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735 SAUDE MENTAL, DESINSTITUCIONALlZAC;AO E NOVAS ESTRATEGIAS DE CUIDADO Paulo Duarte de Carvalho Amarante A memoria de Franca Ongara Basaglia, senadora e im,borlante exiJresscwbolitica intelectual Este capitulo analisa as polfticas de saude mental no Brasil desde seu inicio ate 0 momento presente, marcado pela desinstitucionalizac,;ao no ambito da loucura e do sofrimento mental. Para tanto, desenvolve urn resgate hist6rico das principais pollticas e modelos assistenciais, que vai da criac,;ao do primeiro hospicio ate os fundamentos dos projetos atuais orientados pelos prindpios da reforma psiquiatrica como processo social complexo. Finaliza corn urn detalhamento das diferentes propostas das redes de servic,;os e dispositivos de atenc,;ao psicossocial e sallde mental e com uma analise de suas perspectivas e possibilidades. A hist6ria da assisu:>ncia as pessoas corn problemas mentais no Brasil comec,;a corn a fundac,;ao do primeiro hospital psiquiatrico brasileiro, 0 hospfcio criado pelo Imperador Pedro II na data de sua e que leva 0 seu nome. Decreto n. 82 de 18 de julho de 1841 "Desejando assinalar 0 fausto dia de minha sagrac;ao com a cria'.;ao de urn estabelecimento de publica beneficencia, hei por bern fundar urn hospital destinado privativamente para tratamento de alienados, com a denomina<;ao de Hospfcio de Pedro II, 0 qual ficara anexo ao Hospital da Santa Casa de 736 Aliena~ao mental o conceito de alienar,;ao mental foi utilizado par Philippe Pinel, medico frances considerado 0 pai da psiquiatria, em seu cL'issicoTmtado !vlania, a primeira grande obra fundadora da especialidade, o collceito de alienar,;ao se refere a idCia de um distlirbio das paix6es que ocasiona um dist{lrbio moraL Em nosso meio ha uma obra classica de 1llIl dos maiores escritores da Ifngua portuguesa: 0 Alienista. de Machado de Assis. 0 conto, publicado ern forma de folhetim, elabora uma perspicaz e profunda cdtica ao modelo da ciencia psiquiatrica que, ainda hoje, se embaralha com seus conceitos e dilemas mais fundamentais. _ ......_---_..... _--- Colonias de alienados I nstituir,;6es psiquiatricas que se baseavam no prindpio de que 0 trabalho seria uma forma eficaz de tratamento moral da alienar,;ao mental, uma vez que disciplinaria os individ nos que, pOl' conta da natureza de suas enfermidades, tinham as mentes desregradas. POli,,(;\s E SISTEMA SP,UDE ~,o Misericordia desta Corte, debaixo de minha imperial prote~ao applicando desde para principio da sua funda~ao 0 produto das subscri~oes promovidas pOI' uma comissao de pra~a do commercio, e pelo proyedor da sobredita Santa Casa, alem das quantias com que eu hou\'er par bem contribuir. Candido Jose de A.Taujo Vianna do meu conselho, ministro e secretario de Estado dos Neg6cios do Imperio e que tenha assim entendido e executar com os despachos necessarios. Palacio do Rio de Janeiro, 18 de julho de 1841, 20 da Independencia e do Imperio. Com a rubrica de S.M. 0 Imperador. Candido Jose de Araujo Vianna. D. Pedro II, lmperador do Brasil." Inaugurado mais de dez anos depois do decreto, em 8 de dezembro de 1852, 0 Hospicio de Pedro II logo se tornou alvo de criticas, muito particularmente dos medicos. Ora porque estava yinculado a Irmandade da Santa Casa da Miseric6rdia, nao sendo considerado, portanto, uma institui<;;ao efetivamente medica e sim de caridade, ora porque nao fora construido nos pad.metros adequados as necessidades da terapeutica moderna da Para estudar este periodo e se aprofundar no conhecimento dos primeiros passos da psiquiatria brasileira, 0 livro Dana~'ao Nanna: medicina social e da psiquiatria no Brasil, de Roberto Machado, Katia Muricy, Rogerio Luz e Angela Loureiro (1978), e, sem duvida, a melhor referencia bibliografica enos fornece as informa<;;6es mais detalhadas e fundamentadas em pesquisa historica. Para reflctlr A partir da leitura de de Machado de A.ssis, reflita sobre alguns conceitos e questoes. 0 que e normalidade? 0 que e loucura? Qual a rela~ao entre normalidade e cultura? o certo e que 0 Hospicio de Pedro II abriu caminho para 0 surgimento de muitas outras institui<;;6es similares no pais. A partir de entao, e pOl' quase 1 anos, pode-se resumir a politica nacional do setor como de mera implantac;:ao de hospitais psiquiatricos. Vejamos! Em 1890, logo ap6s a Proclamac;:ao da Rep1.iblica, 0 Hospicio Pedro II foi desanexado da Santa Casa e sua dire<;ao passou as maos dos medicos. Alem da c1'ia<;ao da Assistencia l\fedico-Legal aos Alienados, p1'imeiro orgao nacional de normatiza<;ao e gestao da assistencia, foram instituidas as duas primeiras as co16nias de Sao,1 Q , Bento e de Conde de Mesquita, ambas na Ilha do Galeao, no Rio Janeiro. Dai em diante foram dezenas de co16nias agricolas que passaram a existir em quase todos os estados da federa<;ao, onde eram internadas ------- Saude Mental, Desinstitucionaliza,ac e Novas de Cuidado 737 milhares e milhares de pessoas corn problemas mentais. Para se ter uma ideia, a Colcmia de Juquery (SP) alcanc;;ou a cifra dos 15 mil internos, ao passo que a Colonia de J acarepagua (RJ) chegou aos 8 mil. Voce ja ouviu falar em praxiterapia e laborterapia? E em terapia ocupacional? Qual poderia ser a rela<,;ao da terapia ocupacional com a terapeutica moral pelo trabalho? A noc;;ao de colonia ja e suficiente para exprimir a proposta de uma modalidade unica de cultura: de colonizac;;ao de um determinado tipo de pessoas, ligadas por uma origem etnica, profissional, religiosa ou de uma natureza especial, como seria 0 caso dos alienados. De qualquer forma, tal principio expressa uma pratica de segregac;;ao de sujeitos identificados corno loucos. No inicio do seculo XX, falava-se ate mesmo em cidades destinadas somente para os alienados: as cidades manicomiosl A prioridade de contl'atac;:ao deo aparecimento das colonias foi 0 que faltava para que 0 modelo prestadores privados e asilar dominasse definitivamente a assistencia psiquiatrica no pals ate as outras caractedsticas da decadas de 1940 e 1950. Daquele momento em diante, outro fator viria a assistencia medica previdenciaria d}.lrante a propiciar um outro momenta de crescimento expressivo da oferta de leitos decada de 1970 sao psiquiatricos no pals: referimos-nos ao processo de privatizac;;ao da analisadas no capitulo 11, assistencia medica da Previdencia Social, maior responsavel pela assistencia sabre a hist6ria das politicas de saude no medica a populac;;ao brasileira. Brasil. As distorc;;6es conseqlientes deste modelo privatizante para a atenc;;ao em saude mental, radicalizadas no pedodo da ditadura militar instalada com 0 golpe de 1964 (quando a corrupc;;ao corroeu as bases do Estado), podem ser mais bem conhecidas no classico livro de Luiz da Rocha Cerqueira, Problemas Brasileiros Psiquiatria Social (1984). Para Cerqueira, a privatizac;;ao fez crescer substancialmente 0 numero de leitos psiquiatricos no pais, sendo a maioria privados (Tabela 1). Tabela 1 - Numero de leitos pSlquiatricos piiblicos e privados. Brasil- 1941 e 1978 Ano 1941 1978 21.079 22.603 3.034 55.670 Fonte: Cerqueira, 1984. o movimento sanitario e analisado no capitulo 11. Confira. Em torno de de todos os recur50S financeiros destinados a psiquiatria eram consumidos no pagamento dos custos das interna~6es hospitalares. Com apenas de recursos empenhados nas atividades assistenciais nao-hospitalares, nao existiam hospitais-dia, centros de convivencia ou de aten~ao psicossocial; e mesmo os ambulatorios eram muito raros e precarios (Cerqueira, 1984). ORIGENS DA REFORMA BRASILEIRA o processo psiquiatrica no Brasil come~ou no final da decada de 1970, no contexto da redemocratiza~ao nacional, ou seja, na luta contra a ditadura militar. 0 ano de 1976, de muitos eventos historicos dramaticos, tais como as bombas implantadas pOl' militares nas sedes da Associa~aoBrasileira de Imprensa (ABI) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ou os assassinatos de dissidentes politicos, servia tambem de palco 0 surgimento de uma forte militancia no campo da saude. Em Sao Paulo, a partir de urn pequeno grupo de medicos da area da saude publica, nascia 0 Centro Brasileiro de Estudos de Saude (Cebes), que Vina a ser 0 ator mais importante na organiza~ao do pensamento crftico no setor. No inicio de 1978, no am ago deste cenario de luta pela emocratiza~ao, no Rio de ] aneiro, tres medicos recem-formados uma serie de denuncias de maus-tratos, violencia e desrespeito adignidade e aos direitos humanos, impetrados pelos hospitais psiquiatricos da propria Divisao Nacional de Saude Mental (Dinsam), do Ministerio da Saude. As vitimas eram nao apenas os pacientes internados, mas tambem alguns presos politicos da ditadura. refletir Voce conhece algum hospital psiquiatrico? Existe algum em sua cidade ou nas proximidades? Conhece alguem que esteve internado em uma destas instituir,;6es? A partir de sua experiencia, analise as caracterfsticas de urn hospital psiquiatrico e compare-as com as de urn hospital geral. o Ministerio da Saude respondeu prontamente, mas com a demissao dos profissionais que realizaram as denuncias. derniss6es provocaram mais manifesta~6es; estas ocasionaram mais denuncias e mais demiss6es. Enfim, foram demitidos 260 profissionais dos quatro hospitais psiquiatricos do Ministerio da Saude, todos eles localizados no Rio de Janeiro. 740 POLiTICAS SISWM DE SMJDE NO BRASil 1978 - 0 inicio do processo de reforma psiquiatrica no Brasil • A 'crise' da Divisao Kacional de Saude Mental (Dinsam) • 0 Congresso da Abertura - V Congresso Brasileiro de Psiquiatria - Camboriu/SC • 0 Congresso do Ibrapsi I Simp6sio Brasileiro de Psicanalise de Crupos e Instituic;;oes Franco Basaglia, Robert Castel, Felix Cuattari, Erving Coffman Franco Basaglia aproveitou a vinda ao Brasil para realizar visitas a sindicatos e associac:,;6es; proferir palestras em universidades e institutos e manter urn contato bastante proximo com os ativistas do MTSM, tornando-se, a partir de entao, referencia fundamental na trajetoria da experiencia brasileira. Logo no ana seguinte, ocorreram outros eventos muito importantes para 0 processo de reforma psiquiatrica: 0 I Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saude Mental, 0 I Simposio de Polfticas de Saude da Camara dos Deputados e 0 III Congresso Mineiro de Psiquiatria. 0 Congresso do rvlTSM aconteceu em janeiro de 1979, no Instituto Sedes Sapienti~ em Sao Paulo. Neste, depreende-se que a luta pela transformac:,;ao do sistema de atenc:,;ao a saude esta vinculada a luta dos demais setores sociais em busca da democracia plena e de uma organizac:,;ao mais justa da sociedade, atraves do fortalecimemo dos sindicatos e demais associac:,;6es representativas articuladas com os movimentos socials. Ja no Simposio de Saude da Camara, 0 MTSM apresentou urn importante diagnostico crftico sobre 0 modelo assistencial psiquiatrico e algumas das reflexoes e propostas que viriam a marcar a atuac:,;ao do movimento em toda a sua historia. Neste mesmo simposio, 0 Cebes apresentou a proposta do Sistema Cnico de Saude (SUS), que seria base de inspirac:,;ao da Constituic:,;ao de 88 e, consequemememe, da Lei Organica da Saude (lei 8.080, 19/9/90). Franco Basaglia retornou ao Brasil para 0 III Congresso Mineiro de Psiquiatria e realizou uma visita ao Hospital Colonia de Barbacena, em Minas Gerais, desencadeando uma crise de denuncias sobre a assistencia psiquiatrica no BrasiL Muitos resultados marcantes ficaram dessa visita de Basaglia a Barbacena, mas dois deles merecem destaque: 0 curta-metragem ~ .. ( -..., obra de estn~ia do premiado cineasta Helvecio Ratton, e 0 tarnbern premiado livro\· , de Hiram Firmino. Saude Mental, Desinstitucionaliza,ac e Novas Estrategias de Cuidado 741 Filmes e livros sobre os hospicios no Brasil Alguns livros trazem relatos muito expressivos de pessoas que estiveram interna das em hospicios brasileiros e que nos ajudam a entender 0 que e a violencia e a violat,;:ao permanente aos direitos humanos e adignidade das pessoas internadas em tais institui<;:6es. Procure leI': Diario do Hosptcio, do grande escritor carioca Lima Barreto, 0 Hospicio eDeus, da jornalista e cronista Maura Lopes Can<;:ado, Os Ultimos Dias de Pauperia, do poeta, jornalista e compositor tropicalista Torquato N eto, Canto dos A1alditos, de Austregesilo Carrano, que deu origem ao filme Bicho de 7 Cabe{;as, dirigido pOl' Lafs Bodanski, e urn conto, que tern muito de real... o Alienista, de Machado de Assis, adaptado para 0 cinema par Nelson Pereira dos Santos com 0 tftulo de Az)'llo Muito Louco, com a participa<;:ao de Leila Diniz. ~-,~~'~ =~-~~~- PS iATRICA COMO PROCESSO SOCIAL COMPLEXO: RUPTURA POR UMA SOCIEDADE SEM MAN lOS o perfodo denominado Nova Repllblica, iniciado com a elei~ao indireta do primeiro presidente civil da Republica ap6s 0 golpe militar de 1964, e caracterizado pOl' uma politica bastante ampla no sentido de garantir a governabilidade, palco da 8'" Conferencia Nacional de Saude (CNS), em mar~o de 1986. A "Oitava n , como ficou conhecida - analisada em detalhe no capitulo 11 -, contou com efetiva (e participa<;ao da sociedade civil e se tornou 0 marco das novas poHticas de saude no pals, muito particularmente para a constru<;ao do SUS. Como desdobramento da 8'" CNS foram propostas conferencias sobre tematicas especificas. A ~ ...~._ __ ~=; realizou-se no periodo de 25 a 28 de junho de 1987, no Rio de Janeiro, se tornando o palco de uma articula<;ao dos varios participantes do movimento nacional ligados ao campo da saude mental. A Conferencia contou com cerca de 1.500 participantes e foi extremamente inovadora, tendo em vista alguns dos aspectos que listamos a seguir. Inicialmente, a exemplo da 8'" CNS, foi 0 primeiro even to de carater publico e de ambito nacional a reunir, em uma mesma arena, os varios atores sociais envolvidos no campo da sallde mental, de pacientes (que, a partir da Oitava, foram denominados usuarios), familiares e membros dos mais variados movimentos sociais a tecnicos, dirigentes e politicos. Para refletir Voce ja participou de alguma conferencia de Saude? Tern ou teve informac;;6es sobre a existencia de alguma delas? Temas oficiais da 1 Conferencia Nacional de Saude Mental (I CNSM) • Economia, sociedade e Estado, impactos sobre a saude e doen<;a mental; • Reforma Sanitaria e reorganiza<;ao da assistencia a saude mental; • Cidadania e doen<;a mental: direitos, deveres e legisla<;ao do doente mental. Voce pode consultar 0 capitulo 28 para conhecer a dinamica de participa<;ao das conferencias de Saude. 742 Por uma sociedade sem manicomios Fo! no ambito da Rede Internacional de Alter nativas it Psiquiatria, movimento criado em Bruxelas em 1974 pOl' Franco Basaglia, Robert Castel, Felix Gattari, dentre outros, que 5ur giu este lema. Foi utiliza do pela primeira vez no Encontro Internacional na Espanha, em 1986, mas chegou ao nosso meio particularmente a partir do III Encontro Latino-Americana da Rede, realizado em Buenos Aires no perfodo de 17 a 21 de dezembro daquele ana. POciTICAS E SIS~EMA DE SAUDE NO BRASil partir da I Conferencia Nacional de Saude Mental, a questao uma nova legisla<;ao passou a compoI' a agenda do movimento da reforma psiquiatrica, assim como teve 0 debate profundo sobre a falencia do modelo centrado na hospitaliza<;ao, e sobre a premencia da cria<;ao dos servi<;os extra-hospitalares. Mas 0 evento teve uma outra importancia hist6rica ao possibilitar 0 encontro de antigos e novas participantes do MTSM, de todas as partes do pais, oferecendo as condi<;6es para a organiza<,;ao urn segundo congresso do movimento. Como vimos, 0 I Congresso do MTSM havia sido organizado em 1979, apenas alguns meses ap6s a do movimento.1hs a conjuntura do final da decada de 1980, com 0 governo da Nova Republica, a 8~ CNS e a I Conferencia Nacional de Saude Mental, disponibilizava urn cenario pleno de novas possibilidades. Assim, a partir da I CNSM, passou a ser organizado 0 II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saude Mental, realizado em Bauru (SP) no periodo de 3 a 06 de dezembro de 1987 e que introduziu, no Brasil, 0 lema , alem de instituir 0 Dia Nacional da Luta Antimanicomial, comemorado desde entao na data de 18 de maio. a Congresso de Bauru, como ficou conhecido, demarcou duas rupturas fundamentais na trajet6ria do processo. Uma primeira, que diz respeito a sua composi<;fl.O predominantemente de profissionais da area, com pouca participa<,;ao 'pacientes' e familiares - para uma composi<,;ao mais plural, com 0 concurso mais efetivo dos atores sociais envolvidos e de outros ativistas de movimentos sociais, todos considerados "usuarios" de acordo com os novos prindpios da participa<;ao e controle social inspirados nos prindpios ideol6gicos e politicos do SUS. Uma segunda ruptura e representada pela proposi<;ao de uma transforma<,;ao de carateI' mais social, mais amplo, voltado para a introdu<,;ao de mudan<,;as na sociedade, e nao apenas de uma transforma<;ao do modelo tecnico-assistencial psiquiatrico. Dai pode-se extrair 0 significado e a dimensao do lema "Por uma sociedade sem manicomios", inspirador da mudan<;a da denominac,;ao do movimento que, em 1993, passaria a chamar-se \10vimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNU\). a MI\U\, existente ate os dias atuais, nao e 0 unico movimento na mas e certarnente 0 mais importante e abrangente ator social no processo da reforma psiquiatrica brasileira. a livro Loucos Vida: a da psiquiatrica no Brasil (Amarante et aL, 2005) oferece uma analise e uma reconstru<,;ao hist6rica de todo 0 processo da reforma, com destaque para os temas, as tendencias, os conflitos, os atores e os cenarios. Analisa ainda as principais experiencias internacionais de reformas psiquiatricas (Inglaterra, Fran<;a, Estados Unidos e Italia) que trouxeram subsfdios para a experiencia brasileira. Saude Menta!, Desinstitucionaliza,ao e Novas Estrategias de Cuidado PSiCOSSOCIAL: ASPECTOS DA POL/TICA CAMPO DA SAUDE MENTAL FaLivamos de 1987. Aquele ana foi palco ainda de um terceiro fato que 0 tornou hist6rico no processo da reforma psiquiatrica brasileira: a cria<,;ao na cidade de Sao Paulo do primeiro servi<,;o de aten<,;ao psicossocial do pals, 0 Centro de Aten<,;ao Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cerqueira, da Secretaria Estadual de Saude, que passou a ser conhecido simplesmente como Caps. Trata-se do primeiro servi<,;o que procurava constituir-se fora da l6gica manicomiaL Ensaiava a<,;6es de inser<,;ao comunitaria e iniciava propostas de aten<;;ao intensiva a pacientes com quadros mais graves que, ate entao eram atendidos predominantemente em hospitais e, muito raramente, em ambulat6rios, pois, como vimos, a rede hospitalar absorvia a quase totalidade (97%) dos recursos financeiros destinados it assistencia psiquiatrica. o Caps passou a realizar um dos mais importantes trabalhos assistenciais, tornando-se uma referencia nas politicas de sattde mental e um campo de forma<;;ao estrategica de profissionais para 0 processo da reforma psiquiatrica brasileira. Mas, os efeitos positivos dos tempos da democratiza<,;ao nao acabaram pOl' ai. Em 1988, foi promulgada a nova Constitui<;;ao Federal com um capitulo dedicado it saude, que passou a ser considerada "Direito de todos e dever do Estado". Foi certamente uma vit6ria do movimento nacional de reforma sanitaria ai incluido 0 movimento da reforma psiquiatrica - que propos uma emenda popular com os termos do SUS, cujas diretrizes haviam sido consolidadas nos debates da 8!! CNS. Com a diretriz da descentraliza<;;ao estabelecida no SUS, 0 poder municipal passou a ser 0 responsavel pelo conjunto de institui<;;6es e politicas de satlde no ambito do municipio. Foi assim que, em 3 de maio de 1989, ocorreu um dos mais importantes acontecimentos do processo de reforma psiquiatrica no Brasil: a intervenc;;ao realizada pela Prefeitura de Santos (SP) em um hospital psiquiatrico privado conveniado ao SUS, a Clfnica Anchieta, onde ocorriam violencias contra pacientes internados, assim como varios 6bitos. A partir dessa interven<;;ao, duas op<;;6es do poder publico municipal de Santos deram infcio a uma verdadeira revolu<;;ao na questao do tratamento da loucura no pais. A primeira op<,;ao foi a decisao de nao reformar 0 hospital. Ou seja, de nao seguir pelo caminho das reformas administrativas, como ocorria anteriormehte, nas quais, ap6s situa<;;6es 743 Voce conhece paragrafos da Constituit,;ao Brasileira que se refer-em asa(lde? Consulte 0 capitulo 11. 744 Sabre as bases conceituais e hist6ricas da experiencia italiana, ver especialmente de Franco Rotelli, Diana Mauri e Ota de Leonardis, Escritos Selecionados em Saude Mental e Reforma coletanea de lextos de Franco Basaglia, eJardins de Abel: desconstrUl;iio do manicomio de Trieste, de Denise Dias Barros. Usmirio Este termo passou a ser adotado pelo SUS para designar os beneficiihios do sistema SUS, mas assumiu um valor rnuito particular no ambito da saiide mental, por possibilitar 0 abandono da expressao considerada pejorativa, para os sujeitos com sofrimento mental. POLiTICAS E SISTEMA DE SAUDE NO BRASIL desta natureza, procurava-se a institui<;ao aos para.metros considerados terapeuticos ou . Ao contra.rio, partiu-se do principio de que 0 hospital psiquiatrico, por sua natureza e fun<;ao social, era uma institui<;ao de violencia e Tais eventos de agressao a dignidade humana, longe de serem eventuais, eram bastante comuns e mesmo inerentes ao modelo institucional. Segundo, tendo como base a experiencia de (Italia), iniciada por Franco Basaglia e continuada por Franco Rotelli, por atuar no sentido da ~ ..... entendido nao apenas como 0 hospital psiquiatrico em 51, mas como todas as conceituais e ideologicas produzidas no ambito do saber psiquiatrico em torno do conceito de doen<;a mental. Desconstruc;ao do manicomio A noc;ao de nao diz respeito a uma id eia negativa, de destruic;ao, mas sim de da 16gica te6rico-conceitual e institucional de determinados saberes e pra.ticas, e implica na reconstruc;ao de form as de lidar com 0 problema. Quando nos referimos adesconstruc;ao do manicomio, falamos da d de toda a l6gica institucional, politico. juridica, ideol6gica. social e cultural que se constituiu em torno de um determinado conceito que, no caso da psiquiatria e do manic6mio - sua mais importante e expressiva instituic;ao -, e 0 conceito de doenc;a mental como sinonimo de perda de razao. Desta forma, simultaneamente ao trabalho de desmontagem das estruturas manicomiais e do proprio encerramento das atividades de interna<;ao na Clinica Anchieta, teve infcio a constru<:;ao de uma rede servi<:;os, e dispositivos que - sempre forternente inspirados na experiencia triestina - passaram a ser denominados servi<:;os substitutivos. Foram criados cinco N ucleos de Aten<:;ao Psicossocial (abertos horas), distribuidos por criterios de regionaliza<:;ao ern toda a cidade; urn servi<;o de emergencia psiquiatrica no hospital geral; urn vigoroso e criativo projeto cultural, 0 Projeto TAM TAM, com radio e TV comunitaria; uma residencia para ex-internos do hospital que, por algurna nao tivessem condi<:;6es proprias de moradia); uma cooperativa de trabalho, para gera<;ao de renda para os,.: A experiencia santista se tornou a mais importante do processo de psiquiatrica no Brasil, tendo uma enorme repercussao, e nao apenas no circuito da saude: toda a grande imprensa divulgou e debateu a experiencia, dando, a questao psiquiatrica. uma publica ate entao nunca vista. Sobre esta experiencia, Florianita e Claudio .Y1aierovitch (2000) organizaram 0 livroa a Beira-1\!/ar: a Saude Mental, Desinstituclonaliza~ao e Novas Estralegias de Cuidado 745 experiencia do SUS ern Santos, que retrata nao apenas a politica de saude mental, mas toda a proposta de saude do munidpio de Santos (SP), uma das pioneiras e mais avan<;;adas do SUS. o forte imp acto e a repercussao da experiencia santista estao na base das condi<;;oes de possibilidade do aparecimento, em outubro do mesmo ana de 1989, do projeto de lei (PL 3.657/89), de autoria do Deputado Paulo Delgado, que propunha a extin<;;ao progressiva dos manicomios e sua substitui<;;ao por outros servi<;;os de saude mental. Apesar da nipida aprova<;;ao na Camara dos Deputados, urn ana depois, 0 projeto ficou em tramita<;;ao por quase doze anos e acabou sendo rejeitado no Senado. Contudo, deu origem ao surgimento de urn substitutivo que, apesar de abandonar algumas das propostas mais importantes do projeto - tais como a extin<;;ao progressiva dos manicomios -, possibilitou muitas inova<;;oes no campo do modelo assistencial e dos direitos humanos e da cidadania das pessoas em sofrimento mental. Outra experiencia importante que refon:;ou a ideia de rede substitutiva aconteceu no infcio dos anos 90 na cidade de Sao Paulo, com a cria<;;ao de varios centros de convivencia, hospitais-dia, programas de aten<;;ao psicossocial e inclusao, realizados em pra<;;as e jardins Pllblicos, bastante originais e inventivos, alem de cooperativas de trabalho para usuarios e uma serie de outras estrategias e servi<;;os. Sobre este trabalho realizado em Sao Paulo, existe urn livro que e extremamente didatico e esclarecedor. Trata-se de Tecendo a Rede: trajet6rias do, mental em Sao Paulo 1989-1996, organizado por Maria Claudia Tedeschi Vieira, Maria Cristina Gon<;;alves Vicentin e Maria Ines Assumpc,;ao Fernandes (1999). Em 2001, em decorrencia da permanente reivindicac,;ao do movimento da reforma psiquiatrica, a Comissao Intersetorial de Saljde Mental encaminhou ao 'Ministerio da Sallde a solicita<;;ao para a convoca<;;3.o da III Conferencia Nacional de Saude Mental, que aconteceu em Brasilia de 11 a 15 de dezembro daquele mesmo ano. Foi urn evento extremamente significativo, com cerca de ues mil participantes, a maioria composta de delegados eleitos, e que demonstrou a forc,;a social e politica do movimento da reforma psiquiatrica em todo 0 pais. A politica nacional de saude mental brasileira assumiu urn carater inovador em relac,;ao as experiencias dos demais paises, sendo atualmente reconhecida como tal pelas organiza<;;oes internacionais de sallde, como a Organiza<;;ao Pan-Americana da Saude (Opas) e a Organiza<;;ao Mundial da Saude (OMS). Certamente e muito dificil explicar plenamente os motivos desta inovac,;ao, mas podemos assinalar alguns aspectos. Urn deles se refere a indiscu tivel participa<;;ao e controle social, propiciados pelo pr6prio modelo de constiwic,;ao do SUS, com destaque para alguns ator'es sociais NC BRASl muito expressivos, como e 0 caso do MKLA, e corn a efetiva utilizac,:ao dos canais de democratizac,:ao do sistema, como as conferencias e os conselhos de saude. Outro aspecto esui relacionado a pluralidade de experiencias assistenciais e culturais inoyadoras, distribuldas por todo 0 territ6rio nacional, que passou a produzir e a reproduzir novas possibilidades no trato corn a questao do sofrimento mental. E, ainda, 0 modo como 0 Estado vern incorporando estas inovac,:6es ern forma de normas tecnicas que constituem polfticas de transformac,:ao do modelo de saude mental. o Programa Nacional de Avaliac,:ao do Sistema Hospitalar/Psiquia tria (PNASH) foi uma das medidas que introduziu uma reversao signifi cativa no modelo assistencial. Instituldo pela portaria 251/GM, de 31 de janeiro de 2002, 0 PNASH foi urn dispositivo fundamental na reduc,:ao dos leitos psiquiatricos ao estabelecer diretrizes e normas para a assisten cia hospitalar ern psiquiatria, reclassificar os hospitais psiquiatricos, e definir e estruturar a porta de entrada para as internac,:6es psiquiatricas na rede do SUS. Atualmente, no pais todo, 0 numero de leitos psiquiatri cos e inferior a 50 mil. Neste processo de reduc,:ao dos kitos, merece des tague a atuac,:ao dos ministerios pliblicos estaduais que, a partir de ocor rencias de 6bitos e violencias ern hospitais psiquiatricos, tern impetrado medidas substanciais para a reversao do modelo. Embora seja evidente, muitos autores ligados aos setores conser vadores da psiquiatria (dentre os quais muito particularmente os da psi quiatria privada corn seus 55 milleitos de entao) alarmavam a sociedade corn a ideia de que os leitos estavam sendo fechados e a populac,:ao, agora desassistida, estava sendo abandonada nas ruas. Ao contrario, desde a expenencia pioneira Santos, onde foi construlda a primeira moradia para egressos do hospital (denominada Republica Manequinho), debatia-se a necessidade de dispositivos residenciais para os internos desmanicomializados. Seja porque nao tern famflias, ou pOI-que as famllias nao tern condic,:6es de aceita-Ios (on nao os qnerem mais em casa), seja ate mesmo porque alguns usuarios nao querem conviver corn seus familia res, os dispositivos residenciais, ou formas e estrategias de residencialidade, vem sendo propostos no a.mbito do processo da reforma psiquiatrica desde 0 final dos anos 70. No Relatorio Final da II Conferencia Nacional de Saude Mental, realizada eIn dezembro de 1992, [oi ressaltada a importancia dos "lares abrigados", expressao adotada na epoca. Assim, foram promulgadas a portaria 106/2000, que introduziu os "Servic,:os residenciais terapeuticos" para egressos de longas internac,:6es e a portaria 1.220/2000, que regulamentou a anterior no sistema de financiamento do SUS. S3.ude .Men;al Desinsti:ucionaliza~ao e Novas Estrategias de Cuidado 747 o Ministerio da Saude considera que foi necessario denominar estes dispositivos de "servi<;;os" e de "terapeuticos" em decorrencia da argumenta<;;ao para que os mesmos pudessem ser financiados pelo SUS. Em todo 0 caso, e irnportante observar que todo 0 cuidado e pouco na implanta<;;ao e condU!;ao das residencias, na medida em que efetivamente nao devem ser servi<;;os e muito menos terapeuticos. A soma destes dois elementos, servi<;;os e terapeuticos, aponta para 0 risco de institui<;;6es totais, que assumem 0 carater de institui<;;6es disciplinares, que se propunham reeducadoras dos indivfduos nelas internados. E 0 casu dos reformat6rios, das casas de corre<;;ao, dos educandarios normais, e dos manicomios (ber<;;o do tratamento moral). Observados os riscos e as posslveis dificuldades dal advindas, as residencias de egressos de hospitais psiquiatricos vem representando um ponto de grande avan<;;o no processo de reforma psiqui,hrica; um recurso lmpar no processo de deslrlstitucionaliza<;;ao. Em 2007, registravam-se cerca de quinhentas residencias, onde moram em torno de tres mil pessoas. Apesar do impacto desta polftica na desmanicomializa<;;ao, fica claro que nao deve ser 0 (ll1ico recurso adotado. Muitas famflias aceitaram seus parentes com muita generosidade e alegria. Nao e verdade que as famflias sempre os rejeitam. Sao filhos e filhas, pais e maes, maridos e esposas ... 0 mito da recusa ao retorno a casa foi construfdo peia psiquiatria, com invejavel colabora<;;ao dos empresarios, donos de hospitais, que lucram com as hospitaliza<;;6es proiongadas ou. permanentes. Alt~m disso, foi instituido 0 programa De Volta para Casa, de incentivo a desmanicomializa<;;ao e integra<;;ao social dos egressos dos hospitais psiquiatricos. 0 prograrna instituiu 0 auxllio-reabilita<;;ao psicossocial para pacientes acometidos de transtornos mentais egressos de interna<;;6es, possibilitando urn beneflcio em dinheiro para usuarios e suas famflias. o programa foi instituido pela lei 10.708, de 31 de julho de 2003, e ja conta com quase tres mil participantes. Em rela<;;ao aos servi<;;os deaten<;;ao psicossocial, logo ap6s 0 surgimento do Caps Luiz Cerqueira e dos Nucleos de Aten<;;ao e Promo<;ao a SalJde (Naps) de Santos, muitos outros servi<;:os passaram a ser criados, com destaque para os Cenlros de Referencia em Saude .Mental (Cersam), irnplantados no estado de Minas Gerais. Com as perspectivas abertas pOI' esres servi<;;os pioneiros, em 19 de novembro de 1991 0 Ministerio da Sa(lde promulgou a portaria 189 e, em 29 de janeiro de 1992, a portaria 224, que estabeleceram e regulamentaram os novos procedimentos em assistencia psiquiatrica e aten<;;ao psicossocial. Ou seja, alem das consuhas ambulatoriais e das interna<;;6es psiquiatricas, passaram a ser posslveis os atendimentos em servi<;:os de aten<;;ao 748 POL'TICAS E SIS 7 EMA DE SAUDE NO BRASI, psicossocial (denominados igualmente de Naps/Caps), em hospitais-dia, em oficinas terapeuticas, dentre outras. Apesar do valor inegavel destas portarias, a concep<,;ao impressa nestes documentos termina por limitar a criatividade e a complexidade dos servi<,;os de aten~ao psicossocial. Uma consequencia desta orienta~ao se reflete na redu<,;ao conceitual e na mobilidade e f1exibilidade dos servi<,;os, ao desconsiderar as diversidades das modalidades e naturezas das experiencias que serviram de base para as portarias. 0 Caps, que serviu de inspira<,;ao para a normatiza~ao, surgiu num perfodo anterior ao SUS, nao vislumbrando, a epoca, exercer uma interven~ao de base fundamentalmente territorial, nem se propondo a tornar-se um servi~o substitutivo ao modelo psiquiatrico tradicional. Ja os :-.J aps eram servi<,;os que funcionavam em rede, interligados as demais politicas e estrategias publicas e sociais, e tinham uma proposta de interven~ao intersetorial mais articulada as iniciativas da comunidade e, enfim, se propunham como estrategia substitutiva. Em 2002, foi promulgada a portaria 336, que estabeleceu uma nova regulamenta<,;ao dos servi<,;os de aten~ao psicossocial. Foi abandonada a sigh Naps e todos os servi~os desta natureza passaram a ser denominados Caps, sendo classificados a partir de entao em tres categorias de modalidades distintas, como e possivel constatar no Quadro 1. Quadro 1 - Tipos e modalidades de Centros de Aten~ao Psicossocial (Caps) Tipos e Popula<,,:;io do Horario de Dias de Clientela modalidades de municipio funcionamento funcionamento na Caps semana Caps I Entre 20.000 e S as ISh Segunda a sexta Adultos 70.000 hab. I Caps II Entre 70.000 a S as ISh Segunda a sexta I Adultos 200.000 hab. Pode ter urn terceiro perfodo ate as 21h I Caps II-i Acima de S as ISh Segunda a sexta Crian<;as e 200.000 hab. Pode ter urn terceiro adolescentes perfodo ate as 21h Caps II-ad Acima de S as lSh Segunda a sexta Pessoas com I 100.000 hab. Pode ter urn terceiro uso abusivo de perfodo ate as 21h akool e outras i drogas Caps III Acima de 24 horas I Diariamente, inclusive I Adultos 200.000 hab. nos feriados e fins de I • semana. ! MentaL Desinstitucionaliza,ao e Novas Estrategias de Cuidado 749 No final de 2006, 0 pais alcanc:;ou a marco dos mil Caps im plantados, e tambem a meta de tel' ao menos urn Caps em todos os esta dos da federac:;ao. Entre estes mil Caps, setenta e cinco sao da modalidade Caps-i e centro e trinta e sete, da modalidade Caps-ad. a objetivo e que os Caps funcionem articulados em rede, nao nas entre si, isto e, em rede inter-Caps, mas, e fundamentalmente, em rede com outros servic;:os sanitarios (de saude mental e saude em geral), e em rede com outros servic;:os e dispositivos nao-sanitarios. au seja, que possam atuar articulados intersetorialmente com projetos oriundos area da educac;:ao, da cultura, do transporte, dentre tantos outros, pro duzidos no ambito dos varios setores das politicas publicas. E nao apenas das poHticas publicas, mas tambem das iniciativas que vern da sociedade com seus recursos e possibilidades. Voce tern informa~ao sobre a existencia de algum Caps em sua cidade? Ou melhor, ja conheceu algum? Procure identificar uma destas experiencias e va visita-Ia. Se voce tambem conhece algum hospital psiquiatrico, aproveite para camparar as duas modalidades de assistencia. a Caps e uma modalidade de servic:;o criada para atender de forma intensiva as pessoas com urn sofrimento psiquico considerado intenso e, em geral, persistente. Para que urn servic;:o possa almejar uma atenc;:ao que seja sllbstitutiva ao hospital psiquiatrico, e necessario oferecer uma possibilidade de acesso e de cllidado mais freqiientes e permanentes. Urn dos maiores problemas das polfticas de sal1de mental nas decadas anteriores estava no fato de que a alternativa assistencial aos hospitais eram os ambulat6rios e os centros de saude mental, servic;:os de baixa resolutividade. Inexistiam servic;:os de natureza psicossocial que, na experiencia italiana, passaram a ser conhecidos como servic;:os fortes, devido a sua alta flexibilidade, mobilidade territonal, oferta diversificada cuidados e de estrategias assistenciais (Figura 1). 750 POLiTiCAS E SISTEMA DE SAlJOE NO BRASIL Figura 1 - A rede de aten<,;ao a saude mentalna concep<,;ao do Ministerio da Saude PSF Familia Escola Fonle: Br~siL 2005. r PSF Associat;ao de bairro "* I/< Prat;as P5F~ Esportes PSF n.;,;'VL'a."VC~ eJou cooperativas Trabalho Alem das varias atividades realizadas no interior de urn Caps (ofi Clnas arte e trabalho, atendimentos individuais e/ou ern grupo aos usu arios e aos seus familiares, dentre outras), 0 maior potencial de sua capa cidade substitutiva esta na sua no territ6rio, seja na possibilidade de ativar atores e recursos comunitarios ern fun<,;ao dos objetivos e estrategi as de inclusao e integra<,;ao social (atividades culturais, esportivas, lazer, de trabalho), seja na transforma<,;ao da cultura da comunidade ern rela <,;ao a loucura e aos sujeitos em sofrimento mental. Um bom exemplo de trabalho com famllias em urn Caps pode ser encontrado em e . Tepensando a entre profissionais e miliares, Jonas Melman (2001). Sa(;de Men:a: Desinstitu:.onaliza,ao e Novas Estrategias de Cuidado 751 Caractedsticas de urn servilto de atenltao psicossocial 'forte' " Atuar no sentido de substituir 0 modelo asilar o Disponibilizar oferta dinamica e diversificada de recursos e estrategias trans e multidisciplinares • Funcionar 24 inclusiye domingos e feriados • Atuar com base no territ6rio • Intervir de forma intersetorial, isto e, ativando recursos de varios setores sociais E A proposta de atem;:ao asaude da £"lmilia que vem sendo implantada no Brasil e, sem dllvida alguma, uma das mais importantes politicas publicas experimentadas no pais. Estrategia de Saude da Familia (ESF), como e denominada de forma mais apropriada atualmente, em atuac;:ao articulada com a saude mental no contexto da reforma psiquiatrica, o modelo assistencial da Estrategia de Salide darepresentam uma das mais efetivas e inovacloras frentes clo SUS. Ambas Familia e discutido nos partem de um mesmo principio, que e 0 da ruptura com 0 moclelo capitulos 15 e Hi. biomedico, cujas caracterfsticas principais sao a centraliclade do hospital Consulte. no modelo assistencial, 0 especialismo exacerbado, a predominancia da relac;:ao meclico-doenc;:a e nao a relac;:ao sujeito-sujeito, dentre outras. Por isso, e muito importante que, nas atividades cle atenc;:ao psicossocial, tanto dos Caps quanto clos demais servic;:os (hospitais-dia, ambulat6rios, uniclacles psiquiatricas em hospitais etc.) e dispositivos (centros de convivencia, oficias, projetos de residencialidacle, projetos culturais, de gerac;:ao de rencla e de insen;:ao social), esteja presente a articulac;:ao com a eguipe de saude da famflia. Os programas cle sallde mental de muitos mumdpios orgamzam estrategias de apoio matricial as eguipes de saude cla famllia, isto e, estrategias apoio permanente e consistente as equipes de saude da famniano !idar com os problemas de sofi-imemo psfquico na comunidade. Trata-se nao apenas de realizar supervisoes regulares, mas organizar outras formas de cooperac;:ao que vaG desde prestaI' consultas em conjunto, fazer visitas domiciliares, organizar estudos de situac;:oes clinicas mais complexas etc. Antonio Lancetti (2002) considera que a atenc;:ao a saude mental no contexto da saude da familia pode significar a institucionalizac;:ao radical proposta pela reforma psiquiatrica, na medida em gue, ao cuidar das pessoas em casa, fortalece os recursos espontaneos e originais das pr6prias famflias e e\Tita que 0 sujeito em sofrimento seja introduziclo na carreira de doente mental produzida pelos hospitais psiquiatricos e outros 752 POli~iCA5 E SISTEMA DE SAljDE NO B~ASL recursos e terapeu ticas da psiquiatria tradicional. Lancetti entende ain da que a saude mental na saude da famllia possibilita urn processo que pode ser denominado de complexidade invertida. Explicando: na sau de, de uma maneira geral, a assistencia e oferecida em graus crescentes de complexidade, isto e, vai dos cuidados mais basicos (aten<;~LO basica), ou primarios (aten<;ao primaria) ate os mais nfveis mais sofisticados (as sistencia medico-cirurgica hospitalar hiperespecializada). Ao contrario, o nivel hospitalar na psiquiatria e 0 que dispoe do tratamento mais ele mental'. 0 mais padronizado e menos individualizado: eletrochoques como medidas punitivas. celas-fortes, proibit;:oes, coqueteis de medica mentos que atuam no sistema nervoso central, intolerancias, violencias etc. It no ambito do territ6rio, da saude da familia, que as at;:oes sao mais complexas, mais voltadas para os sujeitos e suas famllias, pois deve con tribuir para que a familia modifique sua maneira de relacionar-se com 0 usuario, a tomar decisoes a este respeito; orientar os vizinhos, participar das decisoes da comunidade, mudar a cultura em relat;:ao aos problemas mentais. Embora ainda nao existam muitas publicat;:oes sobre a relat;:ao sau de mental e saude da familia, a coletanea Saudeloucura 7 (2002), organi zada por Lancetti, e 0 livro Sazlde lvIental na Sazlde da Familia: mbsidios jJara 0 trabalho assistencial, de Alice Bottaro de Oliveira, Marcos Antonio Vieira e Socorro Andrade (2006) sao referencias que auxiliam suficiente mente a compreensao dos principais aspectos envolvidos. DA REFOPJ1f\ PERSPECTIVAS DE Como vimos, com a repercussao politica positiva da experiencia santista iniciada em 1989, em outubro daquele mesmo ano, foi apresentado um projeto de lei de auroria do deputado Paulo Delgado que propunha a extin<;ao progressiva dos hospitais psiquiatricos e sua substituic;ao por outras formas de assistencia, na mesma linha dos recursos psicossociais e culturais implantados em Santos. Mas, corn a resisH~ncia organizada dos proprietarios hospitais psiquiatricos, que mobilizaram inclusive familiares, desinformados e assustados, e setores mais conservadores da universidade, foi muito dificil a aprovac;ao do projeto de lei tal como apresentado originalmente. POI' fim, em 27 de marc;o de 2001, a Lei da Reforma Psiquiatrica foi aprovada; nao mais 0 projeto original (PL 3.657/89), mas um substitutivo que, sancionado em 6 de abril do mesmo ano, se tornou a lei 10.216/2001. Embora 0 texto aprovado tivesse excluido a proposta de extin<;ao dos hospitais psiquiatricos da rede de recursos assistenciais em saude mental, Saude Mental, Desinstitucionaliza,ao e Novas Estrategias de Cuidado 753 representou urn significativo avan<,;o e uma vitoria inquestionavel da luta do movimento antimanicomial brasileiro, ao revogar a legisla<,;ao arcaica, em vigor desde 1934, e ao abrir a possibilidade e legitimar a nova politica de reforma psiquiatrica. Por outro lado, durante os quase doze anos de sua tramita<,;ao acabou por inspirar oito leis estaduais de reforma psiquiatrica (RS, PE, RN, MG, PR, DF e ES), e urn incontavel mimero de experiencias locais e de associa<,;oes de usuarios e familiares. A trata fundamentalmente dos direitos e da prote<,;ao das pessoas com transtornos mentais, alem de estimular 0 tratamento em regime comunitario e nao hospitalar. Em seu artigo 2Q , determina que, nos atendimentos em saude mental, de qualquer natureza, a pesso a e seus familiares ou responsaveis serao formalmente informados dos direitos enumerados no paragrafo unico deste artigo (tais como ser tratada com humanidade e respeito; ser protegida contra qualquer forma de abuso e explora<,;ao; ter garantia de sigilo nas informa<,;oes prestadas; ter direito a presen<,;a medica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou nao de sua hospitaliza<,;ao involuntaria; ter livre acesso aos meios de comunica<,;ao disponfveis; receber 0 maior numero de iniorma<,;oes a respeito de sua doen<,;a e de seu tratamento; ser tratada em ambiente terapeutico pelos meios menos invasivos posslveis; ser tratada, preferencialmente, em servi<,;os comunitarios de salide mental, dentre outros). Outro ponto importante da lei e a obrigatoriedade de 0 responsavel tecnico do estabelecimento comunicar, ao Ministerio Publico Estadual, a interna<,;ao psiquiatrica involuntaria. Esta inova<,;ao passou a produzir efeitos muito interessantes ao envolver 0 MPE nas atividades e responsabilidades de prote<,;ao das pessoas em sofrimento mentaL Lei n. 10.216, de 6 de abril de 2001 (Lei da Reforma Psiquiatrica) Disp6e sobre a protec;:ao e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona 0 modelo assistencial em saude mental. o PRESIDENTE DA REPUBLICA Fac;:o saber que 0 Congresso N acional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: ATt 1Q Os direitos e a protec;:ao das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, sao assegurados sem qualquer forma de discriminac;:ao quanto a rac;:a, cor, sexo. orientac;:ao sexual, religiao, opc;:ao polftica, nacionalidade, idade, famma, recursos economic os e ao grau de gravidade ou tempo de evoluc;:ao de seu transtorno, ou qualquer outra. Art 2Q Nos atendimentos em saude mental, de qualquer natureza, a pessoa e seus familiares ou responsaveis serao formalmente cientificados dos direitos enumerados no paragrafo unico deste artigo. Paragrafo unico. Sao direitos da pessoa porladora de transtorno mental: I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saude, consent'lneo as suas necessidades; II - ser tratada com humanidade e I'espeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saude, visando alcan<.;ar sua recupera<.;ao pela inser<.;ao na familia, no trabalho e na comunidade: III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e explora<.;ao; IV - ter garantia de sigilo nas informac;6es prestadas; V - ter direito a presen<.;a medica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade 01ln3.0 de sua hospitalizac;ao involuntaria; VI - ter livre acesso aos meios de comunicac;ao disponfveis: VII receber 0 maior mimero de informac;6es a respeito de sua doen<.;a e de seu tratamento; VIII - ser tratada em ambiente terapeutico pelos meios menos invasivos pOSSlveiS; IX - ser tratada, preferencialmente, em servic;os comunitarios de sallde mental. Art 3Q Eresponsabilidade do Estado 0 desenvolvimento da polftica de saude mental, a assistencia e a promo<.;ao de a<.;6es de saude aos portadores de transtornos mentais, com a devida participa<.;ao da sociedade e da familia, a qual sera prestada em estabelecimento de saude mental, assim entendidas as instituic;6es ou unidades que oferec;am assistencia em saude aos portadores de transtornos mentais. Art 4Q A internac;ao, em qualquer de suas modalidades, 56 sera indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. § 1Q 0 tratamento visara, como finalidade permanente, a reinser<.;ao social do paciente em seu meio. § 2Q 0 tratamento em regime de interna<.;ao sera estruturado de forma a oferecer assistencia integral apessoa portadora de transtornosmentais, incluindo servi<.;os medicos, de assistencia social, psico16gicos, ocupacionais, de lazeI', e outros. § 3Q Evedada a interna<.;3.o de pacientes portadores de transtornos mentais em instituic;6es com caracteristicas asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recur50S mencionados no § 2Q e que nao assegurem aos pacientes os direitos enumerados no paragrafo tinieo do art. 2Q. Art 5Q 0 paciente ha longo tempo hospitalizado on para 0 qual se caracterize situac;ao de grave dependencia institucional, decorrente de seu quadro clfnico ou de ausencia de suporte social, sera objeto de polftica espedfica de alta planejada e reabilita<.;ao psicossocial assistida, sob responsabilidade da autoridade sanitaria competenre e supervisao de inst~mcia a ser definida pelo Poder Executivo, assegurada a continuidade do tratamento, quando necessario. Art. 6Q A internac;ao psiquiatrica somente sera realizada mediante lalldo medico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Paragrafo unico. Sao considerados os seguintes tipos de interna<;;ao psiquiatrica: 1- interna<.;ao voluntaria: aquela que se da com 0 consentimento do usuario; II - interna<;;ao involuntiria: aquela que se da sem 0 consentimento do usuario e a pedido de terceiro; e III - interna<.;ao compuls6ria: aquela determinada pelaJusti<.;a. Art. 7Q A pessoa que solicita voluntariamente sua interna<.;ao, ou que a consente, deve assinar, no momento da admissao, uma declara<.;ao de que optou pOl' esse regime de tratamento. Saude Mental, Desinstitucionaliza,iio e Novas Estrategias de Cuidado 755 unico. 0 termino da voluntaria dar-se-a por solicitac:;ao es crita do paciente ou por determinac:;ao do medico assistente. Art. 8Q A internac:;ao voluntaria ou involuntaria somente sera autorizada por me dico devidamente registrado no Conselho Regional de Medicina - CRM do Estado onde se localize 0 estabelecimento. § 10 A internac:;ao psiquiatrica involuntaria devera, no prazo de setenta e duas ser comunicada ao Ministerio Publico Estadual PeIO responsavel tecnico do estabelecimento no qual tenha ocon-ido, devendo esse mesmo procedimento ser adotado quando da respectiva alta. § 2° 0 termino da internac:;ao involuntaria dar-se-a por solicitac:;ao escrita do familiar, ou responsavellegal, ou quando estabelecido pelo responsavel pelo tratamento. Art. 9Q A internac:;ao compulsoria e determinada, de acordo com a legislac:;ao vigente, pelojuiz competente, que levara em conta as condic:;6es de seguranc:;a do estabelecimento, quanto a salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionarios. Art. 10 Evasao, transferencia, acidente, intercorrencia cHnica grave e falecimento serao comunicados pela do estabelecimento de saude mental aos familiares, ou ao representante legal do paciente. bem como aautoridade sanitaria responsavel, no prazo maximo de vinte e quatro horas da data da ocorrencia. Art. 11 Pesquisas cientfficas para fins diagnosticos ou terapeuticos nao poderao ser realizadas sem 0 consentimento expresso do paciente, ou de seu representante legal, e sem a devida comunicac:;ao aos conselhos profissionais competentes e ao Conselho ~acional de Sauck Art. 12 0 Conselho "t\acional de Saude, no ambito de sua criara comissao nacional para acompanhar a implementac:;ao desta Lei. Art. 13 Esta Lei entra em vigor na data de sua publicac:;ao. Brasilia, 6 de abril de 20tH; 1800 da Independencia e 113 0 da Republica. Fernando Cardoso ] ose Gregori Jose Serra Roberto Brant A psiquiatrica brasileira ,'em sendo constitufda com base na no(,;ao processo social complexo, que permite, dentre outros aspectos, a ideia de uma simples reorganiza(,;ao do modelo assistencial, fato que oconeu em outras experiencias europeias e na norte americana de reforma psiquiatrica. Assumir a no(,;ao de processo social complexo significa dizer que na~ existe ° processo, ou um s6 processo reforma psiquiatrica; mas processos, na medida em que sao oconencias 756 PO~iTICA5 E SIS',MA SAU), NO BRASIL As caractedsticas do cuidado ao doente cronico sao discutidas no capitulo 32. Compare. locais e historicas, com atores sociais e conjunturas especificas, singula res e diferenciadas. Por outro lado, a ideia de processo leva a pensar em movimento, com permanente renova<;ao de atores, conceitos e principios. Assim e, que um processo social complexo implica varias dimensoes simult;:lneas e interdependentes. A primeira destas dimens6es e epistemologica, que remete a repensar, desconstruir e reconstruir varios conceitos fundamentais do modelo cientifico, isto e, do paradigma da psiquiatria. 0 principal conceito se refere ao objeto da ciencia psiquiatrica: a aliena<;;ao mental (que posteriormente passou a ser denominada de 'doen<;;a mental' e, atualmente, de 'transtorno mental', mas que, em ultima instfmcia, tern 0 mesmo significado: a perda da razao!). Outro conceito em processo de desconstru<;;ao e 0 de cura, como ideia de cone<;;ao, ou de normatiza<;;ao proveniente do principio da 'normalidade', como ideal teleologico, sinonimo ora de perfei<;;ao, ora de felicidade. A dimensao tecnico-assistencial, ou seja, a dimensao que trata da organiza<;;ao e dos princfpios do cuidado e absolutamente redefinida quando surge como consequencia ou associada a transforma<;;ao na dirnensao anterior. Exemplificando, no paradigrna psiquiatrico, na rnedida em que 'aliena<;;ao mental' e sinonirno de eno ou periculosidade, dentre outros significados negativos, 0 modelo assistencial e baseado, como vimos, na tutela, na vigilancia, na disciplina, no controle e na regenera<;;iio dos individuos. Foi desta forma que nasceu e floresceu 0 modelo asilar, manicomial, hospitalar da psiquiatria. Se na dimensao epistemologica estes significados forern desmontados conceitualrnente, como reflexo na dirnensao tecnico-assistencial, a organiza<;;ao de servi<;;os se tornara. voltada para 0 cuidado, para 0 acolhirnento, para a constru<;;ao de espa<;;os de escuta, de sociabilidade, de produ<;;ao de subjetividade, de vida, e nao de controle e vigilancia, e nao de puni<;;ao e segrega<;;ao. Este e 0 principio geral dos servi<;;os de aten<;ao psicossocial e das novas estrategias e dispositivos. A terceira dirnensao e a juridico-polftica. U rna faceta desta dirnensao esta calcada nos aspectos legais que tratarn do tema da loucura. Tanto 0 codigo civil quanto 0 penal sao absolutamente arcaicos na materia da reforma psiquiatrica. Referem-se ainda a "loueos de todo 0 genero" 1 a "inesponsabilidade civil" ,ea tantos outros aspectos discriminatorios, estigmatizantes e preconceituosos contra as pessoas em sofrirnento mental. Mas, a outra faceta - a da politica - pode conter grandes avan<;;os, pois trata da questao das praticas de cidadania. Ou seja, da possibilidade de construir espa<;;os reais de produ<;ao de possibilidades de vida, tais como cooperativas de trabalho ou projetos de gera<;;ao de renda para pessoas corn desvantagem social (e nao apenas corn diagnosticos de Saude Mental, Desinstitucionaliza,ao e Novas Estrategias de Cuidado 757 transtorno mental); de construir programas de participa<;ao e ingresso social, dentre outras estrategias, que viabilizem efetivamente a participa<;ao cidada de pessoas nas varias possibilidades da vida coletiva. Por fim, ha a dimensao sociocultural; ou seria esta uma dimensao que resultaria de todas as demais? Pois, certamente, uma caracteristica do processo brasileiro de reforma psiquiatrica e 0 forte investimento no campo sociocultural, com uma pluralidade de iniciativas que contribuem para que a sociedade possa refletir sobre a questao da loucura e transformar sua rela<;ao com a mesma e com as pessoas com ela identificadas. N a atualidade, concordam autores e organismos internacionais, 0 processo brasileiro de reforma psiquiatrica e urn dos mais importantes e originais em todo 0 mundo. Em parte, isto ocorre em consequencia do proprioSUS. 0 funcionamento regular do SUS possibilita que os militantes do processo de reforma psiquiatrica participem dos Conselhos Municipais e Estaduais e do Conselho Nacional de Saude, e interfiram efetivamente nas pollticas publicas de saude mental e aten<;ao psicossocial. Outro mecanismo de participa<;ao tambem muito importante sao as Conferencias de Saude Mental. Mas, a ausencia de uma periodicidade regular - como vimos, foram realizadas apenas tres (1987, 1992,2001) desde a 8~ CNS - enfraquece esta estrategia democratica de controle e participa<;ao social. Por exemplo, apos a 12~ CNS, realizada em dezembro de 2003, esperava-se que fosse convocada a IV Conferencia Nacional de Saude Mental. Ao contrario, alem de nao ter sido convocada, foram realizados pelo SUS alguns congressos nacionais de servi<;os com algumas caracteristicas preocupantes. U rna delas, 0 fato de serem congressos de tecnicos, sem a participa<;ao paritaria, prevista constitucionalmente, de usuarios e familiares como representantes da sociedade civil. Outra, 0 fato de serem congressos especializados, isto e, dedicados exclusivamente a urn tipo de servi<;o, 0 que implicaria que 0 aperfei<;oamento estaria na dependencia exclusiva de medidas cientificas ou administrativas oriundas do campo tecnico. Finalmente, pelo fato de serem encontros de servi<;os isolados, no momenta em que toda a politica de saude esta voltada para a constru<;ao de redes, de intersetorialidade, de integralidade. U rna das for<;as mais expressivas do processo brasileiro de reforma psiquiatrica esta no fato de ser baseado em urn forte e permanente movimento social, no qual se destacam 0 Movimento N acional de Luta Antimanicomial, que ja realizou varios encontros nacionais, com centenas de participantes, e as associa<;6es de usuarios e familiares (existem dezenas de associa<;6es desta natureza) que ja realizaram varios encontros municipais, estaduais e nacionais, todos com ampla participa<;ao. 758 POLITICAS E SISTEMA DE SAUDE NO BRASIL o principal objetivo da reforma psiquiatrica e a possibilidade de transforma<;;ao das rela<;;oes que a sociedade, os sujeitos e as institui<;;oes estabeleceram com a loucura, com 0 louco e com a doen<;;a mental, conduzindo tais relat;oes no sentido da superat;ao do estigma, da segregat;ao e da desqualifica<;;ao dos sujeitos ou, ainda, no sentido de estabelecer com a loucura uma rela<;;ao de eoexisteneia, de troea, de solidariedade, de positividade e de euidados. :t 0 que se deseja para nossa realidade. 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