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Instituições completas e austeras

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Instituições completas e austeras. Aqui Foucault resume a tese principal de seu livro ao mostrar que antes da prisão ser inaugurada como peça das punições, ela já havia sido gestada na sociedade a partir do momento em que os mecanismos de poder repartiam, fixavam, classificavam, extraíam forças, treinavam corpos, codificavam comportamentos, mantinham sob visibilidade plena, constituíam sobre eles um saber que se acumulava e se centralizava sobre os indivíduos (p. 195). Por isso a prisão surge como algo inevitável, por mais que existissem outros projetos de punição de reformadores, por mais que ela recebesse críticas sobre sua ineficácia e seu perigo – desde seu nascimento. Esta instituição penal surge para ser a coação de uma educação total, para possuir uma disciplina onipresente a fim de transformar o indivíduo pervertido. Suas técnicas de poder passam principalmente pelo “isolamento” (sobretudo nos modelos americanos que eram baseados nos monastérios), logo, a “solidão”, a tentativa de “autorregulação pela reflexão” e o “trabalho” (sendo que este último gerou controvérsias entre os operários da época; contudo, é preciso ressaltar que o mesmo não visava lucro e sim o efeito sobre os corpos e as almas dos presos). Neste sentido, a pena é feita para ser regulada por ela mesma durante o processo de transformação, não havendo uma relação necessariamente direta entre crime e castigo. O processo de ascensão e consolidação do sistema prisional produz uma diferenciação, essencial, entre infrator e delinquente. Ao contrário do primeiro, este último está ligado ao seu crime por um feixe de relações prévias, instintos, histórico, comportamento, classe e etc. Embora o correlativo da justiça penal seja o infrator, o do aparelho penitenciário é o delinquente – unidade biográfica, núcleo de periculosidade, representante de um tipo de anomalia (p. 213); pode-se dizer que ele, o delinquente, é uma invenção do sistema penal. Aquele não existe antes deste.
Ilegalidade e delinquência. Ainda na primeira metade do século 19, na França, a cadeia se misturava com a prática do suplício. A cadeia era, na verdade, um carro que seguia por diversas cidades levando o condenado atrelado a instrumentos de tortura. A multidão participava desta “festa do suplicio”, gritando e xingando, podia ser contra o criminoso ou contra o excesso da punição. Ao mesmo tempo em que era repudiado, o criminoso participava também da festa, ganhava ares de notoriedade, uma vez que os jornais contavam seu nome e sua história antes dele chegar à cidade. Essa festa reservava prazeres que nem a liberdade concedia, por exemplo, cânticos coletivos de uma estranha inversão do código moral (exaltação do criminoso, rebaixamento dos poderes constituídos). Devido a tal fato, o carro-cadeia foi substituído pela carroça celular, que imitava um panóptico ambulante. Pouco tempo, este deu lugar à prisão mais ou menos no formato em que a conhecemos hoje. Foucault ressalta que a prisão já apareceu cercada por críticas e desconfianças: ela não diminuía a taxa de criminalidade, mas aumentava; provocava reincidência (inicialmente 38% e aumentando); fabricava delinquentes, sobretudo por não tratá-los como seres humanos e abusar do poder, assim, tornando-os coléricos; havia corrupção, medo e incapacidade dos guardas, especialmente para manterem sua segurança; exploração do trabalho penal, como venda de prisioneiros como escravos; organização do crime, solidariedade e hierarquia entre os criminosos; as condições de identificação e vigilância dos ex-detentos os levavam a praticar novos crimes. Até hoje as críticas são as mesmas: a prisão ao tentar corrigir não pune; a prisão gasta muito para fazer um trabalho ineficaz. E a resposta é a mesma também: deve-se fazer exatamente o que está no roteiro para que a instituição seja eficaz: principio da correção; da classificação; da modulação das penas; do trabalho como obrigação e como direito; da educação penitenciária; do controle técnico da detenção; das instituições anexas. “O sistema carcerário junta numa mesma figura discursos e arquitetos, regulamentos coercitivos e proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para corrigir a delinquência e mecanismos que solidificam a delinquência. O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da prisão?”, questiona o autor (p. 225). Tentando perceber algo que não é explicitamente dito, Foucault afirma que há uma utilidade nos fenômenos que a crítica à prisão denuncia (isto é, na manutenção da delinquência, indução a reincidência, transformação do infrator ocasional em delinquente): é que os castigos não objetivam suprimir as infrações, mas distingui-las, distribuí-las, utilizá-las; trata-se de uma tática geral das sujeições, visando uma dominação, uma administração das infrações e não exatamente um aparelho para tornar dóceis os que praticam os crimes. Tendo em vista o tratamento diferenciado (tolerância ou intolerância) aos delitos praticados por um indivíduo se pertencente a uma classe ou não, ou se possuidor de um determinado tipo de histórico que justificaria sua natureza ou não, para Foucault não há uma separação entre ilegalidades e legalismo, mas entre ilegalidade e delinquência. O maior objetivo da prisão foi ter fabricado a delinquência, fazendo-a legítima, aceita, por isso até hoje a prisão perdura. Concomitantemente, os jornais, os noticiários e a literatura constituíam a estética do crime que ajudava a legitimar a “produção da delinquência”. Mas, por outro lado, existia também um contra-noticiário que jogava com os fatos dos crimes, mostrando a devassidão e a miséria espiritual em que viviam os burgueses, colocando culpa na sociedade pelos desfalecidos e criminosos das classes populares. Um exemplo é o jornal fourierista La Phalange, que Foucault redescreve o diálogo entre um infrator de 13 anos e o juiz. Ali o autor quer mostrar as lutas sendo praticadas na sociedade. De alguma forma, se o juiz fosse o indivíduo das classes populares estaria ele sofrendo os efeitos do poder da classe dominante e o garoto “infrator” ocupando seu lugar.
III. O carcerário. Foucault data a formação completa do sistema carcerário francês em 1840, ano de inauguração de Mettray (instituição para detenção de jovens infratores condenados) ou no dia em que um menino infrator lamentou sua saída da mencionada colônia penal (talvez dando a prova da eficácia do sistema disciplinar que lá funcionava). “’A mínima desobediência é castigada e o melhor meio de evitar delitos graves é punir muito severamente as mais leves faltas; em Mettray reprime-se qualquer palavra inútil’; a principal das punições infligidas é o encarceramento em cela; pois ‘o isolamento é o melhor meio de agir sobre o moral das crianças; é aí principalmente que a voz da religião, mesmo se nunca houvesse falado a seu coração, recebe toda a sua força e emoção’; toda a instituição parapenal, que é feita para não ser prisão, culmina na cela em cujos muros está escrito em letras negras: ‘Deus o vê’” (p. 243). Este é o princípio essencial do panóptico, sentir-se vigiado mesmo quando ninguém está vendo, coagido a fazer o correto e seguir a norma. Em Mettray, os chefes e subchefes não agem como pais, juízes, professores, contramestres, mas são um pouco de cada um. Na expressão do autor, são ortopedistas da individualidade. Interessante notar que para trabalharem no local, os chefes e subchefes precisam dominar uma técnica disciplinar que eles apreendem quando são submetidos a um treinamento que consiste em fazê-los sofrer coisa semelhante aos infratores. Por fim, os chamados efeitos do carcerário são os seguintes: espraiamento de poderes disciplinares no corpo social; recrutamento dos grandes delinqüentes e a produção destes; criação da legitimidade de punir e disciplinar; invenção de uma relação íntima entre natureza e lei, a norma; criação de um saber que objetiva o comportamento humano, através da observação contínua via panóptico (e de sua relação com as ciências humanas); isso explica sua continuidadesólida diante do pretenso fracasso da prisão. Contudo, e apesar de toda esta maquinaria descrita, Foucault encerra o livro com um texto anônimo publicado no jornal La Phalange, de 1836, para mostrar que estes mecanismos apresentados em Vigiar e Punir não são o funcionamento unitário de um aparelho (finalizado e vencedor), mas são estratégias postas em uma batalha que até hoje não cessou.

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