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7979R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 2018 Contratação pública e compliance: uma proposta para a efetividade dos programas de integridade em contratações públicas Clóvis Alberto Bertolini de Pinho Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado em Curitiba. E-mail: <clovis.pinho@vgplaw.com.br>. Resumo: O artigo analisa a possibilidade de exigência de mecanismos de integridade (compliance) no âmbito de procedimentos de contratação pública no Brasil. Para isso, o escrito faz uma análise sobre a manifestação destes mecanismos no âmbito de licitações e contratos públicos, de modo a verificar os motivos pelos quais se poderia exigir tais estruturas dos contratados da Administração Pública. Além disso, os dados relativos ao Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP), da Controladoria-Geral da União (CGU), são verificados para se permitir a investigação do perfil societário geral das empresas punidas pela Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013). O estudo comprova que o retrato das punições aplicadas pela Lei Anticorrupção é de pequenas e médias empresas, o que demonstra a dificuldade da exigência de mecanismos de compliance de contratados da Administração Pública. Ainda, o artigo analisa a Lei Distrital nº 6.112/2018 e a Lei Estadual nº 7.552/2017, do Estado do Rio de Janeiro, que passaram a exigir dos seus contratados mecanismos de compliance para contratar com o Poder Público. Por fim, o texto faz algumas sugestões para o aprimoramento da exigência de mecanismos de compliance e integridade para os procedimentos e contratações públicas no Brasil. Palavras-chave: Corrupção. Contratação pública. Administração Pública. Compliance. Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP). Sumário: 1 Introdução – 2 Corrupção e Administração Pública – 2.1 Contratação pública e corrupção – 3 A Lei Anticorrupção brasileira e os programas de integridade – 3.1 Dados sobre as empresas já sancionadas a título de descumprimento da Lei nº 12.846/2013 – 3.2 Análise dos resultados – 4 Exigência de programas de compliance como requisito de contratação – 4.1 Leis do Distrito Federal e do Rio de Janeiro – 4.2 Constitucionalidade da exigência – 5 Sugestões de melhoria – 5.1 Inclusão da previsão na Lei Geral de Licitações – 5.2 Transformação dos programas de compliance em mera formalidade – 5.3 Aumento dos custos dos contratados – 5.4 Análise real da exigência: obrigatoriedade a depender do caso a caso, conforme o edital de licitação – 6 Conclusões – Referências 1 Introdução O tema do compliance tomou muita relevância desde o ano de 2013, com a edi- ção da então denominada Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013). A referida norma estabeleceu pesadas sanções administrativas para as pessoas jurídicas que estejam envolvidas em atos prejudiciais à Administração Pública, especialmente no que tange a licitações e contratos. Ao mesmo passo, a Lei Anticorrupção estabelece que seria R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 201880 CLÓVIS ALBERTO BERTOLINI DE PINHO possível atenuá-las em virtude do funcionamento de programas de integridade (cf. art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 12.846/2013). Com os desdobramentos da Operação Lava-Jato, que desvendou uma série de crimes complexos, envolvendo o sistema de contratação e licitação da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), a exigência de boas práticas passou a ser avaliada pelo próprio mercado de contratação pública como de suma importância para as compras que a Administração Pública venha realizar. Deste modo, o presente artigo traz algumas contribuições para o tema da inserção dos programas de compliance no sistema de contratação pública brasileiro. Em um primeiro momento, o artigo fará algumas considerações sobre o tema da corrupção no âmbito da Administração Pública e seus impactos no âmbito do mer- cado da contratação pública em geral. Para, em um segundo momento, debruçar-se sobre algumas considerações práticas na aplicação da Lei Anticorrupção, em quase 5 (cinco) anos de vigência, às empresas que possuem contratos com a Administração Pública. O levantamento busca delimitar um perfil geral das empresas que já foram sancionadas a título de cumprimento da Lei Anticorrupção, compreendendo, assim, a forma empresarial das pessoas jurídicas mais atingidas. O breve exame estatístico possui importância para se entender a quem tem se dirigido as disposições anticor- rupção, já que a maioria das empresas sancionadas possuía e executava contratos públicos. Em um terceiro momento, o artigo trará algumas considerações sobre a exi- gência de programas de compliance no âmbito de procedimentos licitatórios e da execução de contratos públicos, como já ocorre nos Estados do Distrito Federal e do Rio de Janeiro, bem como sua efetividade e constitucionalidade. Por fim, o artigo faz algumas sugestões de melhoria na exigência de programas de compliance, no âmbito dos procedimentos licitatórios e na execução de contratos públicos, trazendo maior efetividade a eles. 2 Corrupção e Administração Pública Para se compreender melhor o tema da corrupção no âmbito da Administração Pública, é preciso fazer alguns esclarecimentos sobre a relação entre a corrupção e o Poder Público, para que se possa aprofundar a análise de sua relevância no âmbito das contratações públicas. Conforme esclarece Lucas Rocha Furtado, a corrupção é tida por boa parte da doutrina como um fenômeno tão próximo da Administração Pública que se chega a descrevê-la como um conceito inexoravelmente ligado à estrutura do Estado.1 1 FURTADO, 2015, p. 55. Deve-se observar que a corrupção também pode ser concebida no âmbito privado. A respeito do tema, Olaf Meyer chega a defender que os mecanismos privados poderiam ser muito mais R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 2018 81 CONTRATAÇÃO PÚBLICA E COMPLIANCE: UMA PROPOSTA PARA A EFETIVIDADE DOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE... Porém, por quais motivos (aparentemente) a corrupção estaria mais próxima da Administração Pública do que de uma empresa privada? A grande dificuldade de cen- tralização dos mecanismos de controle da Administração Pública poderia ser descrita como um dos principais motivos pelos quais a corrupção estaria mais propensa a ocorrer nesse âmbito, que se fragmenta em diversas entidades e órgãos específicos.2 Por esse motivo, Edward Banfield chega a considerar a corrupção como um elemento integrante e identificador da própria organização da Administração Pública, sobretudo pela extensão e difusão do controle do Poder Público, o que permite a sua ampliação e oportunidades para que a corrupção possa se manifestar de uma maneira mais evidente.3 “Quaisquer que sejam suas causas, toda a extensão da autoridade governamental tem criado novas oportunidades e incentivos para a corrup- ção. Em longo prazo, isso tem ajudado a corrupção a parecer mais normal, tolerável e ainda louvável”.4 Por sua vez, Susan Rose-Ackerman e Bonnie J. Palifka observam que os Estados controlam a distribuição de valores importantes, mediante a imposição de custos e benefícios para a obtenção destes recursos escassos. Portanto, os indivíduos esta- riam dispostos a promover pagamentos por fora para a obtenção destes recursos escassos ou a preços menores.5 Com a fragmentação do poder, por meio da divisão entre as mais diversas autoridades, os laços para a ocorrência de atos de corrupção podem ser reforçados por meio de arranjos informais, como a utilização de expedientes implícitos de ofere- cimento de empregos na Administração Pública a apoiadores, apadrinhados políticos ou parentes.6 Há que se considerar, ainda, que o cidadão, diferentemente de um acionista ou sócio de uma sociedade empresarial, não poderá se dissociar tão facilmente de uma entidade pública corrupta. Para isso, o cidadão terá que mudarde sua loca- lidade, o que favorece a falta de interesse em promover esforços na redução da corrupção ou na proteção da “coisa pública”. Ademais, os benefícios em combater a corrupção, em tese, irão beneficiar tanto os aproveitadores (free-riders), como os eficientes do que o Direito Penal, a partir da utilização de meios de aplicação privada dos interesses públicos no combate à corrupção. (private enforcement of public interests), cf. MEYER, 2012, p. 68-69. Nesse mesmo sentido, cf. ROSE-ACKERMAN; PALIFKA, 2016, p. 121. 2 Muito embora Edward Banfield realize suas teorizações no âmbito da Administração Pública norte-americana, entende-se que a organização administrativa apresentada pelo autor poderia ser válida para compreender o modelo federal brasileiro. O autor considera que existem entidades independentes do Chefe do Poder Executivo, reforçando a ideia da fragmentação do controle da Administração Pública (BANFIELD, 1975, p. 598-599). 3 BANFIELD, 1975, p. 596. 4 Tradução livre de: “Whatever their causes, every extension of government authority has created new opportunities and incentives for corruption. Over the long run this has helped to make it appear normal, tolerable, and even laudable” (BANFIELD, 1975, p. 603-604). 5 ROSE-ACKERMAN; PALIFKA, 2016, p. 51. 6 BANFIELD, 1975, p. 598-599. R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 201882 CLÓVIS ALBERTO BERTOLINI DE PINHO demais indivíduos, havendo um verdadeiro desestímulo dos cidadãos em promover o combate à corrupção.7 Em outras palavras, mesmo que a corrupção não seja um desígnio exclusivo da Administração Pública, a organização administrativa do Poder Público é muito mais profusa e dispersa. Isso faz com que a estrutura pública possua um controle muito mais complexo e difícil, o que poderia ser considerado até mesmo como um elemento facilitador para a ocorrência da corrupção. Como o Poder Público é o principal mecanismo de distribuição de recursos exis- tentes, seja pela sua necessidade de satisfação dos mais diversos interesses, como os direitos fundamentais, seja pela grande quantidade de dinheiro envolvido na sua atividade, os mais diversos grupos estão dispostos a corromper autoridades para a obtenção da distribuição desses recursos.8 No entanto, a estruturação e a distribuição de recursos públicos também pode ser organizada para atender interesses de grupos de influência antagônicos.9 E, nesse sentido, o procedimento de contratação pública possui especial relevância quando se verifica a manifestação da corrupção no âmbito da Administração Pública. 2.1 Contratação pública e corrupção O procedimento de contratação pública é apontado como uma das principais formas de propagação e ocorrência do estímulo da corrupção. Não se pode refutar imediatamente a concepção geralmente apontada na sociedade de que os negócios com o Poder Público envolvem em grande medida acertos com corrupção. Como a Administração Pública é obrigada a celebrar contratos para que possa manter suas atividades,10 o procedimento de contratação pública possui muita relevância para que a corrupção se manifeste nesse âmbito. Isso porque tanto o con- tratado como o agente público podem vislumbrar oportunidades para o ganho privado, com a concessão e utilização dos benefícios.11 7 BANFIELD, p. 598-599. 8 Conforme observa Marçal Justen Filho, a função administrativa, ou seja, o plexo de poderes à disposição da Administração Pública, deve servir à satisfação dos direitos fundamentais: “A função administrativa é o conjunto de poderes jurídicos destinados a promover a satisfação de interesses essenciais, relacionados com a promoção de direitos fundamentais, cujo desempenho exige uma organização estável e permanente, exercitados sob o regime jurídico infralegal e que se exteriorizam em decisões destituídas de natureza jurisdicionais” (JUSTEN FILHO, 2013, p. 121). 9 ROSE-ACKERMAN, 1999, p. 365. 10 Thiago Lima Breus defende a existência de um verdadeiro governo por meio de contratos. A atividade administrativa, nos dias de hoje, consiste na celebração dos mais diversos contratos para a manutenção das suas atividades. Nas palavras do autor: “O objetivo do ato de contratar consiste em atender fins públicos perseguidos no exercício de uma determinada função administrativa. Deste modo, as peculiaridades e as necessidades relacionadas à persecução de tais fins e ao exercício da função estatal são determinantes das características do contrato que se tenha em vista” (BREUS, 2015, p. 88). 11 ROSE-ACKERMAN; PALIFKA, 2016, p. 99. R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 2018 83 CONTRATAÇÃO PÚBLICA E COMPLIANCE: UMA PROPOSTA PARA A EFETIVIDADE DOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE... Em primeiro lugar, o volume de recursos que o Estado deve administrar é gigan- tesco, o que favorece a existência de grupos de pressão para a manifestação da corrupção.12 Em segundo lugar, a Administração Pública brasileira está obrigada por força constitucional a realizar o procedimento de licitação pública,13 que nada mais é do que o procedimento administrativo que busca a aquisição de determinado bem ou serviço pelo menor custo, ou a concessão de um determinado serviço público à iniciativa privada.14 No âmbito brasileiro, a estrutura geral da contratação pública é exposta na Lei nº 8.666/1993 (Lei Geral de Licitações – LGL), que é exaustiva em ritos e procedi- mentos específicos para a aquisição de bens e serviços por parte da Administração Pública. Ou seja, quando da edição da Lei Geral de Licitações, ano de 1993, acre- ditava-se que a utilização de uma estrutura ritualística seria capaz de minimizar os desvios de conduta. Entretanto, a prática administrativa demonstrou-se completamente oposta. Conforme observa André Rosilho, a tendência adotada pela Lei nº 8.666/1993 é a criação de um “gestor boca da lei”, em que se pudesse limitar, cada vez mais, o poder discricionário do agente público, de forma a sucumbir qualquer oportunidade para a ocorrência da corrupção. Flávio Amaral Garcia observa que a Lei nº 8.666/1993 foi editada em um perí- odo de maior preocupação com os meios do que os fins da contratação pública. Garcia observa que sua edição foi um reflexo direto dos casos de corrupção, mas que na prática tornou o gestor público engessado.15 Em que pese a existência de outros procedimentos licitatórios, como os existen- tes na Lei de Concessão de Serviços Públicos (Lei nº 8.987/1995), a Lei de Parcerias Público-Privadas (PPP), o Regime Diferenciado de Contrações (RDC) e o mais recente da Lei de Empresas Estatais (Lei nº 13.303/2016),16 o procedimento formalista ado- tado pelos procedimentos licitatórios ainda permanece. 12 A mero título de exemplo, o orçamento da União Federal, no ano de 2018, somente para a realização de despesas fiscais e previdenciárias é R$3.506.421.082.632,00 (três trilhões, quinhentos e seis bilhões, quatrocentos e vinte e um milhões, oitenta e dois mil, seiscentos e trinta e dois reais), conforme o art. 3º, da Lei Orçamentária Anual (Lei nº 13.587/2018), o que demonstra o grande volume de recursos administrados pelo Poder Público. 13 “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […] XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”. 14 Na definição de Marçal Justen Filho: “A licitação é um procedimento administrativodisciplina por lei e por um ato administrativo prévio, que determina critérios objetivos visando a seleção da proposta de contratação mais vantajosa e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável, com a observância do princípio da isonomia, conduzido por um órgão dotado de competência específica” (JUSTEN FILHO, 2013, p. 494). 15 GARCIA, 2016, p. 54. 16 Sobre o tema, já tivemos oportunidade de escrever: “Os dispositivos do regime de contratação e licitação da Lei nº 13.303/2016 congregam soluções que se devem ao regime concorrencial adotado por algumas R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 201884 CLÓVIS ALBERTO BERTOLINI DE PINHO Não se está a afirmar que a inexistência de ritos e procedimentos diminuirá a manifestação da corrupção no âmbito da contratação pública. No entanto, a existên- cia de ritos extremamente burocráticos fez com que a corrupção se manifestasse, justamente, nas exigências restritivas que viessem a ser impostas, de modo a facili- tar ou direcionar a licitação para um determinado concorrente. Como forma, justamente, de combater a manifestação da corrupção no âmbito dos procedimentos licitatórios e na execução dos contratos públicos, a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) veio a preencher diversas lacunas existentes no ordenamento jurídico, como se verificará a seguir. 3 A Lei Anticorrupção brasileira e os programas de integridade A Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) buscou disciplinar muitos pontos que eram considerados lacunosos no âmbito da punição das pessoas jurídicas brasilei- ras, caso viessem a causar qualquer tipo de prejuízo ao Poder Público. A edição da Lei nº 12.846/2013 foi considerada como um importante marco no ordenamento jurídico brasileiro, pois inseriu hipóteses de responsabilização da pessoa jurídica que causasse prejuízos à Administração Pública, independentemente da comprovação de dolo ou culpa. Conforme esclarece Sebastião Botto de Barros Tojal, a Lei Anticorrupção “traz ao ordenamento jurídico a responsabilização – objetiva – da pessoa jurídica. As nor- mas anteriores que tratavam do assunto – penais e cíveis – tinham como sujeito passivo precipuamente as pessoas naturais”.17 A Lei nº 12.846/2013 originou-se de uma proposição legal remetida pela Presidência da República, cuja formulação ficou a cargo da Controladoria-Geral da União.18 Egon Bockmann Moreira e Andreia Bagatin elucidam que os objetivos da Lei Anticorrupção são claros, buscando a supressão das lacunas existentes no sistema jurídico brasileiro, principalmente a “ausência sentida no sistema brasileiro de res- ponsabilidade civil-administrativa: muito embora as pessoas físicas respondessem por seus atos, as jurídicas eram quase imunes a isso”,19 pelo simples motivo de que as pessoas jurídicas não poderiam ser autoras de um crime.20 empresas estatais. Não seria razoável que sociedades de economia mista, como a Petrobras, o Banco do Brasil, entre outras, que possuem papel relevante na economia brasileira, tivessem que realizar licitações para suas atividades mais ordinárias e inerentes aos seus objetos sociais” (PINHO, 2017, p. 37). Sobre a efetividade dos mecanismos de contratação pública da Lei de Empresas Estatais para a contenção da corrupção, cf. PINHO; RIBEIRO, 2018, p. 261-267. 17 TOJAL, 2014, p. 281. 18 A respeito da tramitação da Lei Anticorrupção no Poder Legislativo, cf. RIBEIRO, 2017, p. 22-23. 19 MOREIRA; BAGATIN, 2014, p. 57. 20 A única possibilidade admissível a respeito da responsabilidade penal da pessoa jurídica estaria no preceito do art. 225, §3º da Constituição Federal, que admitiria como plenamente possível a responsabilidade penal da pessoa jurídica, adstrita e tão somente aos crimes lesivos ao meio-ambiente: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 2018 85 CONTRATAÇÃO PÚBLICA E COMPLIANCE: UMA PROPOSTA PARA A EFETIVIDADE DOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE... Por qual motivo a Lei nº 12.846/2013 ficou conhecida, seja na doutrina ou nos meios de comunicação, como uma legislação supostamente anticorrupção? O art. 5º, I, da Lei nº 12.846/2013, prevê que é ato de corrupção “prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público, ou a terceira pes- soa a ele relacionada”. A disposição aproxima-se da concepção penal de corrupção, exposta no art. 333 do Código Penal brasileiro.21 Compreende-se que a Lei Anticorrupção busca realizar uma “administrativação” das condutas consideradas como ilícitas penalmente às pessoas físicas, sobretudo quanto aos crimes em sede de licitações e contratos administrativos, pois quase todos os atos considerados como ilícitos no art. 5º da Lei Anticorrupção correspon- dem a uma sanção penal na Lei nº 8.666/1993. A partir de uma análise atenta dos principais atos lesivos contra a Administração Pública previstos na Lei Anticorrupção, percebe-se a ampla quantidade de infrações administrativas que envolve o tema de licitações e contratos.22 No entanto, o centro da Lei Anticorrupção parece estar na existência de uma responsabilidade objetiva, independentemente de comprovação de dolo ou culpa da pessoa jurídica, que pode chegar à imposição de, basicamente, duas sanções admi- nistrativas: (i) a multa, no valor de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do faturamento bruto do último exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, excluídos os tributos, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação; e, (ii) a publicação extraordinária da decisão condenatória. Ao mesmo passo que a Lei Anticorrupção coloca um pesado regime de respon- sabilização, denota-se que o seu art. 7º, parágrafo único, prescreve que as pessoas jurídicas que possuíssem programas de integridade poderiam ter um abatimento da sanção.23 Os mecanismos de avaliação de funcionamento desses programas estão no art. 42, do Decreto Presidencial nº 8.420/2015.24 gerações. […] §3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. 21 “Corrupção ativa: Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. Parágrafo único – A pena é aumentada de um terço, se, em razão da vantagem ou promessa, o funcionário retarda ou omite ato de ofício, ou o pratica infringindo dever funcional”. 22 A partir do inc. IV, do art. 5º, da Lei nº 12.846/2013, são descritas sete infrações administrativas no que tange a licitações e contratos, especialmente frustrar ou fraudar procedimento licitatório, fraudar licitação pública ou contrato dela decorrente ou obter vantagem ou benefício indevido. 23 “Art. 7º Serão levados em consideração na aplicação das sanções: […] VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica. Parágrafo único. Os parâmetros de avaliação de mecanismos e procedimentos previstos no inciso VIII do caput serão estabelecidos em regulamento do Poder Executivo federal”. 24 O art. 42, do Decreto Presidencial nº 8.420/2015 coloca diversos requisitos para a avaliação de um programa de integridade, especialmente: a) o comprometimento da alta direção da pessoa jurídica com os objetivos do programa; b) padrões de conduta da pessoa jurídica; c) política de ética a fornecedores; d) treinamentos R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 201886 CLÓVIS ALBERTO BERTOLINI DE PINHO Até por conta da origem do termo, que está no inglês to comply (estar em conformidade), visa à existência de mecanismos internos para atenuação de riscos, mediante prevenção, identificação e atuação mais efetiva. Longe de significar o mero cumprimento da legislação por parte de uma empresa, deve-se compreender por com- pliance “as medidas pelas quais as empresas pretendem assegurar-se que as regras vigentes para elas e para seus funcionários sejam cumpridas, que as infrações se descubram e eventualmente sejam punidas”.25 Ana Frazão defende que a existência de programas de integridade ou com- pliance poderia funcionar como uma excelente ferramenta para se delimitar o pesado regime de responsabilização objetivo: “A eventual existência de um bom programa de compliance, o fato de a pessoa jurídica ter feito todo o possível para evitar o ilícito e inexistência de um defeito de organização não afastam a responsabilidade desta, podendo, na melhor das hipóteses, atenuá-la”.26 Logo, compreende-se que a existência de programas de integridade ou com- pliance possui muita importância para o cumprimento e funcionamento da Lei Anticorrupção, na exata medida em que boa parte das infrações administrativas previstas na referida norma tem direta relação com a postura empresarial perante procedimento licitatórios e a execução contratual. 3.1 Dados sobre as empresas já sancionadas a título de descumprimento da Lei nº 12.846/2013 Conforme prescreve o art. 22, da Lei Anticorrupção, o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP) congrega as principais informações relativas à aplicação de sanções a pessoas jurídicas que fossem condenadas a título de cumprimento da Lei nº 12.846/2013, congregando dados de todas as esferas federativas (União, estados, municípios e o Distrito Federal). A partir de dados recolhidos no próprio sistema, disponível no Portal da Transparência do Governo Federal, cujos dados estão congregados até a data de 05.08.2018, foram retiradas as seguintes características, de modo a organizá-las graficamente da seguinte forma: periódicos; e) análise de riscos; f) registros contábeis fiéis com a realidade da empresa; g) canais de denúncia; h) medidas disciplinares, entre outros. 25 VERÍSSIMO, 2017, p. 91. 26 FRAZãO, 2018, p. 40. R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 2018 87 CONTRATAÇãO PÚBLICA E COMPLIANCE: UMA PROPOSTA PARA A EFETIVIDADE DOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE... FIGURA 1 Quantidade de sanções aplicadas 27 FIGURA 2 Estado de origem da empresa sancionada 28 FIGURA 3 Tipo empresarial do sancionado 29 27 Elaboração do autor. Dados extraídos até 05 de agosto de 2018. Disponível em: BRASIL. Controladoria-Geral da União. Detalhamento da Penalidade – Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP). Disponível em: <https://goo.gl/xjMxJq>. 28 Elaboração do autor. Dados extraídos até 05 de agosto de 2018. Disponível em: BRASIL. Controladoria-Geral da União. Detalhamento da Penalidade – Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP). 29 Elaboração do autor. Dados extraídos até 05 de agosto de 2018. Disponível em: BRASIL. Controladoria-Geral da União. Detalhamento da Penalidade – Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP). R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 201888 CLÓVIS ALBERTO BERTOLINI DE PINHO FIGURA 4 Valor das multas aplicadas em reais (RS) 30 30 Elaboração do autor. Dados extraídos até 05 de agosto de 2018. Disponível em: BRASIL. Controladoria-Geral da União. Detalhamento da Penalidade – Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP). R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 2018 89 CONTRATAÇÃO PÚBLICA E COMPLIANCE: UMA PROPOSTA PARA A EFETIVIDADE DOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE... 3.2 Análise dos resultados A partir dos resultados obtidos a partir da análise de todas as sanções registra- das no CNEP, até a data de 05 de agosto de 2018, percebe-se que, até o presente momento, foram aplicadas somente 33 (trinta e três) multas, com somente 4 (quatro) casos que ultrapassaram a quantia de um milhão de reais (cf. FIGURA 4). Como se percebe da aplicação da Lei Anticorrupção, a lei tem sido pouco apli- cada pelos órgãos da Administração Pública e suas sanções têm se dirigido, em sua maioria, às empresas de pequeno e médio porte, que teriam maiores dificuldades na implementação de um programa de integridade. Isso se reforça pelo fato de que nenhuma empresa organizada sob a forma de sociedade anônima (normalmente associada aos investimentos de maior porte) foi condenada a título de cumprimento da Lei Anticorrupção. Ou seja, a partir dos dados recolhidos, compreende-se que existe uma tendência de que as empresas que teriam menores condições de implementar um programa de integridade, por conta de seus elevados custos, estariam mais propensas a sofrer uma condenação da Lei Anticorrupção. Os resultados apresentados possuem especial importância pelo simples fato de que, desde o ano de 2017, dois entes federativos brasileiros passaram a exigir programas de compliance como requisito fundamental para a celebração de contrato administrativo, o que se aprofundará a seguir. 4 Exigência de programas de compliance como requisito de contratação Como mencionado brevemente, no âmbito da Administração Pública brasileira, dois entendes federativos começaram a exigir de seus contratados a existência de mecanismos de compliance como condição para a celebração de um contrato público. De tal modo, analisam-se as especificidades da lei fluminense e distrital que disciplinam de maneira inovadora a relação entre contratos públicos e programas de compliance (ou integridade). 4.1 Leis do Distrito Federal e do Rio de Janeiro Recentemente o estado do Rio de Janeiro e o Distrito Federal editaram leis que passaram a exigir programas de compliance para a celebração de contratos com a Administração Pública estadual. Observa-se que a lei estadual fluminense e a distrital são muito similares, tanto em sua redação como em suas disposições, ao se estabelecer programas de R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 201890 CLÓVIS ALBERTO BERTOLINI DE PINHO compliance como um dos requisitos necessários para que contratado possa realizar a assinatura do contrato com a Administração Pública. A partir dos preceitos da legislação fluminense (Lei Estadual nº 7.752/2017), para que os contratados possam assinar contratos administrativos com o Estado – nos casos acima de R$1,5 milhão para obras e serviços de engenharia ou R$650 mil, nos casos de compras e prestações de serviços por período superior a seis meses – será necessário que os particulares possuam programas de compliance. Por sua vez, a Lei Distrital nº 6.112/2018 prescreve a obrigatoriedade da implantação ou existência de Programa de Integridade para todas as contratações administrativas – seja na forma de convênio, consórcio, concessão ou PPP – cujo valor seja igual ou superior aos da licitação na modalidade tomada de preço, esti- mados entre R$80 mil e R$650 mil e com duração igual ou superior a 180 (cento e oitenta) dias. Além dos novos contratos a serem celebrados, a Lei Distrital nº 6.112/2018 também se aplica aos contratos em vigor, com prazo de duração superior a 12 (doze) meses e aos contratos celebrados com ou sem dispensa de licitação, desde que atendidos os requisitos de valor estabelecidos no art. 1º da Lei Distrital. Tanto na lei distrital e como na fluminense os programas de compliance a serem implantados devem prever mecanismos e procedimentos de integridade, audi- toria, controle e incentivo a denúncias de irregularidades, de acordo com a própria legislação federal e regulamentações no tema (cf. art. 7º, parágrafo único, da Lei nº 12.846/2013, art. 42, do Decreto Presidencial nº 8.420/2015 e PortariaCGU nº 909/2015). Destaca-se que, mesmo que as leis mencionadas não venham a estabelecer programas de compliance como um requisito de habilitação ou de participação na licitação, na fase de assinatura contratual, a exigência acaba por privilegiar, inega- velmente, as empresas que já venham a possuir tais mecanismos de integridade, normalmente grandes empresas, em prejuízo ao preceito de competividade nos pro- cedimentos de contratação pública. Discussão similar ocorreu na exigência de certificação da ISO 9001 como con- dição de habilitação em licitações. O Tribunal de Contas da União entendeu que tal exigência seria indevida, por violar a competividade do certame.31 A implementação de programas de compliance (até mesmo pela novidade do tema envolvendo a Administração Pública) exige recursos e profissionais capacitados, 31 “Afastar os participantes não certificados reduz a possibilidade de alcance da melhor proposta para a Administração, sem que haja justificativa razoável para tanto. Por outro lado, não há óbice para a utilização do aludido certificado para atribuir pontuação à licitante, o que permite reconhecer seu diferencial em relação a outras que não comprovaram a adequação de seu sistema de produção aos critérios de qualidade estabelecidos nas normas pertinentes” (BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão n.º 1085/2011- Plenário, TC-007.924/2007-0, Rel. Min. José Múcio, j. em 27.04.2011). R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 2018 91 CONTRATAÇÃO PÚBLICA E COMPLIANCE: UMA PROPOSTA PARA A EFETIVIDADE DOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE... o que poderá restringir o número de empresas que tenham efetivas condições de celebrar contratos administrativo. Compreende-se que a exigência de programas de compliance deve ser vista sempre com bons olhos, sobretudo por exigir uma postura ativa dos entes privados perante a Administração Pública. Em momento algum se está a defender a irrele- vância de tais programas; porém, a mera exigência, sem a definição ou obrigação da existência de programas de compliance efetivos, também não contribui com os propósitos de combate à corrupção.32 4.2 Constitucionalidade da exigência Em que pese os inegáveis avanços na postura proativa tomada por ambos os entes federativos, compreende-se que ainda existem alguns pontos obscuros na exi- gência de programas de compliance para a assinatura de contratos administrativos, especialmente do ponto de vista constitucional e do direito contratual público, que merecem maior debate e reflexão. O principal ponto que merece destaque é que a imposição para a assinatura do contrato administrativo, por parte de ente federativo estadual e distrital, poderia ser considerada como inconstitucional. Isso porque pode se aventar violação expressa à competência privativa da União para dispor sobre normas gerais de licitações e contratos (art. 22, XXVII, da Constituição Federal).33 Inegavelmente, lei estadual criou uma condição especial para a assinatura de contrato administrativo, o que, em nosso modo de ver, acaba por criar restrição que somente poderia se veicular por meio de norma-geral, de competência privativa da União, conforme já definiu o Supremo Tribunal Federal, em caso de lei do Distrito Federal que impunha restrição à contra- tação de empresas que realizassem discriminação na mão de obra, que ensejou em reconhecimento de inconstitucionalidade.34 32 Nesse mesmo sentido se inclina Carla Veríssimo, que compreende que a mera exigência de programas de compliance sem o compromisso de efetividade não contribui com os objetivos de combate à corrupção, devendo o Estado regular somente suas estruturas mínimas de funcionamento: “Para que um programa [de] compliance possa contribuir para a conformidade com as leis e repercutir favoravelmente na responsabilização da pessoa jurídica e das pessoas físicas, ele deve ser efetivo. Numa ótica de autorregulação regulada, não cabe determinação minudente por parte do Estado sobre como devem ser esses programas. Isso além de não ser possível, não seria igualmente recomendável. Apenas estruturas fundamentais devem ser indicadas na legislação” (VERÍSSIMO, 2017, p. 272-273). 33 “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: […] XXVII - normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, §1º, III”. 34 “O dispositivo atacado estabelece um critério a ser observado de modo geral nos contratos administrativos do Governo do Distrito Federal, vale dizer, que não especifica tampouco destaca tema capaz de retirar- lhe a abstração, a generalidade e impessoalidade: também nãos e trata de norma especial, atinente a particularidades da orientação local – mas, sim, de normal geral de incapacitação para licitar” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3.670, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 2-4-2007, P, DJ de 18-5-2007). R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 201892 CLÓVIS ALBERTO BERTOLINI DE PINHO De igual modo, destaca-se que as leis comentadas estabelecem critérios aplicáveis a todos aqueles que desejam celebrar contratos com suas respectivas administrações, violando, ainda que em tese, o art. 22, XXVII, da Constituição Federal, por infringir a competência privativa da União para legislar sobre normas gerais de licitações e contratação. 5 Sugestões de melhoria A partir do que se demonstrou a seguir, as atuais leis do Distrito Federal e do Rio de Janeiro que versam sobre a exigência de programas de compliance possuem diversos pontos falhos. Como forma de trazer maiores subsídios à pertinência da relação entre compliance e contratação pública, algumas sugestões de melhoria são trazidas a seguir. 5.1 Inclusão da previsão na Lei Geral de Licitações O primeiro passo para a incrementação da exigência de programas de com- pliance para a assinatura de um determinado contrato administrativo é que a Lei Geral de Licitações passe a contemplar tal exigência, sob pena de inconstitucionali- dade, por violação expressa ao art. 22, XXVII, da Constituição Federal, o que impede que os demais entes federativos possam fazê-lo. 5.2 Transformação dos programas de compliance em mera formalidade Em segundo lugar, ao se estabelecer mecanismos de compliance dos licitantes como obrigatórios, como um requisito para a assinatura contratual, há inegável risco de esses mecanismos se tornarem mera exigência formal ou burocrática para a assi- natura do contrato. Como visto, programas de compliance devem ser antes o desígnio da efetividade do que o da obrigatoriedade. Ao invés de se exigir do contratado a mera existência do programa, muito mais prudente seria que houvesse a definição de mecanismos ado- tados pelo próprio mercado como parte da avaliação dos programas de compliance. 5.3 Aumento dos custos dos contratados Mesmo que haja um enorme esforço para que as micro e pequenas empresas também venham a adotar práticas de integridade, compreende-se que ainda é muito custosa a implementação de um programa de compliance no Brasil. Como demons- trado a partir das sanções já aplicadas a título da Lei Anticorrupção, o perfil das R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 2018 93 CONTRATAÇÃO PÚBLICA E COMPLIANCE: UMA PROPOSTA PARA A EFETIVIDADE DOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE... empresas sancionadas é de pequeno ou médio porte, o que, em tese, prejudicaria e restringiria o mercado de contratação pública àquelas empresas que tivessem condi- ções econômicas de implementar programas de compliance. Entende-se que a imposição da obrigatoriedade de implantação de programas de compliance para os contratos já vigentes, especialmente nocaso do Distrito Federal,35 poderá ter reflexos diretos no próprio equilíbrio econômico-financeiro do contrato. Ao se exigir a existência de programas de integridade, o contratado terá que dispender recursos para atender uma exigência criada pela Administração Pública, equiparando-se, ao que tudo indica, a um fato do príncipe.36 Além disso, entende-se que, caso comprovado pelo contratado que os custos para a implementação de um programa de compliance, por estrita observância à exigência criada pela Administração Pública, esta deverá recompor os custos realiza- dos pelo particular para o atendimento das requisições do Poder Público, de modo a reequilibrar as condições da proposta (art. 37, XXI, da Constituição Federal).37 5.4 Análise real da exigência: obrigatoriedade a depender do caso a caso, conforme o edital de licitação Entende-se que seria muito mais adequada a utilização dos programas de com- pliance como um critério para a pontuação das propostas, quando da utilização do tipo de licitação “melhor técnica” ou “técnica e preço” (art. 46, §1º, I, da Lei nº 8.666/1993), e não como uma condicionante à assinatura contratual. Assim sendo, incumbe à Administração Pública a análise da real necessidade de programas de compliance a depender da complexidade do objeto que está sendo licitado. Evidentemente, um contrato de concessão de serviços públicos, como uma rodovia, iria necessitar que a concessionária contratada seguisse boas práticas de integridade, por conta do número de investimentos necessários e a ampla duração desses contratos. O Substitutivo IV ao PL nº 6.814/2017, que visa alterar a atual Lei nº 8.666/1993, prescreve que o edital de licitação poderá prever a obrigatoriedade de implantação de mecanismos de compliance por parte do contratado da Administração 35 Assim dispôs a Lei Distrital nº 6.112/2018: “Art. 2º Aplica-se o disposto nesta Lei: […] II – aos contratos em vigor com prazo de duração superior a 12 meses”. 36 Na lição de José Cretella Júnior: “a teoria jurídica que procura explicar em que se fundamenta a responsabilidade pecuniária da Administração quando, em virtude de medidas por esta tomadas e que oneram sobremaneira a execução do contrato por parte do particular, está o Estado obrigado a indenizar, recebe o nome de teoria do fato do príncipe” (CRETELLA JÚNIOR, 1964, p. 30). 37 Destaca-se que isso restou expressamente ressalvado na norma fluminense, em grave violação ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato: “Art. 5º - A implantação do Programa de Integridade no âmbito da pessoa jurídica dar-se-á no prazo de 180 (cento e oitenta) dias corridos, a partir da data de celebração do contrato. […] §2º Para efetiva implantação do Programa de Integridade, os custos/despesas resultantes correrão à conta da empresa contratada, não cabendo ao órgão contratante o seu ressarcimento”. R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 201894 CLÓVIS ALBERTO BERTOLINI DE PINHO Pública. A proposta tem a seguinte redação: “nas contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto, o edital poderá prever a obrigatoriedade de implan- tação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias contados da celebração do contrato, conforme orientações dos órgãos de controle” (art. 24, §4º).38 Nesse sentido, acredita-se que a previsão da proposta legislativa de alteração da Lei nº 8.666/1993 segue exatamente o que se compreende como uma boa exi- gência para os mecanismos de compliance em procedimentos de contratação pública. Ao invés de se exigir automaticamente a existência do programa de compliance como requisito para a assinatura do contrato, seria mais benéfico à Administração Pública a avaliação caso a caso da real necessidade da exigência de adoção de práticas de compliance por parte do contratado. 6 Conclusões Ante todo o exposto, as seguintes conclusões podem ser apresentadas: a) Os procedimentos de licitação e de execução de contratos públicos possuem muita importância para o tema da corrupção, pois é no âmbito destes procedimentos que muitos atos de corrupção são gestados e perpetrados, em prejuízo à Administração Pública; b) A Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/2013) buscou preencher uma lacuna legislativa no que tange à punição de pessoas jurídicas no caso de prejuízos à Administração Pública, com a imposição de uma responsabilidade objetiva, independentemente da comprovação de dolo ou culpa; c) Ao mesmo passo que a Lei Anticorrupção estabeleceu um forte regime de responsabilização, o seu art. 7º, parágrafo único, prevê que mecanismos de integridade ou compliance poderiam ser levados em consideração na aplicação de sanções administrativas; d) A partir da análise dos dados da aplicação da Lei Anticorrupção, percebe- se que o perfil das empresas sancionadas é de pequeno e médio porte, o que revela uma certa tendência de que a Lei nº 12.846/2013 destinou-se às empresas que teriam maior dificuldade para implementar programas de compliance, ante os altos custos envolvidos; e) Desde 2017, o Estado do Rio de Janeiro e do Distrito Federal começaram a exigir que seus contratados tivessem mecanismos de integridade e compliance para que pudessem assinar contratos públicos; f) Muito embora a exigência seja louvável, compreende-se que a mera imposição da existência de programa de compliance para a assinatura de um contrato 38 PETIAN, 2018. R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 2018 95 CONTRATAÇÃO PÚBLICA E COMPLIANCE: UMA PROPOSTA PARA A EFETIVIDADE DOS PROGRAMAS DE INTEGRIDADE... público é medida de constitucionalidade duvidosa. Ademais, percebe-se que a imposição de mera obrigatoriedade poderá prejudicar as pequenas e médias empresas, que teriam maiores dificuldades para assinar contratos públicos; g) Como forma de conferir maior efetividade à exigência de programas de compliance no âmbito das contratações públicas, foram sugeridas as seguintes medidas: 1. A inclusão da medida na Lei Geral de Licitações, de modo a permitir que os demais entes federativos possam exigir programas de compliance sem recair em inconstitucionalidade; 2. Ao invés de se exigir a obrigatoriedade dos programas de compliance, sugeriu-se que a efetividade do funcionamento dos programas de compliance fosse avaliada, e não apenas a sua existência formal; 3. A imposição de programas de compliance pode ensejar custos desnecessários ao contratado, o que poderá levar a Administração Pública e recompor o equilíbrio econômico-financeiro do contrato; e, 4. A avaliação da Administração Pública da real necessidade para o objeto contratual de um programa de compliance, cabendo ao gestor público a definição de quando efetivamente seria possível a existência de programas de compliance. h) A partir do panorama de aplicação da Lei Anticorrupção, entende-se que a sua aplicação efetiva não se deu às empresas de maior porte, o que demonstra certa incongruência na obrigatoriedade de mecanismos de compliance para a assinatura de um contrato público. Como se comprovou, as empresas de pequeno e médio porte teriam dificuldade em atender tal exigência, o que restringiria a competividade do mercado de contratações públicas. Public Procurement and Compliance: A Proposal for the Effectiveness of Integrity Programs in Public Procurement Abstract: The article analyzes the possibility of enforcing compliance mechanisms in the scope of public procurement procedures in Brazil. For this purpose, the paper analyzes the manifestation of these mechanisms in the context of public procurement, in order to verify the reasons why such structures could be required of public administration contractors. In addition, data related to the Brazilian National Register of Punished Companies (CNEP) of the Brazilian Office of the Comptroller General of the Union (CGU) is verifiedin order to allow investigation of the general corporate profile of companies punished by the Brazilian Anti-Corruption Law (Law n. 12.846/2013). The study proves that the portrayal of the punishments applied by the Brazilian Anti-Corruption Law is of small and medium companies, which demonstrates the difficulty of implementation by the requirement of mechanisms of compliance in order to contract with Public Administration. In addition, the article analyzes District Law n. 6122/2018 and State Law n. 7.552/2017, of the State of Rio de Janeiro. Finally, the text makes some suggestions for the improvement of the requirement of compliance and integrity mechanisms for procedures and contracting with Public Administration in Brazil. R. de Contratos Públicos – RCP | Belo Horizonte, ano 7, n. 13, p. 79-97, mar./ago. 201896 CLÓVIS ALBERTO BERTOLINI DE PINHO Keywords: Corruption. Public procurement. Public administration. Compliance. Brazilian National Register of Punished Companies. Referências BANFIELD, Edward. Corruption as a Feature of Governmental Organization. The Journal of Law & Economics, Chicago, v. 18, n. 3, 1975. BRASIL. 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