Buscar

A Dimensão Autobiográfica dos Arquivos Pesssoais o Arquivo de Gustavo Capanema Priscila Fraiz

Prévia do material em texto

Introdução 
A Dimensão Autobiográfica 
dos Arquivos Pesssoais: 
o Arquivo de Gustavo Capanema 
Priscila Fraiz 
Gustavo Capa nem a se preocupou durante toda a vida em guardar os 
registros de sua trajetória como homem público,l fato evidenciado pelos aproxi­
madamente 200 mil documentos de seu arquivo pessoal, doados por ele próprio 
ao CPDOC. O arquivo cobre o período que vai de 1914 a 1982 e reúne, além de 
uma grande massa de manuscritos, outros tipos de registros, como folhetos, 
periódicos, recortes de jornais, mapas, plantas, fotografias e discos. A dedicação 
do titular à atividade de guardar, de deixar os registros de sua vida para a 
posteridade pode ser melhor expressa pela comparação com o volume médio dos 
114 arquivos recolhidos até hoje pelo CPDOC: cerca de 90% abrigam menos de 
dez mil documentos, o que faz com que o arquivo de Capanema seja um dos 
Nota: Este artigo é: uma versão condensada da minha dissertação de mestrado, intitulada A construção de um 
eu aUlobiogrúfico: /} arquivo privado de Gustavo Capanema. Defendi-a no Programa de Pôs-Graduação em 
Literatura Brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em julho de 1994, sob a orientação do 
professor ltalo Moriconi. 
59 
estudos históricos . 1998 - 21 ---------������������ 
60 
maiores do Centro. Esse dado aponta, também, para a importância desse acervo 
corno fonte privilegiada de estudos em diversas áreas do saber acadêmico, 
particularmente em temáticas relacionadas à educação e cultura, dado que 
aproximadamente um terço do material refere-se à obra de Capanema no Minis­
tério da Educação e Saúde. Contudo, toda a sua trajetória de homem públíco é 
bem retratada no arquivo, desde o exercício da advocacia e do magistério em 
Pitangui até o último mandato senatorial quando, enfim, se retirou da vida 
pública. O arquivo apresenta, ainda, muitos aspectos de sua vida pessoal e familiar 
- característica desse tipo de acervo - comprovados por inúmeros registros: urna 
vasta correspondência com personalidades do meio cultural e intelectual e com 
a família, bem corno uma significativa produção intelectual reunindo, entre 
outros textos, cerca de sete mil fragmentos autobiográficos. 
Corno urna das pesquisadoras responsáveis pela organização do arquivo, 
tive a atenção despertada por um certo tipo de material que, de imediato, tornava 
aquele diferente de todos os outros arquivos que lhe fazem companhia no 
CPDOC. Trata-se de documentos de autoria do titular, referentes ao plane­
jamento e à organização do próprio arquivo e, secundariamente, à classificação 
-
adotada para a sua biblioteca particular. E raro que um arquivo pessoal chegue a 
urna instituição de memória com algum arranjo ou ordenamento prévios, deter­
minado pelo próprio titular, por colaboradores ou mesmo por familiares; mais 
incomum ainda é encontrar um tipo de material que reflita e revele alguma ordem 
original ou primitiva, que possa nos dizer do arquivo e sobre o arquivo. 
Examinando mais acuradamente esse conjunto de documentos, batizado 
de meta-arqu;vo,2 tentei perceber urna lógica de acumulação implícita na forma 
corno Capanema dispôs seus papéis ao longo da vida. Essa lógica pareceu-me 
consistir em produzir e guardar registros que servissem de suporte para o projeto 
de escrever suas memórias, não levado a termo. Imediatamente me veio a idéia 
de pensar esse arquivo corno o projeto autobiográfico de Capanema, na medida 
em que a construção de seu arquivo pessoal podia ser reveladora da maneira corno 
ele constituía, emprestava um sentido, dava coerência e solídificava seu eu, sua 
• 
Imagem. 
Além do meta-arquivo, outros registros peculiares reforçaram minha 
idéia. Trata-se - corno já foi apontado acima - de um conjunto de aproximada­
mente sete mil fragmentos de escritos autobiográficos, produzidos simul­
taneamente à construção do arquivo e revela dores, igualmente, do projeto de 
escrever memórias. Esses fragmentos, por sua vez, dividem-se em dois blocos 
distintos, porém complementares: um, reunindo cerca de três mil fragmentos, é 
constituído por trechos de obras, citações, transcrições de pensamentos etc., que 
Capanema anotava conforme ia lendo ou estudando; o outro bloco, com cerca de 
quatro mil fragmentos, reúne a escrita autobiográfica propriamente dita de 
A Dimellsão AI/tobiográfica dos Arquivos Pessoais 
Capanema, aquela onde está presente a noção de indivíduo moderno, que marca 
a especificidade da literatura autobiográfica da modernidade: a noção de autor e 
o emprego auto-referencial e literário da primeira pessoa. 
Esses fragmentos, a par do meta-arquivo, me possibilitaram, portanto, ler 
o conjunto do arquivo como submetido a um projeto de construção autobio­
gráfica. Assim, proponho-me, neste artigo, analisar esse processo de construção, 
examinando os dois conjuntos de documentos acima mencionados a partir de 
questões suscitadas, em primeira instância, pela discussão de princípios seminais 
da teoria arquivística - base para a análise e a organização de arquivos - e, 
posteriormente, pela discussão teórica sobre o gênero autobiográfico. 
o campo arqrtivístico 
Para iniciar a análise do arquivo de Gustavo Capanema enquanto projeto 
de construção autobiográfica, tornarei como base um dos princípios da ar­
quivística moderna - o do respeito à ordem original. Esse princípio, juntamente 
com o da proveniência, constitui a pedra angular da teoria arquivística desen­
volvida entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século 
XX. Formulados inicialmente visando aos arquivos públicos, ambos foram 
posteriormente estendidos aos de natureza privada incluindo, mais recente-
• 
mente, os pessoaIs. 
O princípio de respect des fonds, ou princípio da proveniência, surge pela 
primeira vez na França em 1841, mediante circular do Ministério do Interior que 
definia, entre suas diretrizes gerais, que 
a) os documentos deviam ser agrupados por fundos 
[fonds], isto é, todos os documentos originários de uma determinada 
instituição, tal como uma entidade administrativa, uma corporação ou 
uma família, seriam agrupados e considerados o fundo daquela determi­
nada instituição. (Schellenberg, 1973: 209) 
Como se pode observar, o Estado francês, já no século XIX, incluía em 
sua legislação sobre arquivos os fundos de natureza privada de origem familiar. 
Entretanto, a incorporação do conceito de arquivo privado pela arquivística 
dar-se-á somente no século XX.3 
Aprofundando o princípio da proveniência descoberto pelos franceses e 
adotado na Prússia desde 1871, os holandeses 4 o radicalizaram, inferindo que dele 
decorria o princípio do respeito à ordem original. Isso porque defendiam que a 
ordem primitiva do registro dos documentos refletia, "na sua essência, [ ... ] a 
lógica da organização do corpo administrativo que [os] produziu" (ibid.: 216-217). 
-
estudos históricos . 1998 - 21 ---------�� ���������� 
62 
Segundo Duchein (1976), o princípio do respeito à ordem original está, 
teoricamente, contido no princípio da proveniência, ou seja, é pane integrante 
deste último. Entretanto, na prática, surgem várias dificuldades para a aplicação 
desse princípio, que vão desde a inexistência de ordenação dos fundos dentro do 
organismo produtor até as questões relativas à extinção do órgão e à supressão ou 
à transferência de atribuições de um organismo para o outro. Não é à toa que o 
princípio do respeito à ordem original foi formulado pela primeira vez nos países 
de tradição germânica, onde a existência de um órgão especial - RegislTatur -, 
responsável pelo registro e classificação dos documentos desde sua origem, 
permitiu a manutenção da ordem primitiva desses documentos quando de seu 
recolhimento a um depósito de arquivo. 
Devido ao aumento considerável das funções do Estado moderno e à 
grande explosão documental no pós-guerra, tornou-se difícil e às vezes im­
possível recuperar a ordem original de um determinado fundo.
5 
A experiência 
dos americanos, após a criação de seu ArquivoNacional, em 1934, foi importante 
para a flexibilização desse princípio. Eles advogam a necessidade de se manter a 
integridade dos documentos, ou seja, seu valor de prova da organização e função 
do órgão, mas admitem a possibilidade de se abrir uma exceção à regra, no caso 
de ser difícil restabelecer a ordem primitiva. Tal posição conciliatória alia a 
necessidade de compatibilizar a aplicação do princípio do respeito à ordem 
original à urgência da pesquisa histórica. Essa posição, no entanto, é objeto de 
polêmica e divide, ainda hoje, arquivistas de vários países.
6 
Foi somente a partir da segunda metade deste século que o arranjo de 
papéis privados deixou de se basear em práticas e métodos biblioteconõmicos. 
Antes, eles eram tomados como simples unidades avulsas, Sem que Se levasse em 
consideração SeU caráter orgânico, perceptível pelo processo de acumulação. Já 
para Schellenberg, um conjunto de papéis privados produzidos por um indivíduo 
deve ser ordenado em função de suas múltiplas atividades ou funções, pois "essas 
atividades, provavelmente, são a base pela qual SeUS papéis são agrupados e 
organizados durante a sua vida" (Schellenberg, 1973: 244). Isso significa dizer 
que, segundo o autor, de uma maneira geral, deve-se aplicar-lhes os mesmos 
princípios de proveniência e do respeito à ordem original adotados no arranjo de 
arquivos públicos. 
Uma característica essencial dos arquivos pessoais reside na prepon­
derância do valor infoIluativo de Seus documentos, isto é, seu valor de uso para 
fins históricos. O valor de prova legal, característica essencial dos documentos 
públicos, perde esse sentido estrito para os papéis privados. Mas se alargarmos 
esse conceito, também podemos dizer que, na organicidade de um arquivo 
pessoal, na maneira como os documentos foram organizados e mantidos em seu 
local de origem, é que reside seu valor de prova. Essa maneira atesta, por exemplo, 
A Dimmsão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
as intenções e os sentidos emprestados pelo titular do arquivo relativos ao uso 
dos documentos acumulados. 
Nesse sentido, poderíamos dizer que seu valor de prova é estabelecido 
de "fora": é o olhar do usuário do arquivo (o pesquisador por excelência) que 
capta, daquele conjunto, as "provas" de que precisa para sua pesquisa. 
Ora, se esse pesquisador, além de trabalhar o conjunto de informações 
que o conteúdo do arquivo fornece, puder resgatar a globalidade de sua lógica, 
extrairá com certeza muito mais informaçoes. "O arranjo do material pode ser 
tão significativo como o próprio material" (Ellen Jackson, apud Schellenberg, 
1973: 244). A ordem na qual os documentos foram organizados pode trazer 
alguma luz sobre a natureza do arquivo e de seu criador, da mesma forma que a 
ordem na qual os arquivos públicos e os privados institucionais são acumulados 
esclarece quanto à organização e funcionamento dos órgãos que os geraram. 
Contudo, a aplicação do princípio do respeito à ordem original nos 
arquivos pessoais encontra dificuldades semelhantes àquelas com que se deparam 
os arquivos públicos. Na grande maioria dos casos, os acervos pessoais chegam 
de forma desordenada à instituição de memória que os recolhe, dificultando, 
dessa forma, a observância do princípio. E nos casos em que a ordem primitiva, 
caso exista, se mostre inadequada à recuperação das informações para uso 
científico, considero que não se deve colocar uma camisa de força no momento 
de se definir o arranjo a ser adotado. 
Como já apontei, sendo o valor informativo o preponderante, a deteuni­
nação do arranjo deve ter como horizonte a pesquisa histórica. Nesse sentido, a 
observância do princípio pode se dar mediante a elaboração de um instrumento 
de busca que recupere a antiga ordem como, por exemplo, tabelas de equivalência. 
Pois, 
o que nos interessa na ordem original, isto é, no modo 
de articulação dos documentos gerado pelo processo de acumulação [é] 
apreender a operação de acumulação como rede articulada de sentidos 
da qual o [acumulador] é o centro lógico. (Vianna et aI., 1986: 68) 
O arquivo de Gustavo Capanema, como se verá agora, é um caso particu­
lar pois que, mesmo tendo uma característica comum - a desordem quando da 
chegada à instituição que O recolheu - foi possível, examinando o meta-arquivo, 
resgatar sua ordem original. Entretanto, esse resgate não redundou no resta­
belecimento stricto sensu da antiga ordem, nem na elaboração de qualquer instru­
mento para a sua recuperação. O meta-arquivo possibilitou a apreensão da lógica 
de acumulação seguida por Capanema, assim como orientou a definição de um 
arranjo que compatibilizasse a organização prevista pelo titular com as necessi­
dades da pesquisa histórica. 
63 
64 
estudos históricos . 1998 - 21 
o meta-arquivo 
Abrangendo o período de 1943 a 1966, os documentos relativos ao 
meIa-arquivo somam 123, dos quais a maior parte está relacionada ao Plano de 
classificação para o arquivo, que serviu de parâmetro para a definição do arranjo 
acima mencionad07 Os documentos incluem inúmeras versões modificadas pelo 
titular, desde o período de sua gestão no Ministério até a última legislatura no 
Congresso, e os instrumentos utilizados para a classificação dos papéis: fichários; 
índices topográficos, onomásticos e temáticos; listagem de casos, assuntos e 
acontecimentos. O Plano, embora não seja datado, pode ter sua produçao localizada 
na segunda metade da década de 1960, e sua escolha como base para a recuperação 
de uma antiga ordem se deveu ao fato de ele apresentar, de forma mais acabada, as 
diversas versões anteriores. Essas versões, se são importantes para que se possa 
perceber as sucessivas reorganizações do arquivo, são fundamentais para a percepção 
do processo de construção do projeto autobiográfico de Capanema. Uma dessas 
versões consiste em um caderno manuscrito a que Capanema chamou de Pro­
grama de discursos e escritos. Em sua folha de rosto, anota: 
[ ... ] 3. O presente caderno, até a p. 41, contém apontamentos feitos, 
desde 1944, sobre tal ponto da minha organização burocrática. A partir 
da p. 42, estes apontamentos serão retificados, modificados ou acresci­
dos. Agosto de 1959. (GCn 43.07.21 - I.12) 
Definindo e redefinindo, ao longo desse período, a produçao intelectual do 
titular e de que fOI ma esta seria elaborada e ordenada no arquivo, pude perceber que, 
desde pelo menos 1944, Capanema se preocupou, a par dos escritos de caráter público 
(discursos, entrevistas etc.), com seus escritos de natureza mais pessoal: 
[ ... ] 4. Escritos especiais: 1 
São os seguintes: 
r. Correspondência. 
H. Escritos biográficos: 
I. Jornal. 
2. Memorial. 
3. Cronologias. 
4. Bibliografia. 
5. Breviário. 
6. Testamento. 
IH. Notas e apontamentos: 
I. Notas. 
2. Apontamentos. 
I. Cada coleção de textos formará um caderno. Adotar três cores: ns. I, 
H, 1Il. (idem). 
A Dimellsão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
-
E interessante notar que, conforme Capanema vai repensando e sistema-
tizando melhor seus escritos biográficos, vai aparecendo, de forma mais clara, o 
que chamo de fragmentos autobiográficos e que serão objeto de análise posterior. 
Ainda nesse mesmo ano, ele aponta em seu caderno: 
A 19umas observações 
(l9-XI-1944) 
1. Reduzir os escritos a três modalidades: escritos auxi-
liares; escritos biográficos; escritos diversos. 
[ ... ] 
3. Os escritos biográficos serão: 
I . Jornal. 
2. Memorial. 
O Jornal conterá as notas diárias com a data do dia da 
anotação. 
O Memorial incluirá: 
a) narrativas escritas em data posterior ao acon-
. 
teclmento; 
b) textos recolhidos que nao possam ser incluídos nos 
escritos diversos; 
c) a correspondência. (idem) 
Cerca de dez anos depois, Capanema reduz ainda mais seus escritos 
biográficos e detalha com mais precisão como devem ser elaborados e organi­
zados no arquivo: 
16-5-55 Classificação dos escricos 
[ ... ] 
2 e 3 - Cronologia e Memórias 
I. Serão os únicos escritos biográficos, além da Biblio-
grafia.2.Tanto para a Cronologia, como para as Memórias, haverá 
dois conjuntos de papéis: 
I) Pastas de trabalhos: em pastas fechadas, serão recolhi­
dos os escritos e os documentos destinados à redação dos textos defini-
• 
uvos. 
2) Pastas de escritos: em pastas fechadas, serão recolhidas 
e catalogadas as páginas concluídas. 
3. A redação das páginas far-se-á mediante consulta aos 
escritos e documentos guardados nas respectivas pastas de trabalho. 
[ ... ] 
65 
66 
estudos históricos . 1998 - 21 
5. Para a redação da CrOlwlogia e das Mem6rias, é de 
capital importância recorrer ao arquivo e às fontes documentárias. 
[ ... ] 
7. As páginas da Cronologia guardar-se-ão em pastas, 
catalogando-se pela ordem cronológica nOlmal, isto é, continuada. 
8. As páginas das Mem6rias guardar-se-ão em pastas 
diferentes que formarão coleção separada. Serão catalogadas pela ordem 
cronológica. 
9. Os papéis acima indicados [ ... ] serao guardados na 
gaveta na 2 do gabinete de fora. 
[No original, encontra-se o desenho do gabinete e da 
numeração das gavetas, feito por Capanema.] (idem) 
Em outro documento do mera-arquivo, provavelmente datado do início 
da década de 1960, ele lista o material de que precisa para a redação definitiva de 
seus escritos autobiográficos: "contas do dia, contas mensais, tocos de cheques, 
frases diversas, notas cronológicas, recortes especiais, papéis especiais e cronolo­
gias preparadas" (GCn 43.07.21 - I.18); assim como define com mais precisão em 
que consistem as diversas modalidades desses escritos, ressaltando a necessidade 
de serem compostos como tarefa diária: 
'Notas cronológicas' é outro título imperioso. Nelas, 
caberão não só as anotações de fatos ocorridos, mas de meditações 
políticas e outras. 'Notas cronológicas' e 'Capítulos de memórias' devem 
ser logo compostas como tarefa de cada dia. 
'Páginas de memórias' é composição indispensável. [ ... ] 
Quando um caso me ocorrer, mesmo um caso pequeno, de pouca importân­
cia histórica, mas com algum sentido psicológico, escrevê-lo. Escrever 
também os episódios que ainda dependam de consulta a documentos ou 
pessoas, escrevê-los com a ressalva de retificação posterior. (idem) 
O último documento datado do mera-arquivo é, curiosamente, mais 
um dos planos de escritos biográficos, já visando à preparação do livro de 
• • 
memonas: 
Jornal 21-2-66 
Com a leitura de jornais velhos de Pt [Pitangui] e BH, 
de recortes a partir de 1930, e com a demais documentação existente e 
devidamente examinada e aproveitada, e ainda com as pesquisas na 
Onça, Pitangui, BH, Rio e Brasília, que farei ou mandarei fazer, poderei 
compor o meu jornal, com observância do seguinte: 
1) sob o aspecto geral, buscarei, no conjunto, ir fazendo 
uma análise sumária da minha vida. 
A Dil/lC/lsão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
2) quanto ao conteúdo de cada página (chamada nota 
cronológica para efeito de composição apenas), registrarei um feito ou 
fato, a síntese de uma realização ou acontecimento, um perfil, um 
pensamento, uma transcrição que equivalha a um pensamento meu, um 
episódio familiar, enfim toda a chamada vida, e tudo muito resumida­
mente, com exceção da carreira pública, advogado e político, os dois 
únicos aspectos que devo ressaltar. 
O trabalho deve ser precedido de uma introdução, que 
é a menção exata que eu tiver ou puder obter dos meus antepassados e o 
relato da minha infância até o dia 4 de março de 1914, data inicial do 
Jornal (denominaçao do livro que gostaria de fazer). (GCn 43.07.21 - 1.20) 
Pude inferir daí que Capanema, nas três últimas décadas de sua vida, se 
dedicou, no que tange à preparação de suas memórias, quase que exclusivamente 
à organização de seu arquivo, privilegiando alguns conjuntos de documentos que 
serviram de suporte à feitura dos escritos biográficos. 
As observaçóes feitas até aqui levam-me a admitir que a observância do 
princípio de respeito à ordem original, evidenciada pela lógica de acumulação 
expressa pelo meta-arquivo, foi fundamental para a percepção da anologia entre 
a construção de um projeto autobiográfico de Capanema e a constituição de seu 
arquivo pessoal. Analisarei, a partir de agora, a plausibilidade dessa analogia, a 
partir dos fragmentos autobiográficos que compóem os escritos biográficos de 
Capanema, com base no instrumental teórico do campo autobiográfico. 
A escrita fragmmtária de Capa"ema - o "arquivo-memória" 
Segundo May (1982), para alguns autobiógrafos, como Pierre Loti, o 
método encontrado para deter o curso do tempo traduz-se em colecionar objetos 
testemunhais; a esse gosto de concretização, Loti chama de "museu". Sabemos 
que arquivos, bibliotecas e museus são "lugares de memória", na expressão 
cunhada por Pierre Nora.
9 
E nesses "lugares", tanto da memória coletiva quanto 
individual, pretende-se a cristalização do tempo. Numa primeira aproximação, 
podemos supor que a dedicação esmerada de Capanema para com seu arquivo e 
com sua escrita, fazendo e refazendo ordens, planos, classificações, ao mesmo 
tempo escrevendo e reescrevendo obsessivamente sobre si, constituiria a es­
tratégia utilizada para produzir um sentido para a sua vida. Já vimos como ele 
vai construindo e reconstruindo minuciosamente, passo a passo, seu projeto, ao 
organizar seu arquivo. E o faz dentro de uma característica que lhe é peculiar: na 
obsessão da escrita. Escrita fragmentária, heterogênea, própria do autor e do seu 
tempo. Pretendo mostrar, agora, como essa prática cotidiana, que resultou na 
produção dos aproximadamente sete mil fragmentos autobiográficos, ajudou a 
67 
68 
estudos históricos . 1998 - 21 
conduzir o processo de construção da identidade de Capanema. Como homem 
público, a análise das relaçoes entre sua escrita privada e sua atuação política pode 
contribuir para desvendar a maneira como ele elaborava uma autoconstrução 
moral, como construía uma imagem moral de homem público. Essa moral, marca 
da política brasileira nos anos 30, se verá refletida em seu arquivo, tanto pela 
construção do conjunto - o arquivo - quanto pelo exercício de sua escrita diária. 
A constituição da subjetividade, através do exercício diário da escrita, já 
aparece, com valores distintos, desde a Antiguidade greco-romana, como nos 
aponta Foucault em "A escrita de si".IO Partindo de um texto do século IV da era 
crista, a Vila AllIonii, de Atanásio, o autor mostra que o registro escrito das ações 
e do pensamento cumpriam a função de arma de combate espiritual: trazendo à 
tona os movimentos interiores da alma, alcançava-se melhor a ascese, pois a 
escrita tornava possível ao homem conhecer-se, ter vergonha de si e assim 
livrar-se do pecado. A ascese, entretanto, sempre fora um princípio a ser seguido 
desde Pitágoras e Sócrates, entendida aí como adestramento de si por si mesmo, 
e exercitada através de abstinências, memorizações, exames de consciência, 
meditações, silêncios e escuta do outro. O exercício da escrita somente passou a 
ser um elemento imponante da vida ascética, segundo Foucault, a panir dos dois 
, 
primeiros séculos do Império. E escusado dizer que os valores cristãos ali não se 
colocavam, pois o papel da escrita como exercício pessoal objetivava armar o 
cidadão para a vida pública. 
Dois tipos de prática textual eram comuns e correntes no público culto 
da época: os Izypomnemata e a correspondência. Os Izypomnemata se constituíam 
em cadernos pessoais de notas onde eram registrados citações, fragmentos de 
obras, ações e exemplos testemunhados ou lidos, reflexões e debates ouvidos ou 
rememorados. Guia de conduta, mais do que apenas auxiliar da memória, os 
Izypomnemata serviam de construção, para o indivíduo, de um "arquivo" de 
discursos de que se podia utilizar quando fosse necessário agir. 11 Desse modo, os 
cadernos de notas deviam ser profundamente implantados na alma e, por isso 
mesmo, constitutivos de si próprio. Foucault frisa também que esse tipo de escrita 
individual não devia ser confundido com diários íntimosou outros tipos de 
narrativa de si mesmo cuja confissão cumpria o papel de purificação, próprios da 
literatura cristã. Ao contrário, os hypormzemata, em lugar de revelar o oculto, 
retinham o já dito, reunindo tudo o que se pôde ler ou ouvir, com a única 
finalidade de 
fazer da recoleção do lagos fragmentário e transmitido 
pelo ensino, audição ou leitura, um meio para o estabelecimento de uma 
relação de si consigo próprio tão adequada quanto possível. (Foucault, 
1992: 138) 
A Dil1lcIIstio Autobiográfica tios Arquivos PcssoClis 
Os cadernos de notas eram caracterizados por sua fragmentação e hete­
rogeneidade. Contudo, a unificação desses fragmentos heterogêneos era factível, 
não pela composição desse conjunto, segundo Foucault, mas pelo próprio escri­
tor, por intermédio da sua subjetivação no exercício da escrita pessoal constitutiva 
dos hypomnemata. Mediante a coleta de coisas lidas e ditas por outros e fixadas 
pela escrita, o indivíduo constituía para si próprio uma identidade, na qual se 
podia ler toda uma genealogia. 
Nesse sentido, me permito ampliar as conclusões de Foucault, quando 
ele infere que a construção de uma subjetividade só se realiza no ato mesmo da 
escri ta. No caso específico de Capanema, tenho pretendido mostrar que a tenta­
tiva de constituição de sua identidade será buscada, igualmente, no ato de 
organizar seu arquivo, num movimento simultâneo ao da escrita. 
Não é preciso insistir no fato de que a construção de um arquivo 
pressupõe o ato da escrita ou que a escrita precede o arquivo. Contudo, convém 
lembrar que um arquivo implica não só a produção de discursos de seu titular, 
como também a acumulação de discursos de outros. Ou seja, é também pela 
acumulação de discursos produzidos por terceiros que Capanema busca construir 
sua identidade, realizando esse movimento simultâneo: produz seu próprio 
discurso mediante a apropriação, pela escrita, de outros discursos, ao mesmo 
tempo que acumula organizadamente tantos outros que lhe servirão para a 
mesma finalidade. 
Destaco três questões que Foucault levanta, por me parecerem rele­
vantes para caracterizar a especificidade da escrita de Capanema, a saber: o 
papel da escrita como exercício para a vida pública, a importância dos cader­
nos de notas como construção de um "arquivo" de discursos antigos 
utilizáveis para a atualizaçao de seu próprio discurso, e a diferença entre os 
hypomnemata e a narrativa de si mesmo, esta última a própria atualização dos 
discursos dos outros. 
A construção da subjetividade de Capanema, arma de combate para 
enfrentar o real (as relações de poder na vida pública moderna), será ensaiada 
mediante a elaboração dos dois tipos de escrita já citados anteriormente: os 
fragmentos de transcrições de obras, citações, pensamentos etc. - a que chamo 
de "arquivo-memória" - e os fragmentos autobiográficos propriamente ditos. O 
segundo tipo não se constitui sem o primeiro. 
A analogia entre os hypomnelllaw e os fragmentos de Capanema a que 
chamo de "arquivo-memória" faz sentido, porque os dois são semelhantes em 
sua composição. Minha hipótese é a de que os "cadernos de notas" dos antigos, 
assim como o "arquivo-memória" de Capanema, foram fOI mas encontradas, no 
processo de construção do eu, para a fIXação de uma identidade. 
69 
70 
estudos hi stóricos . 1998 - 21 
A apropriação feita por Capanema de coisas)á ditas, lidas ou pensadas, 
como forma de preparar-se para a ação política,! consubstancia-se no seu 
"arquivo-memória": 
'Souvent je suis tenté de dresser, au cours de mes quotidiennes 
/ectures, une sorte d'antlw/ogie et d'C/lgranger, dans un canzet spécial, le bon 
grain que de-ci de-lã, je récolte - transcrivant de bons textes, à l'instar de 
Bouvard ou de Pécuchet, dO/lS l'érmui de ne /es pouvoir confier à ma défaillante 
mérnoire.' André Gide, Pages de ]ounzal 1939-1942, p. 97. (GCpi/Ca­
panema, G. 00.00.00/26-IV ) 
A necessidade de reter física e mentalmente o passado, como forma de 
defesa no presente e preparação para o fururo, é levada por ele até às últimas 
conseqüências, mediante o exercício sistemático da escrita associada aos hypom­
nemata, perpassando, quase que uniformemente, toda a sua vida, desde os tempos 
de estudante em Belo Horizonte. 
Como cristão, tinha na religião um dos seus temas prediletos. Encon­
tram-se em seu arquivo inúmeros fragmentos de notas de leituras da Bíblia: 
Sobre o Apocalypse: frases: 
[ ... ] e saiu vitorioso para vencer (VI,2) 
a via do Cordeiro (VI,16) 
[ ... ] 
E não fizeram penitência dos seus homicídios, nem dos 
seus empeçonhamentos, nem das suas fornicações, nem dos seus furtos 
(IX,21) 
[ ... ] 
Mas pelo que toca aos tímidos ... morte (XXI,8) 
Copiar os vs. 4 e 18 do cap.13 
[ ... ] (GCpi/Capanema, G. - 00.00.00/26-1) 
De vasta cultura humanística, Capanema lia de tudo. Retirava das 
leiruras trechos, fragmentos, citações, pensamentos que serviam de suporte à sua 
constituição como sujeito político: "Manual político: I. Série de meditações, 
conceitos, casos e episódios, contendo uma lição de conduta política [ ... ]" (GCn 
71.02.21 - I1.37). Este é um dos planos de seus escritos que nos levam a perceber 
a maneira cmo utilizava os discursos dos outros na atualização de seu próprio 
discurso. Seus planos de estudo e notas sobre direito, história, filosofia, religião, 
educação, política, língua e hterarura - temas prediletos - reúnem, como já foi 
mencionado, cerca de três mil fragmentos. Sêneca advertia que é preciso ler, mas 
escrever também, para combater a estultícia que a leitura infindável corre o risco 
de favorecer; 13 observaremos em Capanema essa mesma atitude: 
A Dimensão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
é preciso estar sempre lendo uma grande obra, uma 
dessas obras chamadas clássicas, seja de ficção, seja de filosofia, história, 
política, direito. A leitura deverá ser feita com a imediata elaboração dos 
necessários resumos e transcriçoes e deverá dar lugar a juizos e críticas 
sumárias [ ... ]. (GCpi/Capanema, G. - 00.00.00/37) 
Entre os clássicos preferidos encontram-se Machado, Camoes, Goethe e 
Gide, com destaque especial .rara os dois últimos, pela freqüência muito maior 
de apontamentos de leitura.l 
Conforme ia lendo, Capanema anotava em frases cunas os assuntos 
tratados e a referência. Copiava trechos que reputava importantes, ajuntando, vez 
ou outra, comentários do próprio punho. Um desses manuscritos ocupa 12 folhas 
pequenas, referentes a leituras de e sobre Goethe, sem indicação explícita dos 
títulos. 
, 
E curioso observar como ele privilegiou, nos fragmentos, o perfil de 
Goethe feito por seu criado, que revela enOllIle semelhança consigo próprio, tanto 
no biótipo como nos gestos, nas inclinações intelectuais e nas relações com a vida 
pública: 
Que palavra sólida a de Goethe! A presença de tal 
homem devia dar a impressão de segurança aos homens desorientados. 
[ ... ] A sua casa era freqüentada dos artistas e procurada 
pelos homens de Estado. (Ver, p.ex. 2-10-23 e 14-10-23) 
[ ... ] Conselho de Goethe: escrever a data em as poesias, 
para servirem como diário dos estados de alma. "eu venho fazendo isso ... " 
[ ... ] Sobre o valor do momento presente: cada im­
pressão, cada momento possuem valor infinito, pois apresentam toda 
uma eternidade. 
[ ... ] Goethe, moço em Weimar: delgado, fino, delicado; 
alegre mas sério; o cultivo da ciência e da arte; a amizade, a freqüência 
do grão duque. (Impressões de um seu antigo criado de quarto). [ ... ] 
(GCpi/Capanema, G. 00.00.00/26-1) 
Interessa aqui registrar uma forma peculiar dessa recolha de textos 
recortados, que tomam um significado análogo aos hypomnemata, como guia de 
conduta política e, portanto, suporte para a autoconstrução moral de Capanema: 
ele selecionava as citações, parágrafos, frases, ou qualquer outro tipo de texto que 
lhe dissesse/ensinasse algo sobre as virtudes e vícios da vida pública e empres­
tava-lhes títulos bastante configuradores daquilo em que, para ele, consistia a 
práxispública: 
71 
72 
estudos históricos . 1998 - 21 
[ ... ] Apre/lder a escutar 
De Marco Aurélio: 'Adquire o hábito de escutar aten­
tamente os outros e procura, na medida do possível, meter-te dentro da 
alma daquele que te fala'. (Comentariorum Libri XII, lib. VI,53). 
(Traduzida pela revista Escola Secundária do M.E.C). 
Sentença que principalmente os políticos devem obser-
varo 
[ ... ] A política e o homem solitário 
Machado de Assis, falando de José de Alencar: 'A 
política era incompatível com ele, alma solitária.' (ver o resto em Páginas 
Recolhidas, p. 130-131) 
[ ... ] Medir as palavras 
'Aprendam daqui os homens eminentes pelos cargos 
e talentos, e pela consideração de que gozam no mundo, o cuidado 
com que devem medir suas palavras e ações, para que no presente não 
vão contra as leis da honra e do dever, e no porvir não dêem à 
inexorável história o direito de registrar os seus nomes com desdouro.' 
O. F. Lisboa, Vida do Padre Antonio Vieira, 5' edição, p. 256) [ ... ] (GCl 
62.02.10-1 ) 
Uma temática muito presente na escrita do "arquivo-memória", porém 
pouco recorrente na sua escrita autobiográftca propriamente dita, é a da vida 
familiar e pessoal. Capanema recuperará, mediante a transcrição de trechos de 
leituras diversas, temas mais íntimos como o desejo e o amor em família, como 
este: 
Federico García Lorca - Obras completas, vol. III. 
'La calle es para la gente desocupada. 15 
f .. .] Maria 
Dicen que COll los hijos se sufre mucho. 
[. . .] }é"ma 
Mentira. Eso lo dicen las madres débiles, las quejumbrosas. 
Para quê los IÍenetl? Tener un hijo no es tener un ramo de rosas. Hemos de sufrir 
para ver/os crecer ... Etc 22 
[. . .] }énna 
No es envidia lo que tengo, es pobreza. 63 
[. . .] }énna 
Cada vez tmgo más deseos y menos esperanzas. 65 
[. . .] No hay en el mundo fuerzas como la dei deseo.75' 
(GCpi Capanema, G. 00.00.00/26-1) 
A Dimcllstio Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
A partir de agora, analisarei o outro conjunto de fragmentos autobi­
ográficos de Capanema, aquele que se insere dentro das narrativas de si. Como 
apontei anteriormente, o que diferencia os fragmentos do "arquivo-memória" 
destes é a presença da noção de indivíduo moderno, que marca a especificidade 
da literarura autobiográfica da modernidade. 
o campo autobiográfico c " escrita auto-rcferCllcial de Cap"nema 
Foi somente a partir do Renascimento que surgiram as condições para 
o efetivo aparecimento da autobiografia, pois a ruptura causada pela dissolução 
progressiva da vivência medieval das comunidades feudais permitiu o encontro 
do indivíduo consigo mesmo. Concorreram bastante para isso as novas relações 
de trabalho e de poder: o homem renascentista, ao ter que assumir diferentes 
papéis na vida pública, se viu progressivamente diante de si mesmo, pondo em 
questão, pela primeira vez, sua conduta individual. Certamente existia a prática 
da introspecção antes do Renascimento, como já foi demonstrado pelo estudo de 
Foucault. Porém, o início de secularização no Renascimento pelIllitiu que o 
introspectivo se voltasse mais para a análise das razões que orientavam as ações 
pessoais. A prática da meditação (modelo religioso) foi sendo lentamente substi­
tuída pela prática do que Costa Lima (1986: 267-8) chama de auto-exame: "a 
busca de descobrir a razão da conduta individual". 
Pode-se dizer que o homem renascentista começa a ter dimensões 
psicológicas. E a ampliação progressiva da introspecção e do auto-exame são 
indicadores de que o indivíduo moderno está em vias de nascer. No campo 
autobiográfico propriamente dito, pode-se eleger Montaigne como o precursor 
do gênero, com o aparecimentos dos Essais. Essa obra, escrita entre 1572 e 1588, 
constitui, segundo diversos estudiosos, a primeira produção autobiográfica em 
que o autor, "explícita e conscientemente", se toma como objeto de análise: 
"Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria deste livro".
15 
Mas é sobretudo no século XVIII que podemos falar verdadeiramente 
em autobiografia, dado que é só a partir desse século, 
quando a noção de 'direito' se liga, não a uma ordem 
natural e social, mas ao ser humano em particular, [que] este ser humano 
em particular se torna um indivíduo no sentido moderno do termo 
(Louis Dumont, apud Costa Lima, 1986: 282). 
Refiro-me, é claro, aos direitos individuais propugnados pela Revolução 
Francesa, dos quais Rousseau foi um dos mais ardorosos defensores. As ConfISsões, 
escritas entre 1764 e 1770, são paractigmáticas nesse sentido e tornaram-se a 
73 
74 
estudos históricos • 1 998 - 21 
expressão mais cabal do individualismo moderno, dentro da literatura autobio­
gráfica. 
Fortemente influenciado pelas Confissões de Rousseau, houve um 
aumento considerável das nall'ativas autobiográficas durante o século XIX, as 
quais assumiram, ao longo do século XX, proporções equivalentes ao culto do 
individualismo e resultaram em formas discursivas que puseram em xeque os 
parámetros até então aceitos nesse gênero. Essas formas discursivas vizinhas da 
autobiografia, como o romance epistolar,
16 
romance histórico, diários íntimos e 
memórias, se já existiam anteriormente, como as duas primeiras, só passaram a 
pertencer ao gênero autobiográfico a partir do momento em que o indivíduo 
tomou consciência de si mesmo e assumiu sua subjetividade.17 
Philippe Lejeune (1975) define a autobiografia como a "narrativa 
retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, acen­
tuando sua vida individual, particularmente a história de sua personalidade". 
Segundo o autor, essa definição contém elementos que pertencem a quatro 
categorias diferentes, as quais permitem compará-la a outras modalidades narra­
tivas vizinhas. São elas: a forma da linguagem - narrativa em prosa; o assunto 
tratado - vida individual, história de uma personalidade; a situação do autor­
identidade do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador; e a 
posição do narrador - identidade do narrador e do personagem principal, além 
, 
do aspecto retrospectivo da narrativa. E uma autobiografia strielo sensu, para 
Lejeune, a obra que preenche ao mesmo tempo essas quatro condições. O que 
não acontece com alguns gêneros vizinhos, pois lhes falta preencher algumas 
delas - é o caso, por exemplo, das memórias, cujo assunto não é principalmente a 
vida individual, a história de uma personalidade, e dos diários íntimos, onde 
inexiste a visão em retrospecto da narrativa. Mas a ausência de alguns desses 
elementos não impede de se conferir a esses gêneros a chancela autobiográfica. 
J á não é o caso, por exemplo, da biografia e do romance pessoal pois, para Lejeune, 
a autobiografia implica necessariamente um "pacto autobiográfico", isto é, a 
identidade entre autor, narrador e personagem, identidade essa de que o leitor 
não deve duvidar. Nesse sentido, o objeto profundo da autobiografia é o nome 
próprio, a assinatura de uma pessoa real que escreve sobre ela mesma e atesta sua 
identidade pela aposição de seu nome na capa do livro (é difícil imaginar 
autobiografias anõnimas, pois o pacto que o autor estabelece com o leitor é 
exatamente permitir que este último conheça e participe de sua vida). 
Para Lejeune, portanto, a questão da autobiografia não se traduz na 
discussão entre a realidade extra-textual (a vida do autor) e o seu maior ou menor 
grau de veracidade, quando da passagem dos eventos vividos para o texto 
autobiográfico, nem na análise estritamente interna do texto, definindo-se, ao 
contrário, pelo contrato de lei tura que determina a forma como aquele texto deve 
A Dimensão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
, 
ser lido: como uma autobiografia. E nesse sentido que Lejeune descarta a 
possibilidade de incluir, dentro da definição stricw sensu da autobiografia, relatos 
ficcionais de cuja autenticidade o leitor possa duvidar (o que não deve ser 
confundido com veracidade).18 Mesmo que as recentes técnicas estilísticas ten­
tem jogar com a duplicidade ficção-nãoficção (narração na terceira pessoa, nome 
do personagem distinto do nome do autor, alterações no tempo cronológico da 
narrativa, conteúdos ficcionais), a chancela do sujeito que escreve sobre ele 
mesmo será garantida, porque ele estará sempre atualizando o pacto com o leitor, 
de tal forma que este sempre reconheça que está lendo urna autobiografia. A 
autobiografia se move permanentemente entre os discursos histórico e ficcional, 
não importando, em primeira instância, se o relato é "verídico" ou não; a noção 
de "pacto autobiográfico" fornece uma definição estrurural, independente das 
fronteiras entre falso e verdadeiro, facultando que se trabalhe com a idéia de 
discurso expressivo auto-referencial, sob forma e estilos os mais variados. Isso 
me permite fazer lima analogia com a idéia de construção autobiográfica, em que 
a presença do eu é simultaneamente testemunhal e auwral. 
Daí poder-se admitir que o arquivo privado de Gustavo Capanema é seu 
projeto autobiográfico porque, construindo seu arquivo, ele constrói sua ex­
pressão individual, sua imagem, seu eu, efetuando o pacto com o leitor (no caso, 
, 
o usuário do arquivo). E como se Capanema estivesse dizendo: "você está lendo 
a minha vida, construída e escrita por mim". 
Pela maneira como o sujeito se mostra diante do outro podemos perceber 
toda a ambigüidade que preside ao ato do indivíduo ao tentar reconstituir-se a si 
mesmo, procurando recompor urna unidade, perdida entre tantos outros eus do 
passado. A "turbulência" que o autobiógrafo sente ao escrever sobre o que foi ou 
deixou de ser pode ser medida pela distância temporal que separa o ato da 
enunciação dos eventos enunciados. O eu do escritor no passado não é, e nunca 
poderá ser, o mesmo eu do escritor no presente. Daí que o esforço que o autor faz 
para recompor o passado visando a unificar o presente implica "erros, enganos, 
esquecimentos, distorções e seleções conscientes ou inconscientes" (Costa Lima, 
1986: 252). 
Sendo assim, a construção autobiográfica na modernidade cumpre o 
papel de buscar fixar um sentido para a existência do indivíduo moderno que 
tenta, desesperadamente, encontrar e totalizar em uma unidade a sua identidade 
fragmentada. A "turbulência" do autobiógrafo traduz-se exatamente na dico­
tomia possibilidade-impossibilidade de deter o curso do tempo e, no caso 
específico de Capanema, as diversas modalidades de sua escrita auto-referencial 
podem nos revelar de maneira plena essa "turbulência". 
Essa escrita aparece em quatro mil fragmentos, aproximadamente. In­
cluem a escrita do dia-a-dia e aquela produzida em tempo posterior ao acon-
75 
76 
estudos históricos . 1 998 - 21 
tecimento. Para efeito de classificação, estabeleci arbitrariamente os limites que 
separam os diferentes tipos de fragmentos optando por priorizar o tempo da 
narrativa (o momento da escrita) como norteador desses limites, dado que existe 
uma interpenetração natural com o conteúdo da narrativa. Partindo desse 
critério, podemos perceber três grandes grupos de fragmentos: a escrita diária 
(geralmente datada), a que é realizada retrospectivamente, mas em curto espaço 
de tempo (geralmente uma semana) e aquela em que o retrospecto é feito muitos 
anos ou décadas após o acontecimento vivido ou testemunhado. 
Chamei de notas cronológicas, cronologias e capítulo e páginas de memória 
cada um desses três grupos de fragmentos, respectivamente. Eles serão analisados 
tendo em vista dois critérios: a composiçao formal (datação, grafia etc.) e a 
, 
composição temático-cronológica (contéudo). E importante registrar que não é 
possível mostrar uma unidade lógica nesses escritos, seja através da forma, seja 
através da cronologia. Isso porque Capanema -como já apontei quando da análise 
do meta-arquivo - nomeava e renomeava seus escritos biográficos sem apresentar 
contornos definidos, impossibilitando, dessa forma, proceder à análise levando­
se em conta exclusivamente um critério. Aliás, é o próprio caráter fragmentário 
dos textos que impossibilita uma análise a partir, por exemplo, exclusivamente 
do critério formal. A forma, entretanto, é importante, na medida em que revela, 
de maneira cabal, a fragmentação vivida por ele. Assim, o fio condutor da análise, 
em primeira instância, estará centrado no conteúdo temático, porque só através 
dele é que poderemos perceber a tentativa de construção de um sujeito político 
e moral. Em seguida, farei algumas observações levando em conta a divisão por 
tempo de narrativa (o momento da escrita). 
Tomando como base o critério temático-cronológico analisarei, princi­
palmente, o fragmento que denominei capítulo de memória, o único existente no 
arquivo e, provavelmente, o único redigido. Refere-se a uma retrospectiva do 
início da carreira política de Capanema, quando este é nomeado secretário do 
Interior no governo mineiro de Olegário Maciel. O exercício de funções públicas 
inicia-se em 1927, como vereador em Pitangui e, depois, como oficial-de­
gabinete de Olegário, quando começa a travar contato com a política, em 
decorrência da Revolução de 30. Contudo, a intimidade com o poder consolidar­
se-á a partir de uma atuação mais nacional, propiciada pelas funções que O cargo 
de secretário do Interior lhe exigirão, em virtude da participação decisiva de 
Minas no combate à Revolução Constitucionalista de 32. Esse documento, como 
o próprio Capanema indica no início e no fim do texto, foi produzido tendo em 
vista fazer parte de um dos capítulos de seu projetado livro de memórias, 
conforme pude observar por um rascunho do meta-arquivo a que chamou índice 
de livros. Embora sem data, é provável que tenha começado a ser escrito durante 
sua gestão no Ministério da Educação e Saúde, já que a grafia e o tipo de papel 
A Dimellsão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
utilizado apresentam características semelhantes a inúmeros outros escritos do 
período. Classifiquei esse documento dentro da categoria de capítulo de memória 
dado o tempo decorrido da narração retrospectiva, enunciado por indicaçóes, 
feitas por Capanema no texto, da necessidade de consulta a fontes orais e texmais 
para a rememoração de acontecimentos passados. 
A importância desse texto reside no fato de que Capanema já nos revela 
aí suas pretensões no campo da política, assim como a maneira pela qual foi 
conquistando, gradualmente, seu espaço no círculo restrito da elite dominante. 
Esse dado me parece fundamental para o entendimento da sua formação político­
moral, base para a construção de uma auto-imagem que lhe servirá de "armadura" 
para enfrentar a realidade que escolheu viver. Sua personalidade agonística estará 
presente em vários fragmentos do texto, como neste: 
Aliás fui sempre vítima de investidas. Desde que entrei 
na Secretaria até que morreu o Olegário, todo o mundo queria tirar-me 
do governo. Ora era um, ora era outro. Tive que lançar mão dos homem um 
contra os outros [grifo meu]. Depois de minhas relações com Getúlio 
[Vargas], a coisa se tornou mais difícil. Tornou-se quase impossível 
depois da Revolução de São Paulo. Mas até o fim havia sempre quem 
estivesse anunciando a minha saída. CGCa 28.01.00 -1.3/1) 
No entanto, a posição de luta aberta e às vezes até desleal contra os 
adversários só é revelada na sua escrita privada, pois o perfil de conciliador e 
pacificador é que vai prevalecer no domínio público. Não quero somente reiterar, 
com isso, que as fontes privadas, de uma maneira geral, são importantes para 
contrapor informações existentes nas fontes de namreza pública. No caso 
específico de Capanema, quero mostrar, sobremdo, que a criação desse perfil 
conciliador faz parte de um estratagema fundamental para a consrruçao de sua 
imagem pública. 
Dessa perspectiva, a estratégia antitética vai estar presente, necessaria­
mente, em seu discurso auto-referencial; tanto a tipologia dos textos, que se 
assemelham pelo que apresentam de fragmentário, quanto os movimentos inter­
nos da escrita de Capanema, como recorrências estilísticas,obsessões, detalhes, 
é que nos podem revelar essa estratégia de produção de um sentido para a sua 
vida. 
O que se pode perceber, por esse texto, é a permanência e preponderância 
da temática "perfil do homem do Estado". A preocupaçao constante de Ca­
panema de se distinguir dos ourros políticos e de consrruir, para si, o modelo de 
homem de Estado se dá, na sua escrita privada, pela observância minuciosa do 
comportamento de qualquer pessoa com quem estabelece relações políticas, 
independente de serem ou não idênticas suas convicções político-ideológicas: 
77 
78 
estudos históricos • 1998 - 21 
a propósito de cada acontecimento em que entra o 
Olegário, fixar o seu caráter revelado no momento. Descrever a atitude. 
O mesmo com os outros importantes. (idem) 
A estratégia de "falar de si" através do outro estará presente, em maior 
ou menor grau, na maioria dos fragmentos. Capanema vai construindo seu perfIl 
em antítese à construção, por ele, do perfIl de seus pares. A partir dessa oposição, 
vai separando o "joio do trigo" e, com isso, construindo sua moral. O uso 
• 
excessivo de antroponímias, nesse caso, é exemplar. As vezes encontramos apenas 
a menção de nomes: ''[. .. ] Carlos. Leal. Vargas." ou ''[. .. ] Impressão dos homens 
com que de perto lidei: Alvaro, Menelick [ de Carvalho], Furtado, Marques, etc." 
(idem) 
Em outras ocasiões, a descrição detalhada do perfIl, até na observãncia 
de posturas não convencionais: 
[ ... ] No dia 23 [ fev. 1931], às 11 horas 'Te Deum' em São 
José. Fiquei perto do Getúlio. Getúlio, Olegário, Afrânio [de Melo 
Franco], Capanema. D. Cabral oficiou. João Rodrigues Falou: 'Oposlel 
illum regnare'. I Cor, Xv, 25. Getúlio não ajoelhou [grifo meu]. Protestante? 
Dizem que tem um fllho chamado Luthero. Positivista talvez. Talvez 
ateu. Talvez nada. [ ... ] (idem) 
Ou ainda em outro fragmento incluído no grupo das notas cronológicas: 
[ ... ] Outro que chegou para me visitar [ ... ] foi o Oswaldo 
Aranha. Esteve longo tempo, falou da situação política, mostrou-se 
descontente com o novo regime [o Estado Novo] [ ... ] .Fumou, entrou para 
urinar [grifo meu], perguntou várias coisas. Em tudo, cortês, amável, e 
com o mesmo ar espalhado e simpático. (GCa 28.01.00 -1.7/9) 
A construção desse perfIl não se dá exclusivamente mediante a observãn­
cia do comportamento do outro. Capanema registra também a importância que 
atribui à imagem que dele faziam: 
[ ... ] O Alceu [Amoroso Lima], ao tomar posse ontem da 
reitoria da Universidade do Distrito Federal, refere-se a mim, 
atribuindo-me 'tenacidade espantosa' e 'l1ama criadora'. Não tenho tais 
qualidades no grau necessário. E elas devem ser a essência mesma do 
espírito do homem de Estado. (idem) 
Outro dado interessante que se percebe nos textos, revelador da cons­
trução de sua auto-imagem a partir da vida pública, é a lacuna, já mencionada, 
com relação aos assuntos familiares e mais íntimos. Esses assuntos são abordados 
residualmente, sendo a escrita ainda mais fragmentária do que a encontrada sobre 
A Dimeusão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
os assuntos políticos. São frases curtas, secas, enxutas, quase sem o emprego de 
verbos e de recursos estilísticos de ênfase: 
[ ... ] Depois de casado, o cinema, de vez em quando [ ... ] 
Carnaval: 15,16, e 17 de fevereiro de 1931. Os bailes. A sogra. [ ... ] Maria 
faz anos. Dei-lhe um livro sobre a vida de Balzac. A sua fisionomia é de 
quem possui o contentamento. [ ... ] Maria com Maria da Glória e Gustavo 
Affonso regressam de Caxambu. (GCa 28.01.00 - I.3/1; GCa 28.01.00 -
1.7/9; GCa 28.01.00 - I.l5/l9) 
Relativamente à divisão por tempo de narrativa (momento da escrita), 
começarei observando alguns aspectos das notas crono/6gicas, dado que é o tipo de 
fragmento que Capanema mais produziu. A preponderância das notas em relação 
aos outros dois tipos já indica, aliás, a impossibilidade de transformar seu projeto 
autobiográfico em obra acabada. 
As notas cronológicas se assemelhariam, a meu ver, ao diário. Segundo 
Lejeune, a diferença básica entre autobiografia e diário íntimo está na perspectiva 
de retrospecção já que, neste último, é mínima a separaçao temporal entre o vivido 
e o registrado. Essa diferença pode ser observada pelo uso mais freqüente do 
tempo presente do verbo e pela interpenetração dos tempos verbais do presente 
e do passado: 
7 defevereiro [1956] 
Juscelino [Kubitschek] almoça na cidade com o Negrão 
[de Lima], e de volta ao palácio me chama ao telefone. Dá muitas 
satisfações. Convida para um almoço em dia próximo. Alego que vou 
viajar. O almoço fica para mais tarde [ ... ] ; 
15 de março [1957] 
Na reunião do diretório e da bancada, faço um discurso 
procurando colocar bem o Carlos Luz, em face da recusa certa que ia ter 
• 
a idéia de ser colocado o seu retrato no salão das reuniões. A tarde, 
recepção do Presidente aos membros do Congresso: compareci. (GCa 
28.01.00 - 1.15/19 e CCa 28.01.00 - 1.18) 
Os aspectos verbais encontrados nas notas cronológicas não significam, 
entretanto, apenas uma preocupação de ordem estética, que Capanema prezava 
muito. Percebo mais como um sintoma de "turbulência" vivida por ele no momento 
da escrita: "congelar" o tempo decorrido (mesmo mínimo) com o uso do presente, 
sentindo, porém, a dificuldade de detê-lo (uso mesclado de tempos verbais). 
Outros autores
19 
apontam como um dos aspectos diferenciadores da auto­
biografia e do diário a precisão, exatidão e fidelidade deste último, em razão da menor 
separação temporal entre o acontecimento e o seu registro. Gostaria de enfatizar, 
79 
80 
estudos histó,icos • 1 998 - 2 1 
lembrando Lejeune, que esses aspectos não devem ser levados em conta para 
efeito de diferenciação, uma vez que precisão, exatidão e fidelidade remetem à 
• 
questão da "veracidade" do relato autobiográfico. E claro que o escritor é mais 
propenso a recordar com maior exatidão e precisão os eventos mais recentes dos 
quais participou ou foi testemunha, ao contrário das autobiografias clássicas, 
onde a distância temporal é muito maior. Isso, contudo, não significa com­
promisso com a verdade, pois a existência de mtro ou seleção da memória vai 
estar presente, com maior ou menor grau, nas narrativas autobiográficas de uma 
maneira geraL A nota cronológica a seguir exemplifica o que acabo de dizer: 
Capanema rasurou propositadamente um trecho, tornando-o irrecuperável não 
só para o público-leitor quanto para ele próprio. 
7 de dezembro [1957] 
O governador Bias Fortes, com quem ontem estive, 
notou que eu, sempre tão cheio de é/an (foi esta a sua palavra), tão 
ardoroso na carreira política, fiquei agora desiludido. Ele nota a tristeza 
em que ando, e que se reflete nas minhas conversações, nos meus modos, 
nos meus silêncios. [a partir daqui, rasura do propositadamente] (GCa 
28.01.00 - Ll8) 
O esquecimento era vital para a construção de sua unidade, e se dava no 
próprio momento de sua escrita diária. Outro tipo de filtro pode ser percebido 
quando registra, ao final de uma nota, a necessidade de reescrevê-la: 
B-H, 7-9-75 
Na sua habitual crônica de domingo T heodulo Pereira, 
com o pseudõnimo de Péric1es, conta como se criou a Legião de Outubro 
e como foi preparado e debelado o 18 de agosto. 
Eu sou acusado no primeiro caso e omisso no segundo. 
Não sei porque Theodulo, em todas as suas crônicas, 
tem a tendência de me diminuir, ele a quem sempre tributei admiração 
e estima tão sincera e de quem pessoalmente tenho recebido demons­
trações tão cordiais. Por que haverá nele esse continuado vezo ou 
propósito de me deixar mal ou na obscuridade? Será o seu fanatismo por 
Benedito Valadares? Esta razão não teria cabimento, pois não houve 
entre o Valadares e mim nenhuma irredutível animosidade, nem isso 
poderia impedi-lo de me tratar, já não digo com boa vontade, mas com 
simples justiça. 
Refazer esta nota com mais discrição. [grifo meu] (GCa 
28.01.00 - v'2/27) 
A Dimellsão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
Ourrodado que reforça minha argumentaçao no que se refere à neces­
sidade de seleção da memória para a recomposição de uma unidade fragmentada, 
pode ser observado na própria relação enrre a consrrução de seu arquivo e o 
movimento contínuo da escrita diária. O ato deliberado de consrruir um arquivo 
pessoal implica no mais das vezes o desejo de tomá-lo público um dia. O próprio 
Capanema, em depoimento dado a professores de arquitetura da Universidade 
de Brasília, em 12 de dezembro de 1962, afirmava que pretendia, "denrro de 
algum tempo, mandar fazer um levantamento de todo o [seu) 'papelório' que [era) 
numeroso [ ... ) e estava [ ... ) esparramado em vários lugares da cidade", pois 
reconhecia uma dívida "para com a culrura brasileira no sentido de divulgar este 
material" (Vianna et aI., 1986). 
No seu caso, como acabamos de ver, esse desejo u1rrapassa a mera doação 
de seu arquivo a lima instituição de memória. Capanema queria ser reconhecido 
publicamente, também, mediante a realização de um livro de memórias. Ou seja, 
havia implícito um desejo seu de monumentalização. Nesse sentido, sua mão vai 
operando dois movimentos simultâneos de mrro: o primeiro, no ato da escrita 
diária, selecionando o que escreve ou o que vai escrever, já sabendo de antemão 
que essa escrita vai tornar-se pública um dia; o segundo, no ato da doação do 
arquivo, selecionando os documentos passíveis de vir a público. 
Ouua observação que extraí das notas cronológicas é que o volume de sua 
produção varia de acordo com o contexto político vivido. Com isso, quero dizer que 
existe em Capanema uma tendência a escrever mais de si quando se enconrra bem 
próximo do poder. Essa aproximação se reflete nas relações com os políticos, 
principalmente com os que detêm o poder máximo, como os presidentes. Por isso, 
existem muito mais notas cronológicas durante os governos de Vargas, de Juscelino 
• 
e do período do regime militar, do que durante o governo de João Goulart. E que a 
autoconsrrução moral estava tão enraizada no seu cotidiano da vida pública, que 
escrever sobre si mesmo significava escrever sobre seus pares. No governo Jango, o 
PSD de Capanema freqüentemente fazia oposição às propostas do governo, apesar 
de integlar os partidos considerados de situação. Ele não participava, nesse mo­
mento, do círculo mais resrrito do poder. Não éà toa que nesse período observei uma 
produção maior do segundo tipo de nanativa autobiográfica, que classifiquei como 
cronologias, como veremos agora. 
As cronologias se caracterizam, do ponto de vista formal, por uma 
apresentação mais reduzida e sintética e, do ponto de vista temático-cronológico, 
corrobora a idéia apresentada acima. Ou seja, a importância que Capanema dava 
ao aspecto de sua relação com o poder repercutirá, de forma diferente, no 
movimento de sua escrita autobiográfica. 
Do ponto de vista temporal, as cronologias assemelham-se às notas 
cronológicas, dada a quase ausência de rerrospectiva. O fator tempo é percebido, 
8 1 
82 
estudos históricos . 1998 - 21 
nesse caso, pela apresentação formal do texto. São escritas, geralmente, no final 
da semana (verificável pela aposição do dia da semana e do mês) e contêm o 
retrospecto da semana transcorrida feito de uma só vez (observável pela constân­
cia da grafia, pelo uso da mesma tinta da caneta etc): 
Cronologia da semana 
Maio de 1 963 
Domingo 5 - Mando, do Rio para Brasília, ao deputado 
Martins Rodrigues, líder do PSD, por intelmédio do seu genro, deputado 
Paes de Andrade, o texto, a que acabei de dat a redação final e definitiva, 
do projeto do PSD (reforma agrária). Dito pelo telefone ao Globo uma 
declaraçao sobre as eleições municipais em Minas. 
Segunda 6 -No gabinete do [Emâni do] Amatal Peixoto, 
redijo a seu pedido a norma de uma carta dele aos diretórios regionais 
mandando cópia do projeto. O Globo dá as minhas declarações. Dito as 
mesmas declarações pata o Diário de Notícias. 
Terça 7 - Sai a minha declaração no Diário de Notícias. 
Parto, no Viscount (13,15) do galeão, pata Brasília. Designo o relator da 
Comissão que vai dar parecer sobre o projeto do PTB. [ ... ] (GCa 28.01.00 
- 11.4/6) 
As páginas de memórias - do último grupo dos fragmentos - foram 
produzidas a partir da década de 1970 e consistem, basicamente,.em anotações 
sobre episódios que julga importante serem rememorados. Nesse caso, a distância 
temporal estatá vinculada ao gênero vizinho da autobiografia, as memórias; a 
seleção e o filtro serão percebidos, basicamente, pela escolha das lembranças e 
pela fOlma da narrativa. Nesse sentido, a "rurbulência" é muito mais intensa que 
a sentida na escrita dos dois primeiros grupos de textos, dado que a distância 
temporal é maior, resultando mais dificil pata ele conviver com a idéia de finirude 
que o transcurso do tempo favorece. Daí sua recusa, a meu ver, de redigir 
definitivamente as páginas de memórias, restringindo-se a anotat a necessidade 
de lembrar tal ou qual fato, repetindo o mesmo movimento da escrita, dessa vez 
ainda mais fragmentário. Ele não chega a registrat suas evocações, apenas 
"meias-lembranças", já que a recordação plena lhe é impossível: 
Memórias 
Min. da Ed: coisas políticas 
O episódio do dia da viagem de trem pata Minas com 
Wenceslau [Brás] e Ant"[nio] Catlos. A missão que o Getúlio me deu e 
a conversa no trem de ferro com os dois. Tempos depois o Antonio Carlos 
não recebeu pela morte da J ulieta telegrama do Wenceslau. 'O W. não me 
telegrafou'. (GCm 73.00.00 - 11.37) 
A Dimellsão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
, 
E curioso observar, dessa perspectiva, que o capírulo de memórias -
primeiro fragmento analisado - foi redigido durante o período do Ministério e 
refere-se a fatos do início da década de 30, ou seja, com um intervalo temporal 
de mais ou menos uma década. 
Exatamente porque foram escritas já no final de sua vida, as páginas de 
memórias trazem uma radicalização do caráter fragmentário encontrado em seus 
demais textos autobiográficos. A especificidade desse material, portanto, é que 
me permite reforçar a idéia de que a tentativa de construção de sua unidade, 
mediante a constiruição de uma auto-imagem de homem público, não se realiza 
plenamente pela escrita, já que esta, por ser fragmentária, realiza o caminho 
inverso: vai desconstruindo paulatinamente o que se tentou construir. 
COllclusão 
Para analisar o arquivo de Gustavo Capanema enquanto um projeto 
autobiográfico, utilizei-me de um olhar cruzado entre a literatura e a arquivística. 
Pretendi mostrar, com essa dupla perspectiva que, se a escrita autobiográfica de 
Capanema revela a fragmentação vivida por ele e a um ponto em que esta torna-se 
impeditiva da consolidação de um livro de memórias, como era seu desejo, s6 se 
pode perceber plenamente essa fragmentação se a relacionamos e a inserimos 
dentro do conjunto do arquivo, de que os fragmentos são parte constitutiva. 
Procurar decifrar a estrutura interna de um arquivo pessoal para perceber 
as intenções e as dinâmicas do sujeito que se dedica a construí-lo, torna-se, 
portanto, indispensável para aqueles que têm como atividade profissional a 
organização dessas fontes e sua disponibilização para a pesquisa. 
Essa percepção levou-me a pensar que o projeto de Capanema de escrever 
e publicar suas memórias não se consumou porque, em verdade, seu espaço 
autobiográfico residia exatamente na dedicação excessiva ao próprio arquivo, no 
fazer e refazer ordens, planos, classificações, produzindo um sentido para a sua 
vida mediante a ordenação das fontes e nunca a sistematização do texto. 
O projeto de construção autobiográfica de Capanema, portanto, só pode 
ser recuperado através do próprio arquivo, pois que este representa a arquitetura 
minuciosa de uma obra condenada a permanecer projeto, esboço, intenção. Uma 
obra que só pode ser percebida se invertermos a hierarquia que organiza suas 
etapas de elaboração, conferindo ao processo acumulat6rio o estatuto de objeto 
da análise autobiográfica.Uma obra que nunca teria fim, por isso capaz de deter o curso do tempo 
e, como disse Michel Leiris em Bijfures, "alcançar uma espécie de firmeza, de 
imortalidade, esculpindo [sua] estátua (verdadeiro trabalho de Sísifo, sempre por 
recomeçar)" (apud May, 1982: 64). 
83 
84 
estudos históricos . 1 998 - 21 
Notas 
1. Estas são as principais atividades 
públicas e privadas de Gustavo 
Capanema (Pitangui, MG, 1900 - 1985): 
vereador em Pimngui pelo Partido 
Republicano Mineiro ( 1927-1930); 
oficial-de-gabinete do presidente de 
Minas Gerais, Olegário Maciel (1930); 
secretário do Interior de Minas Gerais 
(1930-1933); um dos organizadores da 
Legião Liberal Mineira (1931) e do 
Partido Progressista de Minas Gerais 
(1933); intervemor interino em Minas 
Gerais (1933); ministro da Educação e 
Saúde (1934-1945); deputado à 
Assembléia Nacional Constituinte de 
1946 pelo Partido Social Democrático de 
Minas Gerais e deputado federal pela 
mesma legenda (1946-1959); líder da 
maioria na Câmara dos Deputados 
(1952-1955); presidente do Círculo de 
Artes Vera Ianacopoulus (1958); 
ministro do Tribunal de Comas da 
União (1959-1961); deputado federal 
pelo PSD-MG (1961-1965); presidente 
do Museu de Arte Moderna do Rio de 
Janeiro (1965); deputado federal pela 
Aliança Renovadora Nacional-MG 
(1966-1971); senador pela mesma legenda 
(1971-1979). 
2. Este termo foi cunhado pelos 
pesquisadores Maurício Lissovsky e 
Paulo Sérgio Moraes de Sá que, 
juntamente comigo e Valéria Alves 
Esteves Lima, foram responsáveis pela 
organização do arquivo. Quiseram eles, 
ao criar a expressão meta-arquivo, 
apropriar-se do sentido do prefIxo fieta ­
" além", C'transcendência", "reflexão 
crítica sobre", 
3. Opto por citar duas dessas definições 
considerando que dão conta não só da 
abrangência do período, como da 
indiferenciação entre o público e o 
privado no que se refere a arquivos. A 
primeira é a italiana de 1928, que defme 
os arquivos como "a acumulação 
ordenada de documentos criados por 
uma instituição ou pessoa no curso de sua 
atividade c preservados para a consecução 
de seus objetivos políticos, legais e 
culturais pela referida instituição ou 
pessoa" (Casanova, apud Schellcnberg, 
1973). A brasileira, desta década, 
fortemente influenciada pela definição 
francesa, considera arquivos "os 
conjuntos de documentos produzidos e 
recebidos por órgãos públicos, 
instituições de caráter público e 
entidades privadas, em decorrência do 
exercicio de atividades específicas, bem 
como por pessoa física, qualquer que seja 
o suporte da informação ou a natureza 
dos documentos" (Lei nO 8.159, de 8 de 
janeiro de 1991). 
4. Feitb and Fruin Müller, Manual aJ 
Qrrangemenl and descnjJtion of archives, 
New York, 1940. (O original em holandês 
foi publicado em 1898). 
S. Terry Cook, em "Arquivos pessoais e 
arquivos institucionais: para um 
entendimento arquivológico comum da 
formação da memória em um mundo 
pós-moderno", texto incluído neste 
número de Esrudo Hist6ricos, questiona 
• • • • • • 
até mesmo se os prmclplos arquIVIStlCOS 
fundamentais são inteiramente válidos 
no fim deste século, em razão do 
caráter cremero e virtual dos 
documentos eletrônicos, entre outros 
• 
motivos. 
6. Ver, nesse sentido, os textos de Ariane 
Ducrot e Terry Cook, incluídos neste 
número de Estudos Históricos, como 
exemplos da polêmica que envolve as 
linhas francesa - clássica - e canadense ­
de inspiração none-americana. 
7. O PiaM de classificação de Gustavo 
Capanema previa o estabelecimento das 
. , . 
seguIntes senes: 
A - assumos pessoais e familiares; 
B - relações com pessoas, instituições c 
A Dimensão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
• • • • • 
munlclplOS mmeIros; 
C - estudos, trabalhos, escritos; 
D - antepassados; da iruancia ao fim da 
vida em Pirangui; 
E - no governo de Minas (1930-34); 
F - no Ministério da Educação e Saúde: 
assuntos gerais e especiais (1934-45); 
G - no Ministério da Educação e Saúde: 
educação e cultura (I 934-45); 
H - no Ministério da Educação e Saúde: 
saúde e serviço social (1934-45); 
I - no Ministério da Educação e Saúde: 
assuntos políticos (1934-45); 
J - na Assembléia Consriruinte: na 
Câmara dos Deputados (1946-5 1); 
K - na Câmara dos Deputados: líder da 
maioria (1951-56); 
L - na Câmara dos Deputados (1956-71) 
(GCn 43.07.21-V I8). 
No interior de cada série os documentos 
deveriam ser organizados em dossiês por 
temas, assuntos ou tipos de documentos, 
como por exemplo: Ac - fatos da vida 
familiar; Ad - fotografias de famíliaj Fd 
- construção do edifício do MES; Ln ­
miscelânea: episódios diversos; juízos e 
críticas; declarações e frases avulsas. 
O arranjo adotado pelo CPDOC, tendo 
como base esse plano, redundou no 
estabelecimemo das seguintes séries: 
a - documentos pessoais; 
b - correspondência; pi - produção 
intelecrua1j d - vida em Pitangui; 
e - governo de Minas; f - Ministério da 
Educação e Saúde: assuntos 
administrativos; g - Ministério da 
Educação e Saúde: educação e cultura; 
h - Ministério da Educação e Saúde: 
saúde e serviço social; i - Ministério da 
Educação e Saúde: assuntos políticos; 
i - Assembléia Nacional Constituinte e 
mandato legislativo; k - líder da maioria; 
1 - Câmara dos Deputados; m - Senado 
Federal; n - diversos. 
O Plmw de classificação termina com a 
atuação de Capanema na Câmara dos 
Deputados, o que não significa dizer que 
inexistam documentos acumulados por 
ele após esse período. Assim, foram 
constituídas as duas últimas séries, sendo 
que a última é composta de documentos 
produzidos e acumulados por Capanema 
pós-vida pública (1979-1982) e do 
conjunto de documentos do meta-arquivo. 
Os fragmentos autobiográficos estão 
organizados, principalmente, Das séries 
a - documentos pessoais e pi - produção 
intelectual. 
9. Cf. Pierre Nora, "Entre mémoire et 
histoire. La problématique des lieux" in 
Les lieux de mémoire, sous la dir. de Pierre 
Nora, Paris, Gallimard, 1984, v. l ­
Républiquc. 
10. A edição portuguesa (cf. Foucault, 
1992) traz a referência do texto original e 
uma nota explicativa, a saber: "l!écrirure 
, 
de soi", in Corps Ecrit, nO 5, 
I;auto-portrait, février 1983, p. 3-23. 
"Estas páginas fazem parte de uma série 
de estudos sobre 'as artes de si mesmo', 
isto é, sobre a estética da existência e o 
governo de si e dos outros na cultura 
greco-romana, nos dois primeiros séculos 
do Império. A série de estudos a que 
Foucault alude veio a culminar, como é 
sabido, nos dois últimos volumes 
publicados da sua HislOire de Ia sex:ualité: 
Eusage des plaisirs e Le souci de soi (Paris, 
Gallimard, 1984)." 
11. Segundo o Dicionário 
grcgo-poTtuguês/portugués-grcgo do Padre 
Isidro Pereira S. ]., o substantivo plural 
hYPo11memata significa "documentos, 
memória". No singular, hypom11ema quer 
dizer "menção, lembrança, monumento"; 
o verbo "mematlzoma; tem a acepção de 
"consignar em suas memóriasll. 
12. "Ter uma carreira: a políticaj ter uma 
profissão: a advocacia; cultivar as letras 
diretamente relacionadas com a carreira e 
a profissão". Fragmento de Gustavo 
Capanema. GCn 43.07.21-VI3. 
13. Segundo Foucault, a slultitia "é 
definida pela agitação do espírito, a 
instabilidade da atenção, a mudança das 
85 
86 
estudos históricos . 1998 - 21 
opiniões e das vontades e, 
conseqüentemente, a fragilidade perante 
lodos os acontecimentos que possam ter 
lugar". Cf. Foucault (1992: 133). 
14. Uma lista parcial pode nos ajudar a 
dar uma idéia dos autores preferidos de 
Capanema, de onde este retirava os 
fragmentos que dese!1harn seu perfil: 
além dos já citados, Emile Faguet, 
Schiller, Maurice Barres, Onega y Gasset, 
Ranke, Croce, Benrand Russel, Emerson, 
Eurípides, Bemanos, Rousseau, 
Man taigne, H uxley, N ietzsche, 
Hôlderlin, Ibsen, Xenofonte, Platão, 
Fernando Pessoa, Camilo, Shakespeare, 
Pécaut, José Martí, Sebastian Soler, 
Cervantes, Jefferson, Larca, Perrault, 
Heráclito, Eurípides, Sêneca, Byron, 
Clemenceau, Corneille, Proust ctc. Entre 
as leituras religiosas,além de alguns 
livros preferidos da Bíblia - Isaías, 
Apocalipse, Prov,érbios, Gênesis e Reis ­
temos Teresa D'Avila, São Gregório, São 
Francisco de Paula etc. Dos escritores 
brasileiros de sua preferência, além de 
Machado, podemos citar Alencar, 
Drummond, Bandeira, Carpeaux, 
Tristão de Athayde, José Bonifácio" Rui 
Barbosa, Quintino Bocayuva etc. E 
imponante frisar que essa lista parcial 
reflete apenas leituras das quais 
Capanema retirou trechos para compor 
os fragmentos encontrados em seu 
• 
arqUIvo. 
15. Michel de Montaigne, Ensaios, 
tradução de Sérgio Milliet, São Paulo, 
Abril Cultural, 1980, p.7. E interessante 
Referências b i b l i ográficas 
COSTA LIMA, Luiz. 1986. 
"Júbilos e misérias do pequeno eu". 
In: Sociedade e discurso ficcional. 
Rio de Janeiro, Guanabara, p. 243-309. 
observar que também data da segunda 
metade do século XVI o período de 
surgimento da assinatura pessoal, 
conforme esrodo de Béatrice Fraenke1 
sobre os signos de identidade. 
Cf. Béatrice Fraenkel, La ngnature: genése 
d'un signa, Paris, Gallimard, 1992, p. 7-13. 
(Bibliothéque des Histoires). 
16. Didier aponta Rousseau como 
também influenciador desse 
"subgênero", a partir do aparecimento de 
NouveUe Hékiise, em 1761. Béatrice 
Didier, LA iittérature de la Révoiulion 
Française, Paris, PUF, 1989. 
17. Conforme Calligaris, em texto 
incluído neste número de Estudos 
Históricos, o próprio termo 
"autobiografia" é. recente, aparecendo nos 
últimos anos do século XVIII, em inglês, 
e estabelecendo-se nas primeiras décadas 
do século XIX. 
18. Nesse sentido, é imponante observar 
as distinções que Calligaris faz entre as 
noções modernas de verdade e 
sinceridade. Calligaris, op.cit. 
19. Maurice Blanchot, (CLe journal intime 
et le récit", in Le livre à venir, Paris, 
Gallimard, 1971; Béatrice Didier, 
La lirtérature Ih la Réwlution Française, 
Paris, PUF, 1989 (Collection que 
sais-je?); Jean Roussct, "Le journal 
intime, lexte sans destinataire?", 
Poétique, Paris, nO 56, p. 435-437, novo 
1983. 
DUCHEIN, Michel. 1976. 
"El respecto de los fonds en 
archivistica: principios 
teoricos y problemas 
practicos", RC'lJista dei Archivo 
General de la Nación. 
Buenos Aires, v. 5) nO 5, 
p. 7-31. 
A Dimmsão Autobiográfica dos Arquivos Pessoais 
FOUCAULT, Michel. 1992. "A escrita de 
sitl, In: O que é um autor? Lisboa, Vcga, 
p. 129-160. (Série Passagens). 
FRAIZ, Priscila Moraes Varella. 1994. 
A construção de um eu auwbiográfico: o 
arq.';vo privado de Gustavo Capanema . 
Rio de Janeiro, Universidade do 
Estado do Rio de Janeiro, Centro de 
Educação e Humanidades (dissenação 
de mestrado). 
LEJEUNE, Philippe. 1975. Le pacte 
autobiographique. Paris, Seuil. 358p. 
MA Y, Georges. 1982. La autobiografia. 
México, Fondo de Culrura Económica. 
281 p. (Breviarios). 
MIRANDA, Wander Melo. 1992. Corpus 
escnlOS: Graciliano Ranws e Si/viana 
Santiago. São Paulo, EDUSP; Belo 
Horizonte, UFMG. 174p. 
SCHELLENBERG, T. R. 1973.Arquivos 
modernos: pn'ncípios e técnicas. Tradução 
de Nilza Teixeira Soares. Rio de 
Janeiro, Fundação Getulio Vargas. 
345p. 
_..,-,_:. 1980. Documentos públicos e 
privados: arranjo e Ikscrição. Tradução 
de Manoel A. Wanderley. Rio de 
Janeiro, Fundação Getulio Vargas. 
396p. 
-
VIANNA, A.; L1SS0VSKY, M.; SA, P. S. 
M. de. 1986. "A vontade de guardar". 
Arquivo e Administração. Rio de Janeiro, 
nO 10-14, v. 2, p. 62-76, jul./dez. 
Palavras·chave: 
• • • • • 
arquIvos pesso3Js, pnnCIplOS 
arquivísticos, Gustavo Capanema, 
autobiografia. 
(Recebido para publicação em 
abril de J 998) 
87

Continue navegando