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Justiça e diálogo sociaL Cidadania: direitos e deveres Brena Késsia Simplício do Bomfim 3 Sumário 1. Cidadania: Direitos e Deveres ..............................................................................35 2. Direitos humanos como direitos fundamentais universais .............................35 3. Direitos fundamentais como exercício de cidadania .......................................40 4. Os limites às liberdades individuais e a noção de cidadania global ...............43 Considerações finais .............................................................................................46 Referências ............................................................................................................. 47 JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 35 1. Cidadania: Direitos e Deveres Historicamente, a origem do vocábulo cidadania vem do latim civitas, que signi- fica cidades. Na Grécia antiga, a expres- são cidadania foi cunhada em um senti- do eminentemente político, sendo o laço efetivo entre o indivíduo e a comunidade a forma efetiva de vida do homem no exercício da ação política, ou seja, na ad- ministração da vida em comunidade, das diretrizes do governo ou do exercício do poder do Estado. No sentido jurídico, ci- dadania trata-se da qualidade ou vínculo que gera para o nacional, uma vez que ligado ao Estado, um conjunto de direi- tos e de deveres perante os seus pares. No sentido denotativo, como se aprende na escola, cidadania nada mais é que a qualidade de ser cidadão, ou seja, ter di- reitos a usufruir e deveres a cumprir, em uma relação mutualística em que, para existência de um é imprescindível a ob- servância do outro e vice-versa. Posso apresentar inúmeras outras acepções do vocábulo dadas por polí- ticos, filósofos, juristas e, até mesmo, por artistas e matemáticos, no entanto, o sentido da palavra para fins desta lei- tura já se encontra claro e delimitado na acepção de um conjunto de direitos e de deveres que compõem diretrizes de vida em sociedade e que inexistem se não observados em conjunto pelo Estado, bem como também pelos particulares, sem a participação deste não há falar em exercício efetivo da cidadania. Esse con- junto de prerrogativas é o objeto central deste estudo, no qual viso revisitar um conceito de cidadania em tempos de cri- se econômica, de baixa na representa- tividade democrática, do impacto irres- trito da inteligência artificial nas nossas vidas, dentre outras peculiaridades que me assombram e exigem reflexão da co- munidade hodierna. Demais disso, como objetos espe- cíficos do estudo em questão questiono quais são estes direitos e deveres? Há um rol exaustivo? Onde estão previstos? Quais suas principais características para fins de enquadramento como inerentes à cidadania? Para isto, divido o presente artigo em três partes e utilizo o método dedutivo racionalista, a partir da pesqui- sa bibliográfica de doutrinas e pesquisas sobre o tema, quantitativa e exploratória, como se desenvolve a seguir. 2. Direitos Humanos Como Direitos Fundamentais Universais Há cerca de cinco anos, ministro disci- plinas de direitos humanos em cursos de curta duração, pós-graduação e educa- ção continuada. Desde que iniciei, ques- tiono os alunos sobre o conceito pessoal de direitos humanos de cada um deles. Antes, cada um opinava oralmente em sala de aula sua percepção na aula inau- gural sobre o tema. Isso facilitava uma indução das opiniões dos últimos interlo- cutores às concepções externadas pelos primeiros a refletir sobre o conceito. Com o advento e ingresso das novas tecnologias de informação e comunica- FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE36 ção (NTIC) em sala de aula, hoje, consigo realizar a atividade simultaneamente en- tre os alunos, em ambiente virtual. Todos são chamados a enviar até 10 (dez) pa- lavras-chave sobre seu conceito pessoal de direitos humanos para um sítio que reúne simultaneamente as respostas de todos os participantes, sem que estes tenham acesso prévio às opiniões dos colegas. Os resultados são compilados, e as palavras-chave enviadas recebem maior evidência no quadro quando se re- petem em mais de uma resposta. Em que pese uma ou outra remissão incomum, que, todavia, não merece des- taque, este sempre é dado às palavras como as seguintes: dignidade, direitos fundamentais e garantias. Em uma me- nor proporção, mas não incomuns, os alunos associam ao conteúdo de direitos humanos substantivos como vida, liber- dade, igualdade, justiça, saúde e edu- cação. Essas são respostas ocidentais comuns dadas por quem detém algum conhecimento jurídico àqueles direitos caracterizados como universais, irrenun- ciáveis, inalienáveis, complementares e interdependentes. Esses direitos são compreendi- dos como ínsitos à pessoa humana em qualquer lugar do mundo em que esteja, seja no ocidente, seja no oriente; seja no hemisfério norte, seja no hemisfério sul; e em todas as circunstâncias que ela assuma, seja em liberdade, seja subme- tida à sanção penal; seja empregado- ra, seja trabalhadora; seja eleitora, seja eleita. No entanto, devo ponderar que as circunstâncias culturais são levadas em conta pela doutrina internacionalista para fins de relativização ou universali- zação desses valores. JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 37 Enquanto os relativistas ponderam que os valores morais são determinados pela cultura, história, religião e outros con- textos sociais, sendo os direitos humanos para estes cultural e historicamente espe- cíficos e não universais; os universalistas descartam esta concepção, fundados na crença de que os valores morais são fun- damentalmente os mesmos quando se trata de proteção da condição humana em todos os momentos históricos e em todas as localizações geográficas do glo- bo terrestre, não devendo se admitir va- riáveis resultantes da diversidade cultural, histórica ou religiosa. Essa última concepção ganhou no- toriedade após a ocorrência de duas grandes guerras mundiais que dizima- ram milhões de vidas humanas, descar- tadas, nestes conflitos armados, com menor grau de responsabilidade do que, hodiernamente, em muitas comunida- des, assume-se com coleta seletiva de resíduos ou com a emissão de gases com impacto ambiental. Ao positivismo jurídico, de raiz emi- nentemente legalista, a história do Direito reputa parte da responsabilidade desses genocídios. Neles residem parte da razão fática para o surgimento da consolidação de standards internacionais, compreen- didos como garantias mínimas, normas, padrões, ou seja, modelos globais de pro- teção à condição humana dos indivíduos que povoam as mais diversas nações ao redor do planeta. Filosoficamente, os fun- damentos iniciais residem nas concep- ções morais advindas de uma lei natural derivada da humanidade básica, indepen- dentemente das circunstâncias culturais. O Direito travou importante função como condicionante do comportamento social ao valorar um fato jurídico, reputan- do-lhe uma sanção ou um incentivo sob a ótica da teoria tridimensional (REALE, 2003), conforme a necessidade de es- tímulo ou desestímulo de determinada conduta humana, passando a incorporar padrões morais universais por meio da positivação de valores éticos frente à crise do formalismo jurídico que de certa forma legitimou tais conflitos bélicos. Surgiu, en- tão, o pós-positivismo jurídico, cujo com- promisso primordial reside, para além da limitação da ação estatal, na preservação e na consolidação da dignidade humana. Talvez por isso, ao falar de direitos humanos, a primeira menção da memó- ria os associe ao termo dignidade, pois é nele que reside o centro propulsor da função do Direito como condicionamen- to da conduta humana com a consoli- dação do pós-positivismo jurídico. É em prol da sua dignidade que a minha ação é limitada pelo Estado e que a ação do Es- tado também recebe limitações. E, após os conflitos mundiais, a preocupação alargou-se tambémpara a convivência entre Estados, os quais, para preservar a dignidade de seus nacionais, começaram a organizar-se em comunidades e condi- cionar essa relação também por norma- tização de valores. Ressalto que não é a positivação em instrumentos escritos a função primor- dial do direito internacional dos direitos humanos, mas sim a busca pelo consen- so, por meio do diálogo cooperativo in- ternacional, de quais seriam essas garan- tias mínimas de domínio não exclusivo do Estado, mas de legítima preocupação da comunidade internacional, resultando assim em processos de universalização e de efetivação desses direitos. Nesse sentido, Fábio Konder Com- parato reitera, ao refletir sobre a afirma- ção histórica dos direitos humanos, que (2010, p. 02): “Reconhece-se hoje, em toda parte, que a vigência dos direitos humanos independe de sua de- FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE38 claração em constituições, leis e tratados internacionais, exata- mente porque se está diante de exigências de respeito à digni- dade humana, exercidas contra todos os poderes estabelecidos, oficiais ou não. A doutrina jurídica contemporânea, de resto, como tem sido reiteradamente assina- lado (...) distingue direitos huma- nos dos direitos fundamentais, na medida em que estes últimos são justamente os direitos con- sagrados pelo Estado mediante normas escritas.” Pois bem, para fins pedagógicos, costumo ilustrar as classes de direitos humanos com doutrina que reputa como único o fundamento axiológico para di- reitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais como sendo a limitação do poder do Estado e o com- promisso com a dignidade da pessoa humana (LIMA, 2013). Quando não po- sitivados, inerentes apenas ao contexto social, histórico e cultural de um povo, reputam-se por direitos do homem. Quando positivados em instrumentos in- ternacionais, frutos de um compromisso comunitário em prol de sua efetivação denominam-se direitos humanos. Por fim, mas não por último, quando posi- tivados na ordem jurídica interna, repu- tam-se direitos fundamentais. A ordem é que ao homem, ao adqui- rir a condição de sapiens, ou seja, ao ter poder de racionalizar e ao entender seu papel no mundo, tem que ser garantido o protagonismo de sua própria história, de fazer suas escolhas e de assumir as responsabilidades de sua tomada de decisão, bem como da vida em comuni- dade. Para isso, onde quer que ocupe a condição humana e em qualquer função que exerça em sociedade não só são JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 39 garantidos direitos universais inerentes à sua condição humana, mas também lhe são exigidas obrigações advindas da vida em sociedade. Essa filosofia, fundada em padrões sociais e econômicos liberais, repousa, assim, na dignidade da pessoa huma- na, na capacidade de racionalizar do homem, na igualdade entre todas as pessoas, na autonomia da vontade, nas nossas necessidades e capacidades co- muns, bem como no consenso universal sobre valores chaves. É um mister, con- tudo, apresentar algumas críticas a essa consolidação de padrões, pois a filosofia liberal encontra desafios que não conse- gue se esquivar com êxito em um mundo em que as desigualdades são abissais e que o exercício da autonomia e da liber- dade do homem é diretamente propor- cional ao seu acúmulo de capital. Nesse sentido, funda-se, inclusi- ve, a crítica marxista aos direitos hu- manos, para qual estes não se tratam de nada além de parte da estratégia capitalista de um sistema de dominação, em que as carências dos humanos em situação de desvantagem são supridas pela promessa de um rol ou conjunto de direitos de proteção em face do arbítrio estatal e da dominação do capital. No mesmo sentido crítico, os utilitaristas afirmam que valores chave decorrentes de direito natural são um fenômeno me- tafísico que não admitem consolidação no mundo real. A refutação a esse pessimismo críti- co deu vazão aos estudiosos de direitos humanos concentrarem seus esforços em busca de efetivá-los. Assim, tomo enquanto construção contemporânea da institucionalização dos direitos humanos o conjunto dinâmico de relações ocorri- das na sociedade – políticas, econômi- cas, sociais e culturais – que aumentam as potencialidades dos seres humanos em determinado lapso temporal e es- pacial (HERRERA FLORES, 2005). Não se podem igualar direitos humanos às normas de direitos humanos, pois estes devem ser interpretados como um pro- cesso, um resultado de lutas que geram emancipação dos povos e não a imposi- ção de normas pelo Estado. “As normas são apenas garantias, mas não direitos humanos em si mesmo, os quais exi- gem um mínimo de eficácia para existir” (BOMFIM, 2017, p. 20). FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE40 Costumo destacar ainda a impor- tância da efetivação desses direitos, cumulada com a potencialização das capacidades do homem, ou seja, com as possibilidades concretas de se atingir o tipo de vida que ele escolheu. Amar- tya Sen, um dos idealizadores da ava- liação das nações ao redor do mundo via Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), em detrimento dos índices de ri- queza acumulada per capita, analisada produto interno bruto (PIB), afirma que só há falar em desenvolvimento quando “relacionado, sobretudo, com a melho- ra da vida que levamos e das liberdades que desfrutamos” (2010, p. 29). Assim, riqueza não pode ser considerada um fim em si mesma, mas sim um meio para alcançarmos o tipo de vida que a so- ciedade almeja ter e que nós, cidadãos, desejamos desfrutar. Liberdade, como direito humano, só é alcançada por meio de um processo complexo que deságua em oportunidades reais da minha e da sua emancipação enquanto ser. Assim, direitos humanos incluem inúmeras liberdades, desde as civis e políticas; passando pelas econômicas e sociais; e, hodiernamente, as de garan- tia de um futuro decente para presente e futuras gerações, não só de um globo terrestre equilibrado com possibilidade de gozo de um meio ambiente hígido, mas também com proteção das pessoas hu- manas em face da revolução tecnológica. A institucionalização inadequada desses standards enseja expansão institucional ou reforma da atuação das comunida- des globais como parte dos ônus gera- dos pelo reconhecimento desses direi- tos como patamar mínimo de civilidade da geração moderna. “A irrealizabilidade atual de qualquer direito humano aceito, a qual pode ser revertida por meio de uma mudança institucional ou política, não faz, por si só, converter a reivindicação para um não direito”11 (SEN, 2004, p. 320). Positivados em plano internacional, por meio de acordos, pactos, tratados e outros instrumentos de direito interna- cional público, os direitos humanos ape- nas assumem esta condição quando mi- nimamente exercitáveis em um contexto social e espacial, o que me remete fazer o destaque à incorporação dessas ga- rantias ao direito interno de cada Estado e à positivação desses mesmos valores fundamentais diretamente nos ordena- mentos jurídicos internos, quando são reputados como direitos fundamentais, tal como visto acima e esmiuçado abaixo. 3. Direitos Fundamentais Como Exercício de Cidadania Positivados em direito interno, direitos fundamentais são aqueles considera- dos básicos para qualquer ser huma- no, independentemente das condições pessoais específicas que assumam, compondo um núcleo intangível de res- peito aos indivíduos que compõem uma determinada ordem jurídica. Assim, distingo-os dos direitos humanos, pois aqueles são prescrições determinadas a um delimitado território de autonomia e soberania de uma nação. Esses direitos decorrem de um pro- cesso de luta social pela efetivação da proteção do homem em face dos pode- res do Estado e das arbitrariedades dos demais seres humanos quando estes detinham a possibilidade do uso da força. Para Alexandre de Moraes (2011, p. 02- 03), “a noção de direitos fundamentais é mais antigaque o surgimento da ideia de constitucionalismo, que tão somente 1 “The current unrealizability of any ac- cepted human right, which can be pro- moted through institutional or political change, does not, by itself, convert than claim in to a non-right” (tradução livre). JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 41 consagrou a necessidade de insculpir um rol mínimo de direitos humanos em um documento escrito, derivado direta- mente da soberana vontade popular”. Nesse sentido, ressalto que, clara- mente, a proteção aos direitos funda- mentais é datada de interregno bem an- terior das garantias de direitos humanos e, até mesmo, da constitucionalização das ordens jurídicas, que só aparece com as Revoluções Francesa e America- na do Século XVIII, que iniciam o proces- so de construção de constituições como instrumento de contenção de poder do Estado e de garantia de direitos funda- mentais de 1ª dimensão: non facere es- tatal e direitos civis e políticos. Considerada como a carta geográfi- ca fundamental para o projeto de cons- titucionalização dos povos, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 foi institucionalizada pelos franceses, no auge da revolução, como primeiro ele- mento constitucional do novo regime po- lítico. Publicada sem sanção do rei, muitos questionaram se seria uma mera declara- ção de princípios sem força normativa. No entanto, teóricos clássicos reconheceram sua importância e competência decisória, tal como Sièyes, que afirmou que a de- claração emana diretamente da nação, como poder constituinte. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE42 Ressalto que a declaração emana direcionamento não só aos franceses, quando remete ao termo cidadão, mas também a todos os povos, quando reto- ma a palavra homem. Destaco a forma com a qual o instrumento deu contem- poraneidade ao compromisso com uma ordem universal preocupada com o ser humano, não restrita ao território fran- cês. Em pleno século XVIII, os franceses já demonstravam que a cooperação en- tre os homens deve transpor as barrei- ras geográficas. Já nas primeiras décadas do sécu- lo XX, uma nova concepção de Estado preocupada com as necessidades pri- márias dos cidadãos, introduz nas cons- tituições disposições voltadas à imple- mentação de prestações econômicas, sociais e culturais, que ensejam uma ação do estado no sentido de efetivá-las, o que a doutrina clássica reputa como prestações positivas, denominação que recebe críticas liberais, pois há quem entenda que os direitos negativos, ou de primeira dimensão, também dependem de altos custos de implementação (HOL- MES; SUNSTEIN, 2000). A Constituição do México de 1917 e, para admiração, a Constituição de Wei- mar (Alemanha) de 1919 inauguram o constitucionalismo social e positivam os chamados direitos sociais no âmbito dos ordenamentos jurídicos nacionais. No caso brasileiro, desde a Constituição de 1824, ainda sob égide do Império, até a Constituição Federal de 1988, há expres- sa remissão a um rol de garantias funda- mentais ínsitas aos nacionais submetidos à ordem jurídica brasileira. Destaco que a constituição atual não limitou o exercício dos direitos e garantias fundamentais aos nacionais, ao expressamente con- signar, logo no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, que “todos JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 43 são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 1988). Nacionais e não nacionais, desde que residentes no Brasil gozam dessas garantias fundamentais e são titulares de deveres que visam o exercício dos mes- mos direitos pelos seus semelhantes em território nacional. Assim, não há falar em exercício dos direitos fundamen- tais sem que os seus titulares cumpram o pacto de observar as limitações que possibilitem o exercício dos mesmos pe- los demais cidadãos que compõem a so- ciedade brasileira. No entanto, hoje, não há mais limitação da cidadania a geolo- calização em um Estado por si só, pois somos humanos em um mundo cada vez mais globalizado e sem fronteiras. Chegamos à cidadania 4.0. Bem-vindos à noção de cidadania global! 4. Os Limites às Liberdades Individuais e a Noção de Cidadania Global Promover os direitos humanos e alcan- çar a efetividade de direitos fundamen- tais é tarefa cabível a cada um de nós que compomos a sociedade moderna. Já dizia o filósofo, Aristóteles, somos animais eminentemente políticos. Não há como se escusar de participar desse processo. A minha não ação e a sua inér- cia, as nossas fugas dos processos polí- ticos, que marca a convicção política de inúmeros de nós na atualidade, também é uma ação política que reflete negati- vamente na necessidade de assunção do compromisso com uma das maiores urgências hodiernas: a concretização de um modelo de cidadania global. As pessoas são diretamente respon- sáveis pelo processo de desenvolvimen- to da sociedade atual. “Têm de ser vistas como ativamente envolvidas – dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino, e não apenas como be- neficiárias passivas dos frutos de enge- nhosos programas de desenvolvimento” (SEN, ANO, p.77). Eu, você, nós somos chamados ao protagonismo do processo de desenvolvimento de nossas nações, bem como das demais ao redor do mundo. Quando recebi o convite do Tribunal de Justiça do meu Estado natal, Ceará, para abordar o tema cidadania nesta co- letânea, instiguei-me a olhá-la por um novo espectro, pautado principalmente pelas transformações sociais impulsio- nadas pelas novas tecnologias da infor- mação e da comunicação e pela globa- lização. Não se pode falar de cidadania hoje, como o gozo de direitos e obser- vância de deveres de forma mutual, cir- cunscrita ao território de nossas nações de nascimento. Hoje apenas somos cidadãos se nosso compromisso em respeitar as liberdades dos nossos semelhantes transpassar todas as nossas relações FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE44 humanas. Isso porque os limites geográ- ficos se tornam cada vez mais tênues e insignificantes frente à revolução tecno- lógica que nos possibilita comunicação em tempo real com o mundo, realização de atividades complexas com apenas um clique, transporte a jato para o outro lado do globo terrestre, dentre outras pers- pectivas que nos aloca para muito além dos nossos domicílios de residência. Nesse sentido, falar em cidadania global compreende não só entender e efetivar o conteúdo e a extensão dos di- reitos e deveres internos de uma nação e sua dimensão de garantias fundamen- tais, mas também conhecer e aplicar as garantias de direitos humanos mundial- mente consolidadas, pois ambas as nor- matizações abrangem o mesmo conteú- do ético-jurídico: a limitação do poder do estado e a efetivação das garantias de dignidade da pessoa humana. A solução de problemas globais, continentais, nacionais e regionais de- pende dessa compreensão de que so- mos agentes ativos do processo de efetivação das garantias do ser humano que, para fim de adimplemento dos nos- sos deveres, é o outro; mas, para fim de adimplemento dos nossos direitos, so- mos nós, eu e você. Só é possível falar da existência de direitos humanos e de ga- rantias fundamentais, segundo a teoria crítica, se houver efetivação destes. Só é possível haver efetivação se houver par- ticipação de toda a sociedade. Essa é a noção de cidadania global: um conjunto de direitos e deveres que coexistem de forma mútua ao redor da Terra e ensejam a observância dos habitantes do planeta, independentemente das circunstâncias sociais, culturais e da região geográfica em que se encontram. Aqui surge a importância de conhe- cer não apenas a ordem jurídica interna, composta da Constituição Federal, Leis Complementares, Leis Ordinárias, de- cretos e regulamentos que codificam nossasvidas no território nacional bra- sileiro, mas também a normatização in- ternacional que dispõem sobre nossas garantias como seres humanos ao redor do globo terrestre, composta de trata- dos, convenções internacionais, pactos, declarações dentre outros instrumentos. Ressalto que a lei e a jurisprudência brasileiras auxiliam nesse processo ao, adotando a teoria monista no confronto de aplicação do direito internacional e do direito interno, cooperam ao incluir, com efeito, no ordenamento pátrio os instrumentos internacionais ratificados pelo Brasil. Isso porque, após a decisão do Habeas Corpus n. 87.585/TO e do Re- curso Extraordinário 466.343/SP, os tra- tados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, ainda que não ob- servando o quórum especial do § 3º do art. 5º da Constituição Federal, assumem natureza supralegal, prevalecendo sobre a legislação infraconstitucional e, inclusive, orientando a interpretação constitucional em conformidade com as diretrizes do respectivo tratado internacional quando este dispuser so- bre conteúdo de direitos humanos. Tal diretriz determinou a impossi- bilidade de prisão civil por dívida do de- positário infiel, em que pese a expres- sa autorização constitucional, mas em consonância com a cláusula de abertura prevista no art. 5º, § 2º da Constituição, que prevê que o rol de direitos e garan- tias ali expressos não exclui outros “de- correntes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados interna- cionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (BRASIL, 1988). Isso mostra a tendência de reunião dos siste- mas jurídicos de direito interno e de direi- to internacional como forma inexorável de organização normativa do século XXI. Não há falar em ordem jurídica mun- dial que não privilegie a congregação das organizações normativas internas dos Estados que compõem o globo terrestre e das diretrizes internacionais comuni- tárias da mesma forma em que não se imagina mais um mundo não conectado à rede mundial de computadores ou à internet. Nessa medida, alerto. A noção de cidadania recebe um novo paradig- ma. Hoje ela é, repito, global. A pergunta que me queda e que deve estar também rodeando seus pensa- mentos é: o que muda na perspectiva da JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 45 cidadania quando ela assume uma pers- pectiva mundial? É exatamente o com- promisso do ser humano em zelar não só pelos direitos fundamentais dos seus companheiros nacionais, mas também pelos direitos humanos de todos aqueles demais homens que habitam na terra. Sabendo que a cidadania é com- posta pelo exercício de direitos e obser- vância de deveres, o espectro cognitivo do homem, hoje, ultrapassa o limite das constituições nacionais e legislação in- terna e atinge todos os compromissos internacionais inerentes ao respeito à dignidade do ser humano. Isso começa promovendo e difundindo o teor da le- gislação internacional clássica dos direi- tos humanos, sem afastar, contudo, sua efetivação, pois, conforme levantei alhu- res, não se fala em direitos humanos sem sua concretização. Nesse cenário, ouso destacar um diploma essencial, sem desmerecer qualquer outro – muitos deles deve- ras importantes, tal como a Convenção Americana de Direitos Humanos, mais conhecida por Pacto de São José da Costa Rica – pela sua importância na consolidação da disciplina internacional dos direitos humanos: a Declaração Uni- versal dos Direitos Humanos (DUDH). Datada de 1948, aparece como mar- co teórico normativo da disciplina dos direitos humanos na seara internacional, logo após a criação das Nações Unidas por uma Carta de 1945, logo após o térmi- no do Holocausto. Trata de direitos desde direitos de primeira dimensão, tais como, a liberdade, a igualdade e a dignidade, até direitos de segunda e outras dimensões, tais como a alimentação, a moradia, o en- sino. A DUDH é considerada o documen- to mais traduzido no mundo — já alcança 500 (quinhentos) idiomas e dialetos, po- rém muitos nacionais desconhecem seu teor e, assim, tornam-se impossibilitados de cumprir seu papel na implementação desses direitos, infringindo o dever cívico de cidadania global. Tomo a liberdade de transcrever o rol de direitos humanos universais da de- claração que devem nortear nosso com- portamento e limitar nosso agir em prol de uma cidadania global que nos permita o gozo desses direitos. 1. Liberdade e igualdade em digni- dade e direitos de todo ser hu- mano, devendo assim agir uns com os outros. 2. Impossibilidade de distinção de qualquer espécie entre os seres humanos. 3. Garantia de vida, de liberdade e de segurança pessoal. 4. Vedação à servidão, à escravi- dão e ao tráfico de pessoas. 5. Vedação à tortura e ao trata- mento cruel, desumano ou de- gradante. 6. Ser reconhecido como pessoa, perante a lei, em qualquer lugar. 7. Proteção à discriminação. 8. Proteção judiciária em face de atos violadores de direitos fun- damentais. 9. Vedação à prisão, à detenção ou ao exílio arbitrários. 10. Audiência pública em tribunal in- dependente e imparcial quando houver acusação criminal. 11. Presunção de inocência, devido processo legal penal e anteriori- dade da lei em relação à tipifica- ção do fato delituoso. 12. Inviolabilidade da privacidade, de domicílio, da honra e da repu- tação. 13. Liberdade de locomoção, inclu- sive entre as fronteiras dos Es- tados. 14. Asilo em Estados não nacio- nais, não podendo ser invocado quando houver perseguição le- gitimamente motivada por cri- mes de direito comum ou por atos contrários aos princípios e objetivos das Nações Unidas. 15. Nacionalidade e restrição à pri- vação dela. 16. Contrair matrimônio e nele gozar de direitos iguais com o nubente na duração do casamento e na FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE46 pleno desenvolvimento da per- sonalidade do ser humano e no fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liber- dades fundamentais. 27. Participar livremente da vida cul- tural da comunidade; da fruição das artes; do progresso científi- co e seus benefícios; bem como de ter proteção moral e material em face das produções literárias e artísticas. 28. Direito a uma ordem social e internacional em que estes di- reitos e liberdades possam ser plenamente realizados. 29. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade, estan- do sujeito às limitações legais voltadas a assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdade de outrem e de satisfazer as justas exigên- cias da moral, da ordem pública e do bem-estar de uma socie- dade democrática. 30. Nenhuma das disposições aci- ma podem ser interpretadas no intuito de autorizar qualquer Es- tado, grupo ou pessoa de exer- cer qualquer atividade ou de praticar qualquer ato destinado à mitigação ou destruição de quaisquer direitos e liberdades acima garantidos. 31. O destaque dado ao item 29 é meu chamado ao exercício da cidadania global. Hoje, somos cidadãos com conexões ao re- dor do globo terrestre que nos chama a exercer nossos deve- res e suas limitações a nossas liberdades individuais de forma globalizada. Se cada um de nós inicia este processo como uma gota no oceano, parafraseando Santa Tereza de Calcutá, esse oceano será cada vez maior. Considerações Finais Chamada a tecer minhas considerações acerca do conceito de cidadania, propus- -me a revisitar seus aspectos eminen- temente preocupada com os impactos sociais da revolução 4.0, ou seja, com as transformações impostas na nossa vida cotidiana com pelos anseios e novas de- mandas trazidas pelas novas tecnologias da informação e da comunicação. Talvez o maior desses impactos seja a superação das fronteiras e a diminuição das distâncias entre os seres humanos do mundo, o que nos torna muito mais próximos de outros humanos que vivem em nações de valores culturais e sociais muitas vezes distintos dos nossos. Daí vem a importância da consolidação de standardsinternacionais usufruíveis por todo e qualquer ser humano, onde quer que ele esteja e seja qual condição que ele ocupe. Isso porque a nós é devido o tratamento condigno pela capacidade que temos de raciocinar, por nossa auto- nomia e necessidades comuns. É aqui que os direitos huma- nos, positivados na ordem internacional, cumulados aos direitos fundamentais, tutelados pelas ordens jurídicas internas, aparecem como padrão de referência para o novo modelo de cidadania, a cida- dania 4.0 ou cidadania global para qual to- dos nós, seres humanos que ocupamos a terra, somos, ao mesmo tempo, titulares para o gozo dos direitos a ela inerente e sujeitos ativos das limitações jurídicas a fim os outros possam exercê-las. sua resolução, sendo a família núcleo fundamental da socie- dade, tendo direito à proteção desta, bem como do Estado. 17. Propriedade, vedada a privação arbitrária desta. 18. Liberdade de pensamento, de consciência e de religião. 19. Liberdade de opinião e de ex- pressão. 20. Liberdade de reunião e de ação pacífica, vedada a associação obrigatória. 21. Sufrágio universal, periódico, le- gítimo e por voto secreto, tendo todos os homens o direito de votar e ser votado, bem como ao acesso ao serviço público de seu país. 22. Segurança social por esforços nacional e cooperação inter- nacional. 23. Livre escolha do trabalho em condições justas, favoráveis e em proteção ao desemprego; igualdade de remuneração, justa e satisfatória, em condi- ções de igual ocupação; e li- berdade sindical. 24. Direito ao repouso, ao lazer e à li- mitação da jornada, bem como a férias periódicas e remuneradas. 25. Direito a um padrão de vida ca- paz de assegurar ao ser huma- no e a sua família saúde e bem estar, garantida a proteção em casos de contingências sociais, bem como os direitos das crian- ças nascidas dentro ou fora do matrimónio. 26. Instrução gratuita, no mínimo, nos graus elementares e fun- damentais, aquela obrigatória; a instrução técnica-profissional será acessível a todos; e a ins- trução superior terá ingresso baseado no mérito, sendo todas estas orientadas no sentido do JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL 47 Referências ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Ja- neiro: Forense Universitária, 1999. ________. Origens do totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo São Paulo: Companhia das Letras, 1989. Assembleia Geral da ONU. “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. “Na- ções Unidas”, 217 (III) A, 1948, Paris, art. 1, http://www.un.org/en/universal-de- claration-human-rights/. Acessado em 06 de novembro de 2019. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov. br/ ccivil_03/constituicao/constituição. htm. Acesso em: 06 de nov. 2019. BOMFIM, Brena Késsia Simplício do. Controle de Convencionalidade na Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro: Lu- men Iuris, 2017. COMPARATO, Fábio Konder. A afirma- ção histórica dos direitos humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. HOLMES, S; SUSTEIN C. The Cost of Ri- ghts - Why Liberty Depends on Taxes. New York: W.W. Norton & Company, Inc., 2000. LIMA, George Marmelstein. Curso de Di- reitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2013. 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Desenha desde criança. A arte e a leitura estiveram sempre presentes em sua vida. Filmes, desenhos animados, histórias em quadrinhos e videogames eram inspirações para desenhar. Integra o Núcleo de Design (NDE) da Fundação Demócrito Rocha, onde faz o que mais gosta: imaginar, criar e ilustrar. FUNDAÇÃO DEMÓCRITO ROCHA (FDR) Presidência: João Dummar Neto Direção Administrativo-Financeira: André Avelino de Azevedo Gerência Geral: Marcos Tardin Gerência Editorial e de Projetos: Raymundo Netto Análise de Projetos: Emanuela Fernandes e Fabrícia Góis | UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE (UANE) Gerência Pedagógica: Viviane Pereira Coordenação de Cursos: Marisa Ferreira Design Educacional: Joel Bruno Secretaria Escolar: Thifane Braga | CURSO JUSTIÇA E DIÁLOGO SOCIAL Concepção e Coordenação Geral: Cliff Villar Coordenação Executiva: Ana Cristina Barros Coordenação Adjunta: Patrícia Alencar Coordenação de Conteúdo: Gustavo Brígido Editorial e Revisão: Verônica Alves Edição de Design: Amaurício Cortez Projeto Gráfico e Diagramação: Welton Travassos Ilustração: Karlson Gracie Coordenação de Produção: Gilvana Marques Produção: Juliana Guedes Análise de Projeto: Narcez Bessa Marketing e Estratégia: Andrea Araújo, Kamilla Damasceno e Wanessa Góes Performance Digital: Alice Falcão | TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO CEARÁ Presidente do Tribunal de Justiça do Ceará: Desembargador Washington Luís Bezerra de Araújo Vice-Presidente do Tribunal de Justiça do Ceará: Desembargadora Maria Nailde Pinheiro Nogueira Corregedor-Geral do Tribunal de Justiça do Ceará: Desembargador Teodoro Silva Santos | ISBN 978-65-86094-04-6 Todos os direitos desta edição reservados à: Fundação Demócrito Rocha Av. 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