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1 Universidade Federal do Amazonas – UFAM Programa de Pós-Graduação em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia – PPG-CASA – Nível Doutorado Disciplina: Epistemologia Ambiental Docente: Profa. Sandra Noda Discente: João Rodrigo Leitão dos Reis Fichamento: Livro Saber Ambiental – Enrique Leff LEFF, Enrique. Saber ambiental: sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. 8ª. Ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. 494 páginas. 1 – Globalização, Ambiente e Sustentabilidade do Desenvolvimento A crise ambiental veio questionar a racionalidade e os paradigmas teóricos que impulsionam e legitimam o crescimento econômico, negando a natureza. A Sustentabilidade ecológica aparece assim como um critério normativo para a reconstrução da ordem econômica, como uma condição para a sobrevivência humana e um suporte para chegar a um desenvolvimento duradouro, questionando as próprias bases da produção (p. 15). A crise ambiental se torna evidente nos anos 60, refletindo-se na irracionalidade ecológica dos padrões dominantes de produção e consumo, e marcando os limites do crescimento econômico. Dessa maneira, inicia-se o debate teórico e político para valorizar a natureza e internalizar as “externalidades socioambientais” ao sistema econômico (p. 16). Desse processo crítico surgiram as estratégias do ecodesenvolvimento. Daí surgiram os novos paradigmas da economia ecológica, buscando integrar o processo econômico com a dinâmica ecológica e populacional (Costanza et al., 1996). O discurso do desenvolvimento sustentável foi sendo legitimado, oficializado e difundido amplamente com base na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e o Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro, em 1992. Mas a consciência ambiental surgiu nos anos 60 com a primavera silenciosa de Rachel Carson, e se expandiu nos anos 70, depois da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, celebrada em Estocolmo, em 1972. Naquele momento é que foram assinalados os limites da racionalidade econômica e os desafios da degradação ambiental ao projeto civilizatório da modernidade (p. 16). Na percepção desta crise ecológica foi sendo configurado um conceito de ambiente como uma nova visão do desenvolvimento humano, que reintegra os valores potenciais da natureza, as externalidades sociais, os saberes subjugados e a complexidade do mundo negados pela racionalidade mecanicista, simplificadora, unidimensional e fragmentadora que conduziu o processo de modernização. O ambiente emerge como um saber reintegrador da diversidade, de novos valores éticos e estéticos e dos potenciais sinergéticos gerados pela articulação de processos ecológicos, tecnológicos e culturais (p. 17). Nesse processo de reconstrução são elaboradas as estratégias do ecodesenvolvimento (SACHS, 1982), postulando a necessidade de fundar novos modos de produção e estilos de vida nas condições e potencialidades ecológicas de cada região, assim como na diversidade étnica e na autoconfiança das populações para a gestão participativa (p. 17). As próprias estratégias de resistência à mudança da ordem econômica foram dissolvendo o potencial crítico e transformador das práticas do ecodesenvolvimento. Daí surge à busca de um conceito capaz de ecologizar a economia, eliminado a contradição entre crescimento econômico e preservação da natureza (p. 18). A uma década da Conferência de Estocolmo, os países do terceiro mundo, e da América Latina em particular, viram-se atravancados na crise da dívida, caindo em graves processos de inflação e recessão. A recuperação econômica surgiu então como uma prioridade e razão de força maior das políticas governamentais. Nesse processo foram configurados os programas neoliberais de diversos países, ao mesmo tempo que avançavam e se complexificavam os problemas ambientais do orbe. Começa então naquele momento a cair em desuso o discurso do ecodesenvolvimento, suplantado pelo discurso do “desenvolvimento sustentável” (p. 18). As estratégias de apropriação dos recursos naturais no processo de globalização econômica transferiram assim seus efeitos para o 2 campo teórico e ideológico. O ambiente foi caindo nas malhas do poder do discurso do crescimento sustentável. Porém o conceito de ambiente cobra um sentido estratégico no processo político de supressão das “externalidades do desenvolvimento” – a exploração econômica da natureza, a degradação ambiental, a desigual distribuição social dos custos ecológicos e a marginalização social – que persistem apesar da ecologização dos processos produtivos e da capitalização da natureza (p. 18-19). Depois de três anos de estudos, deliberações e audiências públicas, a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento publicou suas conclusões num documento intitulado Nosso Futuro Comum (CMMAD, 1988), também conhecimento como Informe Bruntland. Assim começou a configurar-se uma estratégia política para a sustentabilidade ecológica do processo de globalização e como condição para sobrevivência do gênero humano, através do esforço compartilhado de todas as nações do orbe. O desenvolvimento sustentável foi definido como “um processo que permite satisfazer as necessidades da população atual sem comprometer a capacidade de atender as gerações futuras”. O discurso da “sustentabilidade” leva, portanto, a lutar por um crescimento sustentado, sem uma justificação rigorosa da capacidade do sistema econômico de internalizar as condições ecológicas e sociais (p. 19). A ambivalência do discurso da sustentabilidade surge da polissemia do termo Sustainability, que integra dois significados: um que se traduz em castelhano como sustentable, que implica a internalização das condições ecológicos de suporte do processo econômico; outro, que aduz a durabilidade do próprio processo econômico (p. 20). O discurso da sustentabilidade chegou a afirmar o proposito e a possibilidade de conseguir um crescimento econômico sustentado através de mecanismos de mercado, sem justificar sua capacidade de internalizar as condições de sustentabilidade ecológica, nem de resolver a tradução dos diversos processos que constituem o ambiente (tempos ecológicos de produtividade e regeneração da natureza, valores culturais e humanos, critérios qualitativos que definem a qualidade de vida) em valores e medições de mercado (p. 20). Na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e o Desenvolvimento, celebrada no Rio de Janeiro, foi elaborado e aprovado um programa global (conhecido como Agenda 21) para regulamentar o processo de desenvolvimento com base nos princípios de sustentabilidade (p. 20). Neste processo, a noção de sustentabilidade foi sendo divulgada e vulgarizada até fazer parte do discurso oficial e da linguagem comum. Os interesses opostos na apropriação da natureza se manifestaram nas dificuldades para conseguir acordos internacionais sobre os instrumentos jurídicos para orientar a passagem para a sustentabilidade. Por trás destes acordos estão em jogo as estratégias e direitos de apropriação da natureza (p. 21). A problemática ambiental surge nas ultimas décadas do século XX como o sinal mais eloquente da crise da racionalidade econômica que conduziu o processo de modernização. Diante da impossibilidade assimilar as propostas de mudança que surgem de uma nova racionalidade (ambiental) para reconstruir as bases éticas e produtivas de um desenvolvimento alternativo, as políticas de desenvolvimento sustentável vão desativando, diluindo e deturpando o conceito do ambiente (p. 22). Os mecanismos de mercado se convertem no meio mais certo e eficaz de internalizar as condições ecológicas e os valores ambientais ao processo de crescimento econômico. Nesta perspectiva, os problemas ecológicos não surgemcomo resultado da acumulação de capital. Para a proposta neoliberal teríamos que atribuir direitos de propriedade e preços aos bens e serviços da natureza para que as clarividentes leis do mercado se encarregassem de ajustar os desequilíbrios ecológicos e as diferenças sociais, a fim de alcançar um desenvolvimento sustentável com equidade e justiça (p. 22). O discurso dominante da sustentabilidade promove um crescimento econômico sustentável, eludindo as condições ecológicas e termodinâmicas que estabelecem limites e condições à apropriação e transformação capitalista da natureza. Neste sentido, procura-se incorporar a natureza ao capital mediante uma dupla operação: por um lado, tenta-se internalizar os custos ambientais do progresso; além disso, instrumentaliza-se uma operação simbólica – um “cálculo de significação” – que recodifica o homem, a cultura e a natureza como formas aparentes de uma mesma essência: o capital. Assim os processos ecológicos e simbólicos são reconvertidos em capital natural, humano e cultural, para serem assimilados ao processo de reprodução e expansão da ordem econômica, reestruturando as condições da produção mediante uma gestão economicamente racional do ambiente (p. 23). A retorica do desenvolvimento sustentável converteu o sentido crítico do conceito de ambiente numa proclamação de políticas neoliberais que nos levariam aos objetivos do equilíbrio ecológico e da justiça social por uma via eficaz: o 3 crescimento econômico orientado pelo livre mercado. Esse discurso promete alcançar seu proposito sem uma fundamentação sobre a capacidade do mercado de dar o justo valor à natureza e à cultura; de internalizar as externalidades ambientais e dissolver as desigualdades sociais; de reverter as leis da entropia e atualizar as preferências das futuras gerações. Diante da crise ambiental, a racionalidade econômica resiste à mudança, induzindo com o discurso da sustentabilidade uma estratégia de simulação e perversão do pensamento ambiental (p. 24). Os potenciais da natureza são reduzidos à sua valorização no mercado como capital natural; o trabalho, os princípios éticos, os valores culturais, as potencialidades do homem e sua capacidade inventiva são reconvertidos em formas funcionais de um capital humano. Tudo pode ser reduzido a um valor de mercado (p. 25). O discurso do desenvolvimento sustentável inscreve-se assim numa “política de representação”, que simplifica a complexidade dos processos naturais e destrói as identidades culturais para assimilá-las a uma logica, a uma razão, a uma estratégia de poder para a apropriação da natureza como meio de produção e fonte de riqueza (p. 25). O capital, em sua fase ecológica, está passando das formas tradicionais de apropriação primitiva e selvagem dos recursos das comunidades do Terceiro Mundo, dos mecanismos econômicos do intercâmbio desigual entre matérias-primas dos países subdesenvolvidos e dos produtos tecnológicos do Primeiro Mundo, a uma nova estratégia que legitima a apropriação econômica dos recursos naturais através dos direitos privados de propriedade intelectual. Essa estratégia econômica é complementada com uma operação simbólica que define a biodiversidade como patrimônio comum da humanidade e recodifica as comunidades do Terceiro Mundo como parte do capital humano do planeta (p. 26). Prepara as condições ideológicas para a capitalização da natureza e a redução do ambiente a razão econômica. O discurso da sustentabilidade busca reconciliar os contrários da dialética do desenvolvimento: o meio ambiente e o crescimento econômico. Se intuito não é internalizar as condições ecológicas da produção, mas proclamar o crescimento econômico como um processo sustentável, firmado nos mecanismos de livre mercado como meio eficaz de assegurar o equilíbrio ecológico e igualdade social. Por sua vez a tecnologia se encarregaria de reverter os efeitos da degradação ambiental nos processos de produção, distribuição e consumo de mercadorias (p. 26-27). O discurso do desenvolvimento sustentável pressupõe que a economia entrou numa fase de pós-escassez, isto é, que a produção, como base da vida social, foi superada pela modernidade. Esta estratégia discursiva desloca a valorização dos custos ambientais para a capitalização do mundo como forma abstrata e norma generalizada da sociedade (p. 27). A cidadania global emerge da democracia representativa, não para convocar o cidadão integral, mas suas funções sociais, fragmentadas pela racionalidade econômica: como consumidor, legislador, intelectual, religioso, educador (p. 29). O neoliberalismo ambiental busca debilitar as resistências da cultura e da natureza para subsumi-las dentro da logica do capital. Seu proposito é legitimar o espolio dos recursos naturais e culturais das populações dentro de um esquema combinado, globalizado, onde seja possível dirimir os conflitos num campo neutro (p. 29). Compensação econômica. Diante destas estratégias de apropriação econômica e simbólica da natureza e da cultura, emerge hoje uma ética ambiental que propõe a revalorização da vida do ser humano. Esta ética se expressa nas lutas de resistência das comunidades indígenas e camponesas a serem convertidas em reservas etnológicas, a ceder seu patrimônio de recursos naturais e a renunciar à sua identidade cultural (p. 29). Está havendo um confronto de interesses para assimilar as condições de sustentabilidade aos mecanismos do mercado diante de um processo politico de reapropriação social da natureza. 2 – Dívida financeira, dívida ecológica, dívida da razão A dívida implicou num acordo das regras do jogo que não só institui ganhadores e perdedores, mas que coloca os segundos em posição de devedores permanentes para o desenvolvimento sustentável do jogo da dívida. Para que haja dívida, os países devedores devem assumir os termos que os engancham como iguais, num jogo desigual, sempre com a promessa de que aprendendo a apostar na roleta da globalização econômica – das vantagens comparativas, da valorização da natureza – certamente se fechará a brecha entre ricos e pobres, Seduzidos pela ideia de eliminação da diferença, os países pobres foram arrastados pelos torvelinhos do capital mundial, pelas artimanhas do capital financeiro. Os países devedores se fascinaram com as miragens do progresso e perderam o 4 jogo. Lançaram-se à perdição na embriaguez do crescimento. Trocaram a vida por tequila. O efeito da tequila é justamente a desvalorização da vida como sentido e potência, além do erro de calculo e da corrupção das finanças (p. 34). A dívida econômica funciona como um mecanismo ideológico que consolida a dependência como divida moral (p. 34). O que está em jogo não é a dívida financeira do terceiro Mundo, mas a divida oculta do Primeiro e Segundo mundos: o hiperconsumo do Norte e a superexploração ecológica do sul, a pilhagem, a rapina e a devastação dos recursos do mundo “subdesenvolvido” que alimentou o desenvolvimento industrial, esvaziando seus potenciais produtivos e deteriorando seus recursos ambientais (p. 36). O subdesenvolvimento não é a condição de atraso da corrida do crescimento econômico; o subdesenvolvimento é o aniquilamentos dos potenciais próprios de nossos países para conseguir um desenvolvimento sustentável, diverso como seus recursos ecológicos e suas culturas. A dívida externa é tão somente um reflexo da dívida das externalidades (p. 36). A dívida ecológica refere-se à subvalorização atual dos recursos naturais que subvencionam e financiam o desenvolvimento agrícola e industrial do norte. E esta lavada de recursos é legitimada pela exatidão do calculo econômico que externaliza como lixo tudo aquilo que não se submete às suas medidas, desvalorizando o ser humano, a cultura, a natureza.Neste sentido, abre-se debate não só pela injustiça distributiva do sistema econômico, mas pela distribuição ecológica, entendida como a repartição desigual dos custos e potenciais ecológicos, dessas externalidades econômicas que são incomensuráveis em termos de valores de mercado, mas que se assumem como novos custos a serem internalizados, seja por via dos instrumentos econômicos, das valorizações ecológicas ou dos movimentos sociais que surgem e se multiplicam em resposta à deterioração do ambiente (p. 36). Na perspectiva de ações orientadas para um futuro comum, os mecanismos de “implementação conjunta” foram sendo traduzidos em empréstimos e doações para a proteção da natureza e pesquisa da biodiversidade (p. 37). Os devedores da morte da natureza pedem que se internalizem os custos da deterioração ambiental, que as vítimas dos holocaustos ecológicos sejam indenizadas, que sejam valorizados os recursos naturais e incorporados às contas nacionais, que aquele que contamina pegue pelo fez. Pedem que haja compensação justa para os governos e as comunidades do Terceiro Mundo no negócio da biodiversidade. Mas esta divida ecológica não poderá dirimir-se no campo da globalização econômica (p. 38). Lutas de resistência e de dessujeitamento da globalização do movimento ambientalista. Essas lutas muito mais sua decisão de legitimar novos direitos culturais, ambientais e coletivos do que a disposição de negociar uma compensação pelos danos sofridos como resultado do impacto ecológico ou a aceitar uma distribuição dos benefícios da comercialização da natureza (p. 39). A dívida sempre foi um mecanismo de sujeição ideológica e econômica. O desenvolvimento endógeno, autodeterminado, implica uma dessujeitação dessa dívida. Isso vai além da renegociação e do refinanciamento do crescimento e dos ajustes econômicos, e leva a repensar as condições e potenciais para um desenvolvimento sustentável, fundado numa “racionalidade ambiental”. Diante da racionalidade econômica e instrumental que domina o processo de globalização, a racionalidade ambiental se funda em novos princípios éticos, valores culturais e potenciais produtivos (p. 40). A racionalidade ambiental gera uma reorganização da produção baseada no potencial produtivo da natureza, no poder da ciência e tecnologia modernas e nos processos de significação que definem identidades culturais e sentidos de existenciais dos povos em diversas formas de relação entre os seres humanos e a natureza (p. 40). 3 – Economia ecológica e ecologia produtiva A economia ecológica e a ecologia política vão sendo configuradas como novos campos teóricos e de ação política, distinguindo-se da economia ambiental (a economia neoclássica dos recursos naturais e da contaminação ambiental), contrapondo novos enfoques ao objetivo de internalizar as externalidades ambientais através de mecanismos de mercado (p. 42). A economia ecológica está construindo um novo paradigma teórico, abrindo as fronteiras interdisciplinares com diferentes campos científicos (ecologia, demografia, tecnologia, termodinâmica, antropologia, teoria de sistemas), para valorizar e incorporar as condições ecológicas do desenvolvimento (p. 43). A economia ecológica lança um olhar crítico sobre a degradação ecológica e energética resultante dos processos de produção consumo, tentando sujeitar o intercambio econômico às condições do metabolismo geral da natureza (p. 5 44). Entretanto, a produção continua sendo guiada e dominada pela lógica do mercado. A proteção do meio ambiente é considerada como um custo e condição do processo econômico, cuja “sustentabilidade” gravita em torno dos princípios de sua racionalidade mecanicista e sua valorização em curto prazo. A ecologia questiona a economia sem refundar as bases da produção nos potenciais da natureza e da diversidade cultural. Sem uma nova teoria capaz de orientar o desenvolvimento sustentável, as políticas ambientais continuam sendo subsidiárias das políticas neoliberais (p. 44). A problemática ambiental converteu-se numa questão eminentemente política. Os conflitos socioambientais emergem de princípios éticos, direitos culturais e lutas pela apropriação da natureza que vão além da internalização dos custos ecológicos para assegurar um crescimento sustentado. As identidades culturais e os valores da natureza não podem ser contabilizados e regulados pelo sistema econômico (p. 45). O discurso e as políticas da sustentabilidade estão abrindo um campo heterogêneo de perspectivas alternativas, marcado pelo conflito de interesses em torno da apropriação da natureza. Nos países do Norte, suas preocupações se concentram nos problemas ambientais globais (mudança climática, aquecimento da terra, chuva ácida, perda de biodiversidade) que, rompendo os equilíbrios ecológicos do planeta, colocam em perigo a sustentabilidade do sistema econômico (p. 45). No sul, o ambientalismo não surge da abundância, mas da luta pela sobrevivência em condições de uma crescente degradação socioambiental. Os movimentos ambientais são lutas de resistência e protesto contra a marginalização e opressão, e reivindicações por seus direitos culturais, pelo controle de seus recursos naturais, pela autogestão de seus processos produtivos e a autodeterminação de suas condições de vida (p. 48). A condição de escassez base da ciência econômica passou do processo de substituição continua de recursos esgotados para uma escassez global induzida pela expansão econômica. A destruição ecológica e o esgotamento dos recursos não são problemas gerados por processos naturais, mas determinados pelas formas sociais e pelos padrões tecnológicos de apropriação e exploração econômica da natureza. Os problemas de equidade e distribuição foram gerados pela acumulação capitalista, muito antes que ela alcançasse seus limites ecológicos (p. 49). Além dos limites ecológicos ao crescimento e de suas possíveis soluções tecnológicas e econômicas, os conflitos e estratégias de poder pela apropriação da natureza estão determinando as formas sociais sancionadas e legitimadas de acesso e uso dos recursos naturais (p. 49-50). A economia ecológica subestimou o potencial produtivo da natureza, particularmente dos complexos, produtivos e biodiversos ecossistemas tropicais (p. 50). A teoria econômica não conta com meios objetivos para medir as equivalências para o intercambio dos valores de uso (menos ainda para a medição de valores não econômicos). Os preços de mercado são sinais falsos da escassez de recursos e do potencial da natureza; não podem servir de indicadores para uma determinação racional dos fatores produtivos nem para internalizar os custos das externalidades ambientais (p. 51). O manejo múltiplo e produtivo dos recursos da biodiversidade pode gerar níveis cada vez mais altos de produtividade sustentada através da inovação e aplicação de novas biotecnologias que incrementem a produtividade primária dos ecossistemas naturais, satisfazendo assim as necessidades fundamentais de populações crescentes (p. 53). A resistência social à degradação ambiental e a resposta dos danos ecológicos mobiliza a internalização dos custos ecológicos que não são contabilizados pelos instrumentos econômicos e pelas normas ecológicas (p. 54). Através da reafirmação de seus direitos à autogestão de seu patrimônio de recursos naturais e culturais, as comunidades estão internalizando as condições para um desenvolvimento sustentável. Neste sentido, estão revalorizando a produtividade ecológica e os valores culturais integrados nos saberes e nas praticas tradicionais de uso de seus recursos. 4 – Democracia ambiental e desenvolvimento sustentável A gestão ambiental do desenvolvimento sustentável exige novos conhecimentos interdisciplinares e o planejamentointersetorial do desenvolvimento; mas é sobretudo um convite a ação dos cidadãos para participar na produção de suas condições de existências e seus projetos de vida. O desenvolvimento sustentável é um projeto social e político que aponta para o ordenamento ecológico e a descentralização territorial da produção, assim como para a diversificação dos tipos de desenvolvimento e dos modos de vida das populações que habitam o planeta. Neste sentido, oferece novos princípios aos processos de democratização da sociedade que induzem à participação direta 6 das comunidades na apropriação e transformação de seus recursos ambientais (p. 57). As mudanças ambientais em nível global estão concentrando a maior atenção da comunidade científica mundial. Mas esses processos são efeitos e estão vinculados a uma ordem econômica e uma racionalidade social também globais, que estabeleceram seu predomínio em escala mundial, penetrando nas políticas nacionais e economia locais. Hoje a pobreza é resultado de uma cadeia causal e de um circulo vicioso de desenvolvimento perverso-degradação ambiental-pobreza, induzido pelo caráter ecodestrutivo e excludente do sistema econômico dominante (LEFF, 1994c) (p. 58). Um dos grandes desafios que a sustentabilidade enfrenta é a construção do conceito de ambiente como um potencial produtivo sustentável; isto é, materializar o pensamento complexo numa nova racionalidade social que integre os processos ecológicos, tecnológicos e culturais, para gerar um desenvolvimento alternativo (p. 60). O desenvolvimento sustentável converte-se num projeto destinado a erradicar a pobreza, satisfazer as necessidades básicas e melhorar a qualidade de vida da população. A gestão ambiental não se limita a regular o processo econômico mediante normas de ordenamento ecológico, métodos de avaliação de impacto ambiental e instrumentos econômicos para a valorização dos recursos naturais. Os princípios de racionalidade ambiental oferecem novas bases para construir um novo paradigma produtivo alternativo, fundado no potencial ecológico, na inovação tecnológica e na gestão participativa dos recursos; uma nova racionalidade social que amalgama as bases democráticas e os meios de sustentabilidade do processo de desenvolvimento (p. 60). Surge o desafio de gerar estratégias que permitam articular estas economias locais com a economia de mercado nacional e mundial, preservando a autonomia cultural, as identidades étnicas e as condições ecológicas de para o desenvolvimento sustentável de cada comunidade; isto é, de integrar as populações locais num mundo diverso e sustentável (p. 61). Os princípios de gestão ambiental e de democracia participativa propõem a necessária transformação dos Estados nacionais e da ordem internacional para uma convergência dos interesses em conflito e dos objetivos comuns dos diferentes grupos e classes sociais em torno do desenvolvimento sustentável e da apropriação da natureza (p. 62). A gestão ambiental participativa está propondo, além da oportunidade de reverter os custos ecológicos e sociais da crise econômica, a possibilidade de integrar as populações marginalizadas num processo de produção para satisfazer suas necessidades fundamentais, aproveitando o potencial ecológico de seus recursos ambientais e respeitando suas identidades coletivas (p. 63). 5 – A reapropriação social da natureza Não existe um instrumento econômico, ecológico ou tecnológico capaz de calcular o “valor real” da natureza na economia (p. 65). A economia permaneceu desprovida de uma teoria do valor capaz de contabilizar de maneira racional, objetiva e quantitativa os custos ambientais e o valor dos recursos ambientais. Esses dependem de percepções culturais, direitos comunais e interesses sociais que se estabelecem fora do mercado (p. 65-66). O movimento ambiental não só transmite os custos ecológicos ao sistema econômico como uma resistência à capitalização da natureza ; as lutas sociais para melhorar as condições de sustentabilidade e a qualidade de vida abrem um processo de reapropriação da natureza (p. 66). A categoria de distribuição ecológica foi formulada para compreender as externalidades ambientais e os movimentos sociais que emergem de “conflitos distributivos”; isto é, para explicar a carga desigual dos custos ecológicos e seus efeitos nas variedades do ambientalismo emergente, incluindo os movimentos de resistência e justiça ambiental (p. 67). A distribuição ecológica compreende os processos extraeconômicos (ecológicos e políticos) que vinculam a economia ecológica à ecologia política, em analogia com o conceito de distribuição que transfere a racionalidade econômica para o campo da economia política. O conflito distribucional introduz na economia política do ambiente as condições ecológicas de sobrevivência e produção, como também o conflito social que emerge das formas dominantes de apropriação da natureza e da contaminação ambiental (p. 67). Face à economia convencional que pretende internalizar as externalidades através da distribuição dos direitos de propriedade e preços de bens e serviços ambientais, a economia ecológica reconhece a distribuição econômica (da riqueza e da renda) como determinante da valorização da natureza. A categoria de distribuição ecológica incorpora assim o conflito gerado pela distribuição desigual dos custos ecológicos do crescimento e sua internalização através dos movimentos sociais em defesa do ambiente e dos 7 recursos naturais. Os conflitos de distribuição ecológica expressam dessa maneira a politização do campo das externalidades (p. 68). Certamente os movimentos de resistência à capitalização da ordem da cultura e as reivindicações compensadoras pelos danos à natureza são uma resposta a estas formas de iniquidade e injustiça dentro da ordem econômica, institucional e jurídica dominante. Porém o “ecologismo dos pobres”, além de distinguir-se por seus objetivos (luta pela sobrevivência) dos valores pós-materialistas (qualidade de vida) dos ricos, propõe projetos produtivos e sociais alternativos, onde toda luta pela equidade e pela justiça se trava a partir de princípios de diversidade e diferença, de identidade e autonomia, e não de transações e compensações estabelecidas pelas regras de valorização, negociação, complementação e distribuição da globalização econômico- ecológica (p. 69). Na verdade, não há normas internas da economia e nem da ecologia que permitam equacionar a questão da justiça ambiental, uma vez que não se trata de valores estritamente econômicos nem exclusivamente ecológicos que definem os “custos” e os sentidos mobilizados em defesa da natureza e da apropriação dos potenciais ecológicos. A legitimação e força destes valores ambientalistas dependem da formação de consciências coletivas, da constituição de novos atores sociais e da condução de ações políticas através de novas estratégias de poder em sociedades com democracias imperfeitas, onde a consciência ambiental é pervertida pelas formas de simulação, cooptação e controle dos poderes dominantes (p. 71). Considerar o conflito socioambiental como um campo de lutas ecológicas distorce as relações que a defesa da “ecologia” mantém com as lutas pela autonomia cultural e pela democracia. Ou pode velar o caráter “ambiental” (e não meramente ecológico) de um movimento de cidadãos em defesa de sua identidade coletiva, onde o problema de distribuição ecológica (entre o uso privado e o uso comunitário do ambiente) não se resolve através de uma negociação em torno de um conflito econômico- ecológico, com critérios técnicos de impacto ambiental e custo benefício. Neste sentido estão surgindo movimentos sociais que integram a resistência cultural como defesa de um estilo de vida, e a defesa do meio ambientecomo um processo de reapropriação de seu entorno e seu patrimônio de recursos naturais (p. 73). A categoria racionalidade ambiental internaliza a incomensurabilidade dos processos que a constituem (potencial ecotecnológico, diversidade étnica, significado cultural), com um princípio epistemológico e político, rompendo com a ordem homogeneizante e dominante, incluindo os enfoques críticos da economia ecológica (p. 74). A articulação de processos ecológicos, tecnológicos e culturais determina formas de apropriação da natureza e gera uma produtividade ecotecnológica sustentável. Esta racionalidade ambiental não se constrói de cima para baixo, como um processo de planificação que imporia as comunidades e às nações as leis de uma nova ordem ecológica global. A construção desta nova ordem social se orienta por valores culturais diversos e se defronta com interesses sociais opostos; nela se entrelaçam relações de poder pela reapropriação da natureza e pela autogestão dos processos produtivos (p. 75). A questão da equidade na reapropriação da natureza não se limita a resolver os conflitos ambientais através de uma avaliação dos custos dos benefícios derivados das formas atuais de exploração e uso da natureza, ou pela atribuição de “preços justos”, de direitos de propriedade e de formas adequadas de uso dos recursos. A democracia ambiental questiona a possibilidade de alcançar a justiça em termos da comensurabilidade de custos e da equivalência de necessidades, demandas e direitos sobre os recursos que se definem através de sentidos culturais diversos e dos interesses heterogêneos de grupos sociais que se expressam nas lutas e estratégias pela apropriação da natureza (p. 77). As condições de existência das comunidades dependem da legitimação dos direitos de propriedade sobre seu patrimônio de recursos naturais, de seus direitos a preservar, sua identidade étnica e sua autonomia cultural, para redefinir seus processos de produção e seus estilos de vida. Neste sentido, os novos direitos indígenas e ambientais vêm questionando e transformando a norma estabelecida pelo sistema de regulamentação jurídica da sociedade, para abrir caminho a novas demandas sociais e novas utopias (p. 78). No terreno do ambiente, os novos direitos humanos estão incorporando a proteção dos bens e serviços ambientais comuns da humanidade, assim como o direito de todo ser humano ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades; pouco a pouco, as lutas das comunidades por sua autonomia local e regional vão reivindicando o direito aos seus recursos naturais (p. 79). O aproveitamento da biodiversidade coloca um dilema: a apropriação da natureza pelo capital através dos direitos de propriedade intelectual, ou a legitimação dos direitos dos povos indígenas sobre seu patrimônio de recursos naturais 8 e culturais, efeito da evolução biológica e das formas culturais de seleção de espécies e uso dos recursos (Hobbelink, 1992; Martínez Alier, 1994) (p. 80). O desenvolvimento sustentável vai além do propósito de capitalizar a natureza e de ecologizar a ordem econômica. A sustentabilidade ambiental implica um processo de socialização da natureza e o manejo comunitário dos recursos, fundados em princípios de diversidade ecológica e cultural. Neste sentido, a democracia e a equidade se redefinem em termos dos direitos de propriedade e de acesso aos recursos, das condições de reapropriação do ambiente (p. 82). 6 - ÉTICA AMBIENTAL E DIREITOS CULTURAIS A racionalidade ambiental se funda numa nova ética que se manifesta em comportamentos humanos em harmonia com a natureza; em princípios de uma vida democrática e em valores culturais que dão sentido à existência humana. Estes se traduzem num conjunto de práticas sociais que transformam as estruturas do poder associadas à ordem econômica estabelecida, mobilizando um potencial ambiental para a construção de uma racionalidade social alternativa (p. 85). A ética ambiental propõe um sistema de valores associado a uma racionalidade produtiva alternativa, a novos potenciais de desenvolvimento e a uma diversidade de estilos culturais de vida. Isto supõe a necessidade de ver como os princípios éticos de uma racionalidade ambiental se opõem e amalgamam com outros sistemas de valores: como se traduzem os valores ambientais em novos comportamentos e sentidos dos agentes econômicos e dos atores sociais (p. 86). O conceito de ambiente implica, pois, além de um equilíbrio entre crescimento econômico e conservação da natureza, a possibilidade de mobilizar o potencial ecotecnológico, a criatividade cultural e a participação social para construir formas diversas de um desenvolvimento sustentável, igualitário, descentralizado e autogestionário, capaz de satisfazer as necessidades básicas das populações, respeitando sua diversidade cultural e melhorando sua qualidade de vida. Isto implica a transformação dos processos de produção, dos valores sociais e das relações de poder para construir uma nova racionalidade produtiva com a gestão participativa da cidadania (p. 86). Do socialismo utópico ao socialismo científico, do marxismo ao racionalismo crítico, foi construído um pensamento que procura vencer a “falsa consciência” e a “alienação do homem”. Este pensamento crítico não só se apresenta como resposta à exploração da força de trabalho, mas também como resposta ao impacto da sociedade industrial e ao império da razão tecnológica sobre os valores morais e os sentidos existenciais que fundamentam a qualidade da vida humana (p. 87). A ética ambiental reivindica os valores do humanismo: a integridade humana, o sentido da vida, a solidariedade social, o reencantamento da vida e a erotização do mundo (p. 87). A pobreza crítica e a degradação ecológica estão associadas à imposição de modelos tecnológicos e projetos de colonização que provocaram migrações, assentamentos precários, desemprego e desnutrição; condições de amontoamento e uma vida insalubre e indigna; o desarraigamento das comunidades de seus espaços étnicos, a destruição de suas identidades culturais e o abandono de práticas tradicionais de uso dos recursos (p. 90). O desenvolvimento sustentável surge com o propósito de conseguir um ordenamento racional do ambiente, sem exigir que o ambiente funde uma nova racionalidade, que a degradação ambiental não se resolva com os instrumentos da racionalidade econômica. Neste sentido, a questão ambiental está ampliando o marco dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Os sistemas jurídicos estão se transformando para atender os conflitos de apropriação e manejo dos bens comuns (p. 92). Embora os direitos ambientais tenham convertido a “humanidade” em sujeito do direito internacional, isto não quer dizer que todos os seres humanos tenham o mesmo direito de beneficiar-se do “patrimônio comum da humanidade”. Na realidade os Estados são os únicos sujeitos deste novo direito internacional. Assim, foram estabelecidos muito mais convênios e normas para o comportamento da comunidade de nações, do que princípios para o acesso social e comunitário aos recursos ambientais. A exploração dos recursos naturais continua mais sujeita aos direitos privados de propriedade, do que aos direitos de apropriação das comunidades. As normas jurídicas sancionam condutas individuais que geram efeitos nocivos para o ambiente, sem definir o campo dos novos direitos coletivos que reorientam as formas de produção e apropriação dos bens comuns da natureza (p. 93). A construção de uma racionalidade ambiental implica o resgate destas práticas tradicionais, como um princípio ético para a conservação de suas identidades culturais e como um princípio 9 produtivo para o uso racional dos recursos. Estes princípios se expressam comoreivindicações das próprias comunidades indígenas e rurais, que lutam por preservar seus valores culturais associados à apropriação de seu patrimônio de recursos naturais (p. 95). Neste sentido, os princípios e valores ambientais estão sendo sistematizados por conceitos e teorias que os articulam com as bases materiais de uma nova racionalidade produtiva (de uma produtividade ecotecnológica), através de instrumentos técnicos, normas jurídicas, políticas científicas, movimentos sociais e estratégias políticas que constituem os meios de uma racionalidade ambiental, orientando a reapropriação social da natureza e a gestão ambiental do desenvolvimento (p. 95). 7 - AMBIENTE E MOVIMENTOS SOCIAIS O custo social da destruição ecológica e da degradação ambiental gerada pela maximização do lucro e dos excedentes econômicos a curto prazo deram pois impulso à emergência de novos atores sociais mobilizados por valores, direitos e demandas que orientam a construção de uma racionalidade ambiental (p. 96). O desenvolvimento deste potencial ambiental funda-se no aproveitamento da produtividade ecológica dos recursos naturais e da energia social contida nos valores culturais e nas práticas tradicionais de uso dos recursos de diferentes regiões e localidades, através do planejamento transetorial do ecodesenvolvimento, da autogestão comunitária e da descentralização das atividades produtivas, com o objetivo de gerar um desenvolvimento sustentável, endógeno e auto-suficiente (p. 97). As demandas ambientais promovem a participação democrática da sociedade no uso e manejo dos recursos atuais e potenciais, assim como a construção de novos estilos de desenvolvimento, fundados em princípios de sustentabilidade ecológica, equidade social, diversidade étnica e autonomia cultural (p. 99). O saber ambiental questiona os comportamentos associados às práticas de consumo derivadas da sociedade pós-industrial e os interesses disciplinares que obstaculizam a produção de estudos integrados do processo de desenvolvimento; da mesma forma, problematiza as ideologias que orientam as demandas das classes trabalhadoras e dos movimentos populares para satisfazer suas necessidades básicas através do acesso ao mercado de trabalho e da redistribuição da renda (p. 100). O ambientalismo abre-se assim para um novo projeto de civilização, orientado para a construção de uma nova racionalidade social e produtiva. Isto coloca a transformação do Estado como “lugar” de confronto dos interesses contraditórios e de concentração dos objetivos comuns das diferentes classes e grupos sociais, e como instância responsável pelo planejamento do desenvolvimento e pelo ordenamento ecológico em nível nacional, a fim de gerar as condições necessárias a uma apropriação mais equitativa dos recursos ambientais e a uma gestão mais participativa dos povos no aproveitamento dos recursos naturais e produtivos (p. 103). Nos movimentos ecologistas ou ambientalistas, estes valores estão vinculados à construção de uma nova racionalidade social e produtiva, abrindo perspectivas a um desenvolvimento alternativo. As alianças populares e as novas estratégias de conciliação do Estado com as organizações políticas e a sociedade civil prevêem a necessidade de incorporar o estudo destes movimentos sociais dentro do campo da sociologia política (p. 104-105). O movimento ambiental se expressa num processo contraditório de participação-marginalização, abertura-repressão, conciliação-mediatização. As estratégias do ambientalismo podem levar a uma maior participação e a uma gestão democrática dos recursos, ou então à marginalização das experiências emergentes do ecologismo das instâncias reais de poder e de tomada de decisões sobre o processo de desenvolvimento (p. 107). Estes movimentos (os movimentos ambientais) caracterizam-se por sua composição pluralista e pela heterogeneidade de seus atores sociais que vão conformando alianças em torno de objetivos comuns: a sobrevivência da espécie humana, a conservação da natureza, a diversidade étnica, a auto-suficiência alimentar, a seguridade social, o equilíbrio ecológico, a qualidade de vida e a participação comunitária na gestão dos recursos. Porém é difícil passar desta lista de problemas que mobilizam diferentes grupos sociais ao estabelecimento de uma tipologia específica dos diversos movimentos e grupos ambientalistas, com base em sua fidelidade formal, discursiva ou prática aos seus princípios e objetivos, e em suas estratégias políticas, em suas alianças de classe e em suas filiações partidárias (p. 113). Em todo caso, é possível fazer uma distinção entre os movimentos “ecologistas do Norte” e os movimentos “ambientalistas do Sul”. O ecologismo dos países altamente industrializados surgiu como uma ética e uma estética da natureza, como uma 10 busca de novos valores que surgiriam das condições de “pós-materialidade” (Inglehart, 1991) que produziria uma sociedade da abundância, livre das necessidades básicas e da sobrevivência. São “movimentos de consciência” que desejariam salvar o planeta do desastre ecológico, recuperar o contato com a natureza, mas que não questionam a ordem econômica dominante. Por sua vez, os movimentos ambientalistas nos países pobres surgem em resposta à destruição da natureza e ao esbulho de suas formas de vida e de seus meios de produção; são movimentos desencadeados por conflitos sobre o acesso e o controle dos recursos; são movimentos pela reapropriação social da natureza vinculados a processos de democratização, à defesa de seus territórios, de suas identidades étnicas, de sua autonomia política e sua capacidade de autogerir suas formas de vida e seus estilos de desenvolvimento. São movimentos que definem as condições materiais de produção e os valores culturais das comunidades locais (p. 114). Os grupos sociais que se mobilizam pelos princípios de uma racionalidade ambiental nos países do Terceiro Mundo incorporam em suas formações ideológicas um conceito de ambiente mais rico e complexo que o conceito de ecologia que está na base do conservacionismo dos países centrais (p. 115). 8 - CIDADANIA, GLOBALIZAÇÃO E PÓS-MODERNIDADE Além da alienação tecnológica, o capitalismo real exerce seu poder repressivo através de suas estratégias de silenciamento e de simulação: no indizível e na indecisão diante do limite. O capitalismo real gera uma razão de força maior - o estado permanente de urgência provocado pela crise econômica e ecológica - diante da qual é preciso atuar de acordo com as leis cegas do mercado e as normas dos poderes estabelecidos (p. 119). O que esta estratégia de silêncio impõe é o esvaziamento do que hoje pode ser pensado como campo de possibilidades diante do obscurantismo hegemônico das leis cegas do mercado. Diante do poder simbólico desta razão totalitária, ficamos sem fala para afirmar nosso lugar no mundo, sem palavras para significar e dar sentido à nossa existência, sem um pensamento capaz de orientar a construção de nosso futuro (p. 120). Diante da desarticulação e dissolução dos movimentos sociais, o saber ambiental emerge de seu sonho (pesadelo?) legitimando novos direitos humanos e despejando novas vias de transformação histórica. De suas lutas de resistência, a cidadania desperta para a invenção de novas utopias. O saber ambiental é mobilizado por essa vontade de poder querer, que vincula o conhecimento a uma ética do desejo. A qualidade de vida não busca o transbordamento dos imperativos pulsionais nem a satisfação de necessidades reguladas pela racionalidade econômica. É busca de sentidos, abertura do desejo e norma diante do reconhecimento dos limites (p. 121). Percebemos hoje a crise da racionalidade econômica sobre a qual foi construída a civilização moderna. E ao mesmotempo nos desencontramos num mundo sem referentes teóricos nem apoios ideológicos para orientar uma práxis transformadora da realidade; para construir o novo mundo guiados por uma praxeologia que oriente e viabilize a passagem para uma sustentabilidade fundada na democracia e na recriação dos sentidos existenciais (p. 122). A globalização econômica como processo conduzido pelo sentido civilizatório para a realização do homo economicus como o estado mais acabado do sentido da existência humana, e o disfarce do discurso da sustentabilidade, que encobre o limite da capitalização da natureza e da cultura, formam uma cortina de fumaça e uma realidade incontestáveis (p. 124). A capitalização da vida e a forja de novas utopias as novas estratégias do poder do capital na etapa da globalização ecologizada não se reduzem à exploração direta dos recursos, mas a uma recodificação do mundo, das diferentes ordens de valor e de racionalidade, à forma abstrata de um sistema generalizado de relações mercantis (p. 125). A desigualdade ambiental não se resolve internalizando os custos ecológicos na lógica do mercado, nem invertendo a relação do impacto da pobreza sobre a capacidade de carga do ecossistema; a equidade diante da sustentabilidade deve levar a perceber como a racionalidade tecnológica e econômica afeta os equilíbrios ecológicos existentes e as formas culturais de acesso e transformação da natureza, gerando novas formas de desigualdade social e de distribuição ecológica dos recursos entre os diferentes atores sociais (p. 128). Na diversidade cultural, a competição se dissolve em outra maneira de olhar a alteridade, como complementaridade, cooperação, solidariedade e integralidade do múltiplo (p. 128). Na visão ocidental, as sociedades de auto-subsistência são vistas como “pobres” porque não se ajustam aos critérios de bem-estar através do consumo da economia de mercado. Entretanto, é a transformação das economias de subsistência para integrá-las 11 ao mercado que converte estas comunidades em sociedades pobres; não só em termos relativos (como marginalizadas do sistema), mas em termos absolutos, ao solapar seus meios naturais de produção de subsistência (p. 129). O movimento ambiental cidadão não propõe uma redistribuição de poder nem reclama um melhor balanço dos custos ecológicos do processo econômico, mas abre novos processos políticos e jurídicos para a apropriação social da natureza. O movimento ambiental não é uma fuga ao passado, mas a invenção de um novo futuro; não é a recusa da ciência, mas a fusão dos saberes tradicionais e do conhecimento moderno (p. 130). O reconhecimento à cultura e à autonomia dos povos indígenas está exigindo seus direitos a autodeterminar suas formas de organização social. Isto certamente vai ajudar a recuperar seu patrimônio de recursos naturais e culturais e a colocá-los a funcionar dentro de novas formas de autogestão produtiva (p. 131). 9 - O CONCEITO DE RACIONALIDADE AMBIENTAL A questão ambiental estabelece a necessidade de introduzir reformas democráticas no Estado, de incorporar normas ecológicas ao processo econômico e de criar novas técnicas para controlar os efeitos contaminantes e dissolver as externalidades socioambientais geradas pela lógica do capital (p. 133). A racionalidade ambiental não é a expressão de uma lógica, mas o efeito de um conjunto de interesses e de práticas sociais que articulam ordens materiais diversas que dão sentido e organizam processos sociais através de certas regras, meios e fins socialmente construídos. Estes processos especificam o campo das contradições e relações entre a lógica do capital e as leis biológicas; entre a dinâmica dos processos ecológicos e as transformações dos sistemas socioambientais (p. 134). A categoria de racionalidade ambiental integra os princípios éticos, as bases materiais, os instrumentos técnicos e jurídicos e as ações orientadas para a gestão democrática e sustentável do desenvolvimento; por sua vez, converte- se num conceito normativo para analisar a consistência dos princípios do ambientalismo em suas formações teóricas e ideológicas, das transformações institucionais e programas governamentais, assim como dos movimentos sociais, para alcançar estes fins (p. 135). O saber ambiental questiona a racionalidade científica como instrumento de dominação da natureza e sua pretensão de dissolver as externalidades do sistema através de uma gestão racional do processo de desenvolvimento (p. 136). A racionalidade ambiental se constrói mediante a articulação de quatro esferas de racionalidade: a) uma racionalidade substantiva, isto é, um sistema axiológico que define os valores e objetivos que orientam as ações sociais para a construção de uma racionalidade ambiental (v. gr. sustentabilidade ecológica, equidade social, diversidade cultural, democracia política); b) uma racionalidade teórica que sistematiza os valores da racionalidade substantiva articulando-os com os processos ecológicos, culturais, tecnológicos, políticos e econômicos que constituem as condições materiais, os potenciais e as motivações que sustentam a construção de uma nova racionalidade social e produtiva; c) uma racionalidade instrumental que cria os vínculos técnicos, funcionais e operacionais entre os objetivos sociais e as bases materiais do desenvolvimento sustentável, através de um sistema de meios eficazes; d) uma racionalidade cultural - entendida como um sistema singular e diverso de significações que não se submetem a valores homogêneos nem a uma lógica ambiental geral, que produz a identidade e integridade de cada cultura, dando coerência a suas práticas sociais e produtivas em relação com as potencialidades de seu entorno geográfico e de seus recursos naturais. 10 - A FORMAÇÃO DO SABER AMBIENTAL O saber ambiental problematiza o conhecimento fragmentado em disciplinas e a administração setorial do desenvolvimento, para constituir um campo de conhecimentos teóricos e práticos orientado para a rearticulação das relações sociedade-natureza. Este conhecimento não se esgota na extensão dos paradigmas da ecologia para compreender a dinâmica dos processos socioambientais, nem se limita a um componente ecológico nos paradigmas atuais do conhecimento. O saber ambiental excede as “ciências ambientais”, constituídas como um conjunto de especializações surgidas da incorporação dos enfoques ecológicos às disciplinas tradicionais - antropologia ecológica; ecologia urbana; saúde, psicologia, economia e engenharia ambientais e se estende além do campo de articulação das ciências (Leff, 1986/2000), para abrir-se ao terreno dos valores éticos, dos conhecimentos práticos e dos saberes 12 tradicionais (p. 145). O ambiente transforma as ciências e gera um processo de ambientalização interdisciplinar do saber (p. 146). O saber ambiental é constituído não só pela confluência de disciplinas científicas estabelecidas, mas pela emergência de um conjunto de saberes teóricos, técnicos e estratégicos, atravessados por estratégias de poder no saber, donde se depreende seu sentido teórico e o potencial de suas aplicações (p. 147). A retotalização do saber proposta pela problemática ambiental é mais do que a soma e a articulação dos paradigmas científicos existentes; implica a transformação de seus conhecimentos para internalizar o saber ambiental emergente. A necessária inter e transdisciplinaridade do saber ambiental transcende os alcances de um paradigma globalizante, a unificação das homologias estruturais de diferentes teorias, ou a integração de saberes diversos por uma metalinguagem comum (p. 148). O saber ambiental emergente transforma os paradigmas do conhecimento das ciências naturais e sociais. Cada ciência impõe as condições epistemológicase os interesses disciplinares à reconstrução de seus paradigmas, num processo heterogêneo e desigual do qual emergem as disciplinas ambientais (p. 150). A emergência do saber ambiental abriu novas frentes para o desenvolvimento das disciplinas sociais: a relação entre cultura e natureza, a complementaridade entre geografia e ecologia, a influência do meio na consciência e no comportamento social, as bases ecológicas de uma economia sustentável e a análise da dinâmica de sistemas socioambientais complexos. Desta maneira, o saber ambiental transforma o campo do conhecimento gerando novos objetos interdisciplinares de conhecimento, novos campos de aplicação e novos processos sociais de objetivação onde se constrói a racionalidade ambiental. O saber ambiental se constitui através de processos políticos, culturais e sociais, que obstaculizam ou promovem a realização de suas potencialidades para transformar as relações sociedade-natureza (p. 151). O saber ambiental coloca o problema da articulação das espacialidades e temporalidades de diferentes processos naturais e sociais: a harmonização e conflito entre os ciclos econômicos e ecológicos, entre a valorização econômica e os valores culturais; entre a maximização dos ganhos, dos tempos de regeneração dos recursos naturais e dos processos de inovação e assimilação tecnológica; entre os diferentes espaços ecológicos, geográficos, culturais, políticos e econômicos onde se concretizam as ações da gestão ambiental. A aplicação do saber aos programas de gestão ambiental levanta a necessidade de elaborar indicadores interprocessuais capazes de analisar, avaliar e monitorar sistemas e processos ambientais complexos (a qualidade de vida; a valorização econômica, cultural e social dos recursos; os impactos ambientais e as mudanças globais; o condicionamento ambiental da dinâmica demográfica e do espaço urbano/regional), nos quais intervém processos de diversos níveis de materialidade e ordens de racionalidade (p. 152). A gestão ambiental local parte do saber ambiental das comunidades, onde se funde a consciência de seu meio, o saber sobre as propriedades e as formas de manejo sustentável de seus recursos, com suas formações simbólicas e o sentido de suas práticas sociais, onde se integram diversos processos no intercâmbio de saberes sobre o ambiente (p. 153-154): a) O saber ambiental de cada comunidade inserido em suas formações ideológicas, suas práticas culturais, suas técnicas tradicionais. b) O saber ambiental que é gerado na sistematização e no intercâmbio de experiências de uso e manejo sustentável dos recursos naturais. c) A transferência e aplicação de conhecimentos científicos e tecnológicos sobre um meio ambiente, sua apropriação cultural e sua assimilação às práticas e saberes tradicionais de uso dos recursos. 11 - SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO E RACIONALIDADE AMBIENTAL As transformações do conhecimento induzidas pelo saber ambiental têm, pois, efeitos epistemológicos (mudanças nos objetos de conhecimento), teóricos (mudanças nos paradigmas de conhecimento) e metodológicos (interdisciplinaridade, sistemas complexos). O ambiente constitui um campo de externalidade e complementaridade das ciências. Em torno de cada objeto de conhecimento constrói-se um saber ambiental que problematiza e transforma seus paradigmas de conhecimento. Exemplos disto existem nos desenvolvimentos recentes da economia, da antropologia, da geografia, do direito e da sociologia (p. 159-160): Economia: O saber ambiental questiona a economia construída como uma racionalidade antinatura e em curto prazo, sem bases de sustentabilidade e de equidade. As limitações da economia para internalizar suas externalidades (os processos ecológicos que sustentam a produção; os valores culturais que significam e dão sentido ao processo de 13 desenvolvimento; a equidade, a distribuição e a democracia) mostram a necessidade de construir um novo paradigma produtivo. Direito: O saber ambiental incorpora os novos direitos humanos a um ambiente sadio e produtivo, os direitos comunitários à autogestão de seu patrimônio de recursos e à normatividade social sobre as condições de acesso e uso dos bens comuns da humanidade. Isto questiona a ordem jurídica constituída sobre os princípios do direito privado e abre um novo campo de direitos culturais, ambientais e coletivos a um ordenamento jurídico que responda a novas formas de propriedade e apropriação dos meios de vida e de produção, promovidos por processos emergentes de socialização da natureza. Antropologia e etnociencias: A antropologia ecológica está evoluindo para o neofuncionalismo e neo-evolucionismo que incorporam princípios de acionalidade energética e ecológica na explicação da organização cultural, e a adaptação funcional das populações à “capacidade de carga” dos ecossistemas. Também as etnociências estão passando por um questionamento epistemológico a partir da perspectiva da racionalidade ambiental, que leva à análise do diálogo, ao amálgama e às relações de poder entre os saberes locais, autóctones e tradicionais, com as ciências e tecnologias modernas. Geografia e ecologia: Estas disciplinas estabelecem novos campos de colaboração para espacializar a ecologia e dar escalas temporais à geografia, com o propósito de construir unidades operacionais de manejo dos recursos naturais. Daí surgiram novos ramos da geografia física, a ecologia da paisagem e a geografia humana, como também novos métodos para integrar a análise cartográfica da geografia descritiva com as explicações dos processos dinâmicos dos ecossistemas. A ecologia funcional gerou conceitos como resiliência, taxa ecológica de exploração e capacidade de carga, que respondem á necessidade de internalizar os efeitos das práticas produtivas e dos processos econômicos na estrutura e funcionamento dos ecossistemas. É possível pensar o ambiente como um espaço de articulação de processos de diferentes ordens de materialidade e racionalidade, capazes de gerar um potencial ambiental de desenvolvimento, e não como uma externalidade ou um custo do sistema econômico (p. 163). O saber ambiental e a racionalidade ambiental não são pois princípios epistemológicos para a reunificação do saber ou para a integração interdisciplinar das ciências. São categorias que funcionam como estrategias conceituais, que se constroem e concretizam através de múltiplas inter-relações entre a teoria e a práxis (p. 164). A sociologia do saber ambiental abre assim uma perspectiva de análise das contradições e formas de convivência entre os enunciados descritivos, explicativos, valorativos e propositivos que se entremesclam nas formações teóricas e ideológicas do discurso ambiental, e os princípios de racionalidade econômica e da lógica do mercado, que se constituíram na norma da racionalidade legitimada pela realidade existente mas que reduz o campo de construção do real possível (p. 165). A racionalidade ambiental se constrói num processo histórico de produção de verdades; de objetivação das forças materiais que conformam o potencial ambiental de desenvolvimento; de legitimação de novos valores; de instrumentação de novos princípios; de legalização de novas regras, normas e condições ambientais (p. 165). 12 - MATEMATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO E SABER AMBIENTAL O saber ambiental se relaciona com diversos campos matematizáveis do conhecimento, com métodos sistêmicos e interdisciplinares e com formações discursivas e conhecimentos técnicos sem pretensão de cientificidade, que conformam um campo heterogêneo de saberes em tomo do desenvolvimento sustentável (p. 167). A economia matemática tentou estender seus instrumentos analíticos para “internalizar suas externalidades”. Assim, os preços- sombra atribuem valores aos serviçosambientais, aos valores éticos, a tudo isto que não se valoriza em forma “natural” no processo de formação dos preços de mercado, utilizando para isto apreciações pessoais, estimações consensuais ou tendências institucionais (p. 169). Nem todos os saberes ambientais são construídos ou podem dar lugar a estruturas homologáveis e a saberes matematizáveis (p. 170). O saber ambiental privilegia o qualitativo frente ao quantificável da realidade social. O conceito de qualidade de vida, como propósito do processo de desenvolvimento, coloca a necessidade de elaborar novos indicadores interdisciplinares, onde os valores e significações sociais se integrem com as mediações sobre processos de ordem natural (p. 171). O estudo pioneiro mais importante no campo do desenvolvimento sustentável foi o promovido pelo Clube de Roma: Os limites do crescimento (Meadows et al., 1972). Esta análise prospectiva entrelaça as tendências no crescimento da população e 14 da economia, do uso de energia, da contaminação e do esgotamento de recursos finitos, através de um modelo matemático, para diagnosticar os limiares além dos quais se chegaria a uma catástrofe ecológica (p. 172). Este modelo deu lugar ao “antimodelo latino-americano”. Com o sugestivo e crítico título de Catastrofe ou nova sociedade, este estudo mostrava que os limites ao desenvolvimento não eram físicos, nem provinham da explosão demográfica ou da limitação dos recursos naturais (p. 172). As aplicações das ferramentas da matemática à problemática ambiental vêm sendo multiplicadas com a crescente globalização dos efeitos ambientais do crescimento econômico e do desenvolvimento da tecnologia. Surgiram assim novas técnicas de diagnóstico e monitoramento, desde a aplicação dos sensores remotos para a avaliação dos recursos naturais, até os sistemas de informação geográfica. Estas técnicas constituem um poderoso instrumento de diagnóstico; permitem projetar tendências e fazer prognósticos sobre mudanças ambientais. Contudo, seu uso não vem necessariamente associado ao desenvolvimento de métodos para a análise de sistemas ambientais complexos, das relações epistêmicas entre ciências naturais e ciências sociais, e da imbricação de processos de diferentes ordens de materialidade: física, biológica, cultural, econômica, tecnológica e social. As matemáticas poderão articular os campos formalizáveis das ciências, mas não poderão estabelecer os vínculos e o diálogo entre os conhecimentos e os saberes que conformam o campo da racionalidade ambiental (p. 173). A incomensurabilidade do valor econômico, dos valores culturais e da eficiência energética impedem estabelecer uma função-objetivo que possa ser satisfeita por um algoritmo e uma unidade homogênea de medida. Mas fomentam a construção de diversas unidades ambientais de produção que geram efeitos sinergéticos positivos no equilíbrio dos ecossistemas, na eliminação da pobreza e no desenvolvimento sustentável. Neste sentido, a racionalidade ambiental incorpora saberes e conhecimentos que contribuem para cumprir com objetivos sociais primordiais que não puderam ser resolvidos com a aplicação dos modelos de prognóstico e de aplicação das ciências exatas e pela racionalidade econômica (p. 177). O saber ambiental se constitui através da desconstrução dos paradigmas dominantes do conhecimento e através da produção e articulação de saberes, para construir novas racionalidades sociais possíveis. Para isto é necessário derrubar as fortalezas da “ciência normal”, levantar as comportas que permitam o fluxo interdisciplinar de conhecimentos e abrir um diálogo produtivo entre saberes (p. 178). 13 - O INCONSCIENTE IN(TER)DISCIPLINAR No processo de transição da modernidade para a pós-modernidade, enfrentam-se as tendências da unidade do conhecimento e da homogeneização cultural, com a valorização da diversidade e da diferença. Estas tendências se refletem nas posições subjetivas diante do saber e no campo da interdisciplinaridade. O projeto interdisciplinar surge com o propósito de reorientar a formação profissional através de um pensamento capaz de apreender a unidade da realidade para solucionar os complexos problemas gerados pela racionalidade social, econômica e tecnológica dominante (p. 180). A interdisciplinaridade busca construir uma realidade multifacetária, porém homogênea, cujas perspectivas são o reflexo das luzes que sobre ela projetam os diferentes enfoques disciplinares. O conhecimento global ao qual aspira se conforma na convergência de um conjunto de visões parciais que se integram organicamente como um código de objetos-sinais do saber (p. 182). A sistematização do saber, a normalização das ações sociais, a uniformização dos estilos culturais aparecem como o sinal unitário do regime totalitário do valor de câmbio. A teoria geral de sistemas pretende englobar os diferentes campos do conhecimento sob o signo analógico de identidade, ocultando a especificidade teórica que produz a organização e a integridade conceitual das ciências. Fascínio por um sistema transdisciplinar que ultrapassa as fronteiras do conhecimento para promover a livre transferência de noções tecnológicas entre continentes científicos. Sistema monetário que legitima a plena situação de saberes, o livre intercâmbio de mercadorias-conhecimento que acompanham a capitalização da natureza (p. 183). O processo interdisciplinar mobilizará a produção de novos conhecimentos, enquanto às disciplinas particulares lhes reste um potencial a desenvolver em seu intercâmbio com outros saberes; enquanto os sujeitos do saber conservem um impulso por conhecer o desconhecido, a necessidade de descobrir e construir algo real além do restrito horizonte de visibilidade da realidade; enquanto exista uma capacidade para conjeturar o que 15 não é dedutível a partir da análise sintética do dado; enquanto não se esgote a necessidade emancipadora de construir novas utopias nem a curiosidade por explorar alternativas além das opções que as situações herdadas e as tendências atuais oferecem; enquanto continue vivo o impulso por saber, o pensamento crítico e o movimento criador das ideias (p. 186). 14 - PSICANÁLISE E SABER AMBIENTAL Também a psicologia vem se “ambientalizando”. Desta maneira, analisa as formas como as condições ambientais afetam as capacidades cognitivas, mobilizam os comportamentos sociais e causam impacto à saúde mental. Também o campo emergente da psicologia ambiental contribui para a análise das percepções e interpretações das pessoas sobre seu meio ambiente, vinculando-se ao terreno da psicologia social no estudo da formação de uma consciência ambiental e seus efeitos na mobilização dos atores sociais do ambientalismo (p. 187). O encontro frente a frente entre saber ambiental e saber psicanalítico não produz a “ambientalização” da psicanálise mediante uma introjeção de suas perspectivas epistemológicas e políticas; tampouco permite “psicanalisar” o ambientalismo com o propósito de eliminar as subjetividades que o habitam e sanear sua patologia discursiva, erradicando o discurso perverso do desenvolvimento sustentável. Tanto o saber ambiental como a psicanálise compartilham a impossibilidade de conhecer a verdade que impulsiona o saber, que ascende para os cimos da racionalidade científica, e destas alturas se precipita sobre a natureza e a cultura (p. 189). O saber ambiental e o saber psicanalítico avançam por diferenciação, não por fusão inter ou transdisciplinar. Ambos se encontram na desnaturalização da natureza e em sua inscrição na ordem simbólica. O saber ambiental é um saber enraizado na organização ecossistêmica da natureza, mas está sempre incorporado à subjetividade e à ordem da cultura. Desta maneira, a natureza como objetode apropriação social é sempre uma natureza significada. O saber ambiental se demarca assim do projeto de ecologização do pensamento filosófico, da ética e das ciências sociais que geraram o ecologismo como ideologia (p. 192). Saber ambiental e saber psicanalítico abrem novamente a história do conhecimento, o sentido do saber e o lugar do sujeito. Ambos os saberes combatem as postulações cientificistas (estruturalistas) que pretendem eliminar o sujeito numa crescente objetividade do conhecimento (p. 194). O saber psicanalítico e o saber ambiental reconhecem a incerteza, a incomensurabilidade, a complexidade e a incompletitude do conhecimento (p. 194). O saber ambiental emerge da opressão do conhecimento, do desconhecimento do saber gerado pelo projeto científico, subjugando e fragmentando saberes, esmagando identidades, economizando e tecnologizando o conhecimento, fixando seu olhar na realidade empírica ou elevando-o à ideia abstrata e à perfeição matemática (p. 195). 15 - UNIVERSIDADE, INTERDISCIPLINARIDADE E FORMAÇÃO AMBIENTAL A agenda econômico-ecológica da globalização reforça a dependência científico-tecnológica dos países do Sul, ao exigir a transferência de tecnologias limpas dos países do Norte (em condições preferenciais), em vez de priorizar o fortalecimento de uma capacidade científica e tecnológica própria, destinada a incrementar o potencial ambiental e o aproveitamento endógeno de seus recursos naturais. As estratégias de apropriação da natureza (a biodiversidade) e o controle dos equilíbrios ecológicos (a mudança climática) dos centros de poder econômico, científico e tecnológico dos países do Norte geram uma desigual distribuição dos custos e potenciais ecológicos, assim como das oportunidades de acesso e aproveitamento dos recursos do planeta, nos níveis nacional, regional e mundial (p. 200). A reorientação das atividades acadêmicas e da pesquisa que leva à construção de uma racionalidade ambiental implica a incorporação do saber ambiental emergente nos paradigmas teóricos, nas práticas disciplinares de pesquisa e nos conteúdos curriculares dos programas educacionais. Este saber se concretiza em contextos sociais, geográficos e culturais particulares e encontra condições desiguais de assimilação nas diferentes disciplinas e nas instituições de pesquisa e de educação superior. A questão ambiental gera assim um saber que leva a uma transformação dos conhecimentos, dos conteúdos educacionais e da gestão social dos recursos naturais, reorientando os sistemas de pesquisa, de educação e de produção. Embora as universidades e instituições de 16 educação superior gozem de autonomia formal (liberdade de pesquisa e de cátedra), suas atividades acadêmicas são afetadas pelos valores dominantes da sociedade na qual estão inscritas (p. 202). A reorientação da pesquisa, a reelaboração dos conteúdos curriculares e dos métodos pedagógicos, na perspectiva do desenvolvimento sustentável, implicam a construção de um saber ambiental e sua internalização nos paradigmas científicos e nas práticas docentes que prevalecem. Este processo se defronta com obstáculos que provêm da institucionalização dos paradigmas dominantes, legitimados e arraigados nos critérios de valorização do conhecimento no meio acadêmico e na sociedade em seu conjunto. A formação ambiental se projeta assim a contracorrente das demandas e interesses da vida acadêmica das universidades e da racionalidade econômica dominante (p. 203). O que a problemática ambiental propõe às ciências - quanto à produção de conhecimentos - e às universidades - quanto à formação de recursos humanos - transcende a criação de um espaço acadêmico formado pela integração das disciplinas tradicionais ou a geração de um campo homogêneo e totalizador das “ciências ambientais”, de valor universal. A incorporação do saber ambiental às práticas científicas e docentes vai além de uma exigência de atualização dos currículos universitários a partir da internalização de uma “dimensão” ambiental e de um pensamento ecológico, generalizável aos diferentes paradigmas do conhecimento (p. 208). A interdisciplinaridade na educação ambiental orientou-se por um fim prático, perdendo de vista as bases teóricas e epistemológicas que estabelecem as condições para a articulação de saberes orientada por uma racionalidade ambiental. Porém, as ciências não se submetem sem conflitos e resistências a um projeto de integração proveniente de uma demanda externa, seja por um projeto educativo ou pela necessidade de resolver um problema prático. Sua possível integração depende de sua capacidade diferenciada para assimilar um saber ambiental complexo numa perspectiva comum de análise. Em muitos casos, a cooperação interdisciplinar transcende a integração dos saberes disponíveis, induzindo um processo de reorganização de conhecimentos, métodos e técnicas de diversas disciplinas, que transformam seus conceitos e abrem novos campos de aplicação (p. 212). Os conhecimentos e métodos necessários para compreender e resolver uma problemática ambiental dependem das condições geográficas, ecológicas, políticas, econômicas e culturais que constituem o entorno no qual se inserem as universidades para formar profissionais competentes (p. 213). A incorporação do saber ambiental - constituído por estes processos sociais - às disciplinas naturais e tecnológicas vai além da internalização de critérios ecológicos na análise das relações sociedade-natureza e nos estudos das disciplinas sociais, geográficas, etnológicas e antropológicas (geografia humana, antropologia ecológica, ecologia humana, sociobiologia, etnoecologia, etc.). O saber ambiental questiona portanto os reducionismos ecologistas e energetistas, como também o determinismo biológico e geográfico destas disciplinas; partindo daí gera estudos mais complexos e concretos sobre a articulação dos processos que incidem num contexto social e num espaço geográfico, integrando as condições sociais, políticas, econômicas e culturais aos fenômenos naturais (ecológicos, geofísicos) que incidem nos processos produtivos de uma formação social (p. 216). A formação do saber ambiental, sob esta visão crítica e prospectiva, não alcançou uma maturidade suficiente para permear os paradigmas científicos e as estruturas acadêmicas dominantes das universidades, sobretudo a partir da perspectiva histórica, política, geográfica e cultural dos países do Terceiro Mundo. Se é que existe um cúmulo de saberes práticos, ainda não se criou um novo paradigma, como um conhecimento positivo para a construção e operação de uma racionalidade produtiva que incorpore o potencial ambiental ao desenvolvimento das forças produtivas e às identidades culturais de nossas sociedades. As práticas docentes dependem da produção destes novos conhecimentos para a elaboração de conteúdos curriculares que incorporem os novos paradigmas ambientais (p. 218). A questão ambiental é uma problemática social que transcende a incumbência das universidades, a reciclagem de profissionais e a refuncionalização da educação superior, para adaptar-se às mudanças globais do nosso tempo. As transformações do conhecimento instigadas pelo saber ambiental vão além da incorporação de componentes e conteúdos ecológicos para adaptar os cursos tradicionais às exigências do desenvolvimento sustentável. O saber ambiental questiona todas as disciplinas e todos os níveis do sistema educacional. A formação ambiental discute os métodos tradicionais de ensino, colocando novos desafios à transmissão do saber, onde existe uma estreita relação entre pesquisa, docência, difusão e extensão do saber (p. 220). As universidades devem abrir-se a um processo de 17 pesquisa em conjunto com as comunidades e populações nas quais
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