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COTIDIANO ESCOLAR E DIFERENÇAS1 Luciana Pacheco Marques2 Resumo Nosso texto remete-se à problematização de um retalho do campo da educação: a questão das diferenças, que é temática de nossos estudos e pesquisas no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora. Quais as relações que os professores e as professoras estabelecem com as diferenças? Que pedagogias vimos praticando? Visualizamos, estudando e pesquisando a questão das diferenças há algum tempo, três diferentes discursos que bem caracterizam as atitudes humanas diante das diferenças e, consequentemente, as relações com as diferenças nas escolas e no processo de formação em educação: o da negação, o da marcação e o da comunhão. Não pretendendo chegar a nenhum discurso universalizante, nem alcançar uma verdade presente nos discursos, intentamos pensar nas possibilidades das experiências no/do cotidiano escolar movimentarem os discursos gerados nas relações com as diferenças em direção à comunhão na escola e na vida. Palavras-chave: Diferenças – Escola – Formação de professores 1 Texto adaptado do produzido para o XV ENDIPE, realizado na UFMG, no período de 20 a 23 de abril de 2010, publicado na ocasião como: MARQUES, Luciana Pacheco. Os discursos gerados nas relações com as diferenças: desai o atual para a formação em educação. In: DALBEN, Ângela; DINIZ, Júlio; LEAL, Leiva; SANTOS, Lucíola (Orgs.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, v. 1, p. 251-268. 2 Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal de Juiz de Fora. luciana.marques@uj f.edu.br. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Luciana Pacheco Marques 102 Aceitar e respeitar a diferença é uma dessas virtudes sem o que a escuta não se pode dar. Se discrimino o menino ou menina pobre, a menina ou o menino negro, o menino índio, a menina rica; se discrimino a mulher, a camponesa, a operária, não posso, evidentemente, escutá-las e, se não as escuto, não posso falar com eles, mas a eles, de cima para baixo. Sobretudo, me proíbo entendê-los. Se me sinto superior ao diferente, não importa quem seja, recuso-me escutá-lo ou escutá-la. O diferente não é o outro a merecer respeito é um isto ou aquilo, destratável ou desprezível (Paulo FREIRE, 1997, p. 136, grifos do autor). Paulo Freire, no trecho acima, deixa claro seu discurso de comunhão com as diferenças, gesto discursivo presente em toda a sua obra. Será que todos nós, professores e professoras, i zemos esse movimento em nossos discursos? Na complexidade que é a escola e a vida, ainda convivemos também com outros discursos: o da negação e da marcação das diferenças. Quantos de nós problematizamos os conceitos e verdades que nos são colocados acerca do outro diferente? Quantos nos permitimos sair do lugar do especialista que diagnostica e dei ne o tratamento do outro diferente? Nosso texto se remete à problematização de um retalho do campo da educação: a questão das diferenças, que é temática de nossos estudos e pesquisas no Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação e Diversidade (NEPED) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora, como podemos visualizar em outros textos produzidos por nós e outros pesquisadores do NEPED que deram base para a construção deste (MARQUES; MARQUES, 2003; MARQUES et al., 2006; MARQUES, 2007; 2008; MARQUES; SIEMS, 2009). Não pretendendo chegar a nenhum discurso universalizante, nem alcançar uma verdade presente nos discursos, intentamos pensar nas possibilidades das experiências no/do cotidiano escolar movimentarem os discursos gerados nas relações com as diferenças em direção à comunhão na escola e na vida. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Cotidiano escolar e diferenças 103 A NEGAÇÃO DAS DIFERENÇAS A escola, apesar de ser um espaço onde as diferenças sempre coexistiram, nem sempre reconheceu sua existência ou a considerou na sua complexidade. Durante muito tempo, negou-se a existência das diferenças no processo pedagógico. As diferenças eram percebidas como “desvio”, tendo como referencial a dicotomia normalidade versus anormalidade, demarcando a existência de fronteiras entre aqueles que se encontravam dentro da média e os que estavam fora desta. Identii cada como uma das mais importantes marcas do pensamento Moderno, a caracterização das diferenças como anormalidade constitui a negação das mesmas como uma primeira formação discursiva, a qual traz implícito o referencial de normalidade como parâmetro. O que está em jogo é a apologia do normal. A anormalidade não passa, pois, do contraponto necessário para a construção do sentido de normalidade. A negação refere-se ao fato de não se trabalhar explicitamente a questão das diferenças. O que se busca é a compreensão de um universal calcado na essência da existência humana, no qual não são levadas em conta quaisquer características individuais e/ou grupais numa homogeneidade simplória e ideologicamente excludente. São os casos das i losoi as e das pedagogias essencialistas, que falam de traços gerais e, por isso mesmo, de sentido único e universal. Os nomeados como diferentes foram, assim, historicamente discriminados. Vítimas da rejeição e/ou da compaixão social estiveram sempre à margem do convívio com os cidadãos considerados normais, sendo, inclusive, segregados, em muitos dos casos, em ambientes (instituições) restritivos, como são os casos dos asilos, escolas especiais, hospitais psiquiátricos etc. Cabia, também, à escola classii car e selecionar os sujeitos, isolando os que fugiam ao padrão construído socialmente. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Luciana Pacheco Marques 104 Pratica-se, assim, de acordo com Skliar (2002), a pedagogia de sempre, que nega a existência do outro duas vezes, tanto por não enunciá-lo quanto por não permitir que ele mesmo se enuncie. Não há senão uma menção ou anúncio forçado e inevitável. Trabalhamos, nessa ótica, uma formação de professores e professoras que não problematiza a relação normalidade versus anormalidade, produzindo uma ilusão de normalidade por parte dos alunos-professores e alunas-professoras, reforçando a mesmidade. Produzimos, assim, uma formação que pratica a negação das diferenças. A MARCAÇÃO DAS DIFERENÇAS Observa-se, todavia, um deslocamento de sentido na direção da superação desse modelo excludente de sociedade por um novo modelo fundado no reconhecimento e no respeito às diferenças. Segundo Fonseca (1995), Nos nossos dias o direito de ser diferente é também visto como um direito humano, que passa naturalmente pela análise crítica dos critérios sociais que impõem a reprodução e a preservação de uma sociedade [...] baseada na lógica da homogeneidade e em normas de rentabilidade e ei cácia, que tendem facilmente a marginalizar e a segregar quem não acompanha as exigências e os ritmos soi sticados (p. 44). Nesse contexto, situa-se o confronto entre o discurso dominante da exclusão e aquele construído a partir da voz dos nomeados como diferentes e/ou das pessoas com eles envolvidas na luta pelo reconhecimento das diferenças como condição existencial possível. Tal formação ideológica tem seus pilares na organização e na ascensão dos movimentos sociais, cujas vozes procuram - ou pela denúncia das práticas discriminatórias ou pela reivindicação de igualdade social - dar visibilidade às diferenças Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Cotidiano escolar e diferenças 105 e ocupar os espaços deixados pela ideologia dominante, fundadora do modelo social da exclusão, o que se dá tanto em relação ao espaço físico quanto em relação ao espaço discursivo. Na marcação dasdiferenças, parte-se do princípio de que as diferenças são inerentes à vida; entretanto, trabalha-se ainda a partir de dicotomias do tipo normal versus anormal, superior versus inferior, capaz versus incapaz e assim por diante. A explicitação das diferenças, nesse caso, é ideologicamente utilizada para marcá-las, estratii cando a existência, loteando a vida com a edii cação de sólidas barreiras de identii cação do outro como diferente e, consequentemente, necessitado de olhares e atendimentos especializados, que nada mais são do que o discurso dos iguais (normais) signii cando o outro como o diferente. A classii cação é uma marca da Modernidade, em que a identii cação serve para diagnosticar, classii car e i nalmente segregar. Criou-se, nesse cenário, a i gura dos especialistas, com o poder de dei nir sobre a vida das pessoas, exercendo o controle sobre a mente e o corpo de cada sujeito considerado anormal. Mascarando essa realidade, o discurso é o de identii car para dar condições de melhores atendimentos, quer sejam atendimentos especializados, cumprindo o objetivo de tratar igualmente a todos. Vive-se um paradoxo: a educação contribui, assim, para exacerbar a desigualdade. A própria luta pelo reconhecimento da igualdade de direitos já denota privilégios, tratando-se desigualmente diferentes grupos em situações educacionais. Como argumenta Silva (2000), [...] a ai rmação da identidade e a enunciação da diferença traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a diferença estão, pois, em estrita conexão com relações de poder (p.81). Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Luciana Pacheco Marques 106 Esse discurso evidencia, mais uma vez, a prática social da discriminação e do preconceito; pois, ao mesmo tempo que alguns são “aceitos”, a estrutura social da segregação é mantida inabalável, e, pior, seu sentido é ainda mais reforçado. As instituições acabam sendo mantidas, pois há quem necessite delas. Esta foi outra forma como a escola se relacionou com as diferenças: abrigando-as, mas “enformando-as”. Constituiu- se, assim, uma prática pedagógica de marcação das diferenças. As diferenças são percebidas como possíveis, mas só se admite a possibilidade de inserção de alguns considerados capazes. Skliar (2005) denuncia que o que a escola tem tentado fazer é “discutir sobre a questão do outro, ou bem o que lhe preocupa é a sua obsessão pelo outro” (p. 51). A escola não se pauta assim nas diferenças, ela considera os diferentes e não as diferenças. Pensando nos “diferentes”, nos “estranhos”, nos “outros”, a escola acaba por propiciar o processo de normalização de seus alunos e de suas alunas. É, segundo Skliar (2002), a pedagogia que hospeda, que abriga, mas que não se importa com quem é o seu hóspede. Representa o nosso discurso acadêmico que tenta traduzir e representar o outro, na intenção ingênua de inseri-lo, no sentido de “colocar dentro” de uma mesmidade, o “outro” ainda como o diferente e não como diverso. É a ambição do texto da mesmidade que tenta alcançar o outro, capturar o outro, domesticar o outro, dar- lhe voz para que diga sempre o mesmo, exigir-lhe sua inclusão, negar a própria produção de sua exclusão e de sua expulsão, nomeá-lo, confeccioná-lo, dar-lhe um currículo “colorido”, oferecer-lhe um lugar vago, escolarizá-lo cada vez mais para que, cada vez mais, possa parecer-se com o mesmo, ser o mesmo. [...] Uma pedagogia que reúne, ao mesmo tempo, a hospitalidade e a hostilidade em relação ao outro. Que anuncia sua generosidade e esconde sua violência de ordem (SKLIAR, 2002, p. 213-214, grifo do autor). Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Cotidiano escolar e diferenças 107 É a pedagogia do outro enquanto i gura folclórica, enquanto data cívica, enquanto tema de celebração numa semana especial. É também a pedagogia da escola que hospeda a criança considerada diferente, ainda que com boa vontade e intenção de atender às suas necessidades da melhor forma, mas ao mesmo tempo a encara enquanto ser diferente da suposta mesmidade com a qual está habituada (SKLIAR, 2002). No movimento de deslocamento da perspectiva que nega a existência do outro para a que o marca, mantemos, também na formação de educadores e educadoras, a dicotomia normal versus anormal, porém evidenciando a existência do diferente, construindo um acúmulo de conteúdos sobre o outro, dei nindo-o, identii cando-o e o encerrando em um opaco envoltório tecnicista. Os cursos de formação de professores e professoras, apesar dos discursos sobre respeito às diferenças, tendem, com esse discurso, a reforçar o olhar fragmentado em categorias simplistas e mutiladoras, que reduzem a educação à aplicação de técnicas. Segundo Ferre (2001), Ante a insegurança que toda mudança vertiginosa produz, ensina-se o proi ssional a responder com segurança; ante a humildade da certeza de que “não somos ninguém” - que em todo ser humano produz a presença do déi cit, a doença, a velhice, o desvalimento ou a loucura -, ensina-se ao proi ssional a responder com a arrogância daquele que pretende saber - ele sabe o que necessita o dei ciente, que educação requer o doente ou o ancião, qual é a conduta racional que deve ter o louco ou como deveria comportar-se o pobre e o desvalido, para ser “alguém” (p. 204, grifos da autora). O enfoque dado às diferenças em tais cursos acaba por encaixar os sujeitos em uma série de características i xas que impedem ver a totalidade e riqueza que cada sujeito traz consigo. Tais práticas constituem a correção do desvio, a compensação do déi cit. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Luciana Pacheco Marques 108 Outorga-se aos chamados especialistas, ou seja, aqueles que detêm o saber cientíi co, o tratamento adequado para cada uma das diferenças. Somente aos especialistas é autorizado falar sobre os diferentes, que acabam por assumir as possibilidades e as dii culdades, eni m, as identidades que os mesmos lhes outorgam. As disciplinas dos cursos de formação se atêm às classii cações nosológicas, técnicas de diagnóstico e práticas educacionais especializadas que não respondem à complexa realidade com que os professores e professoras se defrontam ao lidar com os sujeitos concretos dentro da complexidade da escola e da vida. Formamos, assim, alunos-professores e alunas- professoras que se colocam no lugar do saber e do poder sobre o outro. Produzimos uma formação que pratica a marcação das diferenças. A COMUNHÃO COM AS DIFERENÇAS A Atualidade, por sua vez, caracteriza-se pelo mergulho que o ser humano vem realizando no sentido de repensar a sua própria existência. Parece que a humanidade está chegando à conclusão de que o desejo ressentido da normalidade por ela alimentado somente acirrou ainda mais os fortes grilhões da segregação social, com a suposição de que ao mundo bastariam os chamados normais, restando aos desviantes o ostracismo e a marginalidade social. O reconhecimento do outro como protagonista do teatro da vida constitui o vetor da mudança de paradigma. A comunhão com as diferenças é mais do que um simples ato de tolerância, é a ai rmação de que a vida se amplia e se enriquece na multiplicidade. Ser diferente não signii ca mais ser o oposto do normal, mas apenas “ser diferente”. Este é, com certeza, o dado inovador: o múltiplo como necessário, ou ainda, como o único universal possível (MARQUES; MARQUES, 2003). Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Cotidiano escolar e diferenças 109 Vaz (1997), ao se referir à mudança de postura do pensamento da Atualidade em relação à polarização normalidade versus anormalidade característica da Modernidade, diz: Em nossa Atualidade, a tolerância às diferenças inter e intraculturais é a regra. Opoder não mais se exerce pela produção de uma identidade como alteridade da alteridade, provocando dor ao obrigar o sujeito a se pensar na distância entre normal e anormal (p. 229). Referimo-nos ao entendimento de que, para a existência, não há dados especii cantes: o outro é e ponto i nal. Não se coloca o outro como diferente, mas compreendemos as diferenças como formas concretas da existência, ou seja, como formas possíveis e dignas de se estar no mundo. Rompe-se assim com a dicotomia paradigmática do normal versus anormal, do capaz de ajudar versus o necessitado de ajuda etc. Todos, no caso, têm o mesmo valor existencial e, por isso mesmo, devem compartilhar dos mesmos espaçostempos, sem qualquer discriminação. Viver sem barreiras é, pois, mais do que se falar das diferenças; é se conviver e se falar das/nas diferenças, uma vez que todos somos como somos e ponto. Não devemos falar das diferenças como algo externo a nós, como se a sociedade fosse composta apenas pelos ditos diferentes. Isso feito, estaremos, de fato, nos deslocando do lugar imutável da mesmidade para um outro lugar: o da comunhão. Experimentamos a transição de um modo de se ver o homem, o mundo e a vida para um novo modo de ser. O que sabemos apenas é que a vida está mudando e que os homens e as mulheres precisam construir novas identidades, ajustadas ao ritmo e às condições de transformação da Atualidade. O que se pretende na Atualidade é que no processo pedagógico se viva a complexidade no/do cotidiano em sua diversidade e riqueza. Isso implica pensar uma sociedade sem referenciais determinados, em pensar as diferenças dentro de uma formação discursiva que tenha como pressuposto o fato de que os dados se constituem num determinado momento, Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Luciana Pacheco Marques 110 são históricos, sociais, culturais, não existindo um referencial único, mas uma disposição para lidarmos com os dados e para considerarmos todas as possibilidades da vida. Isso não constitui uma simples superação do princípio da igualdade entre os homens como valor absoluto pelo princípio de que somos todos diferentes em características e em direitos. As diferenças não devem, pois, constituir-se num critério de hierarquização da qualidade humana. Assim, o que se deve considerar no processo pedagógico é a diferença na totalidade e a totalidade na diferença, sem se prender à prejudicial polarização do normal (igual), de um lado, e do diferente (desigual), do outro. Nessa concepção propõe-se um discurso que vá além de uma igualdade educacional, em que o sujeito seja aceito e compreendido dentro de uma multiplicidade. Para tanto, a escola deverá adotar uma prática comprometida, defendendo a construção de um currículo que desai e os discursos evidenciadores dos diferentes, promovendo a compreensão das diferenças. É, segundo Skliar (2002), a pedagogia de um outro tempo. Uma pedagogia que não pode “ordenar, nomear, dei nir, ou fazer congruentes os silêncios, os gestos, os olhares e as palavras do outro” (p. 214). É a pedagogia que pretendemos, mas não sabemos fazer. É a pedagogia de experiências ricas, de cotidianos diversos, que empobrecemos na medida em que pesquisamos e tentamos traduzir em relatórios, utilizando, para tal, referenciais do discurso proprietário ou colonizador no qual estamos mergulhados. É a pedagogia que não se preocupa mais em como seria a escola “se o outro não estivesse aqui”. Que não ocupa todo o seu tempo imaginando como seria... se fossem todos normais, se todos aprendessem, se todos os professores e todas as professoras fossem bem instruídos e bem pagos, se todas as escolas fossem bem equipadas, se toda gestão fosse democrática... É a pedagogia que vive a realidade tal como ela é, em sua diversidade e riqueza (SKLIAR, 2002). Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Cotidiano escolar e diferenças 111 Na formação de professores e professoras, faz-se necessário apreender os “velhos” sentidos e, em especial, a sua movimentação no dia-a-dia do processo de formação, para podermos derivar num “novo” sentido. Consideramos aqui um processo formativo que tenha, em sua perspectiva curricular, a problematização das igualdades e das diferenças construída no sólido conhecimento que o professor e a professora experienciem acerca de si mesmos na relação com seus alunos e alunas. É a partir das características dos sujeitos concretos que se pode repensar os conteúdos e as práticas que possam atender às necessidades, interesses e valores de todos. Nesse processo formativo, a problematização sobre as diferenças deve compor elemento fundamental, já que somos todos e todas diferentes. Na formação, os alunos-professores e alunas-professoras, entendendo-se como seres inconclusos, ou seja, em constante processo de busca e construção, têm a possibilidade de se abrir para buscar em seu interior sua própria transformação; tornando-se mais críticos para o enfrentamento das situações-limites que lhes são impostas na escola e na sociedade. Nas palavras de Paulo Freire (1997): É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconheceram inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. “Não sou esperançoso”, disse certa vez, por pura teimosia, mas por exigência ontológica (p. 64-65, grifo do autor). Considerando-se inacabados, os alunos-professores e alunas-professoras podem entrar em comunhão com seus alunos e alunas, quando adentrarem os muros escolares, gerando, a partir das diferenças de todos e todas, suas práticas escolares. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Luciana Pacheco Marques 112 ESCOLA E DIFERENÇAS Se considerarmos a complexidade da vida e da escola, certamente nos entendendo inconclusos, inacabados, como pressupõe Freire (1997), nunca estaremos aptos e, ainda, pouco saberemos o que nos aguarda nas relações com as diferenças. O que propomos é sairmos do lugar do saber e do poder sobre o outro e nos abrirmos para esta maravilha que é o encontro com o outro (FERRE, 2001; LARROSA, 1998). Skliar (2006) ai rma que não se trata de formarmos professores e professoras que possuam um discurso racional acerca do outro e sua diferença. “Não faz falta um discurso racional sobre a surdez, por exemplo, para se relacionar com os surdos, não é necessário um dispositivo técnico acerca da dei ciência mental para se relacionar com os chamados ‘dei cientes mentais’” (p. 31), e assim por diante. É, para esse autor, fundamental que se possa ter acesso à experiência que é do(s) outro(s), defendendo uma reformulação da pedagogia na sua maneira de tratar o outro. Entendemos, como Skliar (2001), que todos os professores e professoras deveriam ser alertados para o fato de estarem imersos no mundo da alteridade, criando possibilidades, durante sua formação, para uma mudança em suas representações políticas e culturais sobre os sujeitos. Questionar os discursos gerados nas relações com as diferenças em todos os espaçostempos de suas vidas pessoal, acadêmica e proi ssional. Nas palavras do autor: Considero que a formação de professores [...] deve ser feita na direção de uma imersão do professor e da comunidade escolar no mundo da alteridade e uma mudança radical, já apontada anteriormente, nas representações políticas e culturais sobre esses sujeitos. [...] Em função disto, não concordo que o professor deve se preparar mais uma vez, como um especialista para cada uma das dei ciências, e sim que se tem que formar como um agente cultural que está alerta a não ser ele/ela mesmo/aum reprodutor “inocente” e “ingênuo” de fronteiras de exclusão/inclusão (SKLIAR, 2001, p. 18, grifos do autor). Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Cotidiano escolar e diferenças 113 Torna-se de suma importância que se parta da mudança das identidades dos professores e da professoras, alunos e alunas, escolas, de modo que todos os sujeitos possam assumir sua condição de agentes das situações e nunca de objetos dos quais se fala ou se refere; e das representações, de modo que denunciem a situação de status quo que a sociedade vive, visando questionar e problematizar os atuais discursos hegemônicos imersos no contexto social, para que façam sentido as mudanças nos códigos pedagógicos e textos legalmente reconhecidos (SKLIAR, 2001). Larrosa (2002) aponta que é preciso nos lançarmos à experiência e nos reconhecermos nela. O ser “ex-posto” na experiência corre o risco de ser transformado por esta, pois, se ele não conseguir problematizar os discursos gerados nas suas relações com as diferenças, se ele não internalizar essas transformações, nunca terá sensação de completude. O sujeito da experiência corre o perigo de se indignar, ou seja, não se conformar com a situação posta, buscando sempre respostas a suas indagações, nunca se acomodando. Portanto, experiência não é prática, pois esta nem sempre está sensível e rel exiva ao momento vivido. Explicita o autor: Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “im- posição” (nossa maneira de impormos), nem “pro- posição” (nossa maneira de propormos), mas a “ex- posição”, nossa maneira de “ex-pormos”, como tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre (LARROSA BONDÍA, 2010, p. 25, grifos do autor). E qual outro caminho senão a aproximação das questões da prática no aprendizado da teoria para que possibilitemos as Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Luciana Pacheco Marques 114 experiências? Ao invés de aprender as tradicionais respostas, não deveríamos aprender a fazer perguntas? O sentido bancário (Paulo FREIRE, 2006) da formação de professores e professoras precisa ser deslocado para um sentido libertário. Uma formação libertadora estaria voltada para a formação de alunos-professores e alunas- professoras conscientes e críticos, atuantes na sociedade, numa transformação de si e da realidade. Nessa perspectiva, assumiriam, de fato, a sua vocação ontológica que, segundo Paulo Freire (1997), é a de serem sujeitos historicamente situados e engajados na luta ininterrupta do dia-a-dia. Todo o processo educacional poderia se movimentar nessa direção apontada por Paulo Freire (2006) desde a primeira edição da obra Pedagogia do Oprimido, publicada em 1968. O que nos escapou? Já é tempo das experiências na/da escola movimentarem os discursos gerados nas relações com as diferenças em direção à comunhão na escola e na vida. Concluímos com uma frase do educador Paulo Freire (1993, p. 10) que muito nos afeta: O tempo que levamos dizendo que para haver alegria na escola é preciso primeiro mudar radicalmente o mundo é o tempo que perdemos para começar a inventar e a viver a alegria. REFERÊNCIAS FERRE, Nuria Pérez de Lara. Identidade, diferença e diversidade: manter viva a pergunta. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Orgs.). Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 195-214. _. Imagens do outro: imagens, talvez, de uma outra função pedagógica. In: _; LARROSA, Jorge. Imagens do outro. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 180-192. FONSECA, Vitor da. Educação Especial. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012 Cotidiano escolar e diferenças 115 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1997. _. (1968). Pedagogia do oprimido. 45. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. _. Prefácio à edição brasileira. In: SNYDERS, Georges. Alunos felizes. São Paulo: Paz e Terra, 1993. p. 9-10. LARROSA, Jorge. O enigma da infância ou o que vai do impossível ao verdadeiro. In: _; FERRÉ, Nuria Pérez de Lara (Orgs.). Imagens do outro. Petrópolis: Vozes, 1998. p.67-86. _. Notas sobre a experiência e o saber experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, p. 20-28, jan./fev./mar./abr. 2002. 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We have identii ed, by studying and investigating dif erences for some time, three dif erent discourses that well characterize human attitudes against dif erences and, consequently, associations with dif erences in schools and in the education process: that of denial, that of demarcation and that of communion. Neither Educ. foco, Juiz de Fora, v. 17, n. 1, p. 101-117, mar. / jun. 2012Cotidiano escolar e diferenças 117 intending to reach a universalizing discourse nor to reach some truth that is present in discourses, we tried to think of how possible it is for school routine experiences to propel discourses produced when relating to dif erences towards communion in school and life. Keywords: Dif erences – School – Teacher Education Data de recebimento: junho 2011 Data de aceite: outubro 2011
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