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PPssiiccaannáálliissee Módulo I Parabéns por participar de um curso dos Cursos 24 Horas. Você está investindo no seu futuro! Esperamos que este seja o começo de um grande sucesso em sua carreira. Desejamos boa sorte e bom estudo! Em caso de dúvidas, contate-nos pelo site www.Cursos24Horas.com.br Atenciosamente Equipe Cursos 24 Horas Autora do conteúdo: Ana Paula Veiga (Psicóloga/Sexóloga) Contato: http://www.wix.com/ana_paula_veiga/atendimento Sumário Introdução..................................................................................................................... 3 Unidade 1 – Conhecendo a Psicanálise........................................................................ 12 1.1 – Freud e a criação da psicanálise ...................................................................... 12 1.2 – Escolas psicanalísticas.................................................................................... 22 1.3 – Jung e a psicologia analítica ........................................................................... 23 1.4 – Wilhelm Reich e a psicologia do corpo........................................................... 33 1.5 – J. Lacan e sua contribuição à psicanálise......................................................... 43 1.6 – A psicanálise no Brasil ................................................................................... 54 Unidade 2 – Fundamentos da Psicanálise .................................................................... 56 2.1 – Primeira tópica: consciente, pré-consciente e inconsciente.............................. 57 2.2 – Narcisismo ..................................................................................................... 60 2.3 – Segunda tópica: id, ego e superego ................................................................. 64 2.4 – Resistências.................................................................................................... 69 2.5 – A psicanálise e os sonhos ............................................................................... 78 2.6 – O setting analítico........................................................................................... 81 2.7 – A alta em psicanálise ...................................................................................... 83 Conclusão do Módulo I............................................................................................... 85 3 Introdução Sigmund Freud (1856-1939) postulou um método de investigação que se resume, essencialmente, em clarificar o significado inconsciente das ações do sujeito. Desse modo, para a psicanálise existem conteúdos escondidos na vida mental de todos nós. Baseado no método de associação livre, que garante a validade das interpretações desde que sejam controladas certas resistências inerentes, a psicanálise foi o primeiro esforço científico para o tratamento das questões psicológicas. Antes de Freud, o tratamento das desordens emocionais era além de pré-científicos e ineficazes, mas potencialmente perigosos. O modismo de tal teoria levou muitos à produção em nome da psicanálise daquilo que não deveria ser assim nominado, já que o conteúdo, o método utilizado e, até mesmo, os resultados obtidos, não condiziam com o pressuposto original. O que vemos por aí é que Freud e suas ideias foram tão popularizados que seus conceitos, muitas vezes, são veiculados de modo errôneo ou distorcido. Um erro comumente visto, em profissionais de formação apressada, é o de pensar que as diferentes teorias que surgiram da psicanálise são trabalhos que falam sobre a mesma coisa, mas de maneira diferente, ou seja, abordagens distintas sobre o ser humano, que visam e apontam para um mesmo resultado. Sabemos que a psicanálise ultrapassa os seus pouco mais de 100 anos de criação. Ainda assim, é inegável o valor daquilo que foi construído durante os anos no decorrer da vida de Freud. Tamanha a sua dedicação e cuidado em tornar claros seus pensamentos, em dividir suas angústias e as suas releituras, que podemos nos deleitar com aquilo que foi estudado pelo criador. Sabemos que a psicanálise se fez a partir de certezas e incertezas de Freud. Incertezas essas que construíram com muita propriedade a sua obra, pois, se voltarmos atrás, perceberemos que o método freudiano foi desenvolvido, além do próprio contato com seus pacientes, mas também nos fracassos que se apresentavam diante daquilo que 4 não se esperava ou era sabido. Foi o não conseguir entender que o fez seguir em frente e estudar cada vez mais a fundo a mente humana. Cabe apostar que é isso que ele esperaria de todos nós, ao falarmos e passarmos adiante a teoria criada para que a humanidade pudesse se sentir um pouco protegida dentro da sua desproteção inerente. Ainda assim, vale dizer que a verdade não está nas respostas elaboradas pela psicanálise. A completa, o êxito, a evitação do sofrimento e das doenças, é algo buscado por todos nós e por diferentes leituras da mente humana. Ao estudarmos este caso de amor que recebeu o nome de Psicanálise, percebemos que Freud nos pede que tomemos cuidado com os seus conceitos chamados, por ele próprio, de fundamentais. É preciso desfazer equívocos criados não apenas pelos leigos, mas especialmente por aqueles que detêm o saber, e, que, por se considerarem conhecedores, ao fazer uso parcial da psicanálise, são capazes de causar prejuízos que refletirão justamente no público leigo. É mais do que preciso a consciência da necessária formação do analista, enquanto um processo extra-acadêmico, onde seja viável se preparar para lidar com o futuro paciente, isolando os elementos psíquicos de si próprio. Formação esta que, ao passar pela análise pessoal, visa a superação das próprias resistências a fim de que elas não interfiram e, assim, prejudiquem o processo analítico daqueles interessados nos cuidados profissionais desse futuro analista. “Os ensinamentos da Psicanálise baseiam-se em um número incalculável de observações e experiências, e somente alguém que tenha repetido estas observações em si próprio e em outras pessoas, acha-se em posição de chegar a um julgamento próprio sobre ela.” (FREUD, 1940, livro 7, p.16. Ed. Bras) 5 O mesmo foi levantado por Fradiman e Frager (1986): “Em 1922, no Congresso da Associação Psicanalítica Internacional, concordou-se que uma análise didática com um analista já declarado, seria obrigatória para qualquer candidato a analista. Desse modo, este analista tornar-se-ia consciente de seus modos de enfrentar a realidade. E, então, quando ele ou ela trabalhasse com pacientes, não haveria confusão entre as necessidades do analista e as do paciente.” (p. 27) De qualquer forma, seria leviano de nossa parte, esquecer que o psicanalista é um ser humano, com seus problemas, conflitos e limitações. Com sua própria história e formas de interpretar a sua escuta, que estudou, fez terapia analítica e supervisionou casos, mas, ainda assim, continua sendo, antes de tudo isso, uma pessoa sensível, afetuosa, entediada, irritável e que também se angustia e sofre. O que é a psicanálise? Dentro da psicologia encontramos várias abordagens psicoterapêuticas que englobam tendências teóricas um tanto diferentes e, com isso, diversas formas de tratamentos. Apesar disso, conforme levantadopor Cavalcanti e Cavalcanti (2006), nenhum molde psicoterápico pode ser, indistinto e vantajosamente, aplicado a todos em todos os casos. As características do próprio indivíduo permitem uma abordagem terapêutica mais adaptável à condição apresentada por ele. Via de regra, o que todas as linhas concordam, ainda que haja até mesmo certa competição entre elas, em relação à importância e aceitação, é que o comportamento humano é resultado da interação entre as variáveis biológicas, aquelas que são herdadas e as variáveis, que são adquiridas através da aprendizagem e da experiência pessoal. A tática terapêutica freudiana consiste em trazer o material do inconsciente para a superfície, ou seja, para o nível da consciência, onde é possível ser trabalhado e 6 resolvido ao descobrir os motivos que originaram determinados comportamentos ou sintomas. Desta forma, a compreensão interna, chamada de insight, e a resolução dos conflitos subjacentes são os objetivos primários desta concepção. Porém, tal esforço ocorre junto à resistência, tanto mais forte quanto mais profundo estiver o material a ser trabalhado. Vale lembrar que a psicanálise não inviabiliza, assim como não substitui, a necessidade de acompanhamento médico ou medicamentoso. Ao analista cabe interpretar a fala do seu paciente, o significado inconsciente das palavras, das ações e do conteúdo imaginativo expressado através dos sonhos ou fantasias. Seu objetivo é a reeducação emocional ao promover o autoconhecimento e o autocontrole, uma melhoria na qualidade de vida com a redução dos sintomas apresentados, além das mudanças em si mesmo, características essas que não competem com o tratamento feito através da medicação. Atualmente, a psicanálise não está limitada à prática, centrada em outros cenários por sua amplitude de pesquisa. Há até quem diga que a psicanálise é uma psicologia própria. Nas palavras do criador: “Psicanálise é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos, e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica” (FREUD, 1923, livro 15, p. 107. Ed Bras) Propomos outra tradução ao afirmar que a psicanálise é ainda mais do que isso. É aquela ideia que nos envolve de uma tentativa sincera dos entendimentos de nossas limitações e angústias. Apesar disso, ainda que as teorias ou suas racionalizações expliquem de forma tão completa o nosso sofrimento, por vezes, precisamos ir além delas para que seja possível a diminuição das aflições daqueles que nos procuram. 7 Precisamos, claro, nos apoiar na teoria, mas não podemos correr o risco de nos perdermos nela e esquecermos de quem está à nossa frente. A contribuição de Freud É verdade que, passados mais de 150 anos do seu nascimento, Freud continua polêmico. Hoje, sua teoria recebe questionamentos que vão desde a psicologia cognitivo-comportamental à neurociência, responsável pelo estudo das bases biológicas da mente. Apesar disso, a importância de Freud para a ciência é um assunto inquestionável. O descobrimento da sexualidade infantil, por exemplo, possibilitou o estudo de uma área que, até então, era reinada pela ignorância tanto na ciência quanto na filosofia, contribuindo para a formação de um novo campo conceitual bem mais abrangente e diversificado. Além disso, outros conceitos foram de suma utilidade em diversos ramos da psicologia, permitindo, assim, o avanço de tal ciência para além de um complemento da psiquiatria. Desde então, a psicologia pode explicar os processos psíquicos do ser humano, não se limitando somente no tratamento dos distúrbios emocionais. De tudo, fica que a psicanálise pretende esclarecer o funcionamento da mente humana e tem como fundamento a crença de que os processos psíquicos, em sua maioria, fazem parte do inconsciente, isto é, a consciência nada mais é do que somente uma fração da nossa vida psíquica. 8 Porém, o modo de examinar a pessoa que nos pede por auxílio varia de acordo com as concepções teóricas elegidas. Inúmeras correntes tentam explicar a gênese dos distúrbios emocionais que afligem milhões de pessoas no mundo todo. De acordo com seus esquemas explicativos, as abordagens teóricas assinalam orientações terapêuticas que consideram mais aplicáveis e eficientes. Sabemos da possibilidade existente, graças aos vários e grandes estudiosos dos processos mentais, de examinarmos o nosso mundo interior com o intuito de buscar pistas que demonstrem as razões dos nossos comportamentos. Contudo, tal tarefa, é extremamente difícil, pois, escondemos, por alguma razão, de nós mesmos, tais pistas, seja de forma ricamente elaborada ou com baixo sucesso. Os instrumentos existentes para alcançarmos o alívio do sofrimento emocional existem para que utilizemos como almejemos ou como consideremos a melhor escolha. Freud foi somente um dos teóricos que escreveu sobre a maneira como utilizou os instrumentos, sobre aquilo que ele descobriu e o que concluiu com as suas descobertas. Embora suas conclusões ainda sejam discutidas, é certo que seus instrumentos abriram o caminho para diversos outros sistemas e que podem ser das mais duradouras contribuições para o estudo da personalidade. Objetivo do processo analítico Muitos pedidos são feitos aos terapeutas. Muitas vezes procurados por último, após anos de angústia e sofrimento, depois da ansiedade fazer parte da vida desses indivíduos tão intimamente que chegam a se confundirem com ela, nos perguntam e nos perguntamos até que ponto podemos ajudá-los? O psicanalista não está ali a fim de responder de forma incondicional ao pedido de ajuda que lhe é feito. O trabalho do analista vai depender do desejo em conjunto com o seu paciente, tanto na função do sujeito do suposto saber como na função de objeto, 9 isto é, no sustento do lugar do vazio para que seja possível deslocar a fala do paciente a esse lugar e, assim, se dê a possibilidade de tratamento. Isso ocorre, pois a função da terapia é estabelecer a conexão entre o evento mental reprimido e as manifestações neuróticas do paciente, de forma que este se perceba, compreendendo e, então, podendo neutralizar os efeitos da experiência original. Dito de outra forma, com base em um interrogatório dirigido, o paciente é induzido a trazer, à memória, uma ideia que havia estado guardada por muito tempo e à qual ele não teria acesso em outras condições. De tal forma, podemos perceber que a função da terapia é permitir a interação dos conteúdos dos sistemas presentes na mente do indivíduo. Mas quem nos busca por ajuda, quer alcançar muitas vezes uma plena felicidade e acredita que o analista tem o caminho que ele procura. Cabe ao analista saber que tal felicidade imaginária, por muitas vezes, entra em choque com a realidade, não cabendo ser alcançada. Estamos pré-destinados a nunca nos satisfazermos em um mundo calculado, ainda que a sociedade do espetáculo nos tente provar o contrário, imprimindo uma ideia de fornecimento de prazeres ilimitados, seja pelo consumo ouseja pelo espetáculo. Público alvo Este curso destina-se a todos aqueles interessados em adquirir conhecimento sobre a teoria da psicanálise, ou seja, tanto aos que querem aprender a dinâmica dos problemas emocionais e afetivos de acordo com tal pressuposto, quanto aos que desejam dedicar-se à psicanálise como terapeutas. Apesar disso, se faz necessário saber, como já levantado, que um programa de formação em psicanálise pede por um tripé estabelecido pelo próprio criador: conhecimentos teóricos, supervisão e análise pessoal. Vale dizer que tal trabalho, voltado para o público leigo, não pretende popularizar a psicanálise, até porque, como veremos, o inconsciente só poderia ser 10 desvendado através da própria análise. Nossa ideia é incentivar o desenvolvimento pessoal e a realização intelectual. Objetivos gerais • Promover os principais conceitos da psicanálise e dos fundamentos da técnica psicanalítica, possibilitando ao estudante a sua atuação na promoção da saúde psíquica, através de ações preventivas e intervenções psicanalíticas educativas; • Favorecer o conhecimento, a reflexão e o debate sobre questões referentes à teoria psicanalítica; • Capacitar a melhora da qualificação profissional, ao proporcionar os conhecimentos e habilidades para o crescimento profissional. Objetivos específicos • Identificar os principais fundamentos da psicanálise e de outras poucas escolas; • Permitir que o aluno compreenda o campo dos fenômenos e dos processos psíquicos (comportamento, consciência e inconsciente); • Revelar o funcionamento de complexos, traumas, desejos ocultos ou qualquer outro conteúdo mental que perturbe o adequado equilíbrio emocional do paciente. Definições importantes É cotidiana a confusão feita entre algumas qualificações do terreno “psi”. Por isso, é necessário clarificarmos alguns conceitos, para que possamos seguir adiante com a clara e necessária diferenciação dos principais termos. 11 Comecemos pela palavra psicologia. Ela é a ciência que estuda os aspectos mentais (sentimentos, pensamentos, razão etc) e comportamentais. Para realizar seu ofício, o psicólogo precisa escolher uma abordagem baseada em uma teoria específica como método de trabalho. Para a obtenção do título é preciso frequentar um curso superior de duração de cinco anos, onde o estudante passa por um processo complementar ao desenvolvimento teórico com estágios supervisionados. Além disso, um psicólogo pode aprender pelos livros e se aprimorar intelectualmente mesmo que nunca tenha praticado ou se submetido a um processo terapêutico também chamado de psicoterapia, ou seja, a ferramenta clínica do conhecimento da psicologia. Diferentemente, um psicanalista1, aquele profissional que possui uma formação em psicanálise, só tem sentido através do seu trabalho clínico. Sem bastar o estudo sobre sua área, é preciso se submeter à própria análise com outro analista, visando a explicação do seu funcionamento psíquico o que, geralmente, avança por alguns anos. Além disso, tal teoria pode ser utilizada por um psicólogo ou por alguém que tenha feito uma formação em psicanálise, sem necessariamente ter cursado a faculdade de psicologia nem qualquer outro curso universitário. Já a psiquiatria é uma especialização da medicina que, ao tentar delimitar os problemas do paciente a partir de uma perspectiva médica, ou seja, orgânica, tem a prerrogativa de prescrever drogas para o tratamento dos sintomas relacionados, habilidade esta não designada ao psicólogo. O estudante de medicina opta pela especialização em psiquiatria, que é composta de 2 ou 3 anos e abrange estudos em neurologia, psicofarmacologia e treinamento específico para diferentes modalidades de atendimento. 1 Quando ainda no século XIX Freud inventou a psicanálise, a carreira de psicologia ainda não existia. Assim, inicialmente quase todos os psicanalistas eram psiquiatras. 12 Unidade 1 – Conhecendo a Psicanálise Psicanálise é o nome dado ao campo clínico e teórico de investigação da psique humana que originou efeitos importantes na cultura ocidental. Independente da psicologia, ela se desenvolveu através dos estudos do médico neurologista austríaco Sigmund Schlomo Freud (1856-1939), que tinha como primordial objetivo compreender os sintomas neuróticos e/ou histéricos. Com os conhecimentos advindos da investigação feita por ele, pode-se superar a falha existente no tratamento médico de tais pacientes. A proposta de Freud, da cura pela palavra e sua teoria sobre o inconsciente, o tornaram popular ainda na primeira metade do século XX, e fez da psicanálise um método de investigação dos processos mentais impenetráveis por qualquer outro modo. 1.1 – Freud e a criação da psicanálise “A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz.” 13 Nascido em maio de 1856, em Freiberg, Moravia, hoje Pribor, atual República Tcheca, seu pai, um comerciante que trabalhava com lãs e com os negócios em baixa, se viu obrigado a mudar-se para Viena quando Freud tinha apenas quatro anos. Vinte anos mais velho do que sua mãe, era uma figura severa e autoritária, bem diferente dela, uma pessoa carinhosa, com quem Freud desenvolveu uma profunda ligação. Com mais sete irmãos, ele era o único a ter, em seu quarto, lamparina e óleo que, naquela época, eram verdadeiras regalias. Além disso, para que pudesse estudar melhor, era proibido que seus irmãos fizessem barulho pela casa. Pelo fato de ser judeu, todas as carreiras fora medicina e direito eram proibidas na época. Interessado pelos trabalhos de Charles Darwin e Johann Goethe optou por estudar medicina na Universidade de Viena. Ao ingressar na universidade, Freud sofreu grande preconceito por ser judeu. Tal fato deve ter servido para que ele se acostumasse a ser uma figura na oposição. O jovem estudante Freud desenvolveu trabalhos em neurologia e fisiologia, comandando pesquisas sobre as glândulas sexuais das enguias. Fora isso, entrou para o laboratório de Brücke para estudar o sistema nervoso dos peixes. Os estudos de medicina, com exceção da psiquiatria, nunca o atraiam. Isto fez com que ele levasse oito anos para se formar, em 1881. É desta época, mais precisamente em 1882, que datam os primórdios da psicanálise, quando Freud ainda era recém-formado. Apesar da sua vontade, como sua condição financeira não permitia que seguisse estudando no laboratório acadêmico, começou a atender pacientes, clinicando como neurologista e tratando essencialmente de mulheres burguesas que sofriam de distúrbios histéricos. Além do mais, ele tinha se apaixonado e percebeu que, casando-se, precisaria de um cargo mais bem remunerado. Freud percebeu que, na histeria, os pacientes apresentavam sintomas que são anatomicamente inviáveis. Por exemplo, na "anestesia de luva" a pessoa não tem nenhuma sensibilidade na mão, ainda que apresente sensações normais no punho e no 14 braço.Porém, visto que os nervos têm um percurso ininterrupto do ombro até a mão, não pode haver nenhuma causa física para este sintoma. Assim, tal doença carecia de uma explicação psicológica. Na clínica psiquiátrica, notou que os problemas dos pacientes estavam relacionados ao fato deles terem seus desejos reprimidos, subordinados ao inconsciente, sendo muitos deles de natureza sexual. Ao procurar aliviar o sofrimento psíquico das pacientes, Freud, durante um ano, ainda fez uso dos métodos terapêuticos da época: eletroterapia, massagens e hidroterapia. De 1884 a 1887, fez algumas das primeiras pesquisas com cocaína e, ao descobrir as propriedades analgésicas, não sendo naquela época proibida, ficou impressionado com suas propriedades e escreveu a respeito de seus possíveis usos para os distúrbios, tanto os físicos como os mentais: “Eu mesmo experimentei uma dúzia de vezes o efeito da coca, que impede a fome, o sono e o cansaço e robustece o esforço intelectual.” (1963) Por pouco tempo foi um defensor, mas depois tornou-se apreensivo em relação às suas propriedades viciantes e interrompeu sua pesquisa. Porém, tal estudo abriu portas para que esta substância fosse disseminada na Europa e nos Estados Unidos. Terminando sua residência, Freud conquistou uma bolsa de estudos no Salpetrière, em Paris, onde trabalhou com Charcot (1825-1893), figura de papel fundamental na formação do jovem Sigmund. Ele percebeu em Freud um estudante capaz e inteligente, e deu-lhe permissão para traduzir seus escritos para o alemão quando Freud voltou à Viena. 15 Nesta época, a histeria era a mais misteriosa de todas as doenças nervosas, e, não só os pacientes histéricos, como, também, os médicos que demonstravam interesse por tratá-la, eram desacreditados. Charcot contribuiu decisivamente para a mudança de tal quadro, recuperando não só a dignidade dos pacientes, como abrindo um espaço para que eles fossem ouvidos. Para ele, a histeria não poderia ser considerada como uma enfermidade imaginária. Era uma neurose que não estava restrita ao universo feminino, contradizendo a própria origem do nome (hystera= útero). Tanto um quanto o outro se mostraram interessados na autenticidade e na normalidade dos fenômenos histéricos e em sua aparição na população masculina. Apesar disso, Freud não havia concordado com a ideia de Charcot, que dizia que a causa fundamental de tal distúrbio era a hereditariedade. Ainda assim, ficou encantado quando percebeu que a hipnose era um caminho para a explicação. Desta forma, podemos dizer que a maneira como Charcot tratava seus pacientes histéricos foi o ponto decisivo para que Freud começasse a olhar em direção à criação de sua metapsicologia. Porém, seguindo em seus estudos, Freud passou a achar os ensinamentos de Charcot discutíveis. Ainda antes de voltar à Viena, Freud foi a Berlim estudar sobre as enfermidades infantis, onde publicou alguns trabalhos sobre paralisia cerebral das crianças. E, em 1886, já de volta, além de ter se casado com Martha Bernays, com quem teria seis filhos, estabeleceu sua clínica particular e passou por um período de grande resistência por parte das autoridades médicas em relação às suas inovações científicas. Assim, foi questão de tempo a sua retirada da vida acadêmica e da relação profissional com a sociedade de médicos. Algumas circunstâncias já o tinham feito abandonar o uso da eletroterapia e a utilizar como ferramenta de trabalho a hipnose, método que permitia ao paciente a entrada em um estado de sugestão (hipnótica), onde seria possível revelar a história da 16 gênese dos sintomas e sobre o qual era inviável o acesso em estado normal de consciência. Este fato foi descoberto ao perceber que a hipnose era uma condição que atenuava a vigilância da censura, possibilitando evocar fatos perdidos que estavam relacionados com o sintoma. Assim, em hipnose, uma situação era recordada e possível de realizar o ato psíquico, antes reprimido, permitindo, de tal forma, um livre curso do afeto correspondente e o consequente desaparecimento do sintoma. Estas reconstruções da situação traumática inicial eram seguidas de explosões emocionais, chamadas de catarse, e acompanhadas pelo desaparecimento sintomático. Nas palavras de Freud (1914): “Os sintomas de pacientes histéricos baseiam-se em cenas do seu passado que lhes causaram grande impressão, mas foram esquecidas (traumas); a terapêutica, nisto apoiada, consistia em fazê-los lembrar e reproduzir essas experiências num estado de hipnose (catarse).” (Ed. Bras, livro 6, p. 17) Aliou-se a Josef Breuer2 (1842-1925), com quem continuou suas investigações exploratórias da dinâmica da histeria. Juntos, Breuer e Freud, escreveram, em 1895, “Estudos sobre a histeria”. A ideia do livro não era a de se fixar na natureza de tal distúrbio, mas esclarecer a gênese de seus sintomas, acentuando, portanto, a contribuição da vida afetiva e a importância da distinção entre atos psíquicos inconscientes e conscientes. Porém, alvo de crítica, o livro, escrito a quatro mãos, serviu de corte no caminho dos dois. Se, para Breuer, o tratamento estava completo com a ajuda hipnótica, para Freud ainda faltava entender outras questões. Desta forma, Freud tornou conhecidos os inconvenientes deste procedimento: não era possível hipnotizar todos os doentes, visto que nem todos eram sugestionáveis e, por sua vez, nem todos os médicos conseguiam hipnotizar de forma tão profunda quanto necessário. 2 Sua paciente mais conhecida foi Bertha Pappenheim, sob o pseudônimo de Anna O., que será a primeira paciente histérica de Freud. Na época, responsável pelos cuidados de seu pai gravemente doente, Anna O. sofria de um variado quadro sintomático que incluía paralisia, contrações musculares, inibições e estados de perturbação psíquica. Em estado de vigília, a paciente era tão incapaz como os outros de entender a origem de seus sintomas ou as conexões com a sua vida. Porém, hipnotizada, achava-se o que faltava. Com seu pai, a paciente se viu forçada a reprimir um pensamento-impulso, cuja representação havia revelado o sintoma. Seu tratamento e sua hipnose permitiram revelar os pensamentos e afetos reprimidos como o desejo de que o seu pai morresse. 17 Para Breuer, a origem da histeria está ligada às lembranças traumáticas que foram reprimidas por algum mecanismo do plano inconsciente da vida mental, isto é, ao reprimir a carga do afeto da lembrança, originam-se os sintomas histéricos. Era preciso um método catártico para se conseguir o retorno do afeto (utilizado para manter o sintoma) e que por ter pego um ‘caminho falso’, não podia ser descarregado. Freud não estava satisfeito com tais ideias, pois não acreditava que os sintomas tivessem sido originados em qualquer cena desagradável. Para ele, tais cenas traumáticas estavam ligadas à sexualidade. Seguindo o seu caminho novamente sozinho, ampliou os limites da histeria, começando pela investigação da vida sexual dos neurastênicos. Em meio disso, Freud percebeu que o método da hipnose, no lugar de eliminar os sintomas causadores do sofrimento, por vezes, gerava novos sintomas no lugar daqueles suprimidos. Claro que esta descoberta, ainda que não tire o valor do método hipnótico, o impõe limites. E, por isso, a hipnose deixou de ser o método ideal para os propósitos deFreud, que mudou a sua abordagem, escolhendo trabalhar com os pacientes deitados, enquanto ele se colocava por trás, de maneira que poderia ver, mas não ser visto. Com esta postura, ele pretendia encorajar seus pacientes a falarem livremente, sem reservas, sem omissão e julgamento, independente da aparente relação com seus sintomas, isto é, sem preocupações de certo ou errado, reflexões ou conexões lógicas. A ideia era buscar a origem dos sintomas através daquilo que era verbalizado, vencendo, primeiramente, as resistências que impedem o acesso ao inconsciente. Visto que o 18 analista, por sua vez, tem a função de reunir e significar o material descoberto3, um terapeuta psicanalista tradicional tem uma postura mais passiva e calada, ansiando do seu paciente seus próprios insights. Esta técnica foi chamada por ele de “Associação Livre”, onde o material inconsciente viria à tona, com essas ajudas “espontâneas”, relatadas pelo próprio paciente através dos sonhos, dos atos falhos e dos esquecimentos. Como aquilo que foi esquecido tinha sido penoso, temível ou doloroso, para fazê-lo consciente era preciso dominar o que se revelava contra o sujeito, impondo-se ao profissional tal esforço, tanto maior quanto a gravidade do esquecido e a resistência do paciente. É neste momento que surge a teoria da repressão4, ponto central psicanalítico, onde o conflito leva à luta entre duas forças: instinto e resistência. Assim, os sintomas se fazem como o resultado de uma satisfação substituída, porém alterada e desviada dos seus propósitos, por conta da resistência do ego. Desta forma, os sintomas neuróticos não estariam ligados diretamente aos acontecimentos reais senão a fantasias optativas, onde a realidade psíquica é mais importante do que a realidade material. Foi em 1894, que Freud descobriu o conceito de transferência. No final do ano seguinte, nasce Anna Freud, sua filha mais nova e que se tornaria psicanalista, fundando sua própria corrente e tornando-se uma célebre psicanalista de crianças. E é por volta desta época que surge, pela primeira vez, o termo psicanálise, mais precisamente em 1986, para indicar um método particular da psicoterapia. Neste mesmo 3 Vale ressaltar, como símbolo de curiosidade, que como Freud anotava somente depois de algumas horas o discurso de seus pacientes, acredita-se que pode ter havido certas omissões. Outra crítica é que ele pode ter reinterpretado e ter sido guiado pelo desejo de encontrar material de apoio às palavras transcritas. 4 A repressão é um mecanismo primário de defesa análoga à tentativa de fuga e antecessor da futura solução normal por julgamento e condenação do impulso repulsivo. Como consequência, o ego precisa se proteger por meio de um permanente esforço contra a pressão do impulso reprimido, sofrendo assim um empobrecimento. Além disso, o reprimido, ao se transformar em inconsciente, pode alcançar uma descarga e satisfação substituída por caminhos indiretos, fazendo fracassar o propósito da repressão. 19 ano, no qual inclusive o seu pai morre, a correspondência entre Fliess5 e Freud exibe a expressão "aparelho psíquico" e os seus três componentes: consciente, pré-consciente e inconsciente. É através de tais correspondências que Freud inicia o que ele chamaria de sua autoanálise. Em paralelo, reconhece a sexualidade infantil e o complexo de Édipo. Poucos anos depois, publica “A Interpretação dos Sonhos", com data de 1900, ainda que tenha sido publicado no final de 1899. Datada, a pedido dele mesmo, de 1900, para “abrir o século”, foi considerada por muitos como seu mais importante trabalho, apesar de, na época, não ter recebido quase nenhuma atenção. Em 1902, é criada a primeira sociedade psicanalista do mundo, em Viena, com o nome de “Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras”. No ano seguinte, é a primeira vez que Freud analisa uma criança de cinco anos. E é neste mesmo ano que ele descobre a primeira teoria das pulsões: pulsão sexual e pulsão do Eu. Logo em seguida, Freud revelou os estágios da sexualidade infantil e conheceu Jung, com quem começou a se corresponder e com quem, em sete anos, já somava 359 cartas. Jung que já tinha uma percepção de inconsciente e do psiquismo quando se aproximou de Freud, criou, em 1907, a “Sociedade Freud”, em Zurique, que, mais tarde, se tornou a “Associação Psicanalítica de Zurique”. Além disso, Jung teve tal importância para Freud visto que, além de muito inteligente e esperto, não era judeu e Freud receava que o progresso da psicanálise fosse ameaçado pelo antissemitismo. Porém, alguns anos depois, a amizade ficou abalada após Jung tentar convencê-lo a dessexualizar sua doutrina. Freud, em 1911, descobriu o conceito de narcisismo ao estudar sobre a psicose paranóica. No próximo ano, Freud publica alguns livros como “A Dinâmica da Transferência” e “Totem e Tabu”, onde pesquisa sobre a interdição generalizada do incesto, enraizada em diferentes culturas e sociedades. 5 Wilhelm Fliess (1858-1928) foi um médico alemão importante na pré-história da psicanálise. Por sugestão de Breuer, Fliess se encontrou com Freud, em 1887, formando um forte laço de amizade. Mais do que um ouvinte crítico de Freud, fez algumas contribuições científicas como a da bissexualidade inerente a todos os seres humanos. Suspeitando que suas ideias estivessem sendo plagiadas por Freud, a amizade se desfez em 1902. Sua correspondência com Fliess encontra-se atualmente reunida sob o nome de “O Nascimento da Psicanálise”. 20 Já na década de 20, Freud nos conta sobre sua segunda teoria do aparelho psíquico: Isso (Id), Eu (Ego), Supereu (Superego) e sobre a segunda teoria das pulsões: pulsão de vida e pulsão de morte. No mesmo ano, em que está se dedicando à teoria estrutural ou à segunda tópica, Freud escreveu "O Ego e o Id" (1923) e descobriu um câncer no maxilar, o que o levaria a passar por 33 cirurgias, além de perder o maxilar superior, instalando, com isso, uma prótese com a finalidade de separar sua boca. Em 1930, Freud, já adoentado, através de Anna, sua filha e representante, recebe o prêmio Goethe (de literatura), a única premiação que foi entregue em vida. Alguns anos depois, entre 1933 e 1939, houve um importante avanço do antissemitismo na Alemanha. Além disso, em 1933, a terminologia freudiana é excluída do vocabulário da psiquiatria e da psicologia da Alemanha, e a psicanálise passa a ser considerada como uma ciência judaica. Assim, Freud tem seus livros queimados em praça pública pelos nazistas, em Berlim. Nesta mesma época, há uma profunda emigração de psicanalistas alemães para a Argentina, Inglaterra e Estados Unidos. Apesar disso, em 1938, em meio à ascensão do nazismo, a princesa Marie Bonaparte, graças a sua estima, consegue levar Freud, sua esposa e filhos, para Londres. Fugindo do nazismo, passa a morar na Inglaterra onde, no ano seguinte, aos 83 anos, morre em função do câncer desenvolvido há mais de dez anos. Para que consigamos compreender sua obra, é preciso olhá-la dentro da sua perspectiva histórica, cultural e científica. A cura das enfermidades físicas e mentais, por meio do diálogo, foi uma inovação desenvolvida21 por Freud a partir de suas observações. Até então, a área da psicoterapia só contava com o apoio da terapia, ou seja, com banhos, sangrias e outros métodos obsoletos. Dessa forma, sua contribuição, não só para a psicologia ou medicina, como para outras áreas do conhecimento (sociologia, literatura, antropologia, entre outras) é inquestionável. Suas ideias permitiram uma revolução de pensamento e o início da revisão de vários preconceitos. Freud explorou inúmeras áreas da psique que eram sabidamente encobertas, tanto pela moral como pela filosofia vitorianas. Por contestar tabus culturais, religiosos, sociais e científicos, descobriu novas abordagens para o tratamento da doença mental, com ideias que se tornaram parte da herança comum da cultura ocidental. “Sigmund Freud, pelo poder de sua obra, pela amplitude e audácia de suas especulações, revolucionou o pensamento, as vidas e a imaginação de uma Era... Seria difícil encontrar na história das idéias, mesmo na história da religião, alguém cuja influência fosse tão imediata, tão vasta e tão profunda.” (Wollheim, 1980, p. IX) Freud escreveu incansavelmente, suas obras completas somam 24 volumes e abrangem ensaios referentes aos aspectos delicados da prática clínica, além de uma série de conferências que esboçam toda a teoria sobre questões religiosas e culturais. 22 1.2 – Escolas psicanalíticas Durante o trajeto da psicanálise, muitos foram os estudiosos que se encontraram e se encantaram com as descobertas de Freud. Pelo caminho, muitos formaram alianças e muitos se separaram, dando destinos diferentes às suas ideias. De toda forma, não deve nos causar surpresa o fato de que estudiosos brilhantes discordem tanto. O estudo da consciência humana é controverso em sua natureza porque há menos evidências e mais deduções. Ainda que saibamos que, após o olhar de Freud, vários foram aqueles que contribuíram para a expansão e o desenvolvimento da psicanálise, seria impossível abarcar todas as figuras importantes no presente trabalho. Tal fato, não desmerece nenhum deles, só tem como objetivo permitir-nos um curso mais focado. Para um estudo mais aprofundado sobre as escolas psicanalíticas, sugerimos ver algumas ideias de livros expostos na referência bibliográfica, presente na apostila do módulo II. 23 1.3 – Jung e a psicologia analítica "Só aquilo que somos realmente tem o verdadeiro poder de curar-nos." Responsável por ter desenvolvido importantes conceitos da psicologia como personalidades introvertidas/extrovertidas e inconsciente coletivo/arquétipos, sua análise sobre a natureza humana envolveu investigações acerca das religiões ocidentais, alquimia, parapsicologia e mitologia. Assim, dentro de amplo conhecimento cultural e intelectual que possuía, Jung fundou a psicologia analítica, uma das linhas de estudo da psicanálise que entendia os distúrbios mentais como uma forma patológica de procurar pela autorrealização pessoal e espiritual. Um dos alunos mais conhecidos de Freud, Carl Gustav Jung, nasceu em uma aldeia suíça, em 1875. Tanto seu pai como vários parentes próximos eram pastores luteranos e, desta forma, já durante sua infância, percebe-se o quanto foi tocado profundamente por questões tanto religiosas quanto espirituais. Filho único, formou-se em medicina pela Universidade da Basiléia, em 1900, e apresentou, em 1902, sua tese de psiquiatria sobre “Os chamados fenômenos ocultos”. Começou a trabalhar com esquizofrênicos, no hospital psiquiátrico Burgholzi, em Zurique, tornando-se grande admirador de Freud. Estava tão entusiasmado com as novas perspectivas abertas pela psicanálise, que decidiu conhecê-lo pessoalmente, indo a Viena, em 1907. De acordo com Taboada (2004), de início, a identificação foi instantânea. Não só pela convergência de ideias, como a relação interior que ambos acreditavam existir entre os processos associativos alterados e os fenômenos psicopatológicos, como pela 24 concepção de que tal acontecimento se dava por um fator inconsciente, com forte carga afetiva que exercia influência sobre a vida psíquica e sobre o comportamento dos indivíduos. Dessa maneira, ambos percebiam que os fatos retidos no inconsciente podiam permanecer ativos por muito tempo e desencadear perturbações da vida mental. Porém, a identidade de pensamentos não foi capaz de esconder diferenças fundamentais, surgindo divergências de pensamentos. A união foi então rompida devido à discordância em pontos fundamentais. Jung não aceitava a insistência de Freud de que as causas da repressão dos conteúdos inconscientes eram sempre originadas devido a traumas sexuais não elaborados pela consciência. Com isso, conforme lembrado por Taboada (2004), ele não pretendia negar a importância das cargas emocionais ligadas à sexualidade nem o poder patogênico dos traumas. Somente acreditava que, para que o trauma exercesse a sua ação patogênica, era preciso que houvesse uma “predisposição interior específica”. Além disso, por sua vez, como era de se esperar, Freud não admitia o interesse de Jung pelos fenômenos mitológicos, espirituais e ocultos: “O positivismo científico materialista de Freud não perdoou o discípulo que buscou o fundamento criativo da religião.” (BYNGTON, 2004, p.7). O rompimento definitivo se deu em 1912, e cada um seguiu caminhos diferentes com ressentimento de ambos os lados. Depois de um tempo recolhido, Jung continuou a sua trajetória e desenvolveu o método de associação de palavras, que visava o estudo das associações do pensamento, com a finalidade de buscar o acesso aos fenômenos irracionais da psique. Visando analisar a conexão entre associação e alterações da atenção, Jung pôde perceber que certos eventos, tidos como falhas irrelevantes eram, na verdade, interferências emocionais sobre o padrão de resposta. “As investigações sobre o conteúdo e o aspecto afetivo subjacente levavam a conteúdos inconscientes com forte carga emocional.” (TABOADA, 2004, p. 19) Algumas palavras indutoras provocavam reações perturbadoras capazes de demonstrar a relação com conteúdos emocionais ocultos. Esses conteúdos, descobertos 25 por Jung durante tais experimentos, foram denominados de complexos, definidos como um agrupamento de conteúdo psíquico, carregado de afetividade, que estabelece associações com outros elementos. De tal forma, os complexos são capazes de interferir na vida consciente, nos envolvendo em situações contraditórias, perturbando a memória e arquitetando sonhos, por exemplo. Assim, podemos perceber que o bem-estar depende dos complexos que possuem maior ou menor autonomia, dependendo da conexão com a totalidade da organização psíquica. Apesar do mal-estar que podem causar, não são considerados elementos patológicos, mas sinal de conteúdos conflitivos que não foram assimilados. Para que isso ocorra, por sua vez, é preciso compreender os conflitos em termos intelectuais e exteriorizar os afetos envolvidos. Em 1917, Jung publicou o livro "A Psicologia do Inconsciente" com seus estudos sobre o inconsciente coletivo, também conhecido como impessoal ou transpessoal. Detentor de recordações, sentimentos e pensamentos capazes de condicionaros sujeitos, o inconsciente coletivo contém arquétipos, isto é, tendências herdadas e armazenadas que levam o indivíduo a se comportar de modo semelhante aos seus ancestrais. Desta forma, seja em momentos individuais ou durante manifestações de elementos culturais, como é o caso das religiões e dos mitos, o material psíquico universal, e não estabelecido em nossa experiência pessoal, encontra-se no inconsciente coletivo. Assim, repleto de material representativo, possui uma forte carga afetiva comum a toda humanidade como, por exemplo, essa sensação universal da existência de Deus. De acordo com Alves (2005), Jung concluiu que o inconsciente era mais do que um depósito de desejos reprimidos expressos em sonhos, como entendia Freud. Ainda que não negasse a existência do inconsciente individual, ele acreditava em um inconsciente mais profundo e não pessoal, comum a todos os homens e culturas, expresso através de símbolos que vêm à tona em sonhos, mitos e expressões artísticas. Todos os indivíduos compartilham os mesmos símbolos, ainda que, em cada cultura, eles tenham roupagem própria. 26 Seguindo em sua teoria, o processo de individuação é tido, por ele, como a nossa grande tarefa existencial. Tal processo costuma ser deflagrado espontaneamente no indivíduo já adulto, o que o fez ter tanto interesse no estudo desta fase da vida. Para Jung, o que nos acontece na primeira metade da vida é uma espécie de preparação para o nosso processo de individuação, a descoberta de nossa identidade profunda, que ocorre somente através da realização de nossos potenciais. De acordo com Ramos e Machado (2004), o processo de individuação, que percorre toda a evolução humana, tanto individual como coletiva, refere-se ao processo de se tornar uno, indivisível, isto é, um ser único através do autoconhecimento. Ainda que tal processo de desenvolvimento da personalidade seja algo idealizado, é, ao mesmo tempo, aquilo que motiva o ser humano, desde o seu nascimento à velhice, o guiando em suas escolhas afetivas e profissionais. Paradoxal como pode parecer, este processo resulta da interação do indivíduo com o coletivo. Visto que, individuar-se não é individualizar-se, é impossível a ocorrência deste processo fora da interação com o outro. “De certo modo, o processo de individuar-se depende dessa fina sintonia com o que podemos chamar de nossa essência e que, embora dependa da genética, da educação e do ambiente familiar e cultural, certamente a todos transcende.” (RAMOS e MACHADO, 2004, p.42) 27 Já, para Vargas (2004), o termo individuar é entendido como “tornar-se si mesmo”, atingindo os potenciais próprios de cada um. Para o autor, a individuação é um processo espontâneo de amadurecimento, por meio do qual o indivíduo se torna o que está “destinado a ser”, desde o início. Precisamos lembrar que é através do processo de individuação que entramos em contato com os arquétipos. E, de acordo com Vargas (2004), Jung discriminou em quatro fases este processo: a conscientização da persona, o confronto com a sombra, o encontro com a anima (para o homem) ou com o animus (para a mulher) e, finalmente, o encontro com o Self (ou si mesmo). Antes de entrarmos na explicação de tais termos levantados agora, precisamos esclarecer que, ao investigar as criações artísticas das antigas civilizações, Jung percebeu alguns símbolos de arquétipos comuns, mesmo entre culturas distantes no tempo e no espaço. Diferentemente dos arquétipos que não têm um conteúdo definido, os símbolos podem ser individuais ou coletivos, ter um significado óbvio com uma conotação específica e só podem ser considerados como tal, quando evoca algo mais do que o seu simples significado. “O símbolo representa a conexão com a energia arquetípica necessária para a consecução de feitos que alteram o estado das coisas e podem trazer novas soluções para conflitos aparentemente insolúveis.” (RAMOS e MACHADO, 2004, p. 46) Para Jung, o símbolo aponta um vínculo entre aspectos conscientes e inconscientes de um mesmo elemento, contendo uma esfera irracional e um enorme poder de mobilização. Desta forma, a palavra símbolo passou a ser 28 utilizada com a finalidade de assinalar a união de opostos, do conhecido e do desconhecido. Além disso, como o que desconhecemos carrega o seu valor afetivo, o símbolo sempre é capaz de despertar emoção. Ramos e Machado (2004) salientam a importância de entendermos que Jung usou o conceito de símbolo baseado em sua etiologia: sym (juntar) e balein (em direção a). De tal forma, symbalein significava, na Grécia Antiga, o ato de unir duas metades de uma mesma moeda que fora partida na separação de duas pessoas. “Quando uma delas desejava enviar uma mensagem importante à outra, o mensageiro trazia consigo uma das metades da moeda. Desse modo, o destinatário da mensagem poderia verificar sua autenticidade ao constatar a perfeita união das duas metades (uma conhecida, outra incógnita).” (RAMOS e MACHADO, 2004, p. 45) Agora, voltando só um pouco ao que vimos acima sobre os complexos, precisamos completar que eles fazem parte do nosso inconsciente pessoal6, isto é, da “sombra”, e são, de acordo com Ramos e Machado (2004), responsáveis, em grande parte, pelos nossos comportamentos mais aberrantes e desadaptativos à realidade. Temos acesso à sombra através da jornada do autoconhecimento. Aquilo que escondemos é necessário ser revelado para que seja possível transcender a tais conteúdos. Sem limparmos esse conteúdo é impossível que sejamos livres, pois não pertencer à esfera da consciência não quer dizer que a sombra não influencie as atitudes humanas. Em outras palavras, sem a conscientização da natureza da sombra, não existe processo de individuação. 6 Vale lembrar, como já ressaltado por Ramos e Machado (2004), o conceito junguiano de inconsciente como fonte de criatividade e potencialidade e não somente como depositário de conteúdos reprimidos, imagens ou vivências dolorosas bloqueadas pelo mecanismo do ego. É de lá que surgem os impulsos que tomam forma na matéria, de acordo com o espaço e o tempo de uma pessoa. 29 Porém, a necessidade de nos adaptarmos à vida em sociedade, como as exigências culturais, nos leva a desenvolver o que Jung nomeou de persona, uma máscara coletivamente reconhecível e aceitável. Nas palavras de Ramos e Machado (2004): “Quando extremamente rígida, a persona pode cindir com os aspectos mais profundos do ser e passa a expressar apenas um aspecto desejado externamente, sem refletir o caráter mais ontológico do “si mesmo”. Quando integrada, a persona é criativa e possibilita a expressão de diferentes facetas do indivíduo.”(p. 47) Outro conceito importante na psicologia analítica, diz respeito a um aspecto do inconsciente observado indiretamente: a anima e o animus, contrapartes sexuais do homem e da mulher que funcionam como elo entre o mundo interno e o ego. Da mesma forma como existem aspectos biológicos masculinos na mulher, igualmente, existem aspectos psicológicos masculinos correspondentes ao arquétipo do animus. Assim, um e outro possuem qualidades humanas que faltam na disposição consciente. “As projeções românticastêm a função de estabelecer um confronto com o inconsciente, e sua retirada permite uma expansão do autoconhecimento. Mediante a relação com o sexo oposto podemos conhecer a realidade de nosso potencial, pois tornar-se consciente não é um projeto isolado. Embora requeira certa dose de introspecção, essa jornada implica convívio com o outro para se realizar.” (RAMOS e MACHADO, 2004, P. 47) Foi em 1921, em seu livro "Tipos Psicológicos", uma de suas obras mais conhecidas, que Jung propôs que cada indivíduo possuía uma maneira singular de apreender o mundo. Para caracterizar esta tipologia, dinâmica e desenvolvida, ao longo da vida, Jung descreveu duas atitudes (extroversão e introversão) e quatro funções da consciência (pensamento, sentimento, sensação e intuição). 30 De acordo com Fadiman e Frager (1986), a energia dos introvertidos segue de forma mais natural em direção a seu mundo interno, enquanto que a energia do extrovertido é mais focada no mundo externo. Os interesses primários dos introvertidos se concentram em seus próprios pensamentos e sentimentos, ou seja, em seu mundo interior. Por sua vez, os extrovertidos envolvem-se com o mundo externo das pessoas e das coisas e têm uma tendência mais social, necessitando de proteção para não serem dominados pelo mundo de fora e se alienarem de seus próprios processos internos. Vale ressaltar que essas atitudes, ainda que não sejam totalmente cristalizadas, se excluem mutuamente, visto que seria impossível manter as duas ao mesmo tempo. O ideal é que o ser humano tenha uma cota de flexibilidade, podendo adotar ambas, quando apropriado for e, assim, sem responder de uma maneira fixa ao mundo, operando em termos de um equilíbrio. As quatro funções da consciência levantadas acima estariam, para Jung, dispostas em dois pares de opostos, um racional (pensamento e sentimento) e o outro irracional (sensação e intuição). Cada função pode ser combinada e experimentada de uma forma introvertida ou extrovertida. “Para que possamos nos orientar, precisamos de uma função que nos afirme que algo está aqui (sensação), outra função que nos demonstre o que é (pensamento), uma terceira que declare se isto é ou não apropriado (sentimento) e uma quarta que indique de onde isso veio e para onde vai (intuição).” (JUNG, 1942, p. 167) Para Jung, o pensamento é a alternativa de elaborar os julgamentos e de tomar as decisões. As pessoas que funcionam com o predomínio de tal função psíquica são chamadas de reflexivas, por serem grandes planejadores que se agarram aos planos e às teorias, ainda que sejam confrontados com evidências. Por sua vez, o sentimento age como uma função orientada para o aspecto emocional da experiência, baseada em emoções intensas ainda que negativas. Aqui, a tomada de decisões está atrelada aos 31 julgamentos de valores próprios como certo e errado. De maneira simplificada, podemos dizer que, enquanto o pensamento nos diz o que é esse algo, o sentimento nos diz se esse algo é agradável ou não. Já a sensação, classificada junto com a intuição, é uma forma de apreender informações, ou seja, é a percepção dos detalhes e de fatos concretos. Os tipos sensitivos tendem a responder à situação vivencial imediata, lidando de forma eficiente com todos os tipos de emergência. Jung via a intuição como uma forma de processar a informação em termos passados, objetivos futuros e processos inconscientes. Assim, as consequências são mais importantes do que a experiência. Seus tipos nos falam de pessoas que processam as informações rapidamente, relacionando automaticamente a experiência passada com informações da experiência imediata. Uma maneira de simplificar o conceito apresentado é dizendo que a sensação nos expõe que algo existe e a intuição nos diz de onde esse algo vem e pra onde vai. “Ninguém desenvolve igualmente todas as quatro funções. Cada um tem uma função dominante e uma auxiliar parcialmente desenvolvida. As outras duas funções são, em geral, inconscientes e a eficácia de sua ação é bem menor. Quanto mais desenvolvidas e conscientes estiverem as funções dominantes e a auxiliar, mais profundamente serão os seus opostos.” (FADIMAN e FRAGNER, 1986, p. 48) De acordo com Vargas (2004), ainda que o tipo psicológico, essencialmente herdado, conserve-se o mesmo ao longo da vida, com o amadurecimento incide uma tendência à maior integração à consciência das funções menos desenvolvidas. Com isso, ocorre uma maior harmonização da personalidade quanto ao uso das quatro funções e das duas atitudes. Em 1928, Jung se interessou pelos trabalhos de Reich e, juntos, passaram a estudar alquimia, comungando a ideia da natureza humana original e criativa, que se 32 esconde atrás de um homem massificado, que há muito perdeu a conexão com a totalidade da vida e com suas raízes mais profundas. No mesmo ano que lançou o livro “Psicologia e Alquimia”, Jung sofreu um infarto, resolvendo renunciar às atividades docentes. Nesta obra, Jung fala do simbolismo da alquimia como intimamente relacionado com o processo analítico. No estudo deste livro, utilizou uma amostra de sonhos de um paciente, mostrando como os símbolos utilizados pelos alquimistas ocorrem na psique, como parte do depósito de imagens mitológicas utilizadas pelo indivíduo em seu estado de sono. De acordo com Jung, a terapia é um esforço em conjunto do analista e do analisado, que trabalham junto como iguais, em um relacionamento onde o analisado deve ser visto por inteiro, sem procurar consertar partes isoladas de sua psique, alcançando, finalmente, o seu estado de individuação. Apesar de tantos conceitos apresentados aqui, foi o esforço de Jung evitar a ênfase em uma teoria ou em técnicas específicas no processo terapêutico. Seu medo era o de transformar o comportamento do analista em algo mecânico e, assim, prejudicar o contato com o analisado. Jung não queria a existência de junguianos, objetivando, com tal afirmação, que quem concordasse com a sua psicologia, experimentasse um caminho próprio. De acordo com Vargas (2004): “Para que cada junguiano, dentro de sua individuação, possa se exercer como analista, ele necessita de uma formação ampla e profunda, que implica a aquisição de conhecimentos teóricos, técnicos e vivenciais. A clínica junguiana, vasta e muito rica, com inúmeras aplicações, pode utilizar-se de diferentes técnicas, conforme o analista e o cliente.” (p. 74) Jung morreu aos 86 anos, em 1961, após ter levado uma vida que marcou a antropologia, a sociologia e a psicologia, além de campos como a arte, a mitologia e a literatura. 33 1.4 – Wilhelm Reich e a psicologia do corpo “Do irreal resulta a impotência; o que não somos capazes de conceber não podemos dominar.” Reich foi o fundador do que poderíamos chamar de psicoterapia orientada para o corpo, visto que seu trabalho objetivava a libertação de emoções através deste. Enfatizou a necessidade de lidar com os aspectos físicos do caráter, em especial os modelos de tensão muscular crônica, tendo como principais contribuições os conceitos de caráter e couraça, que se desenvolveriam a partir do conceito freudiano da necessidade do Ego em se defender contra forças instintivas.Wilhelm Reich7 nasceu, em 1897, na Galícia, mais precisamente em Dobrzynica, uma parte da Áustria germano-ucraniana. Filho de fazendeiro judeu de classe média, seu pai era uma figura autoritária de forte temperamento e sua mãe, uma mulher bem atraente que se suicidou quando ele tinha 14 anos, aparentemente depois de Reich ter revelado ao seu pai que ela tinha um caso com o seu tutor. Seu pai morreu de tuberculose três anos mais tarde e seu único irmão quando Reich tinha 26 anos. 7 Como título de curiosidade, vale ressaltar que tanto a religião quanto as observâncias judaicas não tiveram nenhum papel significativo na educação de Reich. 34 Foi pouco depois da 1ª Guerra Mundial que Reich alistou-se no exército austríaco, onde chegou ao posto de tenente e entrou em serviço ativo na Itália. Ao final da guerra, foi para Viena, como um veterano de apenas 21 anos. Em 1918, Reich ingressou na escola médica, na Universidade de Viena, decidindo, quase que instantaneamente, dedicar-se à psiquiatria. Profundamente interessado na sexualidade humana, em 1919, procurou Freud com a finalidade de organizar um seminário sobre sexologia na escola que frequentava. Apenas um ano depois, aos 23 anos de idade, Reich começou a participar das reuniões da “Sociedade Psicanalítica de Viena” como membro efetivo. Assim, a clínica psicanalítica fundada por Freud, em Viena, o teve como primeiro assistente clínico. Destinada a pacientes que não podiam pagar pelo tratamento, a demanda era enorme. Tal fato, na percepção de Reich, demonstrava que a neurose era uma doença de massa, que precisava ser tratada além dos limites da psicanálise. De acordo com Kignel (2004), em 1921, Reich iniciou a sua prática psicanalítica, antes mesmo de ter sido analisado, passando a atender os pacientes encaminhados por Freud, em um profundo exemplo de admiração pelo seu trabalho. “Em 1927, Reich procurou fazer análise com Freud, que se recusou a fazer uma exceção à sua política de não tratar membros do círculo psicanalítico profundo. Nesta época, desenvolveu-se um sério conflito entre ambos que começou, em parte, pela recusa de Freud em analisá-lo e, por outro lado, com o aumento das divergências teóricas que resultaram do envolvimento marxista de Reich e sua insistência de que toda neurose era baseada numa falta de satisfação sexual.” (FADIMAN e FRAGNER, 1986, p. 89) 35 Somado a isso, segundo Cavalcanti e Cavalcanti (2006), enquanto Freud considerava a neurose decorrência de uma perturbação sexual – e sexo precisa ser percebido em um sentido amplo, como o foi para ele –, Reich assegurava que a neurose era uma perturbação sexual em sentido restrito, isto é, uma falha na capacidade de atingir o orgasmo. Por tal motivo, a neurose não só bloqueia a capacidade de entrega como retém a energia em couraças musculares8, impedindo a descarga sexual. Desta forma, para Reich, a gratificação sexual plena, além da função profilática, por evitar o desencadeamento do processo neurótico, também desempenha uma função terapêutica contra a própria neurose. Isso porque, para ele, quando se atinge a satisfação orgástica é descarregada toda a energia do organismo, não restando nada para determinar e/ou manter o sintoma neurótico. Assim, segundo Cavalcanti e Cavalcanti (2006), quando esse alívio é bloqueado ou insuficiente, segundo Reich, o sistema nervoso autônomo se sobrecarrega de energia e a excitação sexual crescente, não liberada, se exterioriza sob a forma de angústia. Em outras palavras, a ausência do orgasmo, portanto, seria o mecanismo central determinante da angustia e, por conseguinte, da neurose. Outra grande divergência com os conceitos da psicanálise freudiana foi a ideia de Reich, de que a libido é uma força, sobretudo orgânica e mensurável, e não uma energia psíquica. Sua proposta tem, no orgasmo, a visão de que ele é capaz de descarregar o excesso de energia do organismo. Por tal razão, resumidamente, sua meta terapêutica visava a libertação dos bloqueios corporais e a obtenção plena da capacidade orgásmica. Vale ressaltar que a psicoterapia realizada antes de Reich, basicamente, ignorava os processos corporais. Foi ele quem passou a pensar no corpo como fonte e resolução dos conflitos. Segundo Cavalcanti e Cavalcanti (2006), é inegável que a psicossomática já correlacionava as doenças físicas com os conflitos psíquicos, mas em termos de 8 Tal conceito será explicado em breve. Por enquanto, nos basta a ideia levantada por Cavalcanti e Cavalcanti (2006), que afirmam a couraça muscular como sendo um padrão geral de tensão muscular crônica do corpo que funciona como um escudo, retendo energia que não pode ser descarregada. 36 terapia psicanalítica, as sensações orgânicas eram apenas trabalhadas verbal e mentalmente. “A psicanálise, de modo geral, ainda não tinha se alertado para o fato de que o organismo vivo se expressa mais claramente pelos movimentos corporais do que por palavras. O corpo fala por meio da linguagem viva da postura, da expressão fisionômica, dos gestos; uma língua que antecede, precede e transcende a expressão oral. Quando se admite que o físico e o psíquico são apenas níveis de uma mesma realidade, torna-se evidente a possibilidade de operar modificações psíquicas por intermédio da estrutura orgânica.” (CAVALCANTI e CAVALCANTI, 2006, p. 20) Foi Reich que nos trouxe este olhar para a relação da mente e do corpo. E, de tal forma, interessado no papel da sociedade na criação de inibições, fundou uma psicologia orientada para o corpo. “Assim, por volta de 1950, Reich ocupou-se com experimentos envolvendo acumuladores de energia orgônica: caixas e outras invenções que, segundo ele, armazenam e concentram energia orgônica. Reich descobriu que várias doenças que resultavam de distúrbios do “aparelho automático“, podiam ser tratadas com graus variados de sucesso, pelo restabelecimento de um fluxo normal de energia orgônica do indivíduo. Isto poderia ser conseguido pela exposição a altas concentrações de energia orgônica nos acumuladores. Estas doenças incluíam câncer, angina de peito, asma, hipertensão e epilepsia.” (FADIMAN e FRAGNER, 1986, p. 90) 37 Ele percebeu que era possível isolar a energia da vida, guardando-a em acumuladores conhecidos como caixa de orgone. Ao posicionar os doentes dentro de tais caixas, ele acreditava estar tratando de doenças sérias. Tudo isso porque, para ele, tal Energia Orgônica, termo derivado a partir do organismo e orgasmo, flui naturalmente por todo o corpo, de cima a baixo, paralela à espinha. Livre de massa, essa energia vital e necessária ao funcionamento humano, não possui inércia ou peso, encontra-se presente em qualquer parte, embora em diferentes concentrações. Além disso, por estar em constante movimento, pode ser observada em condições apropriadas, e por governar o organismo total, além de se expressar nas emoções e nos movimentos biofísicos dos órgãos, torna-se o centro da atividade criativa. Em outro estudo, Reich nomeou o caráter como aquilo que é composto pelas atitudes habituais de uma pessoa e de seu padrão consistente de respostas para diversas situações.O conceito inclui, não só modos e valores conscientes, como, também, o estilo de comportamento e as atitudes físicas. De acordo com Fadiman e Fragner (1986), o caráter se forma como uma defesa contra a ansiedade, criada pelos intensos sentimentos sexuais da criança e o consequente medo da punição. A primeira defesa contra este medo é o mecanismo de defesa do ego conhecido por repressão, o qual refreia os impulsos sexuais por algum tempo. À medida que as defesas do ego se tornam cronicamente ativas e automáticas, elas evoluem para traços ou couraça caracterológica, como resultado de todas as forças defensivas repressoras, instituídas de forma mais ou menos lógica dentro do próprio ego. Além disso, para ele, cada atitude de caráter tem uma atitude física correspondente, ou seja, o caráter do indivíduo é anunciado no corpo, em termos de rigidez muscular ou couraça muscular. Como não somente de recalque vive o 38 inconsciente, mas de representações contidas no organismo como um todo, ele tenta ativar o inconsciente através da observação, ação e interpretação das expressões não verbais. Para isso, Reich analisava seus pacientes pela avaliação da natureza e da função de seu caráter, ao invés de decompor seus sintomas. Assim, como o psiquismo e suas fixações podem ser acessados de diferentes maneiras – além das livres associações verbais – é missão do terapeuta reichano não só avaliar o que acompanha a história verbal do seu paciente, mas também ler a dinâmica da expressão corporal. Visto que o indivíduo que se encontra encouraçado é incapaz de expressar as emoções biológicas primitivas, o maior obstáculo presente ao crescimento são as couraças, que tem o papel de reduzir o livre fluxo de energia e a livre expressão de emoções, transformando-se em uma importante amarra, tanto física quanto emocional. Pensando sobre isso, com a finalidade de liberar emoções e fantasias contidas, Reich começou a trabalhar de forma direta no relaxamento da couraça muscular, pois, para ele, a liberação das emoções, através do trabalho com o corpo, produz uma vivência muito mais intensa do que aquela que desperta o material infantil como forma de trabalho. Para tanto, conforme levantado por Cavalcanti e Cavalcanti (2006), Reich utilizava a respiração profunda como procedimento terapêutico a fim de neutralizar tais couraças, com a colaboração ativa do paciente que, por sua vez, precisa enfrentar abertamente suas resistências ou restrições que surgem pelo caminho. Além disso, outra técnica utilizada dizia respeito à intensificação da tensão, que fazia os pacientes mais conscientes dela, aumentando a possibilidade de aliviar o que estava preso em determinada parte do corpo. Fadiman e Fragner (1986) acrescentaram que, para que seus pacientes se conscientizassem de seus traços neuróticos de caráter, Reich imitava com frequência suas características, gestos ou posturas, fazendo com que repetissem ou exagerassem uma faceta habitual do comportamento. 39 “Reich começou primeiramente com a aplicação de técnicas de analise de caráter a atitudes físicas. Ele analisava, em detalhes, a postura de seus pacientes e seus hábitos físicos, a fim de conscientizá-los de como reprimiam sentimentos vitais em diferentes partes do corpo. Reich fazia os pacientes intensificarem uma tensão particular a fim de se tornarem mais conscientes dela e de eliciar a emoção que havia sido presa naquela parte do corpo. Ele descobriu que só depois que a emoção “engarrafada” fosse expressa, é que a tensão crônica poderia ser abandonada por completo.” (FADIMAN e FRAGNER, 1986, p.93) Além de analisar de forma detalhada a postura dos seus pacientes e seus hábitos físicos para que pudessem ser conscientizados da forma como reprimiam os sentimentos vitais em diferentes partes do corpo, Reich descobriu que as tensões musculares crônicas servem para bloquear uma das três excitações biológicas: a excitação sexual, a ansiedade ou a raiva. Como vimos, o desenvolvimento de um traço neurótico de caráter marcaria a solução de uma questão que foi reprimida ou transformaria a repressão em uma formação relativamente rígida e aceitável pelo ego. Faz-se importante salientar que traços de caráter são conceitos, para Reich, diferentes dos sintomas neuróticos. Enquanto esses últimos são experimentados como estranhos ao indivíduo (tais como fobias ou medos), os traços de caráter são vividos como parte integrante da personalidade. Assim, as defesas de caráter, além de particularmente efetivas, são difíceis de serem erradicadas, por estarem bem racionalizadas pelo indivíduo e, portanto, experimentadas como parte do seu autoconceito. Voltando ao conceito da couraça muscular, precisamos salientar a sua organização em sete básicos segmentos de armadura, compostos por músculos e órgãos com funções expressivas relacionadas. Formando uma série de anéis mais ou menos 40 horizontais e em ângulo reto com a espinha e o torso, os principais segmentos da couraça destacados por Fadiman e Fragner (1986), segundo Reich são: • Olhos: Expressada pela imobilidade da testa e por uma expressão vazia dos olhos, tal couraça é dissolvida, abrindo fortemente os olhos, imitando uma expressão de espanto para que mobilize as pálpebras e a testa e, de tal forma, encorajar a expressão emocional. Os olhos também devem movimentar livremente, tanto em círculos como olhando de lado a lado. • Boca: Inclui os músculos da garganta, parte de trás da cabeça e o queixo. O maxilar pode ser demasiadamente preso ou frouxo de uma forma que não é natural. A ideia de soltar tal couraça passa por encorajar o paciente a imitar o choro, reproduzir sons que mobilizem os lábios e o morder. • Pescoço: Inclui os músculos profundos do pescoço e a língua. Como essa couraça é a responsável por segurar a raiva ou o choro, para soltar tal seguimento seria preciso berrar, por exemplo. • Tórax: Este segmento contém os músculos longos do tórax, os músculos dos ombros e da omoplata, toda a caixa torácica, as mãos e os braços. Sua função é inibir o riso, a raiva, o desejo e a tristeza. Como consequência, a respiração também se torna bloqueada. Assim, além de trabalhar com a respiração, deve-se trabalhar a utilização dos braços e das mãos para bater ou rasgar. • Diafragma: Este segmento abarca o diafragma, o estômago, o plexo solar, os vários órgãos internos e os músculos ao longo das vértebras torácicas baixas. Sua função é inibir a raiva. • Abdômen: Inclui os músculos abdominais longos e os músculos das costas, relacionada com a inibição do rancor, capaz de produzir instabilidade. 41 • Pelve: Abarca todos os músculos da pelve e membros inferiores. Tal couraça serve para impedir a raiva e o prazer, sendo impossível de experimentá-lo antes de liberar a raiva contida dos músculos pélvicos. Para Reich, o crescimento psicológico é um processo de dissolução da nossa couraça psicológica e física, o que nos torna seres humanos mais livres e capazes de orgasmos plenos e satisfatórios. Porém, citando Fadiman e Fragner (1986): “aprender a equilibrar o autocontrole e a livre expressão permanece como parte de um contínuo processo de crescimento.” (p. 104) Da mesma forma, dentro da visão de tal
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