de influência latina. Portanto, o português arcaico, traz marcas linguísticas do latim, do árabe (moçárabe), devido à invasão moura e dos falares do autóctones da Península Ibérica. Hoje, o português é a 5ª língua mais falada do mundo, por mais de 270 milhões de pessoas, encontrada em países da África, América, Europa e Ásia. Você já parou para pensar como esse idioma se expandiu tanto? E onde ele surgiu? E de quais línguas derivou? Essa é uma história e tanto! Venha comigo que vou contar como tudo aconteceu. Tudo começou por volta do século VII a.C., em uma pequena comunidade de camponeses da Itália, de uma região que depois se tornou Roma. Essa comunidade falava o latim, uma língua pobre, que servia apenas para falar sobre agricultura e a vida doméstica local. Aos poucos, o latim foi absorvendo outros falares da região, até tornar-se a língua de todo o Império Romano. O latim se desenvolveu acompanhando as conquistas do exército romano. Quando os romanos invadiram a Grécia, perceberam como a cultura grega estava bem estruturada devido à força de sua língua. Assim, resolveram levar para Roma filósofos e professores gregos, que se encarregaram da reestruturação do latim. Com os gregos, fundaram escolas de oratória e uma gramática latina, que tomou do grego o sistema de casos, para os nomes, e de flexão, para os verbos. Com o poder do Império, a língua latina foi se expandindo por toda a Itália. Chegou, depois, à Península Ibérica – Espanha e Portugal – , ao Norte da África, às Gálias – que hoje são França, Suíça, Bélgica e Alemanha – , à Récia e Nórico – que corresponde ao território da Áustria – , à Dácia – Romênia. Atingiu também parte da Grã-Bretanha, a Frísia – que é a Holanda –, a Dalmácia e a Ilíria – isto é, a ex-Iugoslávia – e a Panônia – Hungria. Mas como nada dura para sempre, com a queda do Império Romano, em 476 d.C., o latim começa a entrar em declínio. A língua ainda figurou por quase mil anos, durante toda a Idade Média, principalmente por influência da Igreja Católica. No entanto, aos poucos foi se tornando uma língua restrita à escrita e a cerimônias. Por falar nisso, você sabe a diferença entre o latim usado para a escrita, chamado clássico, e o usado pelo povo na fala, chamado vulgar? Sermo Urbanus, o latim clássico, é a língua dos grandes literatos e oradores do Senado Romano, como Cícero, César, Virgílio, Horácio e Ovídio. Esses nomes, com outros do mesmo patamar, compõem a Idade de Ouro, fase em que a língua latina atingiu seu esplendor. Por ser uma língua mais identificada com a escrita e situações formais e cerimoniosas, dizemos que o latim clássico é mais estável que o vulgar. Sermo Vulgaris, o latim vulgar, é a linguagem do povo, utilizada em suas relações cotidianas. Não há, nessa modalidade, qualquer preocupação com as regras gramaticais, sendo a fala espontânea e regionalizada. Sendo assim, essa modalidade vulgar do latim se renovava frequentemente, assim como acontece com o português falado no Brasil. Por ser regionalizado, as características linguísticas de cada região onde era falado o latim vulgar contribuíram para o desenvolvimento das línguas neolatinas, como o francês, o italiano, o espanhol e o próprio português. Quando os exércitos romanos invadiam uma região, esta era obrigada a assumir a cultura latina, inclusive a língua: essa imposição da cultura e da língua latinas aos povos dominados foi chamada de latinização. A latinização não foi um processo uniforme, pois a época e a duração da ocupação interferiam bastante no nível de apropriação da cultura latina e de manutenção da cultura originária. Assim, podemos pensar a latinização em três camadas: - A primeira é o substrato pré-romano, referente à língua do povo vencido, com tendência a ceder espaço à língua do dominador, restando-lhe poucos traços ou apenas alguns vestígios. - A segunda é o superstrato bárbaro, referente às línguas germânicas, que dominaram a Europa românica por alguns séculos, embora tenham sido romanizadas. - A terceira é o adstrato árabe, referente à língua que coexistiu na península ibérica com a língua local, exercendo grande influência sobre ela. Observe que as transformações nas línguas não são imediatas: podem levar até séculos para que sejam visíveis, tanto no vocabulário como na fonética. A partir do século V, após a decadência do Império, os povos germanos dominaram a península ibérica. Embora fossem os bárbaros os dominadores, preferiram adotar a língua românica como oficial, devido à maioria da população falar o latim vulgar e também à herança cultural latina. Embora essa decisão tenha mantido as línguas românicas em circulação, elas acabaram por sofrer mudanças, principalmente relacionadas a inclusões vocabulares e a empréstimos de alguns sufixos. A partir de 711 d.C. houve uma grande invasão árabe na Península Ibérica e em territórios mediterrâneos. Apesar de não fazer parte das elites românicas nem governar os territórios que ocuparam, os árabes conviveram quase oito séculos ao lado de cristãos latinizados e exerceram grande influência sobre sua língua, cultura e ciência. A principal característica do adstrato árabe foi o bilinguismo: falantes de latim e árabe conviveram e desenvolveram a capacidade de falar as duas línguas. Essas línguas sofreram influência mútua e se enriqueceram, sem uma se sobrepor a outra. Esse enriquecimento da língua se confirma com a expulsão da última leva de mouros da Península Ibérica: mesmo sem a presença árabe nesse território, seus vestígios permanecem nas línguas neolatinas ibéricas até hoje. Por exemplo: no português, em oito séculos, o adstrato árabe contribuiu com cerca de mil vocábulos. As palavras portuguesas de origem árabe tem traços bem característicos, como a presença do artigo ‘al’ no início das palavras. Veja: álgebra, algazarra, almofada, alfaiate.O português surgiu no Norte e foi levado ao Sul pela Reconquista. Foi originado do galego-português medieval, que, por sua vez, foi originado do latim. O primeiro registro que se tem conhecimento é o Testamento de D. Afonso II, datado de 1214 – mesmo ano em que os árabes foram expulsos de Portugal. Observe este trecho do Testamento, em português arcaico: “En’o nome de Deus, Eu rei don Afonso pela gracia de Deus rei de Portugal, seendo sano e saluo, temẽte o dia de mia morte, a saude de mia alma e proe de mia molier raina dona Orraca e de me(us) filios e de me(us) usassalos e de todo meu reino fiz mia mãda p(er) q(ue) depos mia morte mia molier e me(us) filios e meu reino e me(us) vassalos e todas aq(ue)las cousas q(ue) Deu(us) mi deu en poder sten en paz e en folgãcia. Primeiram(en)te mãdo q(ue) mu filio infante don Sancho q(ue) ei da raina dona Orraca agia meu reino enteg(ra)m(en)te e en paz. E ssi este for morto sen semmel, o maior filio q(ue) ouuer da raina dona Orraca agia o reino entegram(en)te e en paz. E ssi filio barõ nõ ouremos, a maior filia que ouuermos agia’o”. E, afinal, foi assim que a língua portuguesa começou! Em mais de 800 anos de história, a língua portuguesa continua viva e assumindo diferentes fonemas, vocábulos e expressões, de acordo com o local onde existe, com a cultura que a abraça e com o povo que a expressa. Mais que uma língua, o português é uma identidade, que faz pessoas – seja de Luanda, Macau ou Amazonas – pensarem e sentirem por meio de um mesmo código. Essa história não acaba por aqui, pois somos eu e você – e nossos amigos, nossos escritores favoritos, nossos filhos e netos – quem vai continuá-la. Elemento Textual – Bloco 2 2. Gramática Histórica A gramática histórica é um estudo diacrônico da língua portuguesa. Estudam-se os processos de transformações de palavras ao longo do eixo histórico. Estudaremos, pois, os metaplasmos. Metaplasmos São as transformações fonéticas sofridas pelas palavras em sua evolução. Estudaremos os metaplasmos ocorridos na passagem das palavras do latim para o português. Eles são de quatro tipos: metaplasmos por aumento, por subtração, por permuta e por transformação. ATENÇÃO: essas alterações são apenas fonéticas, não havendo nenhuma modificação quanto à semântica. 2.1 METAPLASMOS POR AUMENTO A. Prótese É o acréscimo de um fonema no início do vocábulo: stare > estar; spiritu > espírito; scutu > escudo Há uma maneira especial de prótese que é a aglutinação: incorporação do artigo no início do vocábulo: minacia > ameaça B. Epêntese É o acréscimo de um fonema no meio do vocábulo: stella > estrela; humile > humilde; umeru > ombro A epêntese possui uma modalidade que é o suarabácti: intercalação de uma vogal para desfazer um grupo de consoantes: planu > prão > porão; blatta > brata > barata C. Paragoge É o acréscimo de fonema no fim da palavra: ante > antes 2.2 METAPLASMOS POR SUPRESSÃO A. Aférese É a supressão de um fonema no início do vocábulo: acume > gume; attonitu > tonto; episcopu > bispo Caso especial de aférese é a deglutinação: supressão de uma a ou o iniciais por confusão com o artigo: horologiu > orologio > relógio B. Síncope É a supressão de um fonema no meio do vocábulo: legale > leal; legenda > lenda; malu > mau A síncope possui uma modalidade que é a haplologia: supressão da primeira de duas sílabas sucessivas iniciadas pela mesma consoante: bondadoso > bondoso C. Apócope É a supressão de um fonema no fim da palavra: mare > mar; amat > ama; male > mal D. Crase É a fusão de duas vogais iguais em uma só: pede > pee > pé; colore > coor > cor Quando a crase se dá pela junção da vogal final de uma palavra com a vogal inicial de outra, na formação de expressões compostas, recebe o nome especial de sinalefa: de + intro > dentro 2. 3 METAPLASMOS POR PERMUTA Os metaplasmos por permuta (ou transposição) podem dar-se por deslocamento de fonema ou de acento tônico da palavra. A. Metátese Transposição de um fonema na mesma sílaba: semper > sempre B. Hipértese Transposição de um fonema de uma sílaba para outra: primariu > primairo > primeiro C. Sístole É o recuo do acento tônico da palavra: pantânu > pântano D. Diástole É o avanço do acento tônico da palavra: límite > limite 2.4 METAPLASMOS POR TRANSFORMAÇÃO A. Vocalização É a transformação de uma consoante em vogal: nocte > noite B. Consonantização É a transformação de uma vogal em consoante. Dão-se casos de consonantização com as semivogais i e u latinas, que passam, respectivamente, a j e v: Iesus > Jesus; uacca > vaca C. Nasalização É a passagem de um fonema oral a nasal: nec > nem D. Desnasalização É a passagem de um fonema nasal a oral: bona > bõa > boa E. Assimilação É a transformação de um fonema em igual ou semelhante a outro existente na mesma palavra: ipsu > isso F. Dissimilação É a diferenciação de um fonema por já existir outro igual na palavra: liliu > lírio; rotundo > rodondo > redondo G. Ditongação É a passagem de um hiato ou de uma vogal a ditongo: malo > mao > mau; arena > area > areia H. Monotongação ou Redução É a simplificação de um ditongo em uma vogal: fructu > fruito (arc.) > fruto Elemento Textual – Bloco 3 3. Sociolinguística 3.1 Objeto, campo e método A Sociolinguística surgiu da junção da Sociologia (ciência que estuda a sociedade) com a Linguística (ciência que estuda a linguagem), sendo desenvolvida e apresentada nas décadas de 50 e 60, nos Estados Unidos, como a ciência que estuda a relação existente entre a língua e a sociedade. Seu principal iniciador foi William Labov que insistiu arduamente na relação existente entre a língua e a sociedade, possibilitando a sistematização da variação existente especialmente na língua falada. Houve outros estudiosos que também sugeriram esse tipo de estudo, contudo Labov é considerado o principal atuante na elaboração, no desenvolvimento e na divulgação desse modelo teórico-metodológico sociolinguista. O interesse pelas pesquisas surgiu da grande divulgação dos estudos de Comunicação, da necessidade de maior aproximação com outros povos e de conhecimento melhor da própria comunidade. Além de Labov – o principal iniciador desses estudos –, podemos citar ainda como precursores das teorias sociológicas da linguagem nos EUA: Sapir, Bloomfield e Boas, e, modernamente, estudiosos como William Bright, Dell Hymes, J. Fishman, B. Bernstein; entre outros que têm conduzido a Sociolinguística aos mais diversos caminhos, no estudo do que os especialistas americanos costumam chamar de dialeto social, isto é, “habitual subvariedade da fala de uma dada comunidade, restrita por operações de forças sociais a representantes de um grupo étnico, religioso, econômico ou educacional específico” (Preti. 1982). Em suma, a ciência em questão estuda as relações entre as variações linguísticas e as variações sociológicas, analisando as estruturas do pensamento de certas comunidades e da forma como essas articulam linguisticamente sua realidade. Para William Bright (1966), a Sociolinguística tem como finalidade a comparação da estrutura linguística com a estrutura social; trata da diversidade linguística que possui três dimensões: a dimensão do emissor, a dimensão do receptor e a dimensão da situação ou contexto. A primeira envolve a identidade social do emissor ou falante e é exemplificada pelo autor como os “dialetos de classe”, em que as diferenças de fala se correlacionam com a estratificação social (camadas sociais, hierarquiasocial); a segunda, que compreende a identidade do receptor ou ouvinte, seria “relevante onde quer que vocabulários especiais de respeito sejam usados em se falando com superiores”; e a terceira “engloba todos os elementos relevantes possíveis no contexto de comunicação”. Para que haja veracidade na análise dessa relação entre língua e sociedade, o estudo está sempre calcado em exemplos reais de comunicação, colhidos na oralidade por diversos meios: entrevistas, conversas informais, fala observada no cotidiano e assim por diante. Em síntese, o objeto da Sociolinguística é investigar como se relacionam a língua e aquela que a usa como principal meio de comunicação, ou seja, a sociedade. Analisa a variação da língua referindo-se também à variação social, já que uma está ligada à outra e a realidade linguística tem tudo a ver com a realidade das comunidades falantes. O seu campo é aquele em que são consideradas as variantes linguísticas, aquele que crê na linguagem heterogênea, sem desprezar os dialetos (falares diferentes da norma culta), mas sim tentando compreender o porquê de seu emprego. E, por fim, o método conta com a averiguação especialmente da fala e também da escrita, tendo como foco a maneira como elas realmente ocorrem e partindo de exemplos reais e atuais. 3.2 A língua e a unidade na diversidade Comecemos por entender o que é a língua. Língua é o elemento de interação entre o indivíduo e a sociedade em que ele atua. A linguagem surgiu para sanar a necessidade de comunicação dos seres humanos e tem como principal função a expressão da cultura humana. É caracterizada pela sua capacidade simbólica, ou seja, pela capacidade de representar diversas coisas através de símbolos. Somos os únicos capazes de relatar fatos anteriores, de falar sobre objetos ou pessoas que não estão presentes no ato comunicativo, de expressar sentimentos; para isso utilizamos gestos, palavras ou desenhos. É essa capacidade humana de utilizar, na comunicação, “representantes” ao invés das coisas reais que chamamos de capacidade simbólica, pois em lugar de mostrarmos o objeto, a pessoa ou o fato sobre o qual estamos falando, usamos palavras, gestos ou desenhos para fazer a referência desejada. Aqui, abordamos o que diz respeito aos signos verbais, ou seja, às palavras, a comunicação verbal. Durante muito tempo, acreditou-se que a língua, relacionando aqui com qualquer idioma, era homogênea, isto é, que os falantes empregavam ou deveriam empregar a língua de uma mesma maneira, usando as mesmas formas, os mesmo elementos e combinações linguísticas, de acordo com a gramática normativa. Por exemplo, os falantes de língua inglesa, segundo essa concepção, falavam sua língua todos de uma mesma forma; os falantes de língua portuguesa empregavam os mesmos tipos de vocábulos e orações para as mesmas situações; e assim por diante. Não havia a consideração de falares diferentes e quem não empregasse a variante culta (determinada pela gramática tradicional) “não sabia falar”. Contudo, à medida que os estudos linguísticos foram avançando, foi-se constatando que a língua única seria um mito, ou seja, observou-se que a homogeneidade da língua simplesmente não existia. Bagno (1999, página 16) diz que “há uma grande diversidade e variabilidade na língua falada, no português falado no Brasil” e complementa explicando que “a variação é um fenômeno existente em toda língua do mundo; nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico”. Sendo assim, comprovou-se a existência da diversidade linguística, isto é, há o “monolinguismo”, haja vista que todos falam a mesma língua, contudo esse conceito é diferente de “homogeneidade linguística”, já que, embora falem a mesma língua, os falantes não a empregam exatamente da mesma maneira; uma língua pode ser utilizada de forma diversificada e isso não faz com que surjam outras línguas, mas sim variantes integrantes de um mesmo idioma, de uma mesma língua. Por exemplo, a forma “Nóis vai e dispois nóis vorta” é uma variante, bem como “Nós vamos e depois nós voltamos”; ambas comunicam a mesma coisa, mas de uma forma variada, e isso não as faz pertencentes a línguas diferentes e sim a variedades diferentes. Todavia, a diversidade linguística pode sofrer, ou melhor, continua sofrendo a ação de uma força contrária e repressiva: a norma. Apesar da existência comprovada das variedades linguísticas, há ainda a tendência de se querer unificar a língua, pois a sociedade tenta eleger as melhores maneiras de comunicar-se. A língua apresenta grande diversidade, mas a partir do instante em que a comunidade aceita uma forma da língua como seu meio primordial de comunicação, os membros desse grupo pensam que toda e qualquer variação lhe será prejudicial, motivo pelo qual a tendência é manter sua unidade; colaborando todos, consciente ou inconscientemente, no sentido de sua nivelação, pois dessa maneira, de acordo com esse pensamento, a compreensão será mais fácil e a própria integração do indivíduo na cultura dita comum se dará também com maior facilidade, ou seja, paira aqui a ideia da preservação da comunicabilidade. Entretanto, agora é sabido também que as outras variedades, aquelas que não estão de acordo com a norma, também comunicam, ou seja, essa preservação da comunicabilidade não é uma razão convincente para que haja a uniformização da língua, nem para que apenas uma forma da linguagem seja considerada correta. Na verdade, essa não é bem a verdadeira e única razão para o culto à norma e isso será comprovado no capítulo em que a abordaremos mais detalhadamente. O fato é que essa tensão – diversidade X uniformidade – marca principalmente a língua falada, pois, todos nós, como já foi dito anteriormente, consciente ou inconscientemente, na escrita tentamos seguir essa uniformidade linguística estabelecida socialmente, fazendo-a de maneira mais elaborada e formal. Entretanto, a fala, por ser mais espontânea, não é realizada com tanta formalidade e elaboração, principalmente se ocorrer em situações descontraídas, como conversas do dia a dia, bate-papos entre amigos etc. Poucas são as situações formais da fala: discursos, palestras, entrevistas, entre outros. Enfim, o que deve ser levado em conta é que a língua é uma só, contudo o seu emprego não o é; há as variedades linguísticas que mostram a possibilidade de se falar a mesma coisa de maneira diferenciada. Mas, a tentativa de uniformizar a língua gera o prestígio de uma variedade em especial, que é a variedade padrão ou norma culta. No decorrer da disciplina, abordaremos com mais ênfase esse conflito entre a norma – considerada a melhor variedade comunicativa – e as outras variantes linguísticas que, embora se desviem dessa norma, também são válidas na comunicação. O principal aqui, e isso será retomado em muitos momentos durante esse módulo, é saber qual variedade utilizar em determinados contextos de comunicação, ou seja, é saber adequar as variantes de acordo com a situação, os falantes (emissor e receptor) e a mensagem a ser transmitida. Essa é a verdadeira base para que um falante seja competente no uso de sua língua: conhecer as variedades e adequá-las conforme o momento da comunicação, não desprezando nem julgando nenhuma variante, mas sim conhecendo suas particularidades e entendendo que também é correto empregá- las; a questão aqui é quando, com quem e para quê. Para um maior entendimento dessas variedades linguísticas, trataremos, a seguir, das principais variantes, suas características e os fatores que intervêm em seu emprego.3.3 Tipos de variedades linguísticas Vimos até aqui que há um fenômeno bastante marcante na língua: a diversidade linguística, observada principalmente na fala. Há, então, dois fatores marcantes especialmente na língua falada – a norma e o uso. A norma é o padrão linguístico eleito pela sociedade como a melhor forma de se empregar a língua, e o uso é caracterizado pelas variáveis. Mas o que faz surgirem as variantes? Há diversos fatores ditos extralinguísticos, ou seja, fatores observados fora da língua em si, que contribuem para a variação linguística. Esses fatores influem na maneira de falar, envolvendo distinções geográficas, históricas, econômicas, políticas, sociológicas, estéticas. Considerando o diálogo – principal forma de realização da fala – a sociolinguista francesa Françoise Gadet (in: Preti, 1982) elege três tipos principais de variações extralinguísticas: 1. Variações geográficas: envolvem as variações regionais; 2. Variações sociológicas: compreendem as variações provenientes da idade, sexo, profissão, nível de estudos, classe social, localização dentro da mesma região, raça, as quais podem determinar traços originais na linguagem individual; 3. Variações contextuais: tudo o que pode determinar diferenças da linguagem do locutor, por influências alheias a ele, como, por exemplo, o assunto, o tipo de ouvinte, o lugar em que o diálogo ocorre e as relações que unem os interlocutores (amizade, parentesco, relações de trabalho, etc.). O sociolinguista português J. G. Herculano de Carvalho (in: Preti, 1982), tratando da individualidade do saber lingüístico, apresenta um quadro das variedades de língua em dois grandes grupos: 1. Variedades sincrônicas: são cronologicamente simultâneas, observáveis num mesmo plano temporal; abrangem as variações causadas por fatores geográficos (falares próprios de determinadas regiões), sócio-culturais (de acordo com a família, a classe, o padrão cultural, as atividades habituais) e estilísticos (adequação da forma da língua à situação comunicativa); 2. Variedades diacrônicas: são aquelas dispostas em vários planos de uma só tradição histórica, ou seja, aquelas observadas no decorrer do tempo dentro da história daquela língua e daquela comunidade que a emprega; Outro sociolinguista – Otto Jespersen (in: Preti, 1982) – complementa tudo isso dizendo que a fala do indivíduo (considerado isoladamente dentro do grupo) não é sempre a mesma; seu tom na conversação e, com ele, a escolha de palavras muda segundo a camada social em que se encontra no momento, e a linguagem toma um colorido diferente conforme o tema da conversação: há um estilo para a declaração de amor, outro para a declaração oficial, outro para a negativa ou repreensão e assim por diante. O indivíduo não sabe apenas falar, mas sabe também como os outros falam, mesmo não utilizando os “termos” dos outros. Diante do que foi dito até agora, isto é, das considerações acerca dos fatores extralinguísticos que geram as variedades, utilizaremos em nossos estudos e análises os quatro principais tipos de variedades lingüísticas apresentados por Coseriu (1980), que também podem ser identificadas nos estudos dos sociolinguistas abordados anteriormente: 1. Variedades diatópicas ou geográficas: são ocasionadas por fatores geográficos, de acordo com a região. São responsáveis pelos dialetos ou falares locais. Ex.: dialeto rural, urbano, carioca, etc. 2. Variedades diastráticas ou socioculturais: são responsáveis pelos socioletos (dialetos sociais), ocorrem dentro da linguagem de uma comunidade específica e são ocasionadas por fatores sociais como: a) Idade: há variações entre os socioletos adulto, infantil e jovem. O último é marcado principalmente pelas gírias; b) Sexo: há diferenças entre os socioletos masculino e feminino; c) Raça (ou cultura): variações linguísticas ligadas a fatores etnológicos. Ex.: no Brasil são sensíveis essas influências nos falantes que residem em zonas de maior imigração negra. d) Profissão: vocabulário condizente com a atividade, pois há termos específicos de cada profissão. Ex.: advogado, médico, vendedor ambulante, etc. e) Posição social: o idioleto (saber lingüístico individual) varia de acordo com a cultura, posição social e instrução. Ex.: há diferença entre o falar de um executivo e de um operário. f) Grau de escolaridade: diz respeito ao socioleto culto e ao socioleto popular. O culto se prende às regras da gramática tradicional e normativa; por ser considerado o padrão linguístico, tem maior prestígio na sociedade e é utilizado por falantes cultos em situações mais formais, valendo-se de um vocabulário mais amplo e técnico, e de uma sintaxe mais complexa. O dialeto social popular é visto como um subpadrão linguístico, de menor prestígio na sociedade. É usado em situações menos formais por falantes menos cultos. Está em desacordo com as normas da gramática tradicional, sendo marcado pelas transformações da linguagem oral do povo, simplificação sintática, vocabulário mais restrito e também gírias e linguagem obscena. 3. Variedades diacrônicas: são devidas ao fator tempo, ou seja, ocorrem paulatinamente, com o passar do tempo. Ex.: vossa mercê – vosmecê – vancê – você – ocê – cê. 4. Variedades diafásicas: ocorrem devido à situação de comunicação. Os fatores situacionais dizem respeito às circunstâncias criadas pela própria ocasião, lugar e tempo em que os atos de fala se realizam, e também às relações que unem falante e ouvinte no momento do diálogo, como grau de intimidade, variação do tema e elementos emocionais. É fácil perceber as diferenças entre a fala de uma entrevista profissional e a fala de um batepapo com amigos. Essas variações determinadas pela situação são chamadas de níveis de fala ou registros e podem ser de duas espécies: nível de fala ou registro formal, usado em situações formais; e nível de fala ou registro informal ou coloquial, usado em situações informais. Podem também receber o nome de variedades estilísticas, no sentido em que o usuário escolhe, de acordo com a situação, um estilo que julga conveniente para transmitir o seu pensamento. Essas são as principais variedades observáveis em nossa língua. Notemos como a língua está realmente ligada à sociedade que a utiliza como instrumento de comunicação e, apesar de ser uma mesma língua, esta não é uniforme. Há uma grande diversidade e variabilidade em todos os idiomas existentes. Como essa variabilidade ocorre mais na língua falada, que é espontânea, realizada oral e auditivamente, num continuum sonoro que conta com entonação, ritmo, intensidade, dinâmica; e também com vários meios auxiliares, como a expressividade facial, a postura e os aspectos situacionais; veremos agora algumas das características mais relevantes da linguagem verbal, que embora sejam consideradas incorretas conforme a gramática normativa, elas têm uma razão para existirem. Muito pode ser entendido com as variedades que acabamos de apresentar, mas há outras particularidades que vale a pena serem ressaltadas e que nos ajudarão a compreender e analisar a fala, lembrando sempre que estas podem também ser identificadas na escrita que se desvia da norma culta. 3.4 CARACTERÍSTICAS DA LÍNGUA FALADA Antes de apresentá-las, importa considerar que o falante contemporâneo tem a necessidade de uma comunicação rápida e eficiente, isto quer dizer falar estritamente o necessário de forma objetiva e breve. Isso gera a principal e mais marcante característica da oralidade da língua que é a economia. O desejo de poupar a língua ao máximo faz com que haja a redução, exclusão ou modificação de certas formas.Abordaremos as características que, ao nosso ver, são as mais marcantes. 1. Redução das marcas de plural Aqui as marcas de plural são consideradas redundantes e repetitivas. Na rapidez da oralidade, elas tendem a desaparecer. Na comunicação, para informar a existência de plural, o falante marca uma só palavra, por exemplo, ao invés de falar “os meninos bonitos”, diz-se “os menino bonito”. Essa exclusão do plural de alguns vocábulos não interfere em nada no sentido do enunciado que é assimilado perfeitamente. 2. Simplificação da conjugação verbal Aqui, é levado em consideração o fato de a pessoa já estar indicada na forma pronominal, não havendo a necessidade de se conjugar o verbo para que o ouvinte entenda de quem se está falando. Esse é, aliás, um fenômeno parecido com a eliminação das marcas de plural, pois também são eliminadas as redundâncias. Sendo assim, há somente duas variações verbais: a primeira e terceira pessoa do singular, que resultam em conjugações como: eu amo, tu/você ama, ele/ela ama, nós/a gente ama, vocês ama (em lugar de vós, usado mais no discurso religioso), eles ama. Às vezes pode acontecer de haver a terceira pessoa do plural e uma concordância verbal mais referente à gramática normativa, porém com itens absorvidos pela fala, como por exemplo: eu amo, você ama (ao invés da forma tu), ele ama, a gente ama (que é muito mais empregado do que nós), vocês amam (o vós também pode ser considerado forma arcaica, já que não é utilizado na oralidade), eles amam. 3. Desnasalização da vogal postônica Este também é um item marcante na língua falada. Ocorre quando o som nasal das vogais que estão depois de uma sílaba tônica é eliminado, havendo assim a redução do ditongo nasal (ditongo porque na pronúncia de “em”, por exemplo, há a o som da vogal “e”, da semivogal “i”, mais o nasal, ficando algo com “eim”). Esse fenômeno pode ser observado quando as pessoas falam home, onte, virge e garage ao invés de homem, ontem, virgem e garagem. 4. Nasalização da consoante linguodental Esse fator é visto quando as pessoas conjugam verbos na forma nominal ‘gerúndio’, dizendo falano, cantano e comeno em vez de falando, cantando e comendo. Às vezes isso ocorre também com o advérbio quando, que é pronunciado quano. É uma tendência bem forte na língua portuguesa falada no Brasil e pode ser explicada. Os fonemas /n/ e /d/ são consoantes linguodentais – produzidas com o contato do ápice da língua com os dentes superiores – e por serem produzidas no mesmo ponto de articulação, isto é, no mesmo lugar dentro da boca, sofrem o que se chama de assimilação. A assimilação é a força que tenta fazer com que dois sons diferentes, mas com algum parentesco, se tornem semelhantes. Nesse caso, há a nasalização do /d/. Mais raramente pode ocorrer também a nasalização na bilabial /b/, como também que às vezes é pronunciada como tamém. 5. Redução do ditongo ou monotongação Aqui também a assimilação, ocorrendo a redução do ditongo OU em O e do ditongo EI em E. A escrita ainda mantém esses ditongos tal como dita a gramática normativa, mas na realidade falada, são pronunciados como O e E, como as palavras louco, outro beijo e brasileiro, pronunciadas normalmente como loco, otro, bejo e brasilero. 6. Eliminação do –r final Na rapidez da fala, um outro fenômeno bastante comum é a eliminação do –r final das palavras. Por exemplo, o verbo estar geralmente é sintetizado para tá, assim temos: eu tô, tu/você tá, nós tamo ou a gente tá, vocês tão, eles tão. E na forma infinitiva dos verbos de todas as conjugações, o –r final não é pronunciado pelo falante, por exemplo, os verbos amar, vender e partir são falados como amá, vendê e partí. Essa eliminação também ocorre em outras palavras e não só nos verbos; os substantivos amor e radar são geralmente pronunciados como amô e radá. 7. Rotacização ou rotacismo Há, na Língua Portuguesa, uma tendência natural em transformar em R o L dos encontros consonantais e é essa troca do L pelo R que é chamada de rotacização ou rotacismo. Este fenômeno sempre ocorreu, desde a passagem do latim para o português, como sclavu > escravo e pôde ser observada inclusive em Camões (“Doenças, frechas, e trovões ardentes” – em Os Lusíadas, X, 46) e Machado de Assis (que escrevia froco em vez de floco) Como exemplo, temos as palavras chiclete, globo, Cláudia e planta que podem ser ditas como chicrete, grobo, Cráudia e pranta. 8. Assimilação da consoante lateral pela semivogal É conhecido também como transformação de LH em I, ou seja, ocorre quando as pessoas dizem trabaio e teia ao invés de trabalho e telha. Aqui também há o fenômeno da assimilação, em que há a troca de um fonema por outro mais fácil de articular; no caso o fonema /λ/ (que representa o som “lhê”) – produzido com o dorso da língua tocando o palato – é articulado muito perto do ponto onde é produzida a semivogal /j/ (como em pai, por exemplo). Portanto, por serem fonemas próximos, o mais fácil acaba substituindo o mais complexo e assim surgem formas como abêia, veio e fia como variantes das palavras abelha, velho e filha. 9. Hipercorreção Aqui temos o caso em que as pessoas, na tentativa de “acertar” o emprego da língua – visando seguir o que prescreve a gramática tradicional – acabam corrigindo demais. A hipercorreção é usada geralmente pela classe média da sociedade. Exemplos: femenino, previlégio, fazem anos que não fumo, tinha chego (confusão no uso dos particípios dos verbos abundantes, que possuem dois particípios: um regular e outro irregular), uso excessivo do sufixo –érrimo que forma superlativos, como lindérrima, chiquérrimo, ect. 10. Arcaísmo Arcaísmos são heranças, vestígios de outros tempos, ocorrências de formas linguísticas antigas. O português falado na Europa foi se modificando com passar do tempo, como ocorre com todas as línguas; contudo essa mudança ocorreu mais lentamente com o português da América, pois este acabou conservando alguns aspectos da língua – fonéticos, morfológicos, lexicais – que iam desaparecendo pouco a pouco do português europeu. A norma-padrão brasileira, apresentada pela gramática normativa tentava – e ainda tenta – seguir as normas do português padrão de Portugal, mas a língua falada comprova bem essa diferença entre um e outro. Exemplos de arcaísmos empregados na linguagem oral são verbos iniciados com –a (vivos nos falares regionais, rurais, não-padrão), como alembrar, amostrar e alumiar; essas formas foram inclusive utilizadas por Camões (“A noite negra e feia,se alumia”; “Andar-lhes os cães os dentes amostrando”). No latim, havia a preposição ad, que deu origem à nossa preposição a; dentre suas várias funções, ela podia ser usada como prefixo para formar novos verbos. Em muitos casos, ela perdia o d final, que era assimilado pela consoante seguinte; ex.: ad + préndere = appréndere (aprender). No português falado no Brasil ainda há essa tendência de se falar alguns verbos com –a antes deles, sem que eles o tenham na realidade. Outros arcaísmos encontrados na fala são: entonce, despois e escuitar, tão comuns na fala dita “caipira”. Todavia, são arcaísmos por serem formas mais próximas do latim: entonce vem do latim in tunce; despois vem de de ex post e escuitar vem de ascultare. Um outro exemplo de arcaísmo é o emprego da preposição em regendo verbos de movimento: vou no cinema, cheguei em casa. A norma padrão pede o uso da preposição a: vou ao cinema, cheguei a casa. 11. Pronome oblíquo usado como sujeito Aqui, há o emprego do pronome MIM como sujeito de infinitivos. É o que acontece quando as pessoas falam orações do tipo para mim fazer ao invés de para eu fazer.A explicação mais coerente diz que há a influência da preposição para, que atrai o pronome oblíquo; há inclusive uma regra que diz “depois da preposição, pronome oblíquo”, porém ela serve para orações como trouxe um livro para mim. Para este caso há uma outra regra: “na função de sujeito de um verbo, o pronome deve figurar no caso reto”. Entretanto, os falantes tendem a generalizar a primeira regra e é por isso que esse tipo de oração é empregado. Apresentamos então algumas das principais características da linguagem falada. Vale lembrar que muitas delas não ocorrem somente na fala das pessoas que utilizam a norma não-padrão; são observadas também na realidade oral da norma padrão. E ainda, podem se encontradas na escrita de algumas pessoas que não empregam as regras da norma culta. 3.5 NORMA E VARIAÇÃO Retomando um pouco do que já foi dito, vimos que há a norma e o uso como duas ideias um pouco contrárias, haja vista que a norma é o padrão linguístico considerado a melhor forma da língua; e o uso, as variáveis, ou seja, a variação linguística, que foge muitas vezes a esse padrão. Mas o que seria realmente a norma? De acordo com uma perspectiva linguística – teoria de Eugenio Coseriu (1980) – norma linguística é “um sistema de realizações obrigadas, de imposições sociais e culturais e varia segundo a comunidade”. A norma é aquilo que já se realizou e, teoricamente, sempre se realizará no grupo social; é a tradição a qual todos estão submetidos e obedecem sem sentir. Quando há qualquer tentativa de ruptura dessa tradição, há reação. Já conforme a perspectiva pragmática de Rey (1972) há uma norma do falar objetivo, da língua efetivamente realizada nos diversos grupos sociais, chamada norma objetiva, segundo a qual entendemos que cada grupo tem sua própria norma e que, consequentemente, há tantas normas quantos grupos sociais houver. Há a norma prescritiva, cujo objetivo é impor um uso extraído da língua literária de épocas sempre anteriores a dos falantes contemporâneos. Essa norma, por estar codificada e ser a de maior prestígio dentro da comunidade linguística, é a única que condiz com os objetivos político-pedagógicos da escola. E há ainda a norma subjetiva que é o ideal de língua a que todos os falantes aspiram. Por fim, Aléong (1983), em uma perspectiva sócio-antropológica, diz que há uma norma explícita, codificada e divulgada por um aparelho de referência, integrado pela escola, alguns tipos de gramáticas e dicionários. E normas implícitas que são próprias de cada grupo social e, na medida do possível, tão mutáveis quanto eles. Infelizmente, essas normas características de diversos grupos sociais não são prestigiadas, pois a sociedade normalmente procura manter e seguir um só padrão linguístico – a norma culta – visando à uniformização e nivelamento da língua, como já vimos anteriormente. Todavia, a variação existente na língua falada é visível e não pode ser ignorada, bem como as mudanças que ocorrem paulatinamente em nosso objeto de comunicação. Na verdade, a norma é resultado do uso linguístico de um dado segmento social e esse uso, por ser tradicional, é preservado, ou seja, a norma determina o uso, mas também é influenciada por este, já que quando algum termo é muito usado e, por isso, é reconhecido pela norma, passa a fazer parte desta. Vale esclarecer que a passagem do uso para a norma não é automática. Entre aquele e esta há um estágio intermediário a que Coseriu (1980) denomina adoção, isto é, toda inovação tem primeiro de ser aceita e imitada pelos falantes de um determinado grupo social e depois se transforma em uso. Pela divulgação, esses uso, por meio dos falantes no desempenho de seus diversos papéis sociais, pode ser adotado e se transformar em norma. Embora a mudança seja um fato normal na língua, não deixa de incomodar os falantes que seguem a norma. Surge, assim, o sentimento de que a língua está em decadência, ao invés do reconhecimento de seu constante movimento, e o esforço por sua unidade continua sendo almejado e propagado principalmente pela escola, pela literatura e pelos meios de comunicação. Dessa forma, temos estão a variedade padrão ou português padrão (PP) e a sua variação representada pela variedade não-padrão ou português não-padrão (PNP). Sintetizando, o português padrão (norma culta) é considerado o padrão linguístico, tem maior prestígio na sociedade, é utilizado em situações mais formais (como palestras, entrevistas, telejornais, etc.), é mais empregado pelos falantes cultos (da elite, ou seja, pela minoria da sociedade), é baseado na literatura clássica e na linguagem escrita, possui uma sintaxe mais complexa, apresenta um vocabulário mais amplo e também técnico, tem uma ligação maior com a gramática normativa e com a língua dos escritores, sendo mais conservador. Já o português não-padrão (variantes da norma culta, variante popular) é considerado um subpadrão linguístico, tem menor prestígio na sociedade, é utilizado em situações mais coloquiais e informais (como conversas entre amigos, bate-papos do dia-a-dia), é mais empregado pelos falantes menos cultos (pelo “povo”, ou seja, pela maioria da sociedade), é mais popular e é encontrado em ambientes e materiais também mais populares (como a literatura de cordel, músicas populares), possui uma sintaxe mais simplificada, apresenta um vocabulário mais restrito, emprega com mais frequência as gírias e a linguagem obscena (palavras vulgares, conhecidas como “palavrões”), está fora dos padrões da gramática tradicional, estando mais aberto às transformações da linguagem oral. Na fonologia também há diferenças por vezes marcantes, mas também ocorrem muitas semelhanças entre as duas variedades (vide as características da língua falada apresentadas no bloco anterior a este). Vale ressaltar mais uma vez que não há variante certa ou errada; não se pode julgar a norma como a única correta da língua e a variação como algo incorreto e inadmissível. O papel principal da língua – e isso vale para qualquer idioma – é a comunicação, isto é, a língua ou a forma como ela é empregada será considerada eficiente se for capaz de transmitir a mensagem desejada pelo emissor ao receptor, fazendo com que este a compreenda. Esse é o fator mais importante do ato comunicativo: fazer-se entender, atingir sua intenção comunicativa e expressar o que se almeja. O que é importante aqui é saber qual o momento ideal para o emprego de cada uma das variedades – a variedade padrão e a variedade não-padrão –, visto que há momentos em que uma é mais adequada, enquanto há outros em que é de melhor tom o emprego da outra. É preciso ter bom senso para saber distinguir qual o momento mais propício ao uso de cada uma delas. É importante que fique claro que na língua, não há feio ou bonito, nem certo ou errado; tudo depende dos falantes, da mensagem, do contexto e da intenção comunicativa. 3.6 LABOV E A TEORIA DA VARIAÇÃO LINGUÍSTICA William Labov, formado em Harvard, exerceu a princípio a profissão de químico, mas doutorou-se sob a direção de Uriel Weinreich, na Universidade de Colúmbia, onde passou a lecionar até 1970, no Departamento de Linguística. Depois dessa data, transferiu-se para a Universidade da Pensilvânia, Departamento de Linguística e Psicologia, e Centro de Etnografia Urbana. É o nome mais influente da ciência e disciplina Sociolinguística – nosso objeto de estudo –, sobretudo em sua vertente conhecida como “Sociolinguística Variacionista”, da qual é considerado o fundador. Sua metodologia de coleta e análise de dados empíricos (isto é, dados baseados em experiências) e as inovaçõesteóricas que introduziu na linguística contemporânea fizeram surgir um novo campo de pesquisa e reflexão sobre as relações entre estrutura linguística e estrutura social. Suas obras mais importantes são: Sociolinguistic Patterns (1972), Language in the Inner City (1972), Principles of Linguistic Change (vol. 1, 1994; vol 2, 2000). Sua publicação mais recente, junto a colaboradores, é a do Atlas do Inglês Americano (Atlas of American English, 2006). Portanto, o americano Labov é o iniciador do modelo teórico-metodológico da “teoria da variação linguística”, que se propõe a sistematizar as variantes linguísticas usadas por uma mesma comunidade de fala e tem como objeto o vernáculo (a língua oral). Isso não quer dizer que ele seja o primeiro sociolinguista a surgir no campo da investigação linguística, haja vista que modelos anteriores o inspiraram no desenvolvimento dessa nova teoria. Em meados da década de sessenta, o linguista William Bright se esforçava em especificar o conteúdo da Sociolinguística, estabelecendo relação entre língua e sociedade e afirmando que o objeto de estudo dessa ciência é a diversidade linguística, entretanto, foi Labov, no início da década de setenta, quem se sobressaiu com seus estudos visando à descrição da heterogeneidade linguística e à influência de fatores sociais sobre a língua, estudos que fizeram dele o mais renomado representante dos estudos da heterogeneidade da língua. O fato é que o seu modelo de análise apresenta-se como uma reação de ausência do componente social no modelo gerativo de Chomsky (com o qual trabalhava), sendo ele aquele que voltou a insistir na relação entre língua e sociedade e na possibilidade de efetuar a sistematização da variação existente e até da própria língua falada, pois até então somente a língua escrita havia sido sistematizada no que convencionalmente chamamos de gramáticas. Seu primeiro estudo foi em 1963 sobre o inglês falado na ilha de Martha’s Vineyard, no Estado de Massachusetts, nos Estados Unidos (artigo em Word, 19, 1963: “The social motivation of a sound change”). Depois desse, outros ocorreram: estudos sobre a estratificação social do inglês falado na cidade de Nova Iorque, em 1966 (“The social stratification of English in New York City”, 1966); a língua do gueto – estudo sobre o inglês vernáculo dos adolescentes negros de Harlem, Nova Iorque; estudos sociolinguísticos da Filadélfia, entre outros. Vale lembrar que quando falamos em vernáculo, estamos nos referindo à língua falada em situação natural de comunicação, presente especialmente nas narrativas de experiência pessoal (veremos esse assunto mais adiante). O modelo de análise linguística proposto por Labov é chamado também de “Sociolinguística Quantitativa”, pois opera com números e estatísticas dos dados coletados em pesquisas. É interessante salientar que, no começo, o autor rejeitou o termo “Sociolinguística”, por considerar a Linguística uma ciência sempre social, mas depois acabou aceitando a nomenclatura. Os objetivos de seu estudo, de sua “teoria da variação linguística” são: a) descrição da contínua variação linguística; b) estudo dos correlatos subjetivos da variação; c) estudo das causas da diferenciação linguística; d) investigação do mecanismo da mudança. Alguns dos conceitos de sua teoria são: • Variável: conjunto de variantes; • Variante: diversas maneiras de se dizer a mesma coisa, com o mesmo valor de verdade, ou seja, duas ou mais alternativas possíveis; • Variável dependente: quando o emprego das variantes não é aleatório, mas influenciado por um grupo de fatores sociais ou estruturais; • Variável independente: justamente o grupo de fatores influentes (ou condicionadores); pode ser variável independente interna (fatores linguísticos que influenciam a variação, como a tendência do português do Brasil a destravar a sílaba inicial de palavras que possuem o “P mudo”, como “peneu”, “pisicologia”) ou variável independente externa (fatores extralinguísticos como classe social, local em que o falante reside, idade, sexo, profissão, entre outros). Sua proposta é quase toda baseada em pesquisas de campo, com metodologia rigorosa: 1) Seleção de informantes; 2) Definição do número de variáveis independentes (numa pesquisa em três grandes lojas de Nova Iorque, por exemplo, foram estabelecidos loja, sexo, idade, ocupação, raça e sotaque estrangeiro); 3) Tentativa de determinar os valores das variáveis linguísticas (dependentes) utilizadas (os indicadores, variáveis dialetais, os marcadores, variáveis estilísticas, os estereótipos, formas fixas e estigmatizadas). No estudo sobre a fala do Lower East Side, da cidade de Nova Iorque, Labov escolheu cinco variáveis fonológicas. 4) Utilização do método de entrevista sociolinguística, principalmente coletando narrativas de experiências pessoais (estudaremos com mais detalhes no próximo capítulo); 5) Labov estabelece a estrutura das narrativas orais com os seguintes componentes: resumo, orientação, complicação da ação, resolução da ação, avaliação e coda (conclusão). Além da coleta de dados diretos, recorre a três medidas: 1. Teste de avaliação subjetiva: são apresentadas ao informante diversas versões de uma frase, a fim de se observar quais são rejeitadas por ele. A classe baixa, insensível à valoração sociolinguística (prestígio da norma culta), deve apresentar o mínimo de rejeição às formas não-padrão; a classe média rejeita muito as formas estigmatizadas e é isso que a leva cometer hipercorreções; 2. Teste de sensibilidade quanto ao próprio discurso: o informante, ao ouvir várias versões, deve assinalar a pronúncia mais próxima da sua. O maior número de escolhas geralmente recai sobre a forma padrão; 3. Teste de insegurança linguística: o informante deve assinalar a pronúncia “correta” e aquela que ele efetivamente utiliza. A classe média apresenta o maior grau de insegurança linguística. Em algumas pesquisas, as mulheres mais do que os homens. Labov usa os dados coletados por meio das entrevistas para a elaboração de seus estudos teóricos, ou seja, vai da prática para a teoria. Por fim, conclui-se que o mérito da obra de Labov é indiscutível, podendo-se destacar que: • É considerado o “pai” da Sociolinguística (com a “teoria da variação linguística”), instituindo o estudo científico da variação linguística; • Incluiu a variedade linguística como parte do estudo do sistema linguístico; • Conseguiu descrever variedades linguísticas através de suas pesquisas e análises das mesmas; • Estabeleceu a ideia de que a comunidade se define como tal conforme se organiza em torno de uma variedade linguística, ou seja, aqui está a ideia de que as variedades têm a ver com a realidade das comunidades que as empregam, auxiliando em sua caracterização. Em suas pesquisas, alguns pontos constituem contribuições relevantes: 1. Alguns grupos insistem em suas variáveis para estabelecimento e manutenção de identidade, como quando um grupo se recusa a seguir a variável prestigiada; 2. As atitudes de hipercorreção não constituem variação, e sim uma distorção; 3. A reação da classe alta, diante das transformações da língua (formas nãopadrão), tende a recuperar a variedade antiga (mais tradicional), bem como impô-la; 4. A classe média, almejando se igualar à classe alta, não consegue uma identidade própria; 5. As línguas se inovam, mas mantêm-se coesas, porque as variações e mudanças são inerentes e motivadas. E mais, a variabilidade linguística não é caótica, mas passível de sistematização, pois existe regularidade na variação. Muitos desses conceitos presentes na teoria laboviana serão ainda revistose desdobrados um pouco mais ao longo desse material de estudo. Constam a seguir mais algumas considerações acerca da variável e das variantes linguísticas, bem como algumas pormenorizações das pesquisas e estudos realizados pelo “pai” da Sociolinguística e autor da “teoria da variação linguística”: William Labov. 3.7 UM POUCO MAIS SOBRE A VARIÁVEL E AS VARIANTES LINGUÍSTICAS Em toda comunidade de fala são frequentes formas linguísticas em variação. A essas formas em variação dá-se o nome de “variantes”. “Variantes linguísticas” são diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo sentido, o mesmo valor de verdade. A um conjunto de variantes dá-se o nome de “variável linguística”. Por exemplo, no português falado do Brasil, a marcação de plural em um sintagma encontra-se em estado de variação, ou seja, um exemplo de variável linguística é a marcação do plural num sintagma. O que demonstra essa variação é a presença do segmento fônico /s/ ou sua ausência (/Ø/), que, em geral, indica o plural dos vocábulos. Portanto, no caso dos sintagmas temos uma variação. O plural do português conforme a gramática normativa é marcado redundantemente ao longo do sintagma, isto é, a marca de plural está presente em todos os elementos do sintagma; contudo pode ocorrer a ausência dessa marca em alguns do vocábulos do sintagma. Tendo como exemplo um sintagma nominal (constituído por um determinante, um nome/núcleo e um adjetivo), a variação na marcação do plural pode ocorrer nas seguintes maneiras: 1. oS meninoS espertoS 2. oS meninoS espertoØ 3. oS meninoØ espertoØ Em (1), o falante marcou todos os elementos do sintagma com o /s/ indicador de plural, conforme a norma culta da língua. Em (2) as marcas ocorrem no determinante e no nome/núcleo, tendo a variação /Ø/ no adjetivo, isto é, há um desvio da norma culta. Em (3), a marca é empregada somente no primeiro elemento do sintagma, fato bem característico da norma não-padrão. Nos dois últimos sintagmas apresentados, há variação do plural; na norma não-padrão, o mais comum é eliminar as marcas de plural, que é, geralmente, indicado somente no primeiro vocábulo do sintagma (nesse caso, somente no determinante “oS”). Aqui já temos um exemplo de sistematização da variação linguística: no português não-padrão há essa espécie de regra, dizendo que é necessário marcar apenas o primeiro elemento do sintagma para demonstrar que todo o contexto está no plural. Vale ressaltar que conclusões como essa só são definidas após um levantamento generoso de dados da língua falada, a descrição detalhada da variável existente, a análise de possíveis fatores que causam o uso de uma variante, o encaixamento da variável no sistema linguístico e social da comunidade que a emprega, e a projeção histórica da variável no sistema sociolinguístico da comunidade, isto é, como ela surgiu ao longo da história linguística e social daquela comunidade. Após tudo isso é que se pode sugerir a sistematização de regras que compõem determinado sistema. Nesse caso, há a regra da eliminação das marcas de plural redundantes na variedade não-padrão do português, que indica como relevante a marca de plural apenas no primeiro elemento do sintagma em questão. As variantes de uma comunidade geralmente apresentam estas principais oposições: padrão versus não-padrão, conservadoras versus inovadoras e estigmatizadas versus de prestígio. Na verdade, essas características estão relacionadas, pois a variante padrão é conservadora e prestigiada socialmente, enquanto as variantes não-padrão são normalmente inovadoras e estigmatizadas. Vale lembrar que aquela procura seguir as regras ditadas pela gramática normativa e estas apresentam as transformações da língua, realizando principalmente uma língua econômica e objetiva. Utilizando o exemplo citado anteriormente – sobre a marcação de plural no português falado no Brasil – a variante que marca todos os vocábulos do sintagma com o /s/ é padrão, conservadora e de prestígio. As outras que não marcam o plural de todos os vocábulos são estigmatizadas, inovadoras e não-padrão. Labov, em seu estudo sobre o inglês falado na cidade de Nova Iorque, observou duas maneiras diferentes de se pronunciar o fonema /r/ pós-vocálico (ou seja, que está posicionado após uma vogal em determinado vocábulo). Essas duas formas são: a presença do fonema /r/ versus sua ausência em contextos iguais. Por exemplo, no final de palavras, como car, o /r/ era expresso ou apagado; e o mesmo ocorria no meio de uma palavra, travando uma sílaba, como no vocábulo cart, em que o /r/ era expresso ou eliminado na fala. Os resultados da análise demonstraram que a ausência do fonema /r/ é estigmatizada socialmente e a sua presença é considerada a variante de prestígio; e também pode-se concluir que ao status social mais elevado de um falante corresponde o uso mais frequente do /r/. Mas, a verdade é que não há nenhum fator inerente ao /r/ pós-vocálico que o faça bom ou ruim, certo ou errado. Trata-se apenas de uma questão de atitude linguística dos membros de uma comunidade e isso pode ser comprovado com o fato de na Inglaterra ocorrer o contrário, ou seja, lá a pronúncia do /r/ pós-vocálico é que é estigmatizada socialmente. E, de acordo com uma perspectiva histórica, até a Segunda Guerra Mundial era a ausência do /r/ a variante prestigiada em Nova Iorque, sendo sua pronúncia estigmatizada socialmente. Os resultados das pesquisas e análises de Labov também o levaram a concluir que a pronúncia do /r/ pós-vocálico, ao obter prestígio social, tende a ser exagerada, principalmente no emprego da língua pela classe social médio-alta e pelos falantes de faixa etária mais jovem. Contudo, pode ocorrer o exagero de variantes desprestigiadas. Em seu trabalho, no ano de 1963, sobre o inglês falado na comunidade de Martha's Vineyard, no Estado de Massachusetts (Estados Unidos), Labov apontou a variação da pronúncia da vogal-núcleo dos ditongos /aw/ (house) e /ay/ (light), devido a mudanças sociais dramáticas decorrentes da invasão de veranistas do continente. Lá, a variante conservadora – isto é, mais empregada – era a estigmatizada e não-padrão, era a pronúncia da vogal-núcleo como em bird, seguida do /w/ e/ou /y/, conforme a palavra. A forma padrão (semelhante ao inglês padrão) era a forma trazida pelos invasores. Ou seja, a variante conservadora, porém não-padrão e estigmatizada era a mais forte na comunidade, que, sofrendo com a invasão e exploração econômica dos veranistas, usava atitudes linguísticas para caracterizar e demarcar seu espaço, sua identidade cultural, seu perfil, seu grupo. Outro exemplo de distinção de grupos são as gírias que, geralmente, caracterizam grupos de falantes (surfistas, skatistas, punks, rappers, internautas, etc.) e também os vocabulários específicos de profissões (vocabulário jurídico, médico, de mecânica, entre outros). Portanto, vê-se que há uma relação entre a variação linguística e a dinâmica social, ou seja, o prestígio ou o estigma de determinadas formas dependem de fatores ligados à comunidade, às condições histórico-culturais da época, à questão da classe social, entre outros. E a língua pode ser um fator muito importante na identificação de grupos, marcando diferenças sociais dentro de uma mesma comunidade. 3.8 A PESQUISA SOCIOLINGUÍSTICA Primeiramente, é relevante frisar que toda ciência tem uma teoria própria, um objeto de estudo específico e um método que lhe é característico. Já vimos um pouco sobre esses três elementos na Sociolinguística, mas focaremos com mais detalhes aqui o seu objeto de estudo e como este é obtido, ou seja,qual o método de investigação e análise. Comecemos pelo objeto de estudo dessa ciência que estuda a relação entre língua e sociedade: a língua falada, também conhecida como o vernáculo. Tarallo (1986, p.19) a define como “o veículo linguístico de comunicação usado em situações naturais de interação social, do tipo comunicação face a face”, complementando que “é a língua que usamos em nossos lares ao interagir com os demais membros de nossas famílias; é a língua usada nos botequins, clubes, parques, rodas de amigos; nos corredores e pátios das escolas, longe da tutela dos professores; é a língua falada entre amigos, inimigos, amantes e apaixonados”. Em síntese, a língua falada ou vernáculo trata-se da expressão de fatos, pensamentos e ideias sem que haja a preocupação de como enunciá-los, pois nesses momentos – naturais – é prestado o mínimo de atenção à língua e em como ela é empregada, enunciada. As partes que constituem esse discurso falado é que compõem o material básico para a análise sociolinguística. Vejamos agora como o vernáculo, para fins de estudos sociolinguísticos, é coletado. Primeiramente, para a análise sociolinguística é necessária uma grande quantidade de dados, haja vista que esse modelo em questão é de natureza quantitativa e para se chegar a resultados quantitativos e estatisticamente significativos precisa-se de muito material de análise. A representatividade do corpus (material selecionado para análise) será sempre avaliada conforme a variável estudada e os objetivos centrais do estudo em questão. E já que a pretensão é estudar a língua falada em situações naturais de comunicação, como podemos realizar a coleta de uma vasta quantidade de material, sem que a presença do pesquisador interfira na naturalidade da situação de comunicação? Uma primeira opção é fazer o papel de pesquisador-observador, isto é, aquele que não participa diretamente da situação de comunicação. Esse método é bastante utilizado pelos antropólogos (pessoas que estudam e refletem acerca do ser humano, conforme suas características biológicas e socioculturais, dando ênfase às diferenças e variações entre eles) – linguistas ou não –, contudo o pesquisador da área sociolinguística necessita participar diretamente da interação, a fim de controlar tópicos de conversa e estimular realizações da variável linguística que esteja estudando. Para isso, o sociolinguista usa o método de entrevista sociolinguística, coletando especialmente narrativas de experiências pessoais. O propósito desse método é minimizar o efeito negativo que a presença do pesquisador causa na naturalidade da situação comunicativa para coleta de dados. Com um gravador em mãos, o pesquisador sociolinguista deve, então, coletar situações naturais de comunicação linguística e uma imensa quantidade de material de boa qualidade sonora. Ao selecionar seus informantes, o pesquisador estará em contato com falantes que variam de acordo com faixa etária, classe social, sexo e etnia. Não importa qual seja a natureza da situação comunicativa, o tópico central da conversa ou o informante, o pesquisador deverá tentar neutralizar a presença do gravador, a sua própria presença como elemento alheio à comunidade e a força que ambas podem exercer no momento em que os falantes se comunicam. Essa neutralização pode ser alcançada quando o pesquisador representa o papel de aprendiz interessado na comunidade de falantes e em seus problemas/conflitos e peculiaridades. Isso quer dizer que seu objetivo central será aprender sobre a comunidade e os informantes que a constituem, evitando dizer a palavra “língua”, pois o propósito é que o informante não atente à sua própria maneira de falar. Para que os objetivos sejam atingidos, o pesquisador pode elaborar um espécie de questionário que guie a entrevista ou, em especial, provocar narrativas de experiências pessoais. Os estudos de narrativas de experiências pessoais têm demonstrado que, ao relatá-las, o falante/informante está tão envolvido emocionalmente com o que está falando que presta muito pouco atenção ao como está relatando. Há diversos assuntos (ou módulos) que podem ser utilizados para fins de conversação: dados pessoais do informante (sua história), jogos e brincadeiras de infância, brigas, namoros e encontros amorosos, casamento, perigo de morte, medo, religião, família, amigos, turmas, serviços públicos, escola e trabalho, a criminalidade nas ruas, esportes, interação com outros membros da comunidade, entre outros. Esses tópicos podem ser adaptados e usados conforme cada grupo estudado, isto é, poderão variar de acordo com determinada comunidade, grupo ou indivíduo. Labov e seu grupo de pesquisadores, por exemplo, utilizaram o assunto “Perigo de morte” durante a coleta de narrativas de adolescentes negros do Harlem, gueto de Nova Iorque. Os estudos posteriores afirmaram que esse foi mesmo o módulo mais eficaz a ser aplicado na pesquisa da fala daquela comunidade e foi apresentado da seguinte maneira: Módulo: Perigo de morte 1. Você já esteve alguma vez em situação em que estivesse correndo sério risco de vida (uma situação em que tenha dito a você mesmo: “Chegou a minha hora!”)? 2. O que aconteceu? 3. Numa situação dessas, algumas pessoas dizem: “Bom, seja o que Deus quiser!”. O que você acha disso? E assim por diante. Esse módulo tem sido utilizado com grande sucesso por sociolinguistas brasileiros e, além das sugestões traduzidas acima, outras adaptações podem ser feitas, conforme o grupo estudado. Falando ainda em Labov, no modelo que propôs, o estudioso procurou também definir a narrativa, considerando especialmente a narrativa de experiências pessoais, tão importante para as análises sociolingüísticas. Ao narrar suas experiências pessoais mais envolventes e marcantes, o falante/informante desprende-se praticamente de qualquer preocupação com a forma do discurso. Todavia, essa desatenção à forma vem sempre introduzida numa linha de relato, conhecida também como “estrutura narrativa”. Na estrutura narrativa, Labov destacou as seguintes partes: resumo, orientação, complicação da ação, resolução da ação, avaliação e coda (conclusão), que serão definidas mais adiante. Essas partes são compostas de unidades mínimas de narração, chamadas “orações narrativas”. Principalmente na complicação e na resolução da ação, a ordem dessas orações narrativas não pode ser alterada, já que é a sua sequencia que marca a ordenação dos eventos, permitindo a compreensão do interlocutor ou ouvinte, e não qualquer traço morfológico do verbo. Vejamos o exemplo: a) Aí o Zé deu um murro na cara do Tião, b) Que caiu no chão. c) Então a mulher do Tião chamou a polícia. d) E ela chamou mesmo! Nesse exemplo de complicação e resolução da ação de uma narrativa, a ordem das orações não pode ser trocada, porque o passado simples está presente na conjugação dos verbos das quatro orações, ou seja, não se pode perceber anterioridade e posterioridade dos acontecimentos narrados pela morfologia do verbo. Aqui, o elemento desencadeador e complicador da ação é o fato de o Zé ter esmurrado a cara de Tião (evento 1), o qual em seguida caiu no chão (evento 2), tendo sua mulher chamado a polícia (evento 3). E ela realmente o fez (evento 4), como informa-nos o narrador. Qualquer alteração nessa ordem excluiria a lógica dos fatos. Nas outras partes da narrativa, a ordem das orações não é tão rígida. Na orientação, por exemplo, que é o histórico do fato a ser narrado (isto é, diz respeito à introdução das personagens, do local e do tempo de ação), a ordem das orações pode ser alterada sem prejuízo no sentidoda mensagem. O mesmo vale na avaliação, que seria a parte através da qual o narrador procura motivar o destinatário (ouvinte) a valorizar o fato que está sendo narrado, ou seja, aquela que instiga no ouvinte a pergunta “E daí?”; não apresenta ordem fixa, mas geralmente vem após a complicação e antes da resolução, mas também ocorre comumente após a orientação, antes mesmo da complicação da ação. No resumo e na coda (conclusão) – aquele introduzindo as linhas gerais da ação e esta marcando o final do tempo da narrativa – a ordem das orações costuma ser mais fixa. Apresentaremos agora um exemplo de uma narrativa de um adolescente nascido em São Paulo, carregador de pacotes em um grande supermercado e morador de uma das favelas da cidade. O módulo ou assunto que gerou essa narrativa do falante/informante é uma combinação de família, interação com outros membros da comunidade e serviços públicos. Esse exemplo de narrativa e assunto, bem como o outro apresentado anteriormente, consta na obra de Tarallo (1986). a) Nóis ficô sem lúiz aí, seis meis sem lúiz. b) Tem uns inquilinu lá né, então, c) Tudu barracu qui meu padastru tinha alugadu. d) Então um começô num pagá, atrasá c’u alugué, e) Dipois num pagava lúiz nem nada. f) Aí os otru falaru: “Só nóis qui vai pagá, tudu mundu usanu!” g) Aí cumeçaru a num pagá tamém, h) Um pagá, u otru num pagá, i) Aí u meu padastru pegô i cortô. j) Num pagô tamém na láiti, k) Aí cortaru né. l) Aí ficamu sem lúiz dipois, né. De acordo com o modelo da narrativa apresentado nesse capítulo, podemos identificar as partes que compõem o relato do informante adolescente paulistano da seguinte forma: o resumo é a primeira oração narrativa; as orações (b) e (c) são a orientação; da oração (d) à (f) temos o elemento complicador da ação, que se resolve nas orações (g) à (k); a coda (conclusão) aparece na oração (l). Para finalizar, destacaremos algumas observações importantes que devem ser levadas em conta para a realização de uma pesquisa sociolinguística. Primeiro, sobre a comunidade e a seleção de informantes: 1) Seja qual for a comunidade ou grupo, jamais deixar claro que o objetivo é estudar a língua tal como é empregada, pois como a língua é propriedade do grupo, seus informantes poderão se sentir ameaçados ou embaraçados. Apresentar ao informante objetivos fora do campo da linguagem; 2) Deixar claro ao informante que a fita em que se gravarão as informações poderá ser inutilizada em sua presença, se ele assim desejar; 3) Procurar adequar o comportamento social e linguístico ao do grupo ou comunidade entrevistada, a fim de amenizar o efeito negativo que a presença de um pesquisador pode causar no comportamento e fala natural do grupo; 4) Procurar entrar na comunidade através de terceiros que já sejam aceitos pela comunidade; 5) O critério básico para a seleção dos informantes será o da amostragem aleatória, dando, assim, a oportunidade de todos os membros da comunidade, ou melhor, de todos os segmentos da comunidade serem entrevistados; 6) Nos estudos de comunidades, estabelecer padrões rígidos para a seleção de informantes, como entrevistar somente aqueles que nasceram na comunidade ou chegaram até os 5 anos de idade. Assim, evitar-se-á a influência de outras comunidades na pesquisa; 7) O tamanho da amostra dependerá da natureza da variável linguística a ser analisada. Por exemplo, uma variável fonológica é bastante recorrente na fala, enquanto uma variável sintática ocorre menos frequentemente, sendo preciso uma maior amostragem. Sobre o número de informantes, o mais apropriado é um mínimo de 5 em cada grupo social definido. Um exemplo de grupo social definido seria: homens, pertencentes à classe alta e que estejam entre 30 e 45 anos. Pode ocorrer de a conquista do vernáculo não ser imediata, ou seja, o pesquisador pode não conseguir coletar uma fala espontânea e natural, tendo, nesse caso, um dado não-natural. Se isso acontecer, não é necessário inutilizar o material; pode-se estabelecer uma hierarquia estilística do desempenho do informante: de formal (não-natural) a informal (natural); de cuidadoso (não-natural) a casual (natural), refletindo sobre o emprego das variedade padrão e não-padrão. Essa, então, é a pesquisa sociolinguística – método que coleta o objeto de estudo da ciência que analisa a relação entre língua e sociedade. 3.8 VARIAÇÃO E REGISTRO (TEXTO ORAL E ESCRITO) Trataremos aqui mais especificamente da variação, embasada em exemplos, e dos dois principais tipos de registro da expressão da língua: o texto oral (fala) e o texto escrito, começando pelo fenômeno da variação. A variação linguística é confirmada pelo fato de a língua poder ser empregada de maneiras diferentes para a transmissão da mesma mensagem. Muitas pessoas tratam esse fenômeno como o “caos” linguístico, já que prezam apenas uma das variedades existentes: a padrão, representada pela norma culta. O fato é que esse “caos”, ou melhor, esse fenômeno da variação é real e vemos isso observando as variantes. E mais, essas variantes não ocorrem aleatoriamente ou sem razão significativa; há ou pode haver explicações e descrições de suas ocorrências, que geralmente estão relacionadas com o aspecto dinâmico e objetivo da linguagem contemporânea (isto é, com a economia da língua, visando a uma expressão mais rápida) e também com fatores que influenciam o emprego da língua. Encaixa-se aqui novamente o exemplo da variação para a marcação do plural no português falado do Brasil, que apresenta duas variantes – a ausência e/ou a presença do segmento /s/. Nesse caso a variação é fonológica e ainda nesse nível, podemos acrescentar o estado de variação em que se encontra o /r/ em português, em posição final da palavra, como em “cantor” (substantivo) e “apresentar” (verbo). A variação encontrada aqui é parecida com a da marcação de plural, já que diz respeito à presença ou ausência do segmento fônico /r/. Outro exemplo de variação fonológica é a questão da desnasalização em alguns vocábulos, gerando assim variantes como “falaram” e “falaru” (a primeira forma é aquela considerada correta pela gramática normativa, sendo, portanto, padrão; e a segunda é observada na linguagem verbal de muitos falantes, considerada não-padrão). Todos esses casos de variação fonológica começaram a ser estudados a partir dos trabalhos sobre simplificação do grupo consonantal em inglês, ou seja, a variação linguística não é um fenômeno específico da língua portuguesa e as variantes podem ser observadas e estudadas em épocas diferentes, não apenas simultâneas ao tempo de análise. Labov, inclusive, propõe que a concepção e o alcance do modelo sociolinguístico são, ao mesmo tempo, sincrônicos e diacrônicos. Isso quer dizer que tanto a variação (situação linguística em um determinado momento; sincronia) como a mudança (situação linguística em diversos momentos sincrônicos, comparando-os; diacronia) linguísticas devem ser investigadas, estudadas. Para que as variantes ocorram, há a contribuição de alguns fatores; a cada variante correspondem contextos que a favorecem: os fatores condicionadores. Retomando a variável do plural – com as variantes que correspondem à presença ou ausência de /s/ –, é possível observar possíveis condicionadores linguísticos que regem o uso dessas variantes. Por exemplo, nota-se que a presença do /s/ pode estar condicionada à posição da variável no contexto, no sintagma. O que se percebe, primeiramente, é que geralmente, o elemento que retém a presença do /s/ é o primeiro termo do contexto. Nesse raciocínio, os sintagmas “as casas” e “casas pequenas”, poderiamser empregados como “as casa” e “casas pequena”. Vejam que o mesmo vocábulo em um sintagma apresenta o /s/ e no outro não; isso ocorre porque não é o vocábulo em si que causa a variação, e sim sua posição no sintagma (nesses casos, ambos são sintagmas nominais). No entanto, observando os exemplos “as casas amarela” e “as casa pequena”, temos uma ocorrência diferente, pois no primeiro sintagma o plural está marcado no primeiro e no segundo termo (vale lembrar que esses exemplos são reais). Na segunda oração, a marcação ocorre apenas na primeira palavra (no artigo ou determinante) e isso pode ser explicado pela posição do vocábulo, isto é, o artigo indica o plural da oração, não sendo necessário marcar as palavras “casa” e “pequena”. Mas como justificar a primeira oração, já que nela a palavra “casa” também está em segundo lugar no sintagma e o seu determinante já possui o segmento fônico /s/? A explicação é a seguinte: o sistema silábico do português, que é consoante-vogal (CV). Em “as casas amarela”, o /s/ de “casas” é seguido de uma vogal (o /a/ de amarelas), formando assim a estrutura silábica básica do português: CV. Portanto, analisando essa variação do plural do português falado do Brasil, conclui-se que em geral é o primeiro termo do contexto que é marcado com o segmento fônico /s/, todavia, se o segundo termo for seguido de vogal (formando a estrutura silábica básica do português: CV), ele também vai para o plural. Esse então foi um exemplo de como os fatores condicionadores linguísticos corroboram para a existência e ocorrência das variantes. No campo da variação, outros fatores muito relevantes e influentes são os fatores extralinguísticos, ou seja, aqueles que são observados fora da língua, mas que influenciam seu emprego. Dentre os principais, estão: região, idade, sexo, raça, profissão, posição social, grau de escolaridade, contexto, entre outros, que influenciam também a variação da língua. O grau de escolaridade, a posição social e o contexto podem ser fatores extralinguísticos que influenciam a ocorrência da variação do plural. Vimos até agora exemplos de variação fonológica; vejamos agora um exemplo de variação sintática, que ocorre com os pronomes de terceira pessoa na função de objeto de verbo. Para a pergunta “Você conhece aquele rapaz?” há três respostas possíveis em português: 1) Eu o conheço, 2) Eu conheço ele e 3) Eu conheço. Isto é, há três variantes sintáticas: a padrão o e as duas formas não-padrão, ele e uma forma zero, em que o verbo não apresenta objeto pronominal expresso. Esse tipo de variação também acontece quando o ser a que se refere for inanimado, como em “Você comprou aquele livro?”. A essa questão também se pode responder de três formas diferentes: 1) Eu o comprei, 2) Eu comprei ele e 3) Eu comprei. Porém, nesses casos (de seres inanimados), prevalece a forma zero. Ainda tratando de variação sintática, vejamos o caso das orações relativas e o chamado “pronome-lembrete”, encontrados principalmente no português falado de São Paulo. Essas orações, também conhecidas na gramática normativa como orações adjetivas, são modificadoras de um sintagma nominal (SN): dentro da relativa há um SN que se refere ao SN presente na oração principal e é aí que ocorre a variação, em que temos novamente formas padrão e não-padrão. Observando os exemplos, é mais fácil compreender a variação que ocorre nessas orações: Forma padrão: 1. Eu conheço uma massagista que é ótima. (função de sujeito) 2. Aquele meu amigo que você vê muito no supermercado é ótimo. (função de objeto direto) 3. Aquele amigo de quem você gosta muito é ótimo. (função de objeto indireto) Forma não-padrão (“pronome-lembrete”): 1. Eu conheço uma massagista que ela é ótima. (função de sujeito) 2. Aquele meu amigo que você vê ele muito no supermercado é ótimo. (função de objeto direto) 3. Aquele amigo que você gosta muito dele é ótimo. (função de objeto indireto) Analisando, vemos que a variação diz respeito à presença e/ou ausência do pronome pessoal do caso reto na oração relativa. De acordo com a gramática normativa, não é necessário incluir o pronome pessoal, pois sua função (especificada em cada oração) é expressa pelo pronome relativo que exerce, nos exemplos, função de sujeito, objeto direto e objeto indireto. Todavia, na forma não-padrão, os falantes empregam o pronome pessoal como um lembrete da função da oração relativa com relação à oração principal, auxiliando na compreensão da mensagem; por isso o nome “pronome-lembrete”. Até aqui se falou de variação sincrônica, consideremos um pouco, agora, a variação diacrônica. A língua sempre tende a mudar, ou seja, com o passar do tempo formas linguísticas são modificadas, outras são excluídas do uso, outras são incluídas e assim por diante. Trata-se de tendências da língua: a língua tende a mudar e isso é um fato. E a mudança está relacionada com a variação, pois é da variação que podem surgir mudanças. Mas será que tudo que varia, muda? A resposta é não. Tarallo (1986) diz que “Nem tudo o que varia sofre mudança; toda mudança linguística, no entanto, pressupõe variação. Variação, portanto, não implica mudança; mudança, sim, implica sempre variação”. Isso quer dizer que a mudança vem da variação, mas nem toda variação acarreta uma mudança e é isso que nos mostra o estudo da variação diacrônica, que procura entender a estrutura de uma língua entendendo também os seus processos históricos. A coleta de material para análise da língua em épocas anteriores é um tanto mais complicada. O que se faz é estudar a fala de faixas etárias diferentes ou documentos escritos da época (que pode não expressar a realidade da fala, haja vista que a escrita não é espontânea como a fala). Essa coleta se complica um pouco mais se o interesse estiver na língua de 200 anos atrás; nesse caso a pesquisa também recorre a documentos escritos, contudo procuram-se textos que possam revelar mais a realidade linguística da época, como textos em prosa, cartas de cunho pessoal, diários, peças teatrais, que geralmente estão mais próximos da linguagem verbal. Como exemplo da variação diacrônica, Tarallo (1986) analisa orações relativas, três variantes delas e seu prestígio e uso na comunidade: uma variante padrão (“Este é o homem com quem eu falei ontem”) e duas variantes não-padrão: a relativa com pronome lembrete (“Este é o homem que eu falei com ele ontem”) e a cortadora (“Este é o homem que eu falei ontem”). Na análise sincrônica, constatou-se que a variante padrão é a menos utilizada, que a mais empregada é a cortadora, enquanto a relativa com pronome-lembrete não possui prestígio na comunidade. Na análise diacrônica foi investigado material de quatro períodos: 1. primeira metade do século XVIII; 2. segunda metade do século XVIII; 3. primeira metade do século XIX; 4. segunda metade do século XIX. Notou-se que a relativa com pronome-lembrete era marginalizada nos quatro períodos, a variante padrão era utilizada nos três primeiros períodos e no quarto começou a ser inibida, e a cortadora, no momento em que a variante padrão é menos utilizada, passa a ser mais empregada, ou seja, a cortadora passou a ser mais utilizada na segunda metade do século XIX. Diante de tudo o que foi falado até agora, há duas informações principais: 1) A língua é heterogênea e variável; 2) A variabilidade da língua é passível de sistematização; ou seja, a língua varia sim, mas as variáveis geralmente também seguem regras e podem ser descritas. Inclusive, já começam a surgir obras específicas, abordando a linguagem informal, a língua como realmente é empregada pelos seus falantes no dia-a-dia, a variedadeexistente no discurso oral como, por exemplo, a “Gramática do Português Falado”, um projeto desenvolvido na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP que já possui oito volumes e diversos autores, entre eles Ataliba Teixeira de Castilho (que é também o coordenador o projeto), Maria Helena de Moura Neves, Rodolfo Ilari, Mary Kato, Ingedore Villaça Koch, entre outros. Enfim, não se pode mais negar a existência dessas variações, que fazem parte das opções de escolha do falante no momento de sua comunicação, isto é, ele pode escolher o estilo de sua expressão, que sempre dependerá do seu interlocutor, sua intenção comunicativa, a mensagem que quer transmitir e a situação de comunicação. 3.9 REGISTROS ORAL E ESCRITO Considerando a língua – nosso principal veículo de comunicação –, dois registros fundamentais se destacam como meios de expressão de nossas mensagens: o texto oral (ou seja, a fala) e o texto escrito. Há outros signos que comunicam, como, por exemplo, os signos não-verbais (gestos, desenhos, entre outros), mas nossa ciência considera e analisa os símbolos linguísticos, mais precisamente a linguagem verbal, e muitos dos aspectos da linguagem verbal são compreendidos melhor através do estudo também da linguagem escrita, notando especialmente suas diferenças e particularidades. Este é nosso foco: apresentar características mais específicas de cada um desses tipos de registro. Como já foi dito em momentos anteriores, durante muito tempo considerou-se a oposição entre fala e escrita, considerando apenas o resultado final, julgando-as quase que totalmente diferentes e considerando que não falamos como escrevemos. Todavia, essa afirmação pode ser contestada ao observarmos que ela se refere à escrita que tem como paradigma a norma culta, pois, na realidade encontramos registros escritos que se desviam das regras da gramática normativa em alguns momentos e feitos por alguns falantes, já que aspectos da fala são notados em escritas que utilizam a variedade não-padrão e isso ocorre de acordo o conhecimento que o remetente da mensagem tem da norma culta. Para exemplificar a escrita não-padrão, vejamos essa lista de compras, elaborada por uma pessoa de baixa escolaridade, que trabalha como empregada doméstica: COMPRÁ NU MERCADU: Assucar (=Açúcar) Basora (=Vassoura) Qejo (=Queijo) Alveques (=Alvejante Alvex) Num estudo mais minucioso dos textos oral e escrito, são considerados fatores além do resultado final, pois além deste, há características relacionadas ao momento da comunicação e da elaboração que condizem a uma e à outra, ou seja, a diferença existente entre fala e escrita conta com outros fatores e não apenas com o texto em si. É claro que a referência de escrita é geralmente aquela baseada na norma culta, mas algumas das características desse tipo de registro estão presentes também em mensagens escritas na variedade não-padrão. Elemento Textual – Bloco 4 4. Variação e Ensino de Gramática Está mais do que comprovado que a nossa língua, bem como todas as existentes, possui uma diversidade linguística, ou seja, a língua não é falada igualmente por todos os falantes, existindo, assim, as variedades linguísticas. Há dois tipos principais de variedade linguística: a variedade padrão – representada pela norma culta – e a variedade não-padrão – representada por falares mais populares, que diferem da norma culta. A norma culta é a variedade mais prestigiada na sociedade e é caracterizada por seguir regras ditadas pela gramática tradicional ou normativa, ser baseada na linguagem utilizada por escritores clássicos e conservadores, ser mais elaborada sintaticamente e possuidora de um vocabulário mais amplo e técnico, ser mais utilizada em situações formais e ser empregada principalmente pelos falantes cultos, ou seja, membros pertencentes à elite da sociedade. Quando se pensa em uniformização da língua, a norma culta é a referência para a ocorrência disso. Já a variedade não-padrão, ou melhor, as variedades não-padrão (já que há mais de uma) possuem menor prestígio na sociedade e são caracterizadas por apresentarem as transformações da língua tão observáveis na fala, serem mais objetivas e econômicas para a comunicação, serem menos elaboradas sintaticamente e possuidoras de um vocabulário mais simples e restrito, serem mais usadas em situações informais e serem empregadas pela maioria das pessoas. A variedade nãopadrão aceita mais facilmente as mudanças que, paulatinamente, ocorrem nas línguas e que demoram ou às vezes nunca chegam a constituir a norma. Foi dito que os principais divulgadores da norma culta são: a literatura, os meios de comunicação e a escola. Isso mesmo, a escola é uma das mais importantes divulgadoras da norma culta. Mas como será então que é tratada a questão da variação no ensino da língua? Uma pesquisa com professores de Língua Portuguesa do Ensino Fundamental e do Ensino Médio efetuada pela autora Maria Helena de Moura Neves e retratada na obra Gramática na Escola (1990) revela bem essa atual situação. Primeiramente, quando se fala em ensino de Língua Portuguesa, o principal foco é a gramática. Contudo não é a gramática como o estudo do fatos da linguagem e das leis naturais que a regulam, mas sim a gramática que divulga a norma culta, geralmente a gramática normativa, sempre focando os conceitos que dizem respeito à norma culta, à variedade padrão da língua. A maioria dos professores justificou a importância desse ensino da gramática com o bom desempenho (falar e escrever “melhor”) que os alunos poderão ter social e profissionalmente através desse conhecimento, embora alguns tenham admitido que esse estudo não é tão importante, dizendo inclusive que fazem isso para atender a exigências das instituições de ensino e dos familiares dos alunos. Na verdade, os professores de Língua Portuguesa são graduados e estudaram a finalidade principal apontada para o ensino de gramática que não é a normatividade, aliás, a gramática tradicional ou prescritiva tem sido questionada há algum tempo, principalmente na disciplina Linguística – presente no curso de Letras – que considera a linguagem falada, a linguagem que comunica, independente de regras consideradas corretas ou não, pois o mais importante é comunicar e ser compreendido. Todavia, a realidade que encontramos é uma grande preocupação normativa, expressa em aulas sistemáticas, que têm como base o ensino de definições e a aplicação de exercícios gramaticais que treinam especialmente classes gramaticais e sintaxe. Enfim, muita atenção é dada à variedade padrão e o fenômeno da variação é deixado bastante de lado. Voltando ao desempenho dos alunos, apontado como finalidade relevante para o ensino da gramática, vale ressaltar que esse desempenho, na realidade, não tem relação somente com o conhecimento da norma culta, pois para que uma pessoa seja competente em sua língua, para que tenha um bom desempenho na mesma, é preciso que saiba comunicar-se com eficiência nos mais diversos contextos comunicativos. Como já vimos, há situações em que a norma culta é a mais adequada a ser empregada, entretanto há momentos em que o mais coerente é o emprego de uma variedade não-padrão. O uso dessas variedades depende dos alantes, da intenção comunicativa, da mensagem e da situação. A grande verdade é que, muitas vezes, a variação é ignorada e a ênfase pende para a uniformização da língua, ou seja, é como se existisse apenas essa variante ou como se somente esta fosse correta e adequada. Não podemos negar, é claro, que, aos poucos, essa situação vem melhorando, haja vista que em algumas escolas e na práticade alguns professores já se pode notar a descentralização da norma culta no ensino de Língua Portuguesa. Porém, infelizmente, essa é a realidade de uma minoria, pois a maioria continua prestigiando a norma. Queremos deixar claro aqui que não estamos fazendo um julgamento ao ensino da norma culta, pois sabe-se que, em dados momentos, o conhecimento da mesma é de extrema importância. O fato é que, na escola, se o ensino da língua deve servir a que os alunos se expressem melhor, ela deve ser tal que sirva a esse papel, isto é, se o ensino da gramática visa ao uso da língua, é previsível que o tratamento predominantemente formal que vem sendo dado à exercitação gramatical em sala de aula não cumpre esse papel. É preciso abordar todas as situações de comunicação – formais e informais – pois isso sim fará o aluno se expressar melhor, levando em consideração, mais uma vez, o contexto, o intelocutor e a intenção comunicativa. Já começam a surgir obras específicas, abordando a linguagem informal, a língua como realmente é empregada pelos seus falantes no dia-a-dia, como por exemplo “Gramática do Português Falado”, um projeto desenvolvido na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP que já possui oito volumes e diversos autores, entre eles Ataliba Teixeira de Castilho (que é também o coordenador o projeto), Maria Helena de Moura Neves, Rodolfo Ilari, Mary Kato, Ingedore Villaça Koch, entre outros; além de esse ser um conhecimento ao qual os professores têm acesso, haja vista que essa questão vem sendo discutida e está presente na graduação de Letras; esse fator, inclusive, começa a ser abordado também em alguns livros didáticos contemporâneos. O que é necessário então: tratar tanto a variedade padrão como a variedade não padrão com os diversos usos da língua que formam a linguagem informal. É importante levar sempre em consideração, em primeiro lugar, a comunicação e a adequação da mesma às diversas situações comunicativas que presenciamos em nosso dia-a-dia. Elemento Textual – Bloco 5 Mitos acerca da Língua Portuguesa Para analisar como se constrói o preconceito linguístico, Marcos Bagno relaciona oito mitos que revelam o comportamento preconceituoso de certos segmentos letrados da sociedade frente às variantes no uso da língua, e às relações desse comportamento com a manutenção do poder das elites e opressão das classes sociais menos favorecidas, normalmente por meio da padronização imposta pela norma culta. Mito nº 1 “A língua portuguesa falada no Brasil apresenta uma unidade surpreendente” Mito prejudicial à educação, por não reconhecer que o português falado no Brasil é bem diversificado, a escola tenta impor sua norma linguística como se ela fosse de fato comum a todos os brasileiros. As diferenças de status social em nosso país explicam a existência do verdadeiro abismo linguístico entre os falantes das variedades não padrão do português brasileiro e os falantes da suposta variedade culta, que é a língua ensinada na escola. A Língua Portuguesa deve ser vista como ela realmente é, uma língua de alto grau de diversidade causada pela grandeza de nosso Brasil, fazendo com que ela se modifique em cada região, o fato de a língua predominante ser a portuguesa, não quer dizer que ela tenha uma unidade, pois a idade, a formação escolar-acadêmica, a situação socioeconômica e outros fatores resultarão na fala de um indivíduo que é consequência desse emaranhado de indicadores. Mito nº2 “Brasileiro não sabe português/ Só em Portugal se fala bem português”. Para o autor, a afirmação acima demonstra noção de inferioridade, sentimentos de dependência de um país mais antigo e “civilizado”. O brasileiro sabe português sim. O que acontece é que o português brasileiro é diferente do português falado em Portugal. A língua falada no Brasil, do ponto de vista linguístico já tem regras de funcionamento, que cada vez mais se diferencia da gramática da língua falada em Portugal. Na língua falada, as diferenças entre o português de Portugal e o português falado no Brasil são tão grandes que muitas vezes surgem dificuldades de compreensão. O único nível que ainda é possível numa compreensão quase total entre brasileiros e portugueses é o da língua escrita formal, pois a ortografia é praticamente a mesma, com poucas diferenças. Conclui-se que nenhum dos dois é mais certo ou mais errado, mais bonito ou mais feio: são apenas diferenças um do outro e atendem às necessidades linguísticas das comunidades que os usam, necessidades linguísticas que também são diferentes. Mito nº 3 “Português é muito difícil” Bagno disse, neste capítulo, que essa afirmação preconceituosa é prima-irmã da ideia que ele derrubou, a de que o “brasileiro não sabe português”. Todo falante nativo de uma língua, sabe essa língua, pois saber a língua, no sentido científico significa conhecer intuitivamente e empregar com naturalidade as regras básicas de funcionamento dela. A regência verbal é caso típico de como o ensino tradicional da língua no Brasil não leva em conta o uso brasileiro do português. Por mais que o aluno escreva o verbo assistir de forma transitiva indireta, na hora de se expressar passará para a forma transitiva direta “ainda não assisti o filme do Zorro”. Este mito gera um preconceito, porque o português falado é diferente do português escrito de forma culta. O falado está relacionando ao nível social, À região e ao nível intelectual. E o escrito é baseado na gramática normativa. Mito nº 4 “As pessoas sem instrução falam tudo errado”. Esse mito além de trazer um preconceito linguístico, vem acompanhado de um social, de que as pessoas de menor aquisição não sabem falar o português, não importa o quão letrado ele é, mas o fato de ser pobre vai fazer com que as pessoas olhem como se ele de nada soubesse. E tem mais, pode-se observar outro preconceito, o regional e este, está sempre sendo alimentado pela mídia que desmoraliza certa região, como acontece com os interiores do Nordeste. Qualquer manifestação linguística que escape do triângulo escola-gramática-dicionário é considerado “errado”, levando em conta o preconceito linguístico. Bagno explicou, o fenômeno da palatalização-som da pronúncia da região para região no Brasil e que muitas vezes é alvo de escárnios por pessoas que se julgam pertencer a um lugar superior. Para o autor, o que está em jogo não é a língua, mas a pessoa que fala essa língua e a região geográfica onde essa pessoa vive. Esse preconceito linguístico é embasado na crença de que existe uma única língua portuguesa digna. Mito nº 5 “O lugar onde melhor se fala português no Brasil é o Maranhão”. Essa ideia de que o Maranhão é o lugar onde se fala melhor português nasce do mito de que o português só ser falado corretamente em Portugal, pois foi verificado no Maranhão o uso do pronome tu, seguido das formais verbais clássicas, muito utilizadas pelos portugueses. Não existe nenhuma variedade nacional e regional ou local que seja intrinsecamente “melhor”, “mais pura”, “mais bonita”, “mais correta” que outra. Toda variedade linguística atende às necessidades da comunidade de seres humanos que a empregam. Quando deixar de atender, ela inevitavelmente sofrerá transformações para se adequar às novas necessidades. “Toda a variedade linguística é também o resultado de um processo histórico próprio, com suas vicissitudes e peripécias particulares.” É preciso abandonar essa “balança” de tentar atribuir a um local ou comunidade de falantes o ”melhor” ou “pior” e passar a respeitar igualmente as variedades da língua, que constituem uma preciosidade de nossa cultura. Não existe “língua pura”e sim uma variedade que deve ser vista de forma correta pelos estudiosos. Mito nº 6 “O certo é falar assim porque se escreve assim.” O autor explica o fenômeno da variação, onde nenhuma língua é falada do mesmo jeito em todos os lugares, assim como nem todas as pessoas falam a própria língua de modo idêntico. A supervalorização da língua escrita, combinada com o desprezo da língua falada, é preconceito. Esse mito tem como maior colaborador o sistema de ensino, pois é através dele que o aluno é obrigado a ler como se escreve, não levando em consideração o ambiente do falante. É lógico que a ortografia segue regras, devendo ser cumpridas, mas a fala não deve imitar a escrita, pois como podemos perceber em nosso dia-a-dia o ser humano aprende primeiro a falar e depois a escrever, sendo assim é uma hipocrisia afirmar que a língua deve ser como a escrita. Mito nº 7 “É preciso saber gramática para falar e escrever bem“. A afirmação acima vive na ponta da língua da grande maioria dos professores de português e está formulada em muitos compêndios gramaticais. “A Gramática é instrumento fundamental para o domínio padrão culto da língua”. Este mito aborda uma das mais delicadas questões do ensino da língua que é a existência das gramáticas, que teriam como finalidade primeira a descrição do funcionamento da língua, mas que fatalmente se tornaram, no decorrer do tempo, instrumentos ideológicos de poder e controle social. A norma culta existe independente da gramática. Porém a manifestação desse mito concretiza uma situação histórica: a confusão existente entre língua e gramática normativa. Isso denuncia, segundo Marcos Bagno, a presença de mecanismos ideológicos agindo através da imposição de normas gramaticais conservadoras no ensino da língua. Mito nº8 “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social”. Esse mito como o primeiro é apresentado porque ambos tocam em sérias questões sociais. O autor fez uma crítica irônica dizendo que se este mito fosse verdadeiro, os professores ocupariam o topo da pirâmide social, econômico e política do país. De acordo com ele é preciso garantir a todos brasileiros o reconhecimento da variação linguística, porque o mero domínio da norma culta não é uma formação mágica que vai resolver todos os problemas de uma pessoa carente, de um dia para outro. Bagno mencionou que falar da língua é falar de política e que se não for analisado desta forma, estaremos contribuindo para a manutenção do círculo vicioso do preconceito linguístico e do “irmão-gêmeo” dele o “círculo vicioso da injustiça social”. Elemento Textual – Bloco 6 O ensino de língua portuguesa na atualidade Até os anos 1970, o processo de aprendizagem da Língua Portuguesa era dividido em dois estágios, como bem pontuam os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). O primeiro encerrava-se na fase da alfabetização, quando a criança aprendia o sistema de escrita. O segundo teria início quando ela tivesse o domínio básico dessa habilidade e seria estimulada a produzir textos, notar as normas gramaticais e ler produções clássicas. O ensino de língua materna sofre significativa mudança e em meados dos anos 1980, não é mais visto como uma sucessão de etapas, mas como um processo contínuo. Entendia-se, pois que o aluno precisava entrar em contato com dificuldades progressivas do conteúdo. Desse modo, desenvolveria competências e habilidades diferentes ao longo dos anos. Essa nova concepção apresentava inúmeras diferenças em relação a perspectivas anteriores. Desde o século 19 até meados do 20, a linguagem era tida como uma expressão do pensamento. Ler e escrever bem eram uma consequência do pensar e as propostas dos professores se baseavam na discussão sobre as características descritivas e normativas da língua. Os primeiros anos da disciplina deveriam garantir a aprendizagem da escrita, considerada um código de transcrição da fala. Dois tipos de método de alfabetização reinaram por anos: os sintéticos e os analíticos. Os primeiros começavam da parte e iam para o todo, mostrando pequenas partes das palavras, como as letras e as sílabas, para, então, formar sentenças. Compõem o grupo os métodos alfabético, fônico e silábico. Já os analíticos propunham começar no sentido oposto, o que garantiria uma visão mais ampliada do aluno sobre aquilo que estava no papel, facilitando o seu entendimento. Pelo modelo, o ensino partia das frases e palavras, decompostas em sílabas ou letras. Aqueles que já dominavam essa primeira etapa de aprendizagem passavam para a seguinte. Na escrita, os alunos deveriam reproduzir modelos de textos consagrados da literatura e caprichar no desenho do formato das letras. Para fazer uma leitura de qualidade, o estudante tinha como tarefa compreender o que o autor quis dizer - sem interpretar ou encontrar outros sentidos. As aulas focavam os aspectos normativos e descritivos da língua e textos não literários - como o acadêmico e o jornalístico - não eram estudados. "O coloquial ou informal eram considerados inadequados para sala de aula". A partir dos anos 1970, a linguagem deixou de ser entendida apenas como a expressão do pensamento para ser vista também como um instrumento de comunicação, envolvendo um interlocutor e uma mensagem que precisa ser compreendida. Todos os gêneros passaram a ser vistos como importantes instrumentos de transmissão de mensagens: o aluno precisaria aprender as características de cada um deles para reproduzi-los na escrita e também para identificá-los nos textos lidos. Ainda era essencial seguir um padrão preestabelecido, e qualquer anormalidade seria um ruído. Para contemplar a perspectiva, o acervo de obras estudadas acabou ampliado, já que o formato dos textos clássicos não servia de subsídio para a escrita de cartas, por exemplo. Em pouco tempo, no entanto, as correntes acadêmicas avançaram mais. Mikhail Bakhtin (1895-1975) apresentou uma nova concepção de linguagem, a enunciativo-discursiva, que considera o discurso uma prática social e uma forma de interação - tese que vigora até hoje. A relação interpessoal, o contexto de produção dos textos, as diferentes situações de comunicação, os gêneros, a intenção do produtor passaram a ser fundamentais para a construção do sentido textual. A expressão não era mais vista como uma representação da realidade, mas o resultado das intenções de quem a produziu e o impacto que terá no receptor. O aluno passou a ser visto como sujeito ativo, e não um reprodutor de modelos, e atuante - em vez de ser passivo no momento de ler e escutar. Desta forma, o ensino de língua materna, na atualidade privilegia o texto e a construção de sentido textual e não tão somente o ensino de regras gramaticais – ou a gramática pela gramática.