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EDUCAÇÃO: CARINHO E TRABALHO Chamada de capa: Um livro sobre o BURNOUT, a síndrome da DESISTÊNCIA DO EDUCADOR, que pode levar à FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO (Importante Que A Frase, Burnout, Desistência Do Educador, Falência Da Educação Fique Destacada, Como Se Fosse Uma Frase Só) Coordenação do Laboratório de Psicologia do Trabalho Coordenação Geral Wanderley Codo Coordenação Sociologia do Trabalho Analía Soria Batista Coordenação Psicologia do Trabalho Lúcia Soratto Coordenação Psicologia Clínica Iône Vasques-Menezes Diretoria Executiva– CNTE-GESTÃO 97/99 CARGO NOME Presidente Carlos Augusto Abicalil (MT) Vice-Presidente: Francisco das Chagas Fernandes (RN) Sec. Geral Maria Izabel Azevedo Noronha (SP) Sec. de Ass. Internancionais Juçara Maria Dutra Vieira (RS) Sec. de Ass. Educacionais Maria Teresa Leitão de Melo (PE) Sec. de Formação Maria Inês Camargos (MG) Sec. de Políticas Sociais Lujan Maria Bacelar de Miranda (PI) Sec. de Política Sindical Maria do Livramento P. Bezerra (DF) Sec. de Finanças Francisco José Gauter de Oliveira (PI) Sec. de Imprensa e Divulgação Robson Lopes Trajano (RJ) Sec. de Legislação Milton Canuto de Almeida (AL) Sec. da Mulher Trabalhadora Noeme Diná Silva (GO) Sec. dos Aposentados Terezinha Ribeiro Picheth (PR) Sec. Adjunto de Políticas Sociais Reinaldo Paschoa Bicudo (SP) Sec. Adjunto de Ass Educacionais Mauri Matos de Freitas (SC) Sec. Adjunta de Ass. Educacionais Márcia Alcalay Dorneles (RS) Sec. Adjunto de Formação Arthur Sérgio Rangel Viana (ES) Suplente Manoel Rodrigues da Silva (RO) Suplente Rosimar Mendes Silva (TO) Suplente Mário Sérgio Ferreira de Souza (PR) Suplente Araceli Maria Pereira Lemos (PA) Suplente Marcos Macêdo Fernandes Caron (DF) CONSELHO FISCAL Efetivo Edvaldo Faustino da Costa (PB) Efetivo Itana Carvalho de Portugal (BA) Efetivo Valdir Pereira de Araújo Suplente Neyde Aparecida da Silva Suplente Antonio Eugênio F. Corrêa Suplente Gilberto Cruz de Araujo ENTIDADES FILIADAS: APEOESPE —Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do estado de São Paulo APLB —Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Bahia APP / PR —Sindicato dos Professores das Redes Públicas Estaduais e Municipais do Paraná CPERS / SINDICATO —Centro dos Professores do Estado do Rio Grande do Sul - Sindicato dos Trabalhadores em Educação FETEMS —Federação dos Trab. em Educação do Mato Grosso do Sul SAE / DF —Sindicato dos Aux. de Administração do Distrito Federal SEPE / RJ —Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro SINDIFUSE / SP —Sindicato dos Funcionários e Servidores da Educação SINDIUPES / ES —Sindicato dos Trab. em Educ. Pública do Espirito Santo SINDIUTE / CE —Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação do Ceará SIND-UTE / MG —Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais SINPRO / DF —Sindicato dos Professores do Distrito Federal SINPROESEMMA —Sindicato dos Prof. Públicos Esp. em Educ. Púb. Serv. Púb. da Educ. e Mun. Do Ensino de 1º e 2º Graus do Maranhão SINSEPEAP / AP —Sindicato dos Servidores Públicos em Educação do Amapá SINTE / PI —Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Piauí SINTE / RN —Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Rio Grande do Norte SINTE / SC —Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede Pública de Ensino do Estado de Santa Catarina SINTEAC / AC —Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Acre SINTEAL / AL —Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Alagoas SINTEAM / AM —Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Amazonas SINTEGO / GO —Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Goiás SINTEP / MT —Sindicato dos Trabalhadores do Ensino Público do Mato Grosso SINTEP / PB —Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado da Paraíba SINTEPE / PE —Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Pernambuco SINTEPP / PA —Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará SINTER / RR —Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Roraima SINTERO / RO —Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado de Rondônia SINTESE / SE —Sindicato dos Trabalhadores em Educação de 1º e 2º Graus da rede Oficial de Sergipe SINTET / TO —Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Tocantins ÍNDICE Cap 1 – Educar, Educador ................................................................................................................ 27 Cap 2 - Trabalho e Afetividade.......................................................................................................... 38 Cap 3 - Crise de Identidade e Sofrimento ......................................................................................... 52 Cap 4 – Os trabalhadores e seu trabalho ......................................................................................... 85 Cap 5 - Trabalho: atividade humana por excelência....................................................................... 110 cap 6 - Condições organizacionais ................................................................................................. 129 Cap 7 - Violência e Agressão.......................................................................................................... 141 Cap 8 - Infra-estrutura das escolas públicas................................................................................... 167 Cap 9 - Gestão / Eficiência nas escolas.......................................................................................... 183 Cap 10 - A Centralidade da Gestão ................................................................................................ 194 Cap 11 - Salário............................................................................................................................... 204 Cap 12 - Poder de Compra ............................................................................................................. 217 Cap 13 - O que é Burnout ? ............................................................................................................ 257 Cap 14 - O Conflito entre o Trabalho e a Família e o sofrimento psíquico..................................... 277 Cap 15 – Suporte Afetivo e o Sofrimento Psíquico em Burnout ..................................................... 286 Cap 16 – Burnout e Suporte Social................................................................................................. 293 Cap 17 – Burnout e relações sociais no trabalho ........................................................................... 299 Cap 18 – Atitudes no trabalho e Burnout ........................................................................................ 306 Cap 19 – Burnout e carga mental no trabalho ................................................................................ 311 Cap 20 - Importância social do trabalho.......................................................................................... 325 Cap 21 - Relações com o sindicato e saúde mental dos trabalhadores da educação ................... 334 Cap 22 – Segurança nas escolas e Burnout dos professores ........................................................ 349 Cap 23 – Infra-estrutura das escolas e Burnout nos professores................................................... 364 Cap 24 - Gestão democrática nas escolas e Burnout nos professores.......................................... 376 Cap 25 - Remuneração, renda, poder de compra e sofrimento psíquico do educador.................. 382 Cap 26 - O Brasil, seus estados e o sofrimento psíquico dos professores .................................... 403 Cap 28 - A si mesmo como trabalho ............................................................................................... 416 Cap 30 - O planeta como cenário. .................................................................................................. 443 Referências bibliográficas ...............................................................................................................447 Anexos............................................................................................................................................. 459 Como foi feita a pesquisa....................................................................................667 QUALIFICAÇÃO FORMAL DOS PROFESSORES DO ENSINO PÚBLICO ESTADUAL DO BRASIL467 íNDICE DE FIGURAS...........................................................................................678 APRESENTAÇÃO Este livro é sobre o trabalho dos educadores. Produzido em uma parceria entre a CNTE (confederação Nacional dos Trabalhadores em educação) e o LPT (Laboratório de Psicologia do Trabalho – UnB). Relata uma pesquisa sobre as condições de trabalho e saúde mental dos trabalhadores em educação do país: professores, funcionários e especialistas em educação da rede pública estadual, algo em torno a 1.800.000 educadores. Dois anos e meio de investigação, 52.000 sujeitos investigados em 1440 escolas espalhadas em todos os estados do Brasil, financiada totalmente pelos 29 sindicatos reunidos na CNTE, com apoio da UNICEF e do CNPq. O estudo, realizado pelo Laboratório de Psicologia do Trabalho da UnB, contou com uma equipe interdisciplinar de 15 pesquisadores, quatro coordenadores regionais e algo em torno a 100 aplicadores treinados em todo o país e responsáveis pela observação em loco de cada uma das 1440 escolas e pela aplicação coletiva de um protocolo composto por 15 escalas de investigação sobre trabalho e relações sociais, 7 escalas clínicas, 1 de Burnout, 1 de alcoolismo além de dados objetivos sobre vida e trabalho. Trata-se do primeiro estudo nacional, exaustivo e abrangente sobre saúde mental e trabalho de uma categoria profissional realizado no Brasil, e o mais extenso (quer pelo espectro de variáveis investigadas, quer pelo número de sujeitos e organizações de trabalho envolvidos) que se tem notícia no mundo. Esta pesquisa aplica uma metodologia e uma teoria que vem sendo desenvolvida desde 1979, em parte publicada nos livros ‘Indivíduo Trabalho e Sofrimento’ e ‘Sofrimento Psíquico nas Organizações’. Tudo isto foi feito com muito carinho. Wanderley Codo Prefácio “Na floresta há sendas, Muitos se perdem. No cerrado da vegetação De repente, desaparece a trilha E acaba no Intransitado. Cada senda caminha separada, Na mesma floresta Quando sempre parece Uma igual a outra. Mas, só parece assim. Lenhadores e vigias da mata Conhecem os caminhos. Eles sabem O que é Estar numa senda perdida.” (M. Heidegger, Sendas Perdidas) Este livro forjou-se na trilha das lutas dos/as trabalhadores/as em educação pública básica do Brasil, exatamente no momento grave de enfrentamento das reformas de molde neo-liberal implementadas e aceleradas na última meia década. Reformas que alteram e reduzem substancialmente os conceitos de estado e de direito, que indicam a opção pragmática pelo mercado como sendo única via de organização social, cultural e econômica consistente para a contemporaneidade, e a extinção da temporalidade histórica que aponta o presente como único lugar do possível. Caótico, bárbaro e inexpugnável. É exatamente a afirmação da história, do conflito e da superação necessária de relações injustas para relações humanizadas que fez a decisão da CNTE - Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e de suas 29 entidades filiadas em todo o país e que pautou o convênio firmado com o Departamento de Psicologia do Trabalho da Universidade de Brasília - encaminhar-se para a mais ambiciosa e cortante pesquisa já realizada nesse campo do conhecimento de que se tem notícia. Envolveram-se centenas de lideranças sindicais, militantes, aplicadores/as e pesquisadores/as motivados/as pela necessidade, pela novidade, pela urgência e pela inesgotável vontade de fazer do conhecimento uma arma salutar para construir e ampliar a felicidade, combatendo o sofrimento e fortalecendo as ações coletivas que dão sentido, gosto, cor, som, calor à tarefa social de educar pela via da escolarização. O livro é resultado da conjugação entre a utopia socialista que parecia perdida e a angústia militante, frente ao temporário sucesso dos predicados do fim da história e do paraíso da exploração capitalista. Com a profundidade da investigação científica e a marca dolorosa do “horizonte perdido” e o permanente risco da de-sistência, a paixão é revelada como motor da teimosa re-sistência de pessoas que, aos milhões, no Brasil, ousam fundir afeto e trabalho pro-fessando e con-fessando a dor e a delícia de ser artífices do futuro, uma tarefa ancestral e sempre nova. A magia dessa revelação, contudo, deveu-se a um percurso na “mata escura” que fez/faz cada educador/a reagir à figura cada vez mais assustadora do “louco ou atroz, manso ou feroz, caçador de mim” (nas palavras de Milton Nascimento). A contradição da onipotência de um/a deus/a com a privação de um cachorro magro mede de maneira surpreendente o conflito latente em toda a vida afetiva, social, familiar dessas pessoas en-quadradas numa categoria profissional. A prazerosa experiência de ler o sofrimento psíquico, suas implicações na saúde mental e suas relações com a organização do trabalho escolar está justamente na feliz constatação das razões que afirmam ainda mais a necessidade e a utilidade dos nossos sindicatos, mesmo que intensificando a complexidade de suas ações e ampliando (de modo conflitivo, sempre) a fundamentação dos planos de luta, das estratégias de enfrentamento, das novas pautas que buscam incessantemente re-constituir a integralidade das muitas coisas que existem entre os salários e a felicidade. As abordagens sobre a temporalidade do trabalho escolar e a alienação descortinam aspectos específicos indispensáveis para relativizar e relacionar a expropriação capitalista mal sucedida e mal entendida na escola pública. O resgate da amorosidade, da cumplicidade, do carinho e da sedução como componentes intrínsecos do processo ensino-aprendizagem ganha uma consistência extraordinária que premia, uma vez mais, a sabedoria de Paulo Freire e inaugura outros pontos-de-vista importantes para nos aproximar da gênese do com-prometimento desses/as trabalhadores/as, da lógica doméstica que permeia suas relações de trabalho, da permanente dúvida de vincular-se ou não, das imposições de rupturas externas, às vezes violadoras e, quase sempre, promotoras de uma racionalização que pende para um afastamento do mundo - provocando sofrimento, ou de uma transgressão dos rígidos controles operacionais e burocráticos - exigindo cumplicidade. O tensionamento permanente é nitidamente exigido por um processo de construção e des-construção de identidades, especialmente ao observar-se com atenção as exigências crescentes por educação escolar do mundo atual e a contrariedade da deterioração social trazidas pela globalização redutora de direitos e “oportunidades”. Por outro lado, a pesquisa desvelou mudanças estruturais, mudanças de gênero (uma desfeminização), mudanças de organização e de perfis e de funções no trabalho escolar (de educadores/as esquecidos/as, funcionários/as da escola) que emprestam caracteres novos e olvidados na literatura científica existente sobre o fenômeno educativo . O texto chega muitas vezes “ao Intransitado”. Especialmente pelo movimento sindical. Os requerimentos da carreira, da estabilidade, da universalidade, da equidade parecem chocar-se com a despersonalização, com a negação da alteridade, com a extinção da diferença e a desconsideração do mérito, do esforço, do empenho, da re-compensa, do re-conhecimento. Ao mesmo tempo, o/a leitor/a percebe que “cada senda caminha separada, na mesma floresta” e o conflito fundamental é um conflito de projeto: uma escola para que moral, para que ética? Que justificação para tamanho investimento emocional, afetivo, cognitivo? Que resultado? Que aprendizagem?Com que valoração? Há muita munição aqui para o questionamento das reformas propostas pelos sistemas de ensino oficiais, especialmente pelas imposições curriculares e pelas modalidades de avaliação espelhadas nos programas de qualidade total e na estandardização dos provões e das avaliações de desempenho. Um grande espaço para o fortalecimento das históricas reivindicações - tidas como apenas corporativas - é criado com a nova consistência emprestada pela investigação científica confirmadora das condições especiais de trabalho e de desgaste na atividade educativa, tendo rebatimentos muito oportunos, também, no enfrentamento das chamadas reformas administrativa e previdenciária contidas na agenda dos ajustes. Um cotidiano desconcertante é aberto com cruas cenas que sublinham com muita simplicidade de que maneira a pior organização de-tém, re-tém, man-tém, atrai o/a melhor trabalhador/a. E chama a atenção para escola “com pés de barro” em que a profissionalização dos/as funcionários/as da escola, educadores/as esquecidos/as, é observada, questionada, fundamentada e pro-posta segundo a visão da psicologia do trabalho, para além da visão sindical que está-se maturando. A fragilidade e incipiência deste tema são fortemente denunciadas pela precariedade de instrumentos para validação da própria profissão, assim como pela emergência recente do tema no cenário da discussão acadêmica. Por outro lado, mostra o cotidiano carente da gestão democrática, do projeto coletivo e localizado nos interesses, aptidões e desejos de cada colégio - no sentido estrito e tradicional do termo - do projeto político pedagógico, que não abra mão do poder público como provedor das condições materiais e estruturais universais para o trabalho educativo realizador, criativo e integral e que não esmaga suas potencialidades antecipadoras de um futuro feliz. Portanto, temas como financiamento, gestão, formação, carreira, salários, estabilidade, avaliação, tempos e ambientes escolares ganham cores luminosas com a força de argumentos tão evidentes. Grande parte do livro é dedicada exatamente à emergência da nova consideração sobre trabalho e emprego diante da modernidade técnica e da sociedade globalizada: o burnout. A certa altura definido como “o nome da dor de um profissional encalacrado entre o que pode fazer e o que efetivamente consegue fazer, entre o céu de possibilidades e o inferno dos limite estruturais, entre a vitória e a frustração”. Ou, ainda, “é a síndrome de um trabalho que voltou a ser trabalho, mas que ainda não deixou de ser mercadoria. As dores do burnout são as dores de um filho que sempre existiu, a força mágica de um trabalho que se afetiva, que se afeiçoa, que se parece com a vida, que espanta e pasma como um parto, que doe, como um parto”. É aí que, como “lenhadores e vigias da mata”, o/a profissional apaixonado/a é in-vocado/a. “Eles sabem o que é” ser educador/a, deus/a potente e submetido/a, empreendedor/as que aposta num futuro melhor, senhor/a do próprio trabalho. “Eles sabem o que é Estar numa senda perdida” com trabalho árduo, esmero, envolvimento promotor de uma hiper-agitação física e mental, numa impulsividade grávida do risco e da vontade de construir o futuro. Do pânico que exige constante estado de atenção e de vigilância, mas, ao mesmo tempo exibe uma inequívoca nostalgia sobre a própria identidade. Mas uma nostalgia que poderia ser inferida como uma “saudade do futuro”. Os segredos da paixão teimam em esconder-se, impondo as trilhas que transitam por três eixos de tensões: entre afeto e razão, nas relações sociais e no controle sobre o meio. As três origens do burnout. O novo emprego em expansão é típico do setor de serviços. No âmbito público, vinculado às áreas de educação e saúde, principalmente, refundindo carinho e trabalho, e tendo o Outro como produto. A cada leitor/a, à competente equipe envolvida na pesquisa, aos/às militantes, às lideranças sindicais, ao estado/patrão - por mais questionamentos e inquietações que tragam, por mais incorformidade ou desconforto, por mais desconcertante que pareçam as conclusões - uma certeza se con-firma: “se muito vale o já feito, mais vale o que será”! Prof. Carlos Augusto Abicalil Retrato de uma pesquisa nacional Como descrever as aventuras e desventuras de se realizar uma pesquisa nacional, sem precisar de um outro livro? Que pelo menos se tente disponibilizar uma pálida idéia. O texto abaixo é um excerto de um dos diários de campo que recebemos. PESQUISA AMAPÁ DIÁRIO DE CAMPO RELATÓRIO DE LARANJAL DO JARI 29/04/1997 Saímos de Macapá, em direção a Laranjal do Jari, às 05:50 horas. Em uma Kombi, fomos eu, o Aildo, a Lenamaria, o Nazir e a Rosiane, respectivamente a coordenadora técnica da pesquisa, o coordenador político e representante do Sindicato (SINPEPEAP), e os auxiliares de pesquisa (respectivamente uma psicóloga, um psicólogo e uma professora), e mais o motorista, o Júnior. Depois de viajarmos 5 horas por uma estrada de piçarra, passando sobre várias pontes de madeira (na volta para Macapá eu contei as pontes entre Laranjal do Jari e Macapá, são 25 no total), enfrentando caminhos, em sua maior parte, ladeados por abismos e parcialmente destruídos pela erosão dos rios (havia um trecho em que quase metade da pista estava “comida” pela erosão, outros em que haviam sulcos profundos e intermináveis, alguns bem largos), veredas cercadas por florestas de ambos os lados, nos defrontamos com uma ponte totalmente coberta pela cheia do Rio Cajari (em um dos braços deste). Foram momentos de muita apreensão, pois estávamos impedidos de atravessar até que o rio baixasse e a aplicação do protocolo estava marcada para as 16 horas. Sabíamos que, em condições normais, a viagem durava no mínimo 7 horas. Na estrada só haviam dois trechos habitados, um era esse, denominado de “Água Branca”, o outro, já havíamos passado por ele. Um dos trabalhadores da madeira nos advertiu de que há 6 anos as águas do rio não subiam daquela maneira (na noite anterior havia caído uma chuva torrencial), mas que quando isso acontecia levava uns 2 dias para baixar e mais, quando demonstramos nossa intenção de atravessar em um barquinho (montaria) de um dos moradores da região, o trabalhador nos avisou de que, mais adiante, haveria um outro rio, mais estreito que este, porém nas mesmas condições. Todavia, voltar para Macapá após ter percorrido mais da metade do caminho... nem cogitávamos isso! Além do mais, “trabalhadores da educação” de 5 escolas nos esperavam em Laranjal do Jari às 16 horas. A preocupação em cumprir com o compromisso era maior que tudo. Depois de algum tempo (uma hora) decidimos atravessar na “montaria”, fechar a Kombi para pegá-la posteriormente e tentar encontrar outro carro do lado de lá. Atravessamos aos poucos (de 2 em 2), pois a “montaria” não aguentava muito peso. Quando todos atravessaram já eram 12:15 horas. Algum tempo depois de termos atravessado começaram a chegar vários carros (ônibus, Kombis, e outros) vindos de Laranjal do Jari, o que significava que a ponte do outro rio, ao qual se referira o trabalhador, já estava dando passagem. Assim, começamos a ter esperanças de poder chegar a tempo de realizar a pesquisa. O Aildo tentou negociar com alguns motoristas para que nos levassem a Laranjal, até que conseguimos um Gol, cujo motorista ia levar a família para Macapá mas depois iria voltar mesmo para Laranjal. Então acertamos que o nosso motorista (quer dizer, o motorista da Kombi do Sindicato) levaria a família dele para Macapá e ele nos levaria para Laranjal do Jari. Como no Gol não havia lugar para todos nós, a Lena foi em uma Kombi, que ainda lhe cobrou R$ 5,00. Saímos de “Água Branca” para Laranjal do Jari às 13:50 horas. A partir daí é que a viagem, já caracterizada como uma aventura, se transformou em uma aventura tragicômica, mais trágica que cômica. Pelo menos a estrada quepercorremos até o “ramal do Cajari”, apesar dos perigos, tinha uma paisagem bonita. Havia muitas serras cobertas de verde, árvores, rios, uma paisagem natural de grande beleza amazônica. Mas o trecho que tivemos que percorrer depois, era digno de uma filmagem, para que outros pudessem ter alguma noção do quanto custa fazer pesquisa no interior do Norte do país, mormente na Amazônia. A estrada, se é que se pode chamar assim, era um caminho estreito, cercado por floresta densa de ambos os lados, entrecortado por muitos rios em processo de formação, sendo que, em sua maior parte, encontrava-se coberto por lama e barro. Por várias vezes descemos do carro para que este pudesse passar pela lama sem atolar, e tivemos que enrolar as calças e meter os pés na lama. Em uma das vezes caminhamos cerca de 300 metros até poder pegar o carro novamente. Quando chegamos a Laranjal do Jari eram 16:20 horas. Estávamos exaustos. Havíamos passado o dia praticamente sem comer. Os pãezinhos e a garrafa térmica com café que levamos, acabaram-se rapidamente. À beira da estrada não havia quase nada comestível para se comprar, só muita natureza e um ou outro casebre próximo aos rios. Nas duas únicas “vilas” por onde passamos, em uma delas havia uma mercearia (o “Rei da Selva”, com a pintura de um Leão), na outra, a “Água Branca”, um espécie de “restaurante”. Assim que chegamos, o Aildo saltou logo na escola para segurar o pessoal, afinal estávamos atrasados quase meia hora. Eu e os outros fomos para o hotel, apenas para tirar a lama dos pés e, em seguida, nos dirigimos para a escola, onde cerca de 200 pessoas nos aguardavam. Não foi nada fácil explicar as instruções para o preenchimento do protocolo a tanta gente de uma só vez. O nosso estado físico e psicológico nem precisa comentar, mas tudo bem! Conseguimos nos equilibrar direitinho, o senso de responsabilidade era maior do que todas as adversidades que enfrentamos. Muitas pessoas estavam de pé. Não havia carteiras para todos no salão onde estavam reunidas. Após a explicação, distribuímos as pessoas por mais duas salas. Eu fiquei no salão, nas outras duas salas ficaram o Nazir e a Lena. O Aildo e a Rose ficaram no salão onde eu estava, prestando ajuda individualizada a algumas pessoas que tinham dificuldade para ler ou para ver. .......... Quando conseguimos sair da escola já eram 21:00 horas. Perdemos muitos lápis e borrachas nesse dia, pois nas condições já descritas, foi difícil fazer um controle rigoroso do material. 30/04/1997 Nesse dia realizamos as visitas e entrevistas nas 5 escolas sorteadas de Laranjal do Jari. Eu, Lena e Rose fizemos uma escola cada, o Nazir fêz duas escolas........... A escola que visitei chama-se Presidente Médici. É uma palafita às margens do Rio Jari. Situa-se em um bairro denominado “Malvinas” (de mal), segundo a diretora, uma referência às maldades anteriormente praticadas naquela área (assassinatos com requintes de crueldade). O acesso se faz através de uma enorme ponte de madeira. O caminho até a escola, localizada quase no final da ponte, é impressionante. De um lado e outro da ponte se vê de tudo, farmácia, loja de roupas, loja de sapatos, armazéns, mercearias, açougue, bares, bancas de verdureiros, vendas de comida pronta, ... havia meninas passeando em uma pequena canoa pela várzea. ........ Ao chegar à escola, uma palafita bonitinha, toda pintada, bem cuidada... emocionei-me quando vi cartazes feitos com tanto capricho na parede das salas de aula. Perguntei-me como alguém que trabalha em condições tão precárias, que luta com tanta dificuldade, ainda consegue amar seu trabalho, fazê-lo com tanto gosto? Só sendo muito humano mesmo, no pleno sentido desta palavra. Sinal de saúde mental! É incrível como as pessoas conseguem driblar as dificuldades e se manterem psiquicamente íntegras. Um cartaz na parede da secretaria ilustra bem um desses mecanismos de defesa, um desses artifícios para driblar condições tão adversas e se conservar humano, saudável psicologicamente (só não sei até quando): “Conseguir o que se deseja é triunfo, desejar só aquilo que se tem é felicidade”. Hilma Khoury Coordenadora Regional/norte PARA COMEÇAR QUEREMOS CONTAR-LHE ALGUMAS (ES)HISTÓRIAS... Cena 1. Parece uma árvore de natal, embaixo do braço papel branco enrolado em um tubo maior do que pode carregar, um saco de plástico branco com tesoura sem ponta, réguas grandes, giz de cera, a outra mão equilibra com dificuldade montes de revistas velhas, a cara de um velho presidente parece debochar na capa de uma delas, pelo caminho a pilha que equilibra ameaça despencar, quase que ele/a perde o equilíbrio junto com os penduricalhos que carrega, ajeita os braços como se quisesse que fosse maiores, arqueia as costas para aumentar sua capacidade de abraçar tudo aquilo. Faz calor, cuida para que as gotas de suor não estraguem o papel laminado que carrega sabe-se lá com que mão. Entra esbaforido/a na sala, mal consegue disfarçar o alívio ao despejar aquele monte de coisas na mesa. A garotada já está lá. - Oba! Fessor (a)! Vai ter desenhinho? Um garoto mais afoito abre o saco plástico, ele/a segura as mãos com um misto de mau humor e alguma irritação: - “ainda não, Fernandinho.” Se recompõe da odisséia que representou a carga daquele monte de quinquilharias até ali. Bate as mãos uma na outra, fala com a voz alta, o mais que consegue, o tom pausado, como se estivesse em um comício de surdos. - A-m-a-n-h-ã, que dia é? Dois ou três garotos correm, um atrás do outro, parece que algum deles tirou algo da lancheira do outro, alguns outros olham com interesse os penduricalhos que trouxe, interesse forte o suficiente para não ouvir o que ele/a diz, uma menina, maiorzinha um pouco, olha encantada para um pequeno espelho que tem à sua frente. Outros, muitos simplesmente, conversam, sobre tudo, todos ao mesmo tempo. De onde esta molecada arranja tanto assunto? Repete a pergunta: Uma, duas, três vezes: “Amanhã, que dia é?” A cada vez entremeada com uma bronca: “João tire a mão daí”; “Maria, deixe o Fernando em paz.” Enfim a garotada, como que em um passe de mágica, resolve responder todos ao mesmo tempo. - Dia 12, Fessor(a) !?! (a fala vem meio resposta, meio pergunta) - Domingo !!! Ouve com atenção cada resposta, espera ansioso(a) a resposta que quer ouvir. Alguém grita: Dia das mães. Enfim, estava prestes a desistir. - Isso: Dia das mães - e emenda rápido, aos berros, antes que a bagunça recomece - nós vamos fazer um presente para a mamãe. Um tempo longo e indefinido para montar um arremedo de grupos de trabalho, João quer ficar no grupo de Maria que não o quer por perto, etc., etc., etc.... Distribui o material, uns querem o papel laminado vermelho, outros disputam a tapa um determinado lápis de cor. Uma garotinha ameaça chorar, não tem mãe, é preciso socorrê-la: quem sabe lembrar da vovó? Deu certo, a menina limpa os olhos e começa a trabalhar. Um vidro de cola se espalha sobre uma das mesas, atinge a calça de um menino, se espalha pelo chão, empapuça os papéis que deveriam ser a matéria prima, correria, tenta limpar o estrago, alguns alunos o/a auxiliam, outros se divertem em ver os pés grudando no chão e iniciam uma espécie de dança sobre a sujeira. Um garoto faz bolinhas de papel laminado e atira disfarçadamente na mesa em frente, um outro desenha uma bola de futebol e uma camisa com as cores do Flamengo.” - Fulano...sua mãe gosta de futebol?”; “- Não, Fessor (a).”; “- O que você está fazendo? Não é um presente para ela?” .... O garoto parece ter ficado envergonhado, rasga tudo, joga no chão pede outro pedaço de papel branco. Se divide em mil: aqui um elogio ao trabalho feito, ali acudindo alguém com dificuldade de manipular a tesoura, acolá improvisando a falta de papel vermelho que acabou, aqui alguém chora porque foi agredido com um rolo de papel, ali alguém insiste em mostrar o trabalho,os olhos brilhando em busca de um elogio, acolá alguém desiste, dizendo que não sabe fazer uma rosa, etc., etc. etc., etc., etc., etc., Parece que se passou um ano, cada criança carrega, alguns com orgulho, outros com desdém, algo para casa. O sinal toca, respira aliviada, o cansaço transpira pelo olhar desanimado. Uma certa alegria percorre o espírito ao lembrar da casinha que a pequerrucha fez com tanto carinho, uma certa raiva pelo desprezo ensaiado com que um outro aluno tentou esconder seu fracasso. Recolhe o que restou da batalha campal, vai se retirando depressa para casa. Um funcionário grita por ele(a), torna a cabeça preocupada..... - Professor(a), o(a) senhor(a) não assinou o ponto. - Amanhã eu assino, João, amanhã eu assino. - a voz traz impaciência, raiva, quase uma agressão. - Oh, pensa que só porque é professora tem o rei na barriga? Finge que não ouve, apressa o passo. Há que tomar um lanche, fumar um cigarro, daqui a pouco outra aula, outra turma: Domingo, é dia das mães. Cena 2. Ela faz um curso de especialização em didática aplicada à matemática, ele faz pós graduação em História, os dois são professores para o terceiro ano colegial, casa alugada, periferia de São Paulo. Chega em casa cansada, mais tarde que o habitual, o ônibus quebrou no caminho, alguns passageiros começaram a vociferar contra o motorista, a empresa, a cidade, o prefeito, o governo federal, o mundo, contra Deus; armou-se um bafafá, o motorista praguejava, o outro ônibus já chegou lotado, entraram pela porta de saída, não caberiam todos, mas todos entraram, se acotovelando, ela tratava de proteger seus livros de um sovaco que se erguia incólume à sua frente. Quase não conseguiu descer no seu ponto, e se conseguiu foi às custas de pisar no pé de uma velhinha à sua frente, mal teve animo de balbuciar um pedido de desculpas, e sequer a velhinha ouviu. No caminho o vizinho de cima passou cavalgando um carro novo, fez questão de parar, mostrar a conquista, orgulhoso, falava de uma comissão recebida por ter conseguido vender um lote grande de salsichas para um supermercado do bairro. Porque ela sentia no orgulho pueril do vizinho um certo ar de sarcasmo? Cortou a descrição das aventuras com as salsichas pela metade, grunhiu uma desculpa qualquer. Ao chegar em casa o companheiro a esperava entusiasmado com a descoberta de um livro sobre o Brasil colonial, ela interrompeu o relato dele para perguntar se havia pago a conta de luz. Não, esqueceu. Os dois a fazer contas, será que vão cortar? O tempo curto e já carcomido pelos acidentes de percurso, preparar algo para comer, estudar para a prova a que se submeteriam como alunos, preparar as aulas que teriam que ministrar como professores. A luz se apaga, cortaram? Não a dos vizinhos também apagou, onde andam as velas, como estudar? O telefone toca, sua mãe reclamando de uma dor nas costas que sobe até o ombro esquerdo, o consolo quase ensaiado, a receita de um analgésico inócuo, apenas um pouco de atenção e a dor da velha já melhorou, uma bronca pela falta de visitas. Os juros aumentaram porque algo aconteceu com o presidente da Rússia, ou será por causa das peripécias do presidente dos EUA, ou será porque o Brasil não é mesmo um país confiável, só se sabe que os planos daquele carrinho de “segunda mão” vão ter que ser adiados outra vez. O colega do colégio entrou com uma ação contra o estado devido a um erro de cálculo no salário de dez anos atrás, será que vale a pena? Amanhã é dia da faxineira semanal, quem tem os trocados para deixar para a moça, pagamento mais a condução? Não, falta dinheiro, a condução aumentou; amanhã, quem vai pagar a luz, uma disputa acirrada entre duas agendas, nenhum dos dois terá tempo, um sorteio, ela perde, resmunga ao imaginar a fila enorme do banco. Como estudar? A luz tardou a voltar, o cansaço parece querer pregar os olhos, enche-los de areia, as palavras parecem dançar no livro à sua frente. Um café, o resultado da prova será catastrófico, há que pensar em uma forma de improvisar com os seus alunos, quem sabe um estudo dirigido? Com café e tudo o sono vem, seria inútil resistir, a roupa atirada a um canto, tomo banho amanhã cedo, decreta. O companheiro a procura com as mãos quase tímidas, com um desejo desbotado, com o máximo de gentileza que consegue amealhar ela o afasta, os olhos se cerram, bem que ela também queria, não há forças para o amor. Manhã seguinte, correndo até o ponto de ônibus, livros pesando mais do que o normal nos ombros, ainda mastiga um naco de pão. Um carro passa, respinga gotas de lama em seu vestido. Foi ele, foi o carro do vizinho que passou célere, aquele da salsicha, lembra? Cena 3 Mamãe convidou-nos para comer feijoada sábado. Reunião familiar, chegam os tios e primos da Bahia. Fátima...anos sem vê-la, José, a última vez que nos reunimos eramos quase moleques. Mamãe caminha de um lado a outro da sala, inquieta, cheia de expectativas. Pega na cortina da sala, arruma um almofadão de flores vermelhas, tenta pontuar o que se necessita comprar para o evento. Dona Maria, a vizinha, se comprometeu a preparar a sobremesa. Além disso, emprestará mais cadeiras. O gato mia alvoroçado, o cachorro entra correndo atrás de uma mosca. Minha tia Lenita ingressa agitada, com seus gorduchos braços me abraça...com lágrimas nos olhos repete para quem deseje ouvir: “amanhã será um dia maravilhoso de encontros familiares, lembranças, risos, lágrimas, etc. etc.” Entra e sai, mamãe me pede que de manhã compre isto, prepare o outro...enfim, organizou para mim o final de semana. O entusiasmo cresce e falar é cada vez mais difícil para mim...dizer que este final de semana estarei preparando uma aula, para mim muito especial, sobre os 500 anos do Brasil. Milhares de idéias pululam na minha cabeça. Trata-se de alunos do terceiro ano do segundo grau. Já decidi que vou para a biblioteca da Universidade. Eu quero falar dos livros de Enrique Dussel...grande filósofo da libertação latino-americana. Filhaaa....que acontece?....em que está pensando?....Nada, nada mamãe tudo bem... Saio da casa de mamãe me sentindo contrariada...gosto dos primos, tios etc. claro gosto, também gosto de doce de leite... mas...justo agora....justo agora estes bahianos decidem fazer festa familiar!!!. Chego em casa com fome...uns livros emprestados sobre a Conquista me aguardam acima da mesa...examino a geladeira...observo os livros...já!....pego umas folhas de alface, uns tomates meio velhos, presunto de data duvidosa, e maionese.....uhauu!!! se não morro hoje, não morro nunca mais. Estudo...estudo...ah! já sei...vou explicar 1492...a civilização ocidental não consegue ver o Outro diferente, nos olha narcisicamente, como num espelho, devemos ser sacrificados aos imperativos do capitalismo (e fomos, e como), ah....civilização e barbarie. São 3 horas da manhã, decido ir para a cama. Meu Deus!...amanhã chegam meus primos, tios....Durmo e amanhã eu decido, mas eu preciso primeiro estudar, ler, ler, ler...só assim conseguirei preparar uma aula decente. Sábado de manhã....soa o telefone de forma insistente, deve ser minha mãe... não atenderei...ela não compreende...diz que sou louca, que por esse salário, que trabalho demais para nada...enfim...não quero mais ouvir. Desligo o telefone e acabou. Na biblioteca pesquiso, pesquiso...leio....em fim, o final de semana voou...juro que voou. Sem chamadas telefônicas...parentes, amigos, etc. Domingo à noite, tenho tudo prontinho.... Saio de casa feliz...chego à escola, oi, tudo bem!?....oi tudo bem!??. Preparo minhas transparências, Brasil 500 anos....Tenho aqui na minha bolsa o filme de Herzog “Aguirre e a fúria dos deuses”...estou ansiosa...por favor (dirigindo-se a zeladora) me alcança a máquina de vídeo.... Vai e vem, chega a máquina....penduro o título da aula : “O “Outro” diferente em 1492”. O filme servirá de porta de entrada para adiscussão que desejo realizar, partindo de olhares diferentes sobre os conquistadores. Aguirre é aquele superhomem....aquele “ego conquistador”. Bem...percebo os olhos úmidos e atentos dos meus alunos...alguns comentários rápidos entretanto ligam os equipamentos e fazem os testes respectivos. E aí?..tudo bem, tudo dando certo?....”olha, não faz contato...não sei se o desajuste está no equipamento de vídeo ou diretamente na tomada...que são da “época das cavernas”...tira daqui, tira de lá...10, 15, 20 minutos. Os alunos começam a brincar, um clima de dispersão se instala na aula...chega...por favor, silêncio. Ora, ninguém consegue fazer funcionar os aparelhos, um funcionário toca aqui, chama a outro que toca lá, conversam entre eles, discutem, fitam, colocam o dedo acima, abaixo... Depois de meia hora de “luta” como os aparelhos, os funcionários dizem o que não desejo ouvir: senhora professora...é melhor deixar a aula para outro dia, viu?....estes aparelhos tem que ser revisados, a tomada também tem que ser revisada. Ora...me sento na velha cadeira...coloco meus cotovelos sobre a mesa descascada, olho pela janela de vidros quebrados....penso na minha mãe...como deve estar ofendida...penso nos meus tios e primos, nos meus amigos....penso...penso no final de semana dedicado à preparação da aula...um misto de raiva e decepção se apodera de mim ... os alunos me olham até parece que com pena...riem....olham e olham e olham ...e... Fessora!? E agora...o que vamos fazer agora? ...Esta é a minha pergunta, meu filho, o que EU vou fazer agora.... Cena 4. Fugindo da escola... Saí da escola sentindo um aperto no peito, quase sufocado. Meu calhambeque com a pintura descascada pelo sol tropical me esperava um pouco distante no estacionamento...ah...fusquinha breguinha (passando a mão carinhosamente pelo teto do carro) ...mas... pior andar de ônibus. Bom, oxalá que arranque...meu calhambeque “bip bip”...”na na na”; meu calhambeque “bip”...arranca sua “porra”! Dando pulos como ”burro bravo” ... Consegui sair do estacionamento, apertei “fundo” o acelerador e 60 km/h, ao todo. Caindo na festa... Me detive no barzinho do “Cafofo”, precisava me liberar, esquecer do trabalho...literalmente esquecer de que tenho que trabalhar para viver. Entre tragos e tragos de cerveja fiz ali pertinho o joguinho da Supersena...”nove paus” acumulados...vários números chegavam como mensagens a minha mente, me concentrei um segundo (sempre com aquela ilusão de ter qualidades de “médium”, que do “além” alguém estivesse me ditando os números) . Raimundinho e o velho Pacheco chegavam da “Colibri” em meia hora. Sexta à noite...noite de festa (Sábado de arrependimento....Domingo familiar). Na roda de amigos....que o Vasco, o Flamengo... risos cada vez mais empolgantes... conhecem a piada de....?. Onze da noite... garçom, traz um conhaque...é para o frio...conhaque, cerveja, música, piada, olhares pecaminosos. Onze da noite... minha mulher deve estar “feito fera”. Segundo round da bebida...Tema. Não!!!! a escola...o trabalho, não consigo falar nada, só dizer...não aguento...não aguento.... Sábado de arrependimento... Sábado de manhã, os olhos semigrudados...estou morto, literalmente morto. Chiquinha me acaricia timidamente a perna...fica assim, pertinho...O que você fez ontem a noite?...Fiquei com meus amigos conversando...Ah...e conversaram sobre que?....Nada....Esse povo não conversa nada....Futebol, piadas....Se não conversam nada...porque chegaste tão tarde?....Sábado de manhã...Chiquinha fica carinhosa, mais eu estou morto...não respondo...O que você fez ontem a noite?!!...Começo de briga...Graças a Deus decide sair. Fico só na cama...Sábado e domingo pela frente. Uma barata enorme corre pelo quarto, se detêm, fica quietinha. Poderia pegar meu tênis velho e esmaga-la contra o chão...não tenho ânimo. A metamorfose ... O final de semana foi um fiasco. Bem que eu tinha esperanças de que acontecesse alguma coisa diferente na minha vida. Mas desde sexta-feira à noite, depois daquela bebedeira imbecil de cerveja quente num bar periférico, comecei a sentir o sábado quase como se fosse um ameaça. Lembro-me...tinha medo das horas longínquas, do turbilhão de meu pensamento, ora... de que voltasse como uma febre a pergunta de sempre: que posso fazer, não aguento mais aquela escola, aqueles alunos, aquelas aulas. Meu cachorro ficou doido correndo atrás de uma barata grande como folha de plátano. A última vez que vi uma barata nesta casa me precipitei sobre ela com um tênis na mão e acertei-lhe um golpe “mortal”, tão mortal que um dedo de minha mão deslocou-se dolorosamente. Olho como ela passa, corre, respira, mexe as antenas, fica como a barata da “A Metamorfose”, de Kafka, batendo as pernas barriga acima. Puxa vida, fechado nesta cama. Como em ‘A Metamorfose”, de Kafka....me imagino convertido em uma barata...esperneando na cama. Preciso preparar as aulas da próxima semana...preparar....mas...para que?. Me lembro como era...eu me matava...perante o espelho...gesticulando, “representando” minhas aulas...as escrevia...lia uma vez...mais uma...pedia materiais para uma amiga... ficava feliz fazendo, pensando nos rostos de meus alunos, nos olhos.. Mas...já sei...vou procurar umas aulas de três anos atrás...tanto faz (por esse salário que me pagam..).Puxa...Chiquina foi embora...onde estarão esses papéis velhos?. Inferno de manhã... (Nem bom dia)... ver...é você!...chega...chega. Começo a falar, sei que ninguém esta atento...mas continuo, continuo, continuo, como trem de carga saindo da estação, continuo....Eles/elas olham com olhos de “eu não entendi nada”. Decido dar uma parada, sinto a boca seca, uma certa urgência por fechar sobre este tema hoje mesmo, porque já não aguento mais, o tema, os alunos, a escola. Aqui vem uma pergunta...do maior “puxa saco” da aula. Voz esganiçada: “Professor...você esta indo muito rápido, poderia me explicar melhor....porque segundo você falou a aula passada (e vai...)....entretanto...etc. etc.”. Olho para ele com ódio, um sentimento de autoritarismo me faz presa fácil. Imagino uma barata me falando com voz esganiçada (súbita maldade).Olho para ele do alto de minha investidura de professor e começo a falar como se fosse um outro, como se minha língua tivesse vida própria. Ora, menininho...eu não estou indo muito rápido não...o problema é que vocês não entendem nada...porque não tem habito de leitura...ora...os livros não mordem, se não compreendem o que digo na sala de aula... peguem os livros, tá? Tá bom?. Vocês só pensam em imbecilidades...Não consigo mais percebe-los na sua humanidade. Falo como louco em tom exaltado, sinto um calor subir pelas minhas veias, o rosto um pouco quente, entre raiva e vergonha. Na real, sinto até impossibilidade de parar e pensar para poder explicar melhor. Ler minha aula....como trem saindo da estação, passando de um conceito a outro sem muito perceber, quase, quase, sem saber o que estou dizendo. Os conceitos parecem que voam na minha cabeça. De repente o conteúdo, o que estou passando para meus alunos, fica até incompreensível também para mim. Uma nuvem negra estaciona na minha cabeça. Não consigo pensar. Volto do pesadelo instantâneo sentindo mais raiva ainda, estrelas de cores parecem sair de meus olhos, chega! Chega!. Os alunos me fitam, a boca seca, o peito apertado...A aula acabou!!. Uma expressão se instala na minha cabeça, faz eco estou exausto!...Exausto! Fim de cena ... Meu calhambeque, “bip”...”bip”...., 60 Km/h, ao todo. Sou uma barata....uma barata (me desculpem as baratas)....que estou fazendo?...Estou oferecendo umas aulas de m...., nada me interessa, os alunos, as aulas, a escola....Puxa, não pode ser...eu sou professor, mas...não me comporto como um professor...Afinal? Eu sou mesmo um professor??? Cena 5 Muros pichados, um som ritmado e monótono, mistura delamento e marcha, acompanha o surgimento das imagens perante meus olhos. Sujeira, miséria urbana...homem e cachorro comendo, não muito amistosamente, do mesmo lixo. Um céu claro contrasta com o cinza da fumaça que expele o coração da civilização. É fácil identifica-los, tranças coloridas, piercings, cabelos verdes, jeans, camisetas, bamboleando-se produzem seu próprio espetáculo narcísico, olham uns a outros buscando-se a si mesmos, como num labirinto de espelhos. Um ônibus meio velho atravessa a rua ruidosamente, se detêm e eles sobem. Logo descem na escola da periferia urbana. O sol da manhã estampa claros e sombras nos muros cinzentos da escola. Música, corpos que se erotizam em contato com o ar, beijos prolongados são exibidos orgulhosamente, as mãos desenham os contornos corporais, tribais, ingressam no prédio para assistir ao primeiro dia de aula...são jovens frequentando uma escola de segundo grau. Na sala de aula a turma se reúne em volta, cantam, criam ritmo em cima das cadeiras e carteiras. No meio daquele tumulto surge “angelical”, a professora. Agita os braços como um marinheiro num naufrágio, seus lábios modulam, seus olhos brilham. Por um segundo ela tem medo. Fica vermelha. Naquela gritaria é percebida. Alvo de agressões e “frases sujas”, olhos lúbricos a espetam. A situação não se sustenta, literalmente foge da sala. Em solidão rememora o episódio. A vontade de continuar acaba se impondo sobre a vontade de desistir. Debruça-se sobre livros “Disciplina e Autoridade”, relatos de experiências in loco de outros professores. Está decidida a conquistar o território: usa roupas mais esportivas, jeans, blusa, botas...espera os alunos sentada quase masculinamente, botas encima da escrivaninha. Impossível desenvolver o currículo oficial. Forma parte do “currículo oculto” da escola todos os esforços feitos pela professora para estabelecer um padrão mínimo de comunicação com os alunos, para tender o elo da ponte de dupla mão que permitirá veicular o afeto e a emoção necessárias para poder ensinar e que os outros aprendam. O currículo oculto exige tal tipo de “proezas” da professora, que acaba sendo questionada pelo diretor da escola e pressionada para que respeite o currículo. Obediente quer uma xerox do mesmo...não há papel na escola, não há lápis, etc.. Ridícula até, faz tudo e mais para conquistar sua turma, para se fazer ouvir. O acordo que permite o deslanchar de sua atividade de trabalho não está dando certo, necessita ser construído. Trata-se de um passo prévio, se ele fracassa, não há como avançar. Mas...se os alunos estão na escola é porque desejam estudar. Não necessariamente, “ora, estamos aqui porque não temos escolha, precisamos de um diploma”. A escola é apenas instrumento, a disposição para aprender só pode ver-se ressentida. Lutas diversas se sucedem na realidade do trabalho na escola, a gestão dessa realidade por parte do professor produz um “currículo oculto”, diferente e muitas vezes contraposto ao oficial. Marchas e contramarchas, lutas cotidianas na sala de aula, com o diretor para levar adiante suas idéias. Num recreio uma violenta briga chama a atenção da professora. Se acerca, corre a separá-los, são três de seus alunos. Utiliza a estratégia de construir pontes de lealdade avisando: “ora, eu não falarei para que não sejam suspensos, mais prometam que a briga acabou aqui”. Acabou nada. Na saída da escola a confusão se agiganta, policiais, gritaria, seus alunos são levados na rádio patrulha. Afobada, chega antes do carro disparar...”Vocês prometeram...”, um dos rapazes responde: “e você não entende nada, tínhamos que fazer, senão não poderíamos mais andar de cabeça erguida pela vizinhança, temos uma reputação a zelar, na nossa vizinhança se não se defende todos atacam”. Sai da escola e se dirige a um bairro da periferia em procura da família dos alunos briguentos. Fala para pai e mãe que embora seu filho foi suspenso da escola (o que pode se perceber que envergonha á família), ele não fez nada errado. Essa punição foi para “esfriar os ânimos” de todos. Aponta a reforçar a auto - estima do aluno e da família: “seu filho é inteligente, vocês tem que sentir orgulho dele”. Nesse peregrinar literalmente pela casa dos alunos ela enfrenta também a hostilidade das famílias. Acaba sendo vista como uma intrometida, alguém que não compreende que pobre não necessita estudar, pobre tem é que pagar as contas. Cada dia pode observar na sala de aula lugares vazios dos alunos. A ausência dos rapazes a interpela...está perdendo seus alunos, está perdendo essa espécie de guerra que a princípio de ano decidiu travar. Um rapaz é morto num “encontro” entre traficantes, ela tentou ajudar, mas não conseguiu, arriscou até sua vida permitindo que o jovem buscado por traficantes se refugiasse na sua casa. O rapaz saiu cedo pela manhã e se dirigiu à escola, o diretor o mandou embora e os traficantes o pegaram a uns quarteirões da escola. A vontade de vencer começa dar lugar à vontade de desistir...tristeza, desânimo, desinteresse pelos alunos. O último diálogo: “porque você fica?”, o colega responde: “porque eu sou louco”. Os alunos pedem para ela ficar: “professora, você não pode ir fácil, desistir, você tem que lutar contra a morte da luz, foi você que nos ensinou isso”1. Cena 6 Prometeu Acorrentado... Muros obscuros e agrietados por onde se colam atrevidamente folhas pequenas e verdes de uma planta desconhecida. Mãos tremulas acariciam as cinzas paredes, passos pequenos e inseguros, quase claudicantes; o olhar da anciã navega no tempestuoso mar das lembranças. O cabelo branco se arremolina no céu, das orelhas pendem os brincos cansados como dois frutos velhos. As costas curvadas, cansadas. Quase uma relíquia da vida. Professora aposentada procurando-se na geografia do passado, mirando-se nos espelhos do tempo. Um jornal se desliza entre suas mãos, fica lá, roçando o solo, um gato preto espreita a data: segunda feira, 07/05/2030. As lembranças tremem... a escola, retalhos da biografia. Algas marinhas se deslizam pelos olhos sulcados pelo tempo, resvalam até os sapatos brancos de pó para ser tragadas impiedosamente pela terra. Voyeurismo de velho, fitando pelas rachaduras, pelos improvisados buracos vitimados pelo tempo, latem nas vísceras os cães da saudade. Nos seus ouvidos se agitam vozes difusas, sons guturais ou descontínuos, entrecortados, gargalhadas. Sons do presente misturando-se com os do passado. Ela faz um sinal com a mão... - Ei, você...vamos, entremos... Nos refugiamos no corredor perante uma porta envelhecida, ela espiona pelo olho sensual da fechadura secando a testa intermitentemente com um lenço bordado e perfumado. - Olhe, estamos reunidos na nossa antiga sala, lembra? A voz cascada, melindrosa, torna-se cada vez mais suave e prazerosa. - Sim... nossa sala, aquela do quadro de São Jorge matando ao dragão, lembra? a do painel com os trabalhos artísticos dos alunos... Olho indiscreto da fechadura desta velha e descascada porta de escola. A idosa me oferece um sorriso descorado... Começa a falar como medindo as palavras 1 Realidade, ficção?. Trata-se de um discurso simples inspirado em “Mentes Perigosas” de John, N. Smith, 1995, um filme absolutamente despretensioso. - Você e eu, estamos aí, professores de história reunidos em volta de uma mesa ovalada. Vejo rostos jovens e entusiastas, onde se reflete a luz que insiste em entrar por uma janela semi-aberta, rostos menos brilhantes e cansados. Nos corpos, roupas formais e informais, estilos adquiridos feitos carne, estilos ainda mundanos, amores e desamores estampados nos rostos, biografias mais ou menos curtas, mais ou menos iniciais, mais ou menos finais, construídas a golpes de luz e trevas da história. - Aí está Wanderley .. gordinho e baixinho...Objetivo da reunião: “discutir o ensinoda historia.”. A imagem/mensagem é clara, veja bem, em 1998 éramos gerações diferentes de professores e professoras convivendo no espaço da escola. Nossas mãos mais ou menos lisas anunciavam a diversidade das experiências vividas. Sábia, vivida, fitando aqui e lá a bela e antiga senhora constroe um relato tecido misteriosamente com relâmpagos de rememoração interpelados pelo presente. Fecho os olhos e ficou ouvindo, me deixando transportar. - Uma frase mil vezes repetida, mais que desorienta como um eco numa caverna: é necessário estimular o senso crítico dos alunos, resgatar a importância do olhar inconformado com as aparências do real, há que ser crítico, custe o que custar. Torrentes de material biográfico se faz presente de forma mais ou menos explícita. Biografia e história, entrelaçadas como as mão tremulas e úmidas dos amantes. Ao redor da mesa existe, pelo menos, um grande choque e outros pequenos, às vezes sutis. O de sempre, os da geração dos 60 e 70, e os outros. Mas, salta a vista a heterogeneidade presente ao interior da geração dos “mais experientes”. Personagens distintos por fora e por dentro. Alguns deles, sábios, comprometidos, de óculos e cabelos semi-brancos; vestidos semi-adolescentes, outros...também de cabelos cinzas. Os primeiros deixam escapar que traçaram sua biográfica juventude na “época do chumbo grosso”. Transmitem isso pelos gestos, os movimentos das mão, a forma sussurrante de falar. Dá para sentir que agüentaram, resistiram, fugiram, para fora ou para dentro, vivendo nas catacumbas sociais e interiores...Ah; eles tem a vivência histórica na pele do ocultamento da “voz dos vencidos”, dos traçados absurdos e impositivos da história oficial. Tem a experiência ou de “haver-se dado conta”, ou a humilhação de haver sido enganados. Esta última se “oculta”, como trazer à tona uma auto-imagem tão vergonhosa... O professor de história hoje...mas naquela época não era...ora, acreditou na história oficial, teve uma venda nos olhos, acreditou estar vivenciando “um milagre” econômico na terra, no Brasil, Ah...Deus parecia ser Brasileiro. Mas disso se trata, de que ninguém mais seja enganado, manipulado, feito bobo. Entre os comprometidos e descomprometidos daquela geração surgem inéditos os contraculturais, os que desejavam fazer uma revolução cultural, e olha que eles experimentaram, a revolução passava pela vida cotidiana, sexo, drogas, música, metálica, pesada, de ultratumba. Estes também andaram pelos maus caminhos da vida, infernizando a vida dos familiares, dos diretores de escola e dos professores, lembra...chegavam meios malucos à escola...estes não tem futuro – muitos, de fato, não tiveram; muitos, de fato, tiveram. Discutem acaloradamente que a história contada nas escolas deve levantar a voz dos vencidos, dos operários, camponeses, mulheres, indígenas, negros, a voz do outro, trazer a tona a alteridade negada. Negada desde 1492. O grupo dos professores mais jovens parece isolado, quase num outro mundo, olham, assentem com a cabeça... aha...aha....Vivências diferentes...abertura democrática, euforia, festivo carnaval de carapintadas acreditando que tiraram um presidente do cargo, apenas com gritaria, eles nem sabem como, mas fizeram.... os jovens, sem torturas, cárceres, armas, mudaram, enfim, sem dramas, sem Marx, sem Engels; enfim, sem pais. Também eles sabem que é necessário serem críticos, mas de um outro modo, sem dramatismo. Entre a utopia socialista e a utopia democrática foram tecidas biografias, menos jovens, mais jovens, alguns sem utopia nenhuma. Cotidianidades: casamento, filhos, divórcios, estudo, emprego, perdas, banhadas no mar da história, incompreensíveis sem ela. A senhora toma um descanso, parece emocionada e novamente preocupada, como quem desejasse voltar pelo túnel do tempo. Ela está lá dentro, eu estou lá dentro, você está lá dentro. Ela sofre, quer intervir, dizer alguma coisa que contribua a tirar os professores do impasse, dessa discussão circular. “- Por favor, me alcança uma cadeira... veja, apesar dos entrelaçamentos históricos e biográficos diversos, das múltiplas experiências, sabíamos que a reflexão, o pensamento crítico tem um papel na mudança social, no traçado das melhores e mais delirantes utopias sociais, mais futuras ou menos futuras. Na discussão nossas biografias vieram à tona, às vezes explicitamente, outras de forma dissimulada, outras inconscientemente. A rememoração de algumas experiências pessoais ou de amigos ou familiares levou à manifestação meio tortuosa de emoções contidas. - Enfim, naquela época pensávamos nos alunos um pouco a partir de nós mesmos, das necessidades da sociedade; é assim que traçamos o seu perfil para o futuro. É certo, queríamos que aprendessem a pensar. Os professores mais jovens se mostravam convencidos da importância desse objetivo, mas um pouco mais céticos que os mais velhos, respeitando qual seria a resposta dos alunos perante um propósito que deixava muito longe suas ansiedades pragmáticas de obter titulação para aceder ao ensino universitário, ou algum tipo de trabalho para sobreviver, etc..” Mas vamos lá, vamos ao nosso verdadeiro território...a indiscreta janela duma sala de aula. - Se lembra?... Nos enfrentávamos generacionalmente com os alunos. Esse hiato podia ser maior ou menor, dependendo da idade do professor. Lá está ele, Carlinhos, professor de 45 anos, estilo meio demodé. Tenta acercar- se aos alunos utilizando um vocabulário “jovem”. Alguns alunos comentam cruelmente esses seus deslizes juvenis, sua melancólica forma de querer chegar a um mundo que em parte lhe está vedado. - Vamos para uma outra sala...ora, aqui o professor “fica na dele”, Raimundo, 50 anos, meio triste, solitário e final, não se esforça nas expressões, fala apenas como um professor. Ufa...este coroa... chato, cruéis comentários se deslizam; algumas facetas de sua vida privada se fazem públicas, seu íntimo em migalhas circula pela aula; ele sabe, mas faz de conta que não sabe. Como educadores éramos obrigados a entender o mundo do jovem, seus recursos na procura da afirmação identitária, suas frustrações, medos, e seus valores “novos” que ameaçavam os nossos, produto de uma outra época. Estávamos obrigados a tudo isso, sem o retorno de ser também compreendidos tendo às vezes que claudicar da nossa história, princípios, ética. Sendo também mudados nos embates com os alunos, quase sempre a contragosto. A própria sociedade se encarrega de alimentar um certo “racismo” de idades que alimenta o conflito, as distâncias, as discriminações entre as gerações. - Carlinhos, ...aula de hoje....A transição à democracia no Brasil....Trazer a história, quem não tem história não tem futuro, tem apenas presente, isto vale para indivíduos e grupos, para a sociedade como um todo...primeiras palavras do professor. Os alunos conversam entre eles, jogam papeizinhos aos outros, passam bilhetes uns aos outros no meio de risadinhas cúmplices e bobas. O professor fica um pouco vermelho....”estes “filhos da mãe” riem de mim...” A primeira frase de impacto foi dita, mas não existe interesse nos olhos dos alunos (diz um cineasta que os humanos passamos 90% do dia pensando em sexo). O mundo mudou (e como), estávamos educando para o 2030... Sabíamos disso? Achávamos os alunos descompromisados com a realidade social, apenas interessados em si mesmos. A escola não sabia qual era seu papel, não conseguia traduzir um projeto pedagógico, faltava um projeto nacional, a ênfase nos aspectos filosóficos da educação: que tipo de homem e mulher a educação tem que produzir. Na medida em que não existia projeto, a realidade irrompia com maior ou menor violência nas aulas, ocupando o espaço deixado pelo abandono, através dos alunos, de suas exigências e interesses, ou de seus desinteresses muitas vezes mais eloqüentes que suas efetivas demandas. “- Carlinhos...quem nãotem história não tem futuro...” Aluno: me interesso apenas pelo presente. Quem era Mariguela?...que livro é esse...Nunca Mais?....há, há, há, ....Os militares, que fizeram os militares? O professor...quem não tem história não tem futuro....mas, como lhes ensinávamos a ser críticos, queriam saber se isso seria útil para sobreviver. Na nossa época ser crítico queria dizer ser engajado, politizado, de esquerda...na minha época se era crítico. Eu nem lembro se alguém me ensinou, era a realidade, o cotidiano que exigia, a luta diária, em fim, o Che, a utopia. Epílogo.... Saímos da escola em silêncio, algumas nuvens no céu parecem anunciar chuva. Minha companheira olha para o chão, meditando, mastigando a experiência - Devíamos reconhecer que o mundo mudou de uma forma que questionava os valores tradicionalmente sustentados, dos quais em maior ou menor medida éramos portadores. Os novos valores que surgiam da dinâmica do sistema, de suas ferozes metamorfoses se contrapunham aos valores sustentados especialmente pelas gerações mais antigas de professores: o individualismo, a competência desenfreada, o egoísmo, o ganho fácil e muitas vezes desonesto, a falta de solidariedade, a visão da escola e da educação como instrumento apenas ou para se adequar às cambiantes exigências do mundo do trabalho. Tínhamos dificuldades de olhar o futuro, como nos desfazer dos óculos do passado? Sentíamos que em parte era como jogar fora retalhos da nossa querida e às vezes tortuosa biografia. Bom, conseguimos formar alunos críticos? Na verdade sabíamos que devíamos chegar lá, mas como...e especialmente, como saberíamos se o conseguimos ou não? Ah...nossa contribuição de educadores, difícil de ser identificada, aparecendo e sumindo sempre como num jogo de sombras. Cena 7 O despertador toca furioso. São 6:00 horas da manhã. Fulano de Tal (carinhosamente chamado por todos de FT) sacode o restinho do sono que teima em manter suas pálpebras coladas uma na outra. Com gestos rápidos e precisos veste a roupa que na madrugada anterior já havia deixado arrumadinha em cima da cadeira. No banheiro, faz sua higiene matinal com gestos automáticos pois seu pensamento já está voltado para as tarefas do dia que mal ainda começou. Primeiro, tomar aquele cafezinho para afastar os últimos fiapos de sono, chamar as crianças e ajudar o mais novinho a calçar as meias, amarrar os sapatos. Tudo tem que ser feito rapidamente. O ônibus das sete já vai passar e ele não pode perde-lo de jeito nenhum. O outro só passará daqui a 15 minutos ele gasta pelo menos 40 minutos até a parada mais próxima do trabalho e ele nunca se perdoaria se chegasse atrasado. Na mão direita uma sacola cheia de recortes de revistas, folhas soltas de papel chamex, rolo de fita crepe, alguns pincéis atômicos e uma escova de cabelo, esquecida do dia anterior. Na outra um casaquinho leve, nesta época do ano costuma garoar um pouquinho e sua voz tem que ser preservada, pois ela será sua varinha de condão durante todo o dia. Sem ela como se comunicar com seus clientes? - e uma outra bolsa com mais papéis e alguns pertences pessoais. E este ônibus que não chega!!! É preciso telefonar para o pediatra, pois o menino mais novo tossiu muito esta noite. Satisfeito FT olha o relógio e vê que ainda faltam 5 minutos. Há tempo suficiente para falar com seu colega sobre aquela notícia lida de relance no jornal do passageiro que assentou ao seu lado no ônibus e dar um bom dia para o vigia noturno que deixa o turno de trabalho. Sua clientela já está a lhe esperar. Impacientes como sempre. Fulano de Tal com o mais simpático de todos os sorrisos do mundo cumprimenta a todos e recebe um sonoro bom dia. Vai tirando incontável sortimento de material das bolsas e ao pegar cada um deles vai relembrando o trabalho que teve no final do dia anterior. Primeiro vasculhar todos os jornais e revistas velhos em busca de figuras ou pequenos textos que pudessem ser úteis ( veja como Leila Diniz era bonita. Ah! Os Beatles. Não perdi um filmes deles..). Recortar as figuras, cortar os cartazes e colar (cadê o tubo de cola?). Procurar nos livros e nas bibliografias mais informações sobre aquele assunto abordado e que deixou algumas dúvidas entre seus alunos. Corrigir os trabalhos, afinal é preciso quebrar a ansiedade a respeito dos resultados. Afinal o sucesso de cada um depende da sua avaliação. Os olhos estão ardendo (é preciso consultar um oculista mas como? Se tempo não lhe sobra. Aos sábados só se for em emergência). Fulano de Tal passa a mão sobre os olhos e nem pensa na possibilidade de parar e ir dormir. É preciso ler mais um pouco sobre os assuntos que serão discutidos e algumas tarefas precisam ser repensadas. Na última reunião sentiu que havia necessidade de motivar mais seus clientes, buscar outros artifícios que os mantivessem interessados e participativos. Há mais de 15 anos trabalha com pessoas e sempre se surpreende com as novidades que eles trazem, novidades que algumas vezes até o deixam meio sem graça pois ainda não havia ouvido falar sobre este assunto. É preciso ficar sempre atento aos novos processos psico-pedagógicos publicados no jornal da categoria. Por falar em categoria relembra que é preciso comparecer à reunião do sindicato na próxima sexta-feira. Haverá votação e não se deve faltar. O cuco do relógio avisa que faltam 15 minutos para a meia noite. Hoje sua clientela está agitada mais do que o normal. Alguns até parecem estar com o pensamento no mundo da lua. É preciso fazer alguma coisa. Buscar no fundo da memória uma estratégia que gere o interesse de todos. É preciso muita calma porque sua clientela é muito sensível e qualquer coisa serve como motivo para torná-los intolerantes, impertinentes e até mal-educados. Como convencê-los de que os acontecimentos que irão se desenrolar são deveras importante, principalmente para eles. É preciso muito tato. Respeito. Carinho. Isto não é problema para Fulano de Tal. Carinho, amor, zelo, atenção não faltam no seu coração. Mas será que eles não percebem que são muitos e não se pode atender a todos ao mesmo tempo? FT se esforça e com jeitinho vai levando a sua tarefa em frente, mesmo que os ponteiro do relógio demorem uma eternidade para dar uma volta tão pequena e que o sinal anunciando o intervalo para o almoço insista em permanecer mudo. Bem que poderiam ter lhe dado aquele espaço que está vago no segundo andar. Lá é um pouco maior, as janelas ficam voltadas para o parque ( o visual é muito mais bonito ), o sol não incomodaria tanto e não seria necessário tantas lâmpadas, mesmo porque as que existem vivem queimando. Nada é capaz de diminuir o ânimo de FT, a não ser quando as pessoas dizem que o seu trabalho não tem importância. FT vira um bicho. Como não tem importância? Pela suas mãos, ou melhor, pelo seu ensinar já passaram pessoas que modificaram a história da nação. Pessoas que foram capazes de se adiantarem a sua época e mudar o modo de pensar de muitos. Lembra daquele que virou presidente da república? É verdade que depois tiveram que "tacar" o impeachment nelle depois, mas isto é outra estória. FT fica nervoso também quando percebe a desvalorização a qual sua profissão foi submetida. Escolher esta profissão foi o maior sucesso na família. Todos vieram lhe cumprimentar pela escolha. Afinal somente uma pessoa com tanta abnegação poderia ter feito tal escolha e naquela casa ninguém mais teria tantas condições para enfrentar este desafio. Bem que poderia ter ido para o Banco do Brasil ou ter tentado dar o golpe do baú, mas não fazia mal, naquela profissão também seria visto como um membro da elite, seu status social estava garantido, seria também um formador de opinião (ainda bem que isto não lhe tiraram). Dinheiro não era seu principal objetivo, mas até isto haveria suficiente para levar uma vida confortável. Afinal, como salário inicial iria ganhar o equivalente a 1500reais por mês. Nada mal para se começar. Quem sabe até poderia comprar um carro já no segundo ano de trabalho? Mais de 15 anos de dedicação exclusiva, FT ama tanto seu trabalho que nunca lhe passou pela cabeça buscar outra ocupação. Para ele era inconcebível dividir seu amor pela profissão com qualquer outro tipo de trabalho. Para ele se não existisse esta profissão ele iria inventá-la. É seu respirar, o pulsar de seu coração. Ela é sua vida. Mas as coisas mudaram. Seu trabalho é constantemente elogiado pela sua clientela, pelos seus amigos e familiares e às vezes até pelo governo, mas porque será que ele já não pode mais trocar seu fusca ano 84 e no ano passado não pôde sair de férias com a sua família? FT não entende como pode alguém trabalhar por tanto tempo, ter feito mais de vinte cursos de carreira, ter procurado se aperfeiçoar fazendo um curso de pós-graduação que lhe roubou milhares de horas de sono para hoje receber menos de 850 reais por mês? Não entende também porque, se reconhecidamente importante por todos, o governo investe tão pouco na melhoria das condições de trabalho da categoria. E ele nem está falando em melhoria de seu salário. A realidade é cruel. Os minutos se arrastam e o cansaço começa a alfinetar. Os pés latejam, mesmo estando dentro de mocassins (meio velho é verdade) muito confortáveis, já são mais de três horas em pé. As veias das pernas já começam a latejar e aquele cliente que está lá no cantinho mais afastado não consegue entender o conteúdo que está sendo discutido. Será que está perdendo a capacidade de ensinar? Este é o pensamento que lhe vem a cabeça. Uma espetada de dor percorre seu corpo só em pensar que dedicou toda sua vida para fazer com que pessoas pudessem refletir melhor sobre o ambiente que nos cercam e destas reflexões buscarem alternativas que transformassem a natureza, imprimindo nela toda individualidade de cada um e, agora, já não acredita estar sendo capaz de realizar seus próprios sonhos, quanto mais os dos outros. Não entende também porque ultimamente vem perdendo a paciência com seus clientes. Antes, bastava um lhe procurar para pedir um conselho, uma explicação que fosse e toda a atenção era dedicada. Hoje pede aos céus que nos intervalos dos encontros ninguém venha lhe perguntar nada, inclusive adoraria que aquele amigo que vive lhe contando piadas não viesse lhe perturbar. FT sente como se fosse uma acha de lenha que vai queimando lentamente, soltando fagulhas pelo ar. Mas ele continua. Tal como aqueles castelos do século XII, sacudidos pelas ondas do mar, abrasados pelos ventos, corroídos pela chuva continuam como protetores de um torrão, como abrigo para os povos. Continua um símbolo, um ponto de comparação, um ponto de apoio para sua clientela. Isto lhe dá forças para continuar. Ele continua. Toca o sinal. Finalmente FT poderá descansar um pouco. Descansar? FT já esta correndo porque precisa pegar seus filhos na escola, precisa passar no banco para tirar uns caraminguás que restam do salário para pagar o corte de cabelo da filha mais velha e pegar a roupa que mandou tingir e que usará na festa de formatura do filho. Afinal como FT, tendo a profissão que tem, pode ir a uma festa de seu filho sem usar uma roupa nova? FT só tem duas horas para resolver todos os problemas de sua família, pois às 14 horas ele tem que estar de volta ao trabalho. Um lanche rápido, um rápido beijo na companheira e este ônibus que não anda. Como num teatro, onde trocam-se os coadjuvantes e o ator principal permanece, FT inicia mais um turno de trabalho. Mas vejam. Surpreendente. FT está sorrindo. Parece que o dia está começando agora. Para onde foram aquele cansaço, aquelas alfinetadas que davam vida a aquele calo de estimação? Não pode ser. Devem ter trocado FT ou então deram a ele um injeção de vitalidade. Novos cartazes são tirados daquela bolsa que carregava pela manhã e até, inconcebível, uma pequena maquete. Quando ela foi construída? (Só se foi no domingo passado durante aquele churrasco no clube.) A clientela de FT lança olhares de profunda admiração, o silêncio marca o interesse despertado e raios de curiosidade são projetados através de cada par de olhos da platéia. FT é aplaudido ao final de sua exposição. Os ponteiros não andam, o sinal não toca, as veias dilatadas doem, mas para FT só existe um objetivo - cumprir com sua missão. Cumprir com sua missão que na verdade não é sua mas da organização em que trabalha. FT imbuiu-se de que trabalhar com aquela clientela é transcendente a sua vida, é algo onírico, é o seu realizar. Finalmente o sinal toca. Mais um dia se foi. Foi? FT ainda precisa confirmar aquele encontro de terça-feira quando irão discutir os novos métodos a serem adotados com relação a clientela do próximo ano; precisa telefonar para o distribuidor de bebidas, pedindo para mandar mais gelo e mais refrigerantes para a festa de encerramento dos trabalhos; precisa pedir ao seu chefe que assine aquele oficio que será enviado ao Conselho pedindo mais verbas para comprar material de consumo, afinal FT é também o secretário da associação que representa seus pares. Precisa andar rápido para pegar o ônibus. Em casa precisa fazer o dever de casa com a filha mais nova que está tendo dificuldades em matemática, precisa escolher a roupa que vai usar, precisa preparar o encontro do dia seguinte. Um avião? Um super-homem? Um anjo? Não! FT é simplesmente um trabalhador dum país chamado Brasil. Fantasia, irrealidade. Trabalhador como este acima descrito não existe. Quem em sã consciência deixaria de ir ao oculista para dedicar-se ao trabalho? Quem seria tão maluco em continuar trabalhando onde, ao longo do tempo, as condições de trabalho ficam cada vez piores? Não existe ninguém capaz de permanecer numa organização onde seus ganhos salariais desvalorizem! Quem é “bobo” de perder horas de sono procurando gravuras para tornar suas tarefas mais interessantes se as pessoas, quando muito, querem somente saber somar 2 mais 2? Não existe ninguém que goste tanto de seu trabalho a ponto de não buscar outras atividades remuneradas a fim de complementar as suas necessidades financeiras! Nada mais enganoso do que pensar que exista um trabalhador que faça das metas da organização suas metas pessoais. Isto é conversa "prá boi dormir”! Quem quer saber qual foi o resultado do trabalho? Quem está ligando se o trabalho é gratificante? Basta que paguem o salário no final do mês que qualquer um ficará satisfeito! Quem se importa com seu cliente a ponto de ficar preocupado se está ou não está dando atenção especial a cada um deles? É impossível existir um trabalhador tão perfeito assim. Não existe? Advertência (?)...Professores das escolas públicas estaduais....não, perdão (limpando a boca),...fessores e fessoras das escolas públicas...A cada parágrafo nós não conseguíamos deslanchar o discurso, o livro estava ameaçado de não ser escrito...Porque os educadores deste país, eh...educadores e educadoras deste país...De repente, calor súbito no rosto...o discurso que pelo menos uma vez por parágrafo invocava os educadores do Brasil...perdão os educadores e educadoras do país, vai da invocação do gênero masculino (perdão, por colocar primeiro masculino), ao feminino sem descanso...(perdão por colocar feminino em segundo lugar)...O que fazer?...Com a boca seca, tomamos uma grave decisão: Ora...quando o discurso a seguir disser professor, quer dizer também professora, e quando disser professora, quer dizer também professor, e que nos desculpem os professores e professoras deste país. PARTE I – EDUCAR: O AFETO INVOCADO Cap 1 – Educar, Educador Wanderley Codo, Iône Vasques-Menezes Estas linhas ousam pensar a educação e o educador a partir do que o educador faz. Um caminho tão óbvio quanto raro. Tantos e tantos são os livros que discutem a educação, a crise da educação, os métodos para educar, e fazem ouvidosde mercador para o que o educador faz. Nada de errado com isto, a educação é um objeto de análise completo e complexo. Entre outras coisas, é da sua natureza permitir qualquer recorte, qualquer enfoque, como qualquer objeto de estudo, a educação enquanto tema é infinito e generoso. Generosos também os olhares e a polêmica a respeito. Neste final do século a educação é a um só tempo problemática, (o que ensinar? Para que? Para quem?) como obrigatória (sem educação, o país não conseguirá romper seus impasses). Que venham mais e mais discussões, mais e mais polêmica, mais e mais propostas metodológicas. Mesmo não sendo os autores pedagogos, estudiosos da didática ou da problemática da educação, mesmo que alguns deles sejam professores, nunca problematizaram a educação e nunca a elegeram como tema, trazem, neste livro, novas oportunidades de discussão. Trata-se, portanto, de uma tentativa de contribuição "outsider". Trabalho, é o nosso objeto de pesquisa, condições objetivas e subjetivas de trabalho, a nossa área. A esperança é a de que um olhar de fora possa ajudar, mesmo sem nunca substituir, o olhar dos profissionais que dedicam suas horas ao tema, educação. Aqui se fará o contrário do que se costuma fazer em um livro habitual sobre educação, inclusive para manter- se coerente com o ‘olhar de fora’. Nos faremos de surdos aos desígnios da educação, para concentrar nossos esforços na tarefa do educador. A pergunta que animou nosso percurso durante os últimos dois anos foi: “O que faz o educador?” Ou ainda: “Independente do que se quer ensinar, que dramas e gozos se carreiam ao se ensinar?” Se é impossível pensar a crise da educação brasileira sem uma filosofia educacional, sem uma teoria pedagógica consistente, sem uma política clara, ( e é mesmo impossível), também é inócuo pensar a educação na ausência do que faz o educador. Eis a lacuna que estas páginas sonham preencher. Que se entre em uma escola, que se visite as agruras e prazeres dos educadores, professores ou não: o que se verá ali é trabalho, muito trabalho, uma verdadeira usina funcionando a um ritmo alucinante e coordenado. No entanto pouco se lê sobre o educador e a educação, mesmo sabendo que estamos falando de trabalho dos mais complicados, como se verá. Eis porque seremos obrigados a levar o nosso eventual leitor por caminhos nunca dantes navegados: a infra- estrutura das escolas, os sentimentos do professor, só para citar dois exemplos. Até a presença de um banheiro exclusivo para professores, ou o fato daquele banheiro estar limpo, (para ser anedótico) para nós será um tema de análise, na exata medida em que compõe o universo conhecido como condições de trabalho do educador, enquanto a adoção do “sócio-construtivismo” nesta ou naquela estratégia do país, para nós passará desapercebida. A tarefa nos impôs o caminho a seguir: iniciaremos por uma breve constatação de algumas marcas específicas do trabalho de educar; em seguida discutiremos com mais detalhe as relações entre trabalho e afeto; depois discutiremos a questão da crise de identidade que o educador vive neste final de século, terminaremos, já com um resultado empírico, com o perfil do educador que a nossa pesquisa revelou. Sigmund Freud (1975) disse certa vez que educar é uma tarefa impossível, não explicou, e nem caberia. Hoje, o olhar que busca investigar o trabalho, distante das peripécias da sexualidade e/ou do inconsciente tal e qual a psicanálise os definiu, chega à mesma conclusão. Desta vez com a obrigação tácita de se perguntar o “por quê”. Por que a educação é uma tarefa impossível? Uma tarefa impossível Dos que sabem sentar-se à mesa, usar cada copo e cada talher por sua vez, dos que não comem com a boca cheia, os que não misturam a comida a esmo, sabem combinar sabores no prato, diz-se que são educados. Dos que são capazes de reconhecer uma nota musical solfejada no rádio ou dedilhada ao piano, os que reconhecem um cantor, um violão desafinado, os que sabem o nome do autor de uma sinfonia ao ouvir alguns de seus acordes, diz- se que tem o ouvido educado; educação musical. Dos que ficam atentos a olhar um quadro, que sabem reconhecer modos de lidar com cores e formas em uma pintura, que tem algo a dizer sobre o estilo de um autor, ou ainda os que reconhecem o estilo impresso em um romance, a trama dramática armada pelo autor, dos que seriam capazes de discorrer sobre os personagens inventados, digamos, por Jorge Amado, diz-se que tem educação artística, literária. A quem crê em algum Deus, articula um sistema de crenças, pratica liturgias, se comporta de acordo com suas crenças, participa dos grupos organizados em torno a ela, diz-se que tem educação religiosa. Se educa a língua, os olhos, o faro, a sensibilidade, os afetos, o erotismo, qualquer sentido que tenhamos ou que venhamos a inventar. É assim que o mundo leigo, o mundo das primeiras aparências, se refere à educação, ou se tem ou não se tem, ou se tem mais ou menos: “fulano não tem educação, sicrano é mal educado, beltrano é muito educado, tem uma educação finíssima”. Ainda a educação formal, aquela que se aprende na escola não escapa desta miríade de significados. “O aluno não está aqui apenas para receber e dominar conteúdos específicos, deve ser educado para a vida.”, é uma frase comum de se ouvir nas escolas. Os\as professores\as não raro intervém no modo dos alunos se vestirem, tentam ensinar boas maneiras à mesa quando há refeições na escola, introduzem discussões sobre religião, arte, literatura em seus currículos ou aulas. Eles também, os profissionais especializados em educação, atuam a partir do mesmo pressuposto apontado acima, e se consideram (ou são) encarregados da mesma abordagem ampla, geral e irrestrita. Mas fiquemos um pouco mais com o senso comum: “onde começa e onde termina a educação”, no sentido primeiro que escolhemos acima? A resposta seria sempre a mesma: “começa em lugar nenhum, em qualquer lugar, em todos os lugares, nunca termina.” Jamais pode se considerar completa, acompanha cada homem, cada mulher, desde o primeiro passo, a primeira palavra até o último suspiro. Se uma mãe ou pai quer, e sempre quer, educar seu filho, começa, assim que pode e segue por toda a vida, até que possa. Se alguém quer se educar nas artes, começa assim que tem alguma consciência do que seja isto e passa seus últimos dias a freqüentar museus e livros. Cada chance, cada minuto, contribui para formar o patrimônio que vai se acumulando invisível no caráter de cada um de nós, coisa que ninguém vê e todos nós somos capazes de reconhecer. Cada vez que a mãe/pai impede que o pimpolho agarre o frango com as mãos, sempre que se corrige uma pronúncia errada (não se diz ‘pobrema’ e sim ‘problema’), quando se pune o uso de um “palavrão”, quando se propicia a uma criança, um adolescente, um passeio a museus, acesso à boa música, boa literatura, quando a TV nos informa sobre a biografia de Beethoven, quando uma caravana de aposentados se detém respeitosa perante um quadro de Van Gogh, sempre a cada momento, se diz que estamos sendo educados. Melhor enfatizar; mesmo a nível do senso comum, a primeira olhada nos arrasta até a constatação de que a educação não tem um lugar, ocupa todos os lugares, não tem um início ou um fim, acompanha todos os momentos da vida, não tem locus no sujeito, se espalha por todos os sentidos, todos os gestos, todas as crenças e intenções. Não tem um autor, é obra de todos com quem cada um de nós se encontra e também de quem sequer conhecemos. A educação é onipresente e omnisciente. A partir de agora o senso comum não nos ajudará mais. O jovem que conhece e admira música clássica, que reconhece Bach, Vivaldi, Beethoven, o outro jovem que só freqüenta o “tatibitate” das canções da moda, que faz um “muxoxo” de tédio quando escuta um acorde mais sofisticado; ambos ‘têm educação’. O freqüentador de um restaurante que sabe pedir o vinhopela estirpe, reconhece-lo pelo simples gesto de levar a rolha ao nariz e o outro freqüentador que escolhe o vinho pelo preço no cardápio, ambos são ‘educados’, desde o teólogo até o ateu praticante todos são portadores de ‘educação religiosa’. Não existe algo semelhante à ‘pouca educação’, se nos afastamos do senso comum. O analfabeto adquiriu uma cultura, valores e habilidades lhe foram ensinados, concepções foram testadas, detém uma sabedoria diferente de quem freqüentou 20 anos de escola, mas é uma sabedoria. O mundo está repleto de bons exemplos de que muitas vezes é muito sábio, muito educado, embora em outros valores, diferentes daqueles que a escola imputa. Ou seja, além de onipresente e omnisciente a educação é incomensurável. Impossível dizer quem tem ou quem não tem, quem tem mais ou menos, qual é melhor ou pior. Estivemos, até agora, propositadamente afastados da educação que ‘se faz’ na escola, por profissionais especializados: ‘os professores, os educadores, os trabalhadores em educação’. Agora a educação se faz em um prédio próprio, mal ou bem aparelhado para este fim; funciona em horários delimitados; não raro uniformiza seus alunos com a sua marca. Agora a educação tem dono, tem autor, tem começo e fim, tem critério, se mede em números, se avalia. O aluno, ao entrar para a primeira série do primeiro grau, tem alguém responsável pela sua educação; um objetivo pré-traçado, “deve chegar ao final do curso sendo capaz de....”; um programa elaborado onde se imagina que, em seqüência, cada habilidade é necessária para a aquisição da próxima; uma prova ou algo semelhante que é lida como um indicativo de que as metas foram ou não cumpridas; o resultado definido em porcentagens precisas, uma escala de 0 a 10, um ponto de corte arbitrado com precisão milimétrica (até 5,0 significa reprovação; 5,1, ou mais, significa aprovação). Um professor faz um curso, um concurso, está habilitado para ensinar, digamos, português ou matemática, tem um programa, define metodologia, estabelece avaliações, o comportamento esperado em cada uma delas, etc., etc. e etc. Agora a educação comparece com um trabalho, como qualquer outro: profissionais dividindo as tarefas, cada qual cuidando de seu pedaço, o aluno tendo seu trabalho avaliado e arbitrado, quantas horas deve se dedicar para aprender matemática, biologia ou português. Agora vislumbramos uma atividade oposta àquela que vimos surgir mais acima: “educar é uma tarefa objetiva, finita, mensurável, tem seu lugar (a sala de aula), seu tempo (a duração da aula) e sua medida (as provas)”. Tem mesmo? Que se ouça o professor: “Não quero que os meus alunos fiquem apenas decorando os nomes dos países, quero que tenham uma noção crítica de História ou Geografia”... “Não basta que os alunos saibam fazer contas é preciso que saibam raciocinar segundo a lógica matemática” ... “Mais importante do que as leis e os símbolos deste ou daquele país, procuro ensinar uma ética e uma moral capaz de transformá-lo em um cidadão” ... “busco desenvolver em meus alunos a capacidade de crítica, o sentimento de justiça” ... “É preciso que o aluno traga sua realidade concreta para a sala de aula, ou É preciso levar a realidade concreta para a sala de aula”. Figura 1, Cap. 1 - Declaração de um professor em relação ao que busca ensinar. Bastou aprofundar um pouquinho nas primeiras aparências e já estamos outra vez sem poder medir, diferenciar, definir. Outra vez, mesmo no espaço definido da escola, mesmo na rigidez do resultado numérico, estamos no território do onipresente, omnisciente, incomensurável. Talvez por isto Freud disse que educar, assim como governar e psicanalizar, é uma tarefa impossível. Como alguém pode dizer que faz uma tarefa que não se define? Que não tem começo nem fim? Que sequer se saiba o que seja? Mesmo que imaginássemos a figura idílica que habitou o sonho de nossas avós: uma mãe ou um pai dedicado exclusivamente à educação de seu único filho, mesmo que esta senhora ou senhor soubesse tudo a respeito da formação que seu filho devesse receber, mesmo que fosse possível acompanhar todos os momentos de vida deste filho, pelos seus primeiros vinte anos. Mesmo assim, a educação seria uma tarefa impossível, um trabalho onipresente e omnisciente exige alguém idem para realizá-lo. Coisas que talvez sejam atributos dos deuses - se deuses houverem - um reles mortal está incapacitado a priori. Mas a vida real é composta de professores, com muita sorte, com ‘apenas’ 30 alunos em quatro horas, por nove meses ao ano. Agora sim, também para um mero mortal: “Uma tarefa impossível.” Número de Alunos por Turma sem resposta 6,50% menos de 20 3,30% de 20 a 35 32,00% de 35 a 45 41,60% de 45 a 55 14,00% mais de 55 2,60% Total 100,00% Figura 2, Cap. 1: Distribuição do número de alunos por turma. Ali uma jovem sentada, em companhia de centenas de outras, carrega no semblante, em frente a um papel cheio de bolinhas vermelhas, onde querem saber se ela sabe quem foi Jean Piaget, querem que realize com esmero equações e raízes quadradas, que saiba com todos os “sss” e “rrr” as obras escritas por Machado de Assis... Presta um concurso público para o qual se preparou em média 12 anos, quer ser professora. Vencida a batalha, eis que entra em sala de aula, nos primeiros trinta segundos se avexa com o adolescente que não desgruda o olhar de suas pernas, e insiste em não disfarçar; se confunde com a troca de figurinhas de futebol, um pouco mais atrás; persegue inutilmente o olhar entregue às moscas da/o mocinha/o sonhadora/sonhador. Ensinaram-lhe Piaget, cobraram-lhe Piaget; e lhe entregaram a tarefa de administrar a vida toda, de todos nós. Ao contrário do provérbio popular, ‘cobraram por um gato e lhe ofereceram uma lebre’. Acolá uma ‘dona de casa’, que nunca soube fazer nada além de cuidar de si e da família, (o que sabe, é muito, mas o mercado de trabalho acha que é nada) enche outras tantas bolinhas para ser merendeira em uma escola pública. Sabe que fará lanches para aquele bando de moleques, refeições que serão devoradas em cada intervalo. Ao chegar no primeiro dia de trabalho encontra um garoto a pisar nos pés de outro na fila, se encontra na situação de ensinar bons hábitos à fila, à mesa, surpreende alguém surrupiando salsichas do vizinho mais fracote, se impõe a tarefa, nunca antevista, de guardiã e mestra da generosidade, humanidade, justiça, valores tão caros, tão raros que não há preço que se pague. Educadora, tanto quanto o professor, com a desvantagem que ninguém parece saber disto, muito menos o seu contracheque. Impossível. E muitos vivem a vida como ela, e muitos ainda gostam disto, talvez porque seja uma tarefa, um trabalho muito especial. Qualquer ser humano sonha, pelo menos por um momento, em escrever seu nome na história, em última instância, em não morrer, em ser lembrado depois que passou. O professor, o educador, tem esta chance. Uma atividade completa Ser Humano significa ser Histórico. Compreender um ser humano implica em partir do pressuposto de que cada gesto, cada palavra estão imediatamente inseridos num contexto muito maior, que transcende a ele e a sua existência. Escrevendo a História, de toda a humanidade, todo o passado determina, constroí, reconstrói; explica, significa e re-significa o presente; todo presente engendra, contém e constroí o futuro. Assim, cada ação humana carrega em si toda a História da Humanidade e as possibilidades a serem re-desenhadas amanhã e é também portadora do futuro. Cada ação humana é uma síntese, ao mesmo tempo, única e universal, do nosso passado e do nosso futuro. Que seja um ato banal: ‘comer um tomate.’ Algum hominídeo, em algum lugar perdido no passado, movido pela fome encontrou a fruta silvestre, experimentou, gostou dela. Muito tempo depois, a tribo aprendia a plantar sua semente, a protege-la dos outros animais, pragas, intempéries, desenvolveu-seuma tecnologia agrícola que aos poucos mudava a face, o gosto, a composição físico-química do tomate, seria já irreconhecível perto do seu antepassado silvestre, milhares de anos, de trabalho de todos os homens. Os agricultores, os químicos, os comerciantes, os transportadores, literalmente toda a humanidade, toda a História está presente no tomate que comparece ao meu prato. O objeto mesmo, criado e consumido pelo Homem comparece como portador de sua História, de seu devir. Se quisermos estudar o desenvolvimento do homem de sua era mais pré-histórica até hoje podemos faze-lo com base num objeto qualquer, em qualquer ato, por mais banal que seja. Não apenas os objetos, os atos também são históricos. A história existe antes e depois do ato e provavelmente vamos entendê-lo de uma forma muito mais abalizada no decorrer dos tempos. Uma rede infinita se tece e se concentra no ato de comer o fruto ou não. O preço, o valor, a medida, a estética, a propaganda, o mercado, a técnica, a fisiologia, a física, a biologia. Infinitos tomates são inventados pelo gesto humano e se alojam dentro do tomate; um médico poderia nos falar muito sobre a vitamina C e as outras que a fruta carrega. Um comerciante poderia fazer o mesmo, um industrial, um político. A História do tomate começa muito antes do Homem ter comparecido ao mundo; a evolução das moléculas, todos os acidentes que implicaram na existência de um ser vivo, à qual mal temos idéia. As receitas disponíveis para preparar o fruto, que vão se acumulando e se preenchendo de significados em culturas diferentes, em classes sociais distintas, em vários grupos etários. Tantos são os tomates, dentro do tomate, que fomos criando especialidades dedicadas a uma ou outra faceta: O agricultor dedica sua vida a conhecer detalhes sobre o plantio da fruta, seu comportamento, sua evolução. O engenheiro agrícola a conhecer nomes e fórmulas de venenos, por um lado e comportamento de uns bichinhos estranhos que ele chama de pragas, do outro. O médico se preocupa com os nutrientes e os efeitos fisiológicos do tomate, em que dietas deve entrar, em que dietas deve ser proibido. O sociólogo estuda os hábitos alimentares da população alvo para saber da possibilidade de aceitação do alimento e da forma adequada. E assim por diante. O médico, o agricultor, o comerciante, e quantos mais pudermos lembrar, todos os trabalhadores que compuseram, compõe e virão a compor os milhares de significados que um tomate pode ter: ‘todos eles se formam na escola’. Enfim, um tomate é a síntese de toda a história natural e depois toda a história da humanidade. O mesmo pode ser dito do ato de come-lo, da faca e garfo que se utiliza para tal, do lugar onde se senta para a refeição. Mas falemos um pouco do futuro. Ao comer o tomate, ou mesmo quando o recusa, você está intervindo em todo o futuro da humanidade. Por exemplo, você cria, ou mantém, a necessidade de alguém plantá-lo; cria, ou mantém, a necessidade de produção de adubos e venenos e, por extensão, da pesquisa em química orgânica e inorgânica; cria, e/ou mantém, a necessidade de uma rede de transportes - você é responsável pelo emprego do caminhoneiro que foi contratado pela agroindústria produtora de tomates em Mogi das Cruzes, por exemplo, uma cidadezinha produtora desta fruta, da qual você sequer precisa ter ouvido falar. Ao comer a fruta você gerou um movimento; alguém em sua casa foi ao supermercado comprar outra, o que por sua vez implicou em uma baixa de estoque, que provoca uma busca de fornecedores, que procuram os intermediários, que procuram os produtores, que acionam os transportes, e assim, per omina. Um agricultor a tomar uma cerveja ‘de papo para o ar’ depois do trabalho, se gaba de ter tido um bom palpite, ‘plantar tomates este ano deu dinheiro’. Você foi responsável pelo sentimento de segurança do agricultor! Todo o nosso futuro; a viabilidade de nossa agricultura, de nossas importações e exportações, da bolsa de valores do Brasil, e por extensão do mundo todo, estão irremediavelmente ligadas ao teu descuidado gesto de comer um tomate. Por sorte nossa, todas estas mediações, toda a História, todo o futuro está oculto, desaparece do gesto de comer. Ao triscar a fruta entre os dentes a única coisa que permanece é o seu gosto agridoce, a boa sensação de um estômago saciado. Viemos enfocando um ato banal para ressaltar o caráter histórico de qualquer instrumento, qualquer gesto humano. Apesar de sua historicidade, a maioria dos atos e objetos banais que poderíamos escolher para contar a História dos homens são mudos, comparecem em nosso cotidiano e não deixam registro. Poucos são os objetos produzidos por nós, e os atos praticados por nós, que permanecem na História registrada, escrita, documentada, ou ao menos lembrada por nossos pares. O nosso prosaico tomate desaparece sem deixar vestígios, na boca do consumidor, nosso gesto de fatia-lo e servi-lo ao jantar tampouco deixa rastros. São históricos e anônimos. Por isto raramente temos consciência deles, de sua historicidade, da cadeia sócio-econômica-política em que se inserem e que alimentam. Os outros, os raros que merecem registros, estes nos orgulham muito, ser citado em um livro, ter escrito um , ser lembrado pelos amigos, pelos entes queridos. Ter tido a sorte ou a coragem de fazer a coisa certa, definitiva, ter a certeza de que as tuas palavras mudaram a vida alheia. Quanto prazer tudo isto nos dá. Inventamos rituais para marcar os gestos que consideramos dignos de freqüentar a memória: Um casamento, o nascimento dos filhos, os aniversários que todos queremos memoráveis, as formaturas. Realizamos registros para que permaneçam apesar de nós, um álbum de fotografias, as cartas recebidas, objetos presenteados, mesmo que fúteis, um diário. É que ao retirar nossa História do anonimato, ao reservar-lhe um lugar em nossa memória, com sorte na memória alheia, de alguma forma tomamos posse de nosso destino, do nosso próprio ser histórico. Todos sabemos o prazer, o deleite que isto traz. Mas poucos tomates tem esta sorte, poucos jantares com a salada do fruto ganham registro. A menos.....A menos que se esteja em uma escola, em uma sala de aula, durante a aula. Eis um lugar onde o tomate e o seu apreciador recuperam toda a sua História, todos os seus significados: A escola. Há um profissional cuja obrigação é o de reconstruir todo o passado e todo o futuro preso ‘nos tomates da vida’: o professor. Educar, portanto, é o ato mágico e singelo, de realizar uma síntese entre o passado e o futuro. Educar é o ato de reconstruir os laços entre o passado e o futuro, ensinar o que foi para inventar e re-significar o que será. O aluno que aprendeu as propriedades alimentícias do tomate jamais será o mesmo, o professor sabe que o seu gesto ficará, o aluno que aprendeu a escrever o vocábulo to-ma-te terá a partir dali um outro universo à sua disposição, nunca dantes sonhado, o professor sabe que é um artífice de novos mundos. Que seja um trecho de uma aula qualquer. O aluno escreve “o automóvel buzinou na porta de entrada”. O professor separa a palavra ‘automóvel’ e mostra que se trata de um hibridismo “palavra composta de duas origens diferentes, auto vem do grego autos (por si mesmo), e móvel vem do latim, mover-se, portanto; que se move por si mesmo”. Fomos todos vivendo, construindo carroças, passamos por Henry Ford, alguém deu o nome para aquela engenhoca que andava sozinha até o inferno do trânsito nas grandes cidades, o professor recupera, recompõe, re- vincula a palavra com parte de sua história, o aluno se apropria deste passado e vai utiliza-lo no futuro, quando tiver pela frente, por exemplo, a palavra ‘auto-suficiente’, sem que ninguém lhe diga, saberá o sentido. Retomar o passado, refazer os vínculos com o presente, reorganizar o futuro, eis o que o professor faz. Quando se estuda ciências - história, geografia, português,literatura ou matemática, física, química ou biologia - o que o professor esta fazendo? Esta trazendo o passado para que se possa construir o presente dos alunos para que eles então possam, através da re-significação, construir o futuro. Essa transformação é produto do trabalho da educação, do ensino, do professor, dos profissionais da educação no seu vínculo direto com o passado e com o futuro, os alunos. “Os professores que mais me marcaram foram exatamente aqueles que não foram bons professores, os mais incompetentes. Por aí pode-se ter uma medida da importância do professor, da delicadeza que é ensinar uma pessoa.”... “Graças a Deus, a grande maioria dos professores que eu tive se dedicavam ao ensino. Professores como o de história do Colégio São Bento, quando eu tinha 8 anos, o professor Mesquita, que dava suas aulas desenhando histórias em quadrinho no quadro negro. Ele entrava no teu mundo para te ensinar. E todos nós éramos ótimos em história.” (Jô Soares, 1997 in Projeto Aprendiz – Magia do Saber – 14 a 20 de setembro 1997.) Figura 3, Declaração do Jô Soares, para o Projeto Aprendiz, sobre os professores que marcaram sua vida. Toda ação humana é potencialmente geradora de significados, potencialmente transcendente, mas apenas alguns poucos gestos tem a sorte de fazer a História, reservarem seu lugar no futuro. A menos que você seja um/a professor/a. Neste caso cada palavra dita, cada movimento do olhar tem seu lugar reservado no futuro do outro, do país, do mundo. Por bem e por mal. O Produto e o Outro A primeira lição que um estudioso do trabalho aprende é: Pergunte pelo produto. Aprendemos muito cedo que ao entender o produto entenderemos muito do trabalhador. O marceneiro é do jeito que é porque produz cadeiras, mesas, armários, porque tem a madeira como matéria prima, seus braços, seus gestos vão se tornando diferentes, portanto sua identidade vai se tornando reconhecível. Um médico desenvolve outras sensibilidades, outros hábitos, também porque o seu produto é outro. É que o trabalho pereniza o gesto do trabalhador, imortaliza o trabalho. É que o trabalho é uma mágica que tem lugar entre o homem e as coisas, a coisa faz o homem e o homem faz a coisa, a madeira faz o marceneiro que faz a madeira. Se houvesse um final do processo, temos outro mundo, e outro homem. O mundo com a face do marceneiro o marceneiro com o jeito da madeira. Pois bem, é isto que permite ao homem ser histórico, a possibilidade de permanecer apesar de si, ao brincarmos acima com a idéia do tomate, o que dizíamos é que cada gesto nosso, através do trabalho, é sempre imortal. O produto do trabalho é a corporização desta permanência do homem apesar dele mesmo. Seus vínculos com os outros homens, com nosso passado, nosso futuro. Mas há ainda uma outra face da mesma moeda. Ao representar o homem, o produto do trabalho o re- apresenta. A mesa do marceneiro passa a existir como seu outro ser, que se insere na vida da família que se senta na hora do jantar. O marceneiro, através do seu produto, comparece perante os outros homens materializado. Estamos em um jogo de espelhos que em última instância constrói o que chamamos de identidade social, os modos como o trabalhador constrói a si e se apresenta perante o outro. Mas e o professor? Qual é o produto do professor? O marceneiro transforma ao outro, os outros, a sociedade, através da mesa. O professor transforma o outro através do outro mesmo, sem mediações. O seu produto é o aluno educado, é a mudança social na sua expressão mais imediata. Vejamos: de pouco importa os truques didáticos que se utilizem em sala de aula, de pouco importam os exemplos, de pouco importa que o aluno saiba repetir uma lista enorme de Países e suas capitais, o que importa é o que mudou neste aluno, agora sabe ler, agora sabe consultar um atlas, agora sabe escrever. De pouco importa se saímos todos para plantar árvores em uma manhã de primavera, ou se o professor exerce o terrorismo ambientalista em sala de aula, o que importa é desenvolver a consciência ecológica nos alunos, em seus pais, na comunidade. Se retomarmos a discussão acima, na maioria dos trabalhos se pode traçar um esquema assim: Modificar a natureza> modificar a si mesmo >produto> modificar o outro Para o educador a relação é direta: Modificar a si mesmo> modificar o outro. Que conseqüências esta especificidade carreia para o trabalho do professor? Este é uma das perguntas centrais deste livro, mas algo deve ser adiantado agora. Em primeiro lugar, um marceneiro, empregado em uma fábrica de móveis pode passar toda a sua vida marcenando sem que tenha consciência da capacidade de transformar o mundo, sem que refaça em seu espírito o percurso que o aproxima de Deus. Já ao educador a sua dimensão histórica é posta imediatamente à sua frente. Depois de cada aula é outro, são outros seus alunos, é outro o planeta em que convive. Digamos, o trabalho do educador é imediatamente histórico. Ao mesmo tempo, a mesa do marceneiro está ali, relativamente imutável ao correr dos anos, reconhecível de imediato, permite a todo o momento a recuperação dos gestos que a realizaram. Para o professor, ficará difícil recompor o trajeto. Raros e felizes são os momentos em que é possível reconhecer no aluno a marca específica do trabalho. Em um plano abstrato, sim, fui eu que o eduquei, ou ajudei a educar, mas em um plano concreto, como saber onde começou e onde terminou a minha intervenção? Como dimensionar a minha potência? O outro se transforma na mesma velocidade em que o professor o transformou. A historicidade imediata que anima o trabalho do professor o deixa impossibilitado de se refletir imediatamente, a ausência de um produto, apesar da relação mesma, o condena à relação. Depende, para se reconhecer, que o outro o reconheça. Mas é também a existência concreta do produto que permitiu e permite a alienação do trabalho, por isto que Marx dizia que o trabalho alienado rouba do homem sua hominidade, o transforma em um animal. Na exata medida em que rouba do homem o seu ser, o seu vir a ser, a sua História. O ardil que implicou na hegemonia da mercadoria é o ardil da transformação do trabalho concreto em trabalho abstrato, em mercadoria, em valor de troca, consiste em última instância em descarnar o trabalho das marcas que importou do trabalhador. A análise da alienação do trabalho formulada por Marx pode ser melhor compreendida nos seus significados se temos em conta que Marx foi o verdadeiro herdeiro do iluminismo, entre outras coisas, porque sustentava uma concepção filosófica do homem como ser com infinitas potencialidades de desenvolvimento, que estavam sendo impedidas e atrofiadas sob o sistema capitalista. A análise da alienação mostra esse cerceamento que o capitalismo faz no homem, chegando ao ponto de sentir-se livre, apenas quando está fora dele. O primeiro nível de alienação considerado por Marx era o da propriedade dos meios de produção e subsistência. De fato, na passagem do feudalismo para o capitalismo os trabalhadores, camponeses e artesãos independentes haviam sido expropriados dos meios de produção e subsistência, que paulatinamente se haviam concentrado nas mãos da burguesia. Já no marco do processo capitalista de produção, segundo Marx, os trabalhadores eram alienados tanto do processo de trabalho como do produto. O processo de trabalho, suas etapas, organização, ferramentas, estava num primeiro momento histórico ( na etapa de maturidade do feudalismo) sob controle dos trabalhadores, proprietários individuais dos meios de produção e subsistência. Em parte, os trabalhadores eram seus próprios patrões naquele momento, embora estivessem ligados (os camponeses) na forma de servidão aos senhores feudais por institutos feudais. A passagem do feudalismo ao capitalismo significou a expropriação dos trabalhadores, a concentração dos meios de produçãoe subsistência nas mãos dos patrões capitalistas e, por conseguinte, o surgimento da propriedade privada capitalista, que negava superando, a propriedade privada individual dos trabalhadores. A partir daí, o trabalho seria coletivo e a apropriação da riqueza, privada, grande contradição do capitalismo, que se traduzia, no século XIX, na miséria crescente da maioria e na riqueza crescente de uns poucos. Esse primeiro nível de alienação, determinava os seguintes: a alienação do objeto do trabalho e a alienação do processo de trabalho propriamente dito. Sob o capitalismo, segundo Marx, o objeto de trabalho não pertencia ao trabalhador. Este plasmava sua subjetividade no objeto, sua própria vida, mas ele pertencia ao capitalista. O objeto comparece perante o trabalhador não como uma objetivação de sua subjetividade, mas como um ente estranho, como um inimigo. A alienação do processo de trabalho acontece na medida em que o capitalista o submete a seus próprios fins, a consecução do lucro. Trata-se de um processo paulatino de expropriação do controle do trabalhador sobre o processo de trabalho. Num primeiro momento, o controle sobre o processo está nas mãos do trabalhador, ele possui um saber–fazer que lhe permite planejar seu trabalho em termos de etapas, ritmo do trabalho, prescrições de qualidade, etc. Este controle é típico do processo de trabalho realizado pelos artesãos independentes, e, em parte, pelos trabalhadores durante as primeiras etapas da manufatura. O processo de trabalho lhe pertence e é algo interior a ele. Paulatinamente, a partir de estratégias de divisão do trabalho e de incorporação de maquinarias, o processo de trabalho começa a ser expropriado pelo capital. Ele vai se configurar como um processo que acontece fora do trabalhador. Ele perde cada vez mais o controle sobre as etapas do processo produtivo, os ritmos, as cadências, etc., na medida em que seu saber-fazer começa a passar às mãos do capital, na medida em que ele é expropriado do seu saber . A divisão técnica do trabalho esfacela ao trabalhador, convertendo-o num “homem unidimensional”. Podemos aplicar esta análise do processo de trabalho sob o capitalismo como atividade alienada, ao processo de trabalho que tem lugar nas escolas? . Em primeiro lugar as escolas não são fábricas capitalistas, não temos patrões capitalistas nas escolas públicas. Se consideramos que o estado é um representante de classes, no máximo poderíamos dizer que a compra do trabalho do professor é intermediada pelo estado, o que lhe transfere propriedades muito particulares, por exemplo, a extração de maisvalia não é direta. Mas qual a relação do professor com o processo ou atividade de trabalho que tem lugar na escola, com o planejamento, com a execução, com os instrumentos do trabalho, e com o produto do trabalho: o aluno? Primeira questão a ser colocada: o saber e o saber-fazer, está nas mãos do professor, condição principal de sua atividade de trabalho. Por isso, o planejamento de seu trabalho, as etapas a seguir no processo de ensino- aprendizado, são por ele decididas, o ritmo imposto a seu trabalho não escapa completamente a seu controle, embora existam prescrições externas, às quais ele poderá, por diferentes motivos, resistir. Tudo isso porque ele possui um saber e porque o produto do trabalho é o outro. No que diz respeito ao produto do trabalho do professor, existem inúmeras especificidades. Em primeiro lugar, como já se viu, não se trata de um objeto sobre o qual ele plasma sua subjetividade, mais de um outro ser humano. A parte de seu ser que foi realmente objetivada no produto- aluno, será sempre alguma coisa difusa para ele e para os outros. O produto/aluno será no entanto tão alheio como é alheio para um trabalhador qualquer o produto por ele produzido. Embora dificilmente será sentido como potência estranha, como inimigo. Em uma palavra, para o educador, o produto é o outro, os meios de trabalho são ele mesmo, o processo de trabalho se inicia e se completa em uma relação estritamente social, permeada e carregada da História. Uma relação direta e imediata com o outro é necessariamente permeada por afeto. E é o afeto como componente tácito do trabalho que havemos de enfrentar a seguir. Cap 2 - Trabalho e Afetividade Wanderley Codo, Andréa Alessandra Gazzotti Os lugares do afeto e do trabalho Ainda hoje convivemos com uma delimitação bem definida entre afeto e trabalho: ‘Não se envolva com os seus colegas de trabalho, muito menos com o seu chefe’; ‘onde se ganha o pão não se come a carne’ dizem os executivos para se referirem aos apetites sexuais cuja vazão nunca podem ocorrer no trabalho; ‘não se deve levar problemas do trabalho para casa ou problemas de casa para o trabalho’; ‘meus dramas afetivos não são de interesse dos meus colegas de trabalho’; ‘não posso permitir que os conflitos no trabalho atrapalharem minha vida familiar”. Um livro americano de auto-ajuda traz sua conclusão já no título ‘Sexo no escritório: Um guia de sobrevivência’, por dentro uma série de conselhos: ‘evite se aproximar muito de seus/suas colegas, evite olhares cúmplices’. Até a algum tempo atrás a IBM deixava muito claro a seus executivos, qualquer flerte, namoro ou casamento com um/a subordinado/a implicava em demissão, com sorte, de apenas um dos parceiros, muitas e muitas empresas impedem parentes de trabalhar na mesma empresa ou na mesma seção. Nem sempre foi assim. Até a Segunda Revolução Industrial, com o advento da fábrica, afeto e trabalho viviam em saudável confusão. Na chamada comunidade primitiva, onde caça e coleta eram as atividades predominantes, sequer a divisão trabalho- lazer poderia ser facilmente estabelecida, por esta razão os índios eram considerados ‘vagabundos’ pelos portugueses colonizadores do Brasil. Escravas, no Brasil colonial, eram chamadas a amamentar e cuidar das crianças, configurando a “mãe preta”, enquanto os médicos ajudavam as madames da casa grande a secar o leite sem prejudicar a beleza dos seios. O comerciante da idade média, no máximo, dispunha de um andar onde vendia suas mercadorias e morava no andar de cima, os empregados comiam todos à mesma mesa junto com os patrões e era comum que o estoque fosse guardado embaixo da cama de casal. O romance “Germinal” (Émile Zola) descreve com preciosismo a promiscuidade entre o aprendiz e a família de mineiros. O início do interesse deste ao ver a menina se despir para o banho após o trabalho, o romance que se desenha entre os dois, permeados pela vida subterrânea da mina. É o advento da fábrica que vem mudar radicalmente este quadro, com a Inglaterra promulgando leis impedindo filhos e mulheres dos operários de freqüentar a fábrica, o lar burguês com a privacidade garantida, corredores, portas fechadas - pudor. É Taylor impedindo que os operários conversassem durante o trabalho, restringindo os grupos à saída ao número de 4 pessoas. Em uma palavra, o afeto foi expulso do trabalho pela organização taylor-fordista que se inaugurou com a fábrica, que consolidou o capitalismo e se consolidou com ele. Impôs uma divisão rígida de lugares e gestos. Afeto, carinho, cuidado - situado e sitiado no espaço doméstico; e ao trabalho - a racionalidade, a burocracia, a medida.Uma discussão mais pormenorizada desta questão pode ser encontrada em “Indivíduo, Trabalho e Sofrimento” (Codo, Sampaio e Hitomi, 1993). E o trabalho do professor? A palavra educação provém do latim educatio que, além de instrução, também significa ação de criar, alimentar, alimentação, criação. Educador vem de educator aquele que cria, pai, que faz as vezes do pai. Quem tiver hoje em torno dos quarenta anos terá na memória a figura de uma professora aplicando castigos físicos tal e qual aqueles que só a mãe tinha direito perante as travessuras do/a garoto/a; ou quiçá as conversas com a mestra depois da aula onde se faziam confissões,se recebiam conselhos, ou ainda as alianças terríveis engendradas entre a mãe e a professora, invariavelmente sem a presença do garoto. Um trabalho carregado de afeto, como se vê. Quem pensar que se trata apenas de uma raiz perdida no tempo se espantará com a quantidade de professoras que pensam em si mesmas ‘como se fossem mães’, professores que ‘se imaginam pais’ (voltaremos a esta questão). “Quando entrei na escola, via cada aluno como sendo de minha família e envolvia-me demais, o que me levou à terapia para trabalhar isso. Hoje em dia já superei, mas ainda me choco com as histórias das famílias, pois pode acontecer a qualquer um” “Com os alunos sou do tipo “mãezona”, dando conselhos. Eles gostam de abraçar e consideram os professores como seus amigos. A escola é o espaço do qual muitos se utilizam para desabafar seus problemas, inclusive os de ordem familiar.” “Nas minhas relações com os alunos, me considero ‘galinha com os meus ovos’: gosto dos alunos me preocupo com eles. Quando acontece algum incidente entre professores e alunos, sempre acabo achando que a culpa é dos primeiros.” “Considero que minha responsabilidade é ensinar e não consigo me esquecer dos meus próprios professores. Na minha época a figura do professor correspondia a um pai ou uma mãe.” “Estou há oito anos nesta escola. Gosto porque é perto de casa, mas também apego-me aos alunos. Sei que o aluno da Quinta série será meu aluno na Sexta. Alguns alunos chegam a considar -me ‘mãe’.” Figura 1, Cap. 2 - Declarações de professoras sobre o relacionamento com seus alunos, quanto ao papel de mãe. Afeto: indispensável na atividade de ensinar O trabalho de educar tem tudo para ser o melhor e ao mesmo tempo é um tipo de trabalho dos mais delicados em termos psicológicos. Tudo para ser o melhor porque não há fragmentação no trabalho do professor; é ele quem, em última instância, controla seu processo produtivo: em sala de aula, embora tenha que cumprir um programa, possui ampla liberdade de ação para criar, definir ritmos, definir a seqüência das atividades a serem realizadas. Além disso, e o que é mais importante, o professor é dono de seu processo produtivo, participando desde o início ao final de seu processo de ensino. Mas esta não é a única peculiaridade deste tipo de atividade. Todo trabalho envolve algum investimento afetivo por parte do trabalhador, quer seja na relação estabelecida com outros, quer mesmo na relação estabelecida com o produto do trabalho. Mas, o caso do professor é diferente, a relação afetiva é obrigatória para o próprio exercício do trabalho, é um pré-requisito. Para que o trabalho seja efetivo, ou seja, que atinja seus objetivos, a relação afetiva necessariamente tem que ser estabelecida. O objetivo do trabalho do professor é a aprendizagem dos alunos. Para que a aprendizagem ocorra, muitos fatores são necessários. Capacidade intelectual e vontade de aprender por parte do aluno, conhecimento e capacidade de transmissão de conteúdos por parte do professor, apoio extra-classe por parte dos pais e tantos outros. Entretanto, existe um que funciona como o grande catalisador: ‘a afetividade’. Através de um contrato tácito, onde o professor se propõe a ensinar e os alunos se dispõem a aprender, uma corrente de elos de afetividade vai se formando, propiciando uma troca entre os dois. Motivação, cooperação, boa vontade, cumprimento das obrigações deixam de ser tarefas árduas para os alunos. Interesse, criatividade, disposição para exaustivamente sanar dúvidas, estimulam o professor. Em outras palavras, o papel do professor acaba estabelecendo um jogo de sedução, onde ele vai conquistar a atenção e despertar o interesse do aluno para o conhecimento que ele está querendo abordar. Esta sedução, esta conquista, envolve um enorme investimento de energia afetiva, canalizada para a relação estabelecida entre aluno e professor. É nesta dança, entre sedutor e seduzido, na sincronia dos passos, na harmonia dos movimentos, que o professor transfere seus conteúdos e o aluno fixa o conhecimento. É mediante o estabelecimento de vínculos afetivos que ocorre o processo ensino-aprendizagem. Basta lembrar que o significado da palavra seduzir é ‘trazer para o seu lado’, o professor precisa que os alunos estejam do seu lado, se estiverem contra ele, funcionarão como obstáculo a qualquer conteúdo a ser assimilado. Além disto, a necessidade deste ou daquele conteúdo muitas vezes só pode ser percebido muito tempo depois de assimilado; “para que servem tantas contas”, o professor precisa que os alunos confiem em si, acreditem que aquele conteúdo lhes será útil; outra vez sedução, outra vez afetividade. Se esta relação afetiva com os alunos não se estabelece, se os movimentos são bruscos e os passos fora do ritmo, é ilusório querer acreditar que o sucesso do educar será completo. Se os alunos não se envolvem; poderá até ocorrer algum tipo de fixação de conteúdos, mas certamente não ocorrerá nenhum tipo de aprendizagem significativa; nada que contribua para a formação destes no sentido de preparação para a vida futura, deixando o processo ensino- aprendizagem com sérias lacunas. Mas além do professor há outras funções dentro da escola que também estão envolvidas no processo de educar, embora não em caráter formal. É o caso dos funcionários que, contratados para desempenhar atividades operacionais específicas, bem sabem que, dentro deste tipo de instituição, seu trabalho envolverá o contato direto com os alunos. Neste sentido, o trabalho da funcionária encarregada de limpeza nunca será o mesmo da faxineira de um escritório; o da merendeira jamais poderá ser comparado ao da funcionária de uma cozinha industrial; o da funcionária da portaria da escola, então, de longe não se assemelha ao da portaria de um prédio ou empresa. O que dizer, então, no caso das escolas onde alguns desses funcionários acumulam a função de tomar conta dos alunos durante o intervalo? Os funcionários podem não participar da educação em termos do currículo oficial da escola mas, sem dúvida nenhuma, contribuem e muito para garantir o bem-estar dos alunos, para a criação de hábitos, atitudes e valores. Enfim, também têm a sua participação na transmissão do currículo oculto e estão envolvidos com a atividade de cuidar. Neste sentido, o envolvimento afetivo, embora não seja tão crucial quanto para o professor, também é essencial na realização do trabalho. Se, por um lado, as tarefas oficialmente atribuídas a estes profissionais são objetivas, de caráter operacional, não necessitando portanto de investimento afetivo; por outro; cuidar, educar requerem necessariamente a expressão da afetividade. Para que esta função implícita seja realizada com sucesso, entretanto, o vínculo afetivo torna-se obrigatório. Para os alunos mais novos, elas são “a tia da limpeza” , “a tia do banheiro”, “o tio do portão”, “a tia do refeitório”. Estes funcionários, muitas vezes, conhecem os alunos pelo próprio nome. Sabem dos problemas familiares, dos comportamentos indisciplinados, até mesmo das dificuldades nesta ou naquela disciplina. Assim, não é preciso fazer distinção funcional ao tratar a questão da afetividade. Consideraremos educadores todos aqueles, professores ou não, que atuam na instituição e de alguma forma interferem na formação do aluno. Por ora nos basta concluir que o educador faz parte do tipo de trabalhador que vem sendo chamado de “care- givers”, doadores de cuidado, como os enfermeiros ou assistentes sociais: desenvolve um trabalho onde a atenção particularizada ao outro atua como um diferencial entre fazer e não fazer sua obrigação. Em outras palavras, é um trabalho impossível de ser taylorizado, de se enquadrar em uma linha de montagem fordista, um trabalho que, ou leva em conta os vínculos afetivos com o aluno, com o produto, com as tarefas, ou simplesmente não se viabiliza. A tensão entreobjetividade e subjetividade A palavra afeto vem do latim, affectu, (afetar, tocar) e constitui o elemento básico da afetividade, conjunto de fenômenos psíquicos que se manifestam sob a forma de emoções, sentimentos e paixões, acompanhados sempre da impressão de dor ou prazer, de satisfação ou insatisfação, de agrado ou desagrado, de alegria ou tristeza. Costumamos utilizar a forma verbal do termo, afetar, no sentido de influenciar: “o que ele diz sobre mim não me afeta”. Ao dizer que o ser humano age sobre o meio em que vive, estamos considerando também que ele dá significado ao objeto através da sua ação. Esta significação é a expressão da subjetividade do trabalhador, enquanto que a alteração física produzida no ambiente é a realidade objetiva. O trabalho pode então ser analisado nestas duas esferas: uma objetiva e outra subjetiva. A esfera objetiva é a da transformação física, onde a árvore é transformada em cabana para proteger o homem das intempéries da natureza, por exemplo. Mas quando o homem atua sobre a natureza, transformando-a para atender às suas necessidades, ele lhe atribui um significado. Esta significação é o que caracteriza o subjetivo no homem, pois abre a possibilidade para que ele possa investir o produto de seu trabalho de energia afetiva. Quando o homem se relaciona com o mundo, imprimindo-lhe a sua marca, além da energia física ele despende também uma energia psíquica, enquanto dá significação às coisas. O trabalho humano se dá justamente neste terreno de dupla troca entre a objetividade do mundo real, que concretiza o ato para o indivíduo, e a subjetividade do homem, que atribui um significado ao mundo real ao modificá-lo através da sua ação. Através do trabalho o homem, na relação com o objeto, entra em contato com o mundo real, concreto, descobre-se igual a outros homens, identificando-se enquanto ser humano. Ao mesmo tempo, dotado de sua subjetividade, ele vai se diferenciar de outros seres humanos e construir a sua individualidade. Se por um lado ele compartilha da história da espécie humana, por outro ele também desfruta de uma história individual, que é diferente e única. Suas vivências, experiências, frustrações, afetos e desafetos; tudo isso é levado pelo trabalhador para a relação de trabalho. O trabalho engloba, assim, esta tensão entre a objetividade do mundo real e a subjetividade do indivíduo que o realiza. O que vai configurar esta tensão são as características específicas do próprio trabalho; cada tipo de trabalho possui uma dinâmica própria, onde as possibilidades de expressão da subjetividade, da afetividade humana vão variar em maior ou menor grau. O trabalho de um artista plástico, por exemplo, possibilita a expressão da afetividade num grau muito maior que a de um agente administrativo que passa o dia em sua mesa de escritório. Porém, o trabalho deste segundo também é dotado de subjetividade, e esta se expressa de formas alternativas, seja na nova proposta de arquivamento dos documentos, na nova forma de diagramar os gráficos para a palestra que o chefe vai proferir, seja na planta colocada sobre a mesa para deixar o ambiente “mais aconchegante”, seja no papel decorado com o qual foi forrada a gaveta ou no porta-retrato com a foto dos filhos pequenos. Apesar destas duas esferas conviverem juntas na atividade humana, na sociedade ocidental afetividade e subjetividade sempre foram consideradas dois universos distintos e, como veremos, associados à questão da divisão sexual do trabalho. Mesmo que ilusória, sendo que efetivamente é impossível separá-las, esta seção vai influenciar diretamente na formação da identidade do indivíduo, permeando a forma como vai se construir a relação deste com o produto de seu trabalho. A expulsão da afetividade no trabalho promovida pela fábrica e teorizada pelo taylor-fordismo foi um dos primeiros baluartes a serem criticados e derrubados na organização do trabalho pós Segunda Revolução Industrial. Já na década de vinte, Elton Mayo realizava seus experimentos para concluir que as relações sociais, a formação de grupos, era importante para o bom desenvolvimento do trabalho. Mayo, considerado como o iniciador do movimento de relações humanas, mobilizou um verdadeiro exército de psicólogos a invadir as fábricas com cursos de relações humanas, dinâmicas de grupo, grupos de encontro, em última instância, para recuperar os vínculos afetivos que a própria divisão de trabalho quis eliminar. De lá para cá, que se veja toda a teoria do ‘comprometimento com o trabalho e as organizações’ (discutida mais à frente neste livro) cada vez mais, quanto mais afeto e trabalho recuperarem sua unidade, diga-se de passagem, sua indissociabilidade, melhor. O trabalho do educador passou incólume perante a taylorização, pela expulsão do afeto no trabalho, ao contrário, guarda até hoje uma herança muito próxima da família, carrega até hoje a história de um trabalho fortemente marcado pela divisão do trabalho em público e privado. A mediação da afetividade O cuidado, por definição, é uma relação entre dois seres humanos cuja ação de um resulta no bem estar do outro. Podemos chamar esta ação de trabalho porque ela se enquadra perfeitamente em nossa definição anterior: é uma relação de dupla transformação entre homem (no sentido de ser humano que cuida) e objeto (no sentido de externo ao homem; o outro que recebe o cuidado). Na medida em que cuida de outrem, o cuidador se transforma, na mesma medida em que transfere para o outro parte de si e vê neste o seu trabalho realizado. Ora, nesta definição podemos colocar também o trabalho doméstico que, em sua extensão, termina por enquadrar também o cuidado. Neste sentido, trabalho não é necessariamente apenas as atividades remuneradas. O fato das mulheres terem sido educadas durante séculos no sentido de dar expressão à sua afetividade, não significa que a profissionalização das atividades por elas antes realizadas tenha ocorrido de forma direta, sem que houvesse necessidade de adaptação. Pelo contrário, o movimento de profissionalizar uma atividade vista como inerente à pessoa, sendo executada de forma mediada, pode gerar um conflito de difícil saída para quem a realiza. Isso, porque a lógica do mercado de trabalho não é, e não tem como ser, a lógica do cuidado. Quando a mãe cuida de seu bebê, por exemplo, alimentando-o, providenciando que este esteja limpo e aquecido, ela atribui um significado à sua ação. Ao atribuir este significado, ela investe uma energia afetiva. Esta energia afetiva é dirigida diretamente para o bebê, objeto de seu trabalho. Estabelece-se, assim, uma relação direta, imediata entre sujeito e mundo real, ou seja, entre mãe e bebê. Por outro lado, quando uma jovem babá cuida do mesmo bebê, esta relação eu-outro torna-se permeada por uma série de fatores de mediação: salário, técnica, hierarquia (oposição entre o que ela quer e/ou acredita que deve fazer e as determinações da mãe), para citar apenas algumas. Esta babá não está apenas cuidando da criança; ela está vendendo a sua força de trabalho e recebendo um salário pela execução da tarefa. O dinheiro, assim, está se interpondo à relação dos dois. Da mesma forma, os horários e determinações da mãe estão se sobrepondo nesta relação. Mesmo que tenha vontade de atender ao desejo da criança de pegar determinado objeto ou ingerir algum alimento específico, ela não pode permitir, mesmo sob os protestos veementes, choro e gritos decorrentes. A mãe não permite, então, ela nada pode fazer. O vínculo afetivo criado nunca será completo nesta relação com o bebê, pois, acima de ser uma relação afetiva, é uma relação de trabalho e, como tal, sempre será mediada. Essas mediações que a profissionalização do cuidado impõe criam uma tensão entre vincular-se versus não vincular-se, onde o circuito da relação homem-objeto não pode ser completado de forma satisfatória. Exploremos um poucomais a dinâmica da afetividade fora do trabalho para compreender melhor as diferenças que ocorrem dentro dele. Um amigo, por exemplo, a quem dedicamos afeto. O circuito que se estabelece entre nós, se determina entre nós dois, mesmo que seja permeado por normas, convenções, cultura, a uma resposta minha, corresponde outra dele. Neste circuito, as relações vão se construindo; se faço algo que o desagrada, ou vice-versa, talvez venhamos a desenvolver raiva, ao contrário, se as emoções despertadas pelo gesto são positivas, nos aproximamos mais. Quando o circuito afetivo se quebra? Se um dos dois quiser muito uma relação afetiva e o outro não a quiser, como em amores não correspondidos, aqui o circuito afetivo, qualquer que seja; amor, ódio, amizade, não pode mais responder à dupla relação eu/outro. Um dos dois se constitui em bloqueio. Ou ainda, quando um impedimento externo impede o desenvolvimento da relação afetiva, por exemplo, quando um preconceito racial intervem (um é negro e outro branco em uma sociedade marcada pelo apartheid). Aqui a dor é mais drástica, mais incisiva, porque o circuito não pode se fechar por razões externas à própria relação, a dor é inevitável porque razões estranhas à dinâmica afetiva impedem que o próprio circuito afetivo se feche. A literatura, a arte em geral, conhece e explora muito bem estes conflitos, mães que são obrigadas a se afastarem de filhos, a guerra separando à força amantes ou amados, a trama nos toca sempre, porque o drama é nosso conhecido. É isto o que acontece, guardadas as proporções, quando o afeto se transforma em trabalho, quando é parte obrigatória do investimento do trabalhador. Que seja um professor: se enternece pelo esforço honesto de um aluno carente, dedica a ele o melhor de suas atenções, de repente a família o tira da escola, é preciso trabalhar, ajudar nas despesas da escola, o mestre chama os pais, tenta argumentar, encontrar alguma forma....mas quem pode contra argumentos tão duramente reais, quem pode lutar contra as dificuldades reais de uma família com meia dúzia de bocas a alimentar (quem imaginar que estaríamos romanceando, que veja o sucesso que faz a merenda ou mais atualmente a bolsa escola para manter os garotos dentro dela). Ou ainda, os seus anos de estrada lhe ensinam que aquele aluno, logo ali, precisa de uma conversa especial, talvez chamar os pais para uma reunião, talvez conversar com seus colegas em busca de uma estratégia comum. Mas estas coisas levam tempo, é preciso pegar o ônibus logo depois da aula, senão o atraso na próxima escola será fatal, mas a reunião tardou-se para discutir aquele relatório (outro?) que a Secretaria de educação pediu. O que ocorre aqui é que o circuito afetivo, construído com tempo e dedicação, se rompeu por razões de fora do vínculo mesmo, mediações que rasgam a trama construída entre eu e o outro ... ‘morro de pena, mas o que eu posso fazer?’ Vincular-se versus não vincular-se afetivamente: eis a questão Quando falamos da relação entre a subjetividade humana e a objetividade do trabalho, supomos haver um ponto de equilíbrio que garante que o homem se relacione com o mundo real, concreto, que reconheça a ação como sua e reconheça-se enquanto ser humano, igual a tantos outros e ao mesmo tempo único na sua individualidade. Um ponto que, digamos, estaria entre o mundo imaginário e a máquina. É este equilíbrio que permite que o indivíduo viva em sociedade, crie, produza, enfim: construa a sua identidade. Na lógica capitalista, onde o trabalho passa a ser uma relação homem-natureza permeada por uma infinidade de mediadores (salário, técnica, hierarquia, burocracia, normas) nos deparamos com a necessidade de objetivação por parte do trabalhador. O taylorismo, por exemplo, simplesmente expulsou o afeto das relações de trabalho, para que as atividades fossem realizadas de forma objetiva. Entretanto, como o homem é dotado também de um lado subjetivo, por mais que se tente excluí-lo do trabalho, mesmo reprimido, ele acaba sendo expresso de formas desviadas. Não foi à toa que logo percebeu-se a impossibilidade desta exclusão da atividade no âmbito do trabalho; atualmente sabe-se que trabalhadores mais satisfeitos produzem mais e com melhor qualidade. Entretanto, há determinadas atividades que apresentam uma maior propensão de desajuste entre realidade objetiva e mundo subjetivo ao qual estamos nos referindo. Estas atividades são, sem sombra de dúvida, aquelas onde a demanda afetiva é muito maior. À primeira vista, esta colocação pode parecer extremamente contraditória, pois se estamos afirmando a necessidade de um equilíbrio entre a objetividade e a afetividade no âmbito do trabalho, estas atividades são justamente as que mais espaço teoricamente proporcionariam para a expressão da afetividade. Entretanto, se considerarmos que o afeto é uma relação onde não há lugar para a mediação, poderemos compreender a extensão de tal afirmação. Vejamos, abaixo. As atividades que exigem maior investimento de energia afetiva são aquelas relacionadas ao cuidado; estabelecer um vínculo afetivo é fundamental para promover o bem-estar do outro. Para que o professor desempenhe seu trabalho de forma a atingir seus objetivos, o estabelecimento do vínculo afetivo é praticamente obrigatório. Para as mulheres que trabalham com crianças muito pequenas, então, nem se fala, assim como para que a enfermeira realize seu trabalho de forma satisfatória, é necessário que o paciente receba a afetividade direcionada a ele. Acontece que este vínculo nunca é concretizado satisfatoriamente nas relações de trabalho formal, o que gera a contradição. Inserido numa atividade onde o cuidado é inerente, o trabalhador precisa estabelecer relações, criar um vínculo afetivo com os alunos, por exemplo. Acontece que, por ser uma atividade mediada, este circuito afetivo nunca se fecha: o indivíduo investe no objeto sua energia afetiva mas, esta, ou invés de retornar integralmente para o seu ponto de partida, dissipa-se frente os fatores mediadores da relação. O diagrama abaixo tenta demonstrar este circuito: Figura 2, Cap. 2 - Diagrama da quebra no circuito afetivo, na relação trabalhador aluno. Ora, esta quebra no circuito afetivo coloca o indivíduo numa situação bastante contraditória. Se por um lado lhe é exigido dar-se afetivamente na relação com vistas ao bom desempenho de seu trabalho, por outro lado não lhe é possível fazê-lo, pois as mediações da relação impedem o retorno, para o trabalhador, na mesma medida. Sem este retorno do investimento afetivo, o circuito nunca se fecha, ou seja, a relação afetiva não se estabelece de forma a permitir que o trabalhador possa se reapropriar do seu trabalho. A necessidade de reapropriação de seu investimento subjetivo leva o trabalhador a fazê-lo de forma simbólica, através de mecanismos, estratégias das quais o indivíduo se utiliza para manter o equilíbrio psíquico. Alguns fazem uso destes mecanismos com sucesso, e garantem a manutenção de sua saúde mental. Outros, porém, acabam utilizando-se de mecanismos nem tão saudáveis ou, por vezes, estes mecanismos não são suficientes para garantir este equilíbrio, obrigando o indivíduo a pender mais para um lado que para outro. As formas das quais o trabalhador faz uso podem ser mais ou menos efetivas no sentido desta reapropriação. Este fenômeno vai depender de não haver a possibilidade de vazão desta afetividade por outras vias no trabalho que possam oferecer alívio à tensão. Se as normas não forem tão rígidas, se houver a possibilidade de burlar as determinações da direção, por exemplo, e oferecer uma porção maior de sopa para aquele garotinho de olhos tristes ou fingir que não se vê os alunos que entraram novamente na fila para receber outro pedaço de bolo, esta vazão de sentimentos estará encontrando um caminho saudável para fluir.Receber com carinho o abraço e o beijo daquelas meninas de aparência nem tão agradável, organizar comemorações na escola para arrecadar fundos para complementar a merenda ou enriquecer o acervo da biblioteca, confraternizar-se com os colegas ou mesmo apenas o sentimento de cooperação no trabalho. Cada trabalhador, a seu modo, vai encontrar formas de conviver e dar vazão a esta tensão. “Tenho muito trabalho e não tenho ajuda para realizá-lo - há falta de funcionário mas, quando mandam alguém a pessoa não sabe fazer direto e tenho que ensinar tudo”...”... a diretora é muito boa e me ajuda no que for preciso. A escola é como uma família. Todos são amigos e um pode contar com o outro.” “Trabalho com oitavas séries e terceiros anos do segundo grau. Escolhi a profissão porque gosto de trabalhar com jovens. A paciência que devo possuir como professor, leva à necessidade de ter uma dedicação completa. O salário desanima, mas resgato minha opção.”... “Os alunos são dependentes. Dependem do professor para raciocinar, os livros não eliciam tal capacidade. Alguns procuram para assistência em assuntos pessoais. Um aluno me procurou quando a namorada abortou.” “Algumas coisas chateiam, mas deixo passar. Quando vejo que não estou conseguindo dar uma aula que desperte o interesse do aluno, sinto a consciência pesada.”... “É bom transmitir o conhecimento. Fico felicíssima quando o aluno aprende.” “Não tenho nada a reclamar. O que acho melhor do trabalho, é o fato de ter contato com as pessoas. Às vezes fico triste e me alegro quando converso com as pessoas.” Figura 3, Cap. 2 - Declarações de professores demonstrando como conviv tensões e dificuldades na escola. em com as Agora, ncializar a possível dificuldade afetiva que o indivíduo venha a possuir, própria de sua estrutura de personalidade. Esta situação causa u humani o circui afetiv caráter estrutural. O trabalho requer um vínculo afetivo, mas a forma de organização do trabalho não permite que este circuito sempre presente nas atividades de cuidado, e invariavelmente o trabalhador estará sujeito a ela em maior ou menor se o ambiente e as condições de trabalho são afetivamente hostis, a tendência é pote m grande desconforto para o sujeito que, em maior grau, pode ser desencadeadora de sofrimento psíquico. Formas mais efetivas são aquelas que caminham na direção de reduzir a tensão através da tentativa de modificar a situação. Assim, profissionais que atuam no sentido de transformar a escola num ambiente mais zado, por exemplo, mais próximo à realidade do aluno, de suas dificuldades, da comunidade em geral, estão dando vazão a esta afetividade de forma mais efetiva e saudável de ponto de vista da sua economia psíquica. Agora, indivíduos que reduzem magicamente a sua tensão entre vincular-se versus não vincular-se afetivamente, através de um “faz de conta que nada acontece” (faz de conta que todos esses alunos são seus filhos de verdade, por exemplo, ou faz de conta que todos me amam acima de tudo e não é apenas respeito pela minha função aqui na escola), tendem a distanciar-se cada vez mais da realidade e mergulhar em seu mundo subjetivo. Na verdade, a concretização da ligação afetiva ocorre apenas parcialmente: o aluno vai embora ao fim do dia, ou abandona a escola, ou o paciente recebe alta e vai para casa, ou tem seu quadro agravado e morre... enfim, to o nunca se completa. Assim, cria-se a seguinte lógica: para realizar bem o meu trabalho preciso me envolver afetivamente com meus clientes (alunos, pacientes, etc.); porém, se assim eu proceder, certamente sofrerei, o que me leva a não vincular-me. Esta impossibilidade de concretização do vínculo afetivo em sua plenitude, nas atividades de cuidado, é de afetivo se complete, pois a tarefa requer que se obedeça a algumas regras, que são regidas quer pela técnica, quer pelo cronograma preestabelecido, quer pelo programa, quer pelas normas e determinações dos superiores, quer por questões administrativas, enfim: cuidar não envolve apenas oferecer afeto, mas há princípios a serem obedecidos quando se fala do cuidado profissionalizado. Por mais que o professor saiba das dificuldades pelas quais a família daquele aluno está passando, que está interferindo em seu rendimento escolar, ele nada mais pode fazer a não ser assinar a sua reprovação, ou por mais que a enfermeira esteja solidária à dor do paciente, ela nada pode fazer até que chegue o horário determinado pelo médico para a próxima dose da medicação. Posta a questão desta forma, vemos que esta tensão vincular-se versus não vincular-se afetivamente vai estar grau. A O conflito afetivo e suas formas de resolução Falando especificamente do educador, esta contradição entre dever versus não poder completar o vínculo afetivo com o aluno pode criar no profissional um conflito de sentimentos que, na maioria das vezes, nem é percebido como ta tão em contado e que interferem na formação do aluno. O cuidado não pas ida diretamente ao aluno, pois esbarra nos obstáculos aos quais estávamos nos referindo acima, formado ssa escapar, como nas panelas de pressão de verdade, o que aco educadores estão sofrendo da mesma forma e desenvolvendo sintoma dificuldade maior está quando esta tensão desenvolve proporções tais que cria um conflito que não pode mais ser resolvido pelo indivíduo, nas formas alternativas à sua disposição, ou seja, falta-lhe outros modos saudáveis de dar vazão a esta energia afetiva e então o quadro de sofrimento de instaura. l. Por ser invisível, só é percebido quando os danos por ele causados tornam-se evidentes e aí é que está o problema. Estamos falando da vivência subjetiva do trabalhador, de um conflito de afetos e sentimentos que ele mesmo não se dá conta de que está sendo vítima. É importante ressaltar que não estamos aqui nos referindo apenas ao professor, mas sim ao educador, ou seja, a todos aqueles que atuam na escola, que es sa apenas pela educação formal, através do conteúdo programático, mas também pela garantia do bem-estar, que se traduz na alimentação, no estar atento na hora do intervalo para que as brincadeiras não extrapolem os limites da segurança e da integridade física das crianças, no receber as crianças quando chegam pela manhã ou no início da tarde trazidas pela família e no garantir que estas estejam bem depois da aula quando os responsáveis voltarem para buscá-las. O fato de estar se relacionando de forma direta como o aluno desperta uma energia afetiva, mas esta não pode ser dirig pelo conjunto de normas e técnica. O que acontece, então? Ora, se essa energia afetiva que não pode ser dirigida ao seu destino ficasse se acumulando por muito tempo, haveria um momento em que este professor se assemelharia a uma panela de pressão, pronta a explodir. Na realidade, o que acontece é que esta tensão não fica acumulada, mas sim acaba sendo redirecionada. Uma vez que não há uma "válvula" por onde a pressão po ntece é que esta energia muda sua rota: já que não é possível investir o aluno com o afeto desejado, este acaba sendo voltado para o próprio corpo do trabalhador, e isso traz conseqüências bastante negativas para os nossos educadores. Quando a mente não vai bem o corpo padece, já dizia um velho ditado. As formas de manifestação deste sofrimento do trabalhador podem ser observadas no seu dia-a-dia, quer na relação com o produto de seu trabalho, quer mesmo na sua vida pessoal. A primeira questão que surge pode ser singela: se estamos falando de uma característica do trabalho que é estrutural, então vamos considerar que todos os s de sofrimento psíquico ou emocional? Obviamente que não. Esta relação não é tão linear e qualquer especulação neste sentido seria no mínimo reducionista. As condições de trabalho interferem diretamente na administração desta tensão afetiva, havendo momentos onde o conflito pode ser, pelo contrário, positivo e levar a umacrescimento qualitativo tanto pessoal quanto profissional. Em geral pensamos o conflito como uma relação intempestiva entre pessoas. Pai e filho, professor e aluno, patrão e empregado, etc., e neste caso permanece a possibilidade que um dos lados da contenda irá perder. Mas o conflito os pode provocar tanto sofrime ma escola para outra, de uma clientela imensões continentais, com uma diversidade de hábitos, costumes, dificuldades e necessi ecionando-a para o seu próprio corpo, o trabalhador sofre. Como este é um sofrimento mudo, invisíve também pode ser individual, isto é, o indivíduo colocando-se em confronto com ele mesmo. Muitas vezes a pessoa estabelece metas a serem alcançadas que estão além de suas possibilidades. Esta impossibilidade, entre o desejo de realizar e a impossibilidade (às vezes física, às vezes estrutural) de fazê-lo e se o indivíduo não tem como canalizar esta energia para outros objetivos, promove o surgimento dos conflitos internos, que de forma exacerbada conduzem ao sofrimento psíquico e até mesmo, nos casos mais extremos, a psicopatologias. A busca de resolução do conflito, pode ocorrer em duas dimensões distintas: uma afetiva e outra racional, sendo praticamente impossível separar uma da outra. Lidar com as emoções, os sentiment nto que muitas vezes é preciso recorrer a ajuda externa (psicólogos, terapeutas, conselheiros, etc.) de modo que haja um redirecionamento destas forças para resolução do conflito. A resolução dos conflitos na esfera racional pode ocorrer de um modo menos traumático. A manipulação de ações concretas para redirecionamento destas forças permite ao indivíduo transferir ao objeto o motivo da sua frustração e angústia. O mesmo não acontece para a resolução dos conflitos na esfera afetiva. A culpa não pode ser transferida ao objeto. O que vai dar qualificação a esta impossibilidade de concretização do vínculo afetivo é a relação concreta de trabalho. E esta relação certamente se diferencia de um contexto para outro, de u para outra. Ora, não podemos nos esquecer que os alunos com os quais o professor vai desenvolver seu trabalho são alunos de carne e osso, sangue, coração, sentimentos, dificuldades e problemas. Neste sentido, a demanda afetiva também varia. O tipo de relação estabelecida com um determinado aluno ou grupo de alunos, numa situação específica, pode dar oportunidade para que o profissional - que também é um ser humano concreto, dotado também de uma realidade própria - dê vazão ou reprima a sua energia afetiva, diminuindo ou aumentando a tensão e, consequentemente, o conflito. Lembremos que estamos falando de educadores das escolas públicas brasileiras. Professores e funcionários de escolas de um país de d dades tão grande, que não pode ser desconsiderada. Não há como desconsiderar que há mesmo professores trabalhando com alunos de baixíssima renda; alunos que muitas vezes não têm outra coisa para comer que não a merenda ali servida. Alunos carentes não só de necessidades básicas de subsistência mas também de carinho, de atenção. A demanda afetiva exigida por estes alunos é bastante intensa, e pode colocar o indivíduo numa posição delicada, onde a tensão entre estabelecer ou não o vínculo assuma grandes proporções e desencadeie um conflito extremamente doloroso. Se o caminho percorrido por este for o desgaste emocional, com o conseqüente afastamento do objeto, ou a resolução da tensão redir l por se passar em nível psicológico, o próprio indivíduo não se dá conta. É que a energia afetiva que não encontrou formas de ter vazão, quando retorna para a sua origem, inverte sua polaridade. Isso significa que, de afeto, de energia construtiva, passa a ser negativa, destrutiva, nesse caminho de volta. O resultado é o indivíduo agredindo a si mesmo. Os sintomas deste sofrimento podem ser notados a todo momento, seja através de dores de cabeça, dores nas costas, perda de voz, cansaço, irritabilidade, dificuldade em estabelecer relações afetivas mais profundas, etc. Para todos os educadores é preciso que se encontre formas de lidar com o impasse, através do aumento da resistência do trabalhador ou de atividades que permitam uma melhor administração de sua energia afetiva. Cap 3 - Crise de Identidade e Sofrimento Analia Soria Batista, Wanderley Codo Dias difíceis Atualmente os educadores estão experimentando uma crise de identidade. De forma mais ou menos direta, o conjunto de fatores que ingressam na configuração dessa crise apontam a um questionamento do saber e saber-fazer dos educadores, da sua competência para lidar com as exigências crescentes do mundo atual em matéria educativa, e com uma realidade social cada vez mais deteriorada que impõe impasses constantes à atividade dos profissionais. Somos tentados por isso, neste capítulo, a estabelecer relações entre essa crise de identidade que abala a “crença de si” e o “sentido de si” destes profissionais e sua saúde mental no trabalho neste final de século. Fanny: “Porque francamente, quando ouvimos os discursos a respeito dos professores (...) é velho como o mundo....como a opinião de minha própria família, que realizamos um trabalho realmente fácil. Sempre se coloca em primeiro lugar as férias... etc. -Ah, sim, as férias(...) que é que fazem as pessoas de sua família? “Meu pai era operário, operário no setor têxtil. Trabalhou muito, é verdade que sua jornada de trabalho era dura. E para ele - eu queria fazer medicina , é verdade mas ele não quis porque, bem , ele não tinha dinheiro, eles me disseram “não, não, não...”, mas para eles o professor era o cara que tem segurança de emprego, que está tranqüilo, que faz seu trabalhinho , ele via nele o funcionário público”. Entrevistas de Gabrielle Balazs e Rosine Christin (janeiro de 1991), in Bourdieu, 1997 - pág. 540. Figura 1, Cap. 3 - Trecho de entrevista enfocando como o professor e sua realidade eram vistos. A problemática da identidade dos trabalhadores da educação será abordada, estabelecendo um jogo de articulações entre diferentes níveis do real. Para tal fim se examinam um conjunto de aspectos que na sua dinâmica participam da construção e desconstrução da identidade dos educadores, relativos às mudanças estruturais havidas na sociedade nas últimas décadas, mudanças havidas na identidade de gênero e aspectos que configuram a realidade do trabalho nas escolas hoje. O relatório sobre Gênero e trabalho realizado durante a pesquisa, revelou um aumento gradual e significativo da participação de homens em uma profissão até então feminina, o que nos permitiu constatar que estamos hoje em face de um processo gradual de desfeminização da atividade docente. Como se trata de um fator central na identidade profissional, somos levados a analisar os aspectos envolvidos, durante o período da República Velha, na feminização da docência de primeiro grau. Essa análise, ao trazer a tona a relação entre identidade de gênero e trabalho, e ao mostrar que profissão não tem sexo predefinido, porque ele é produzido socialmente e datado historicamente, instala a perspectiva de que processos de feminização e masculinização das profissões podem suceder-se ao longo da história, exigindo dos pesquisadores a descoberta e a reconstrução, em cada caso particular, de relações entre identidade de gênero e exercício das profissões, tanto como a articulação desses processos com mudanças de índole estrutural na sociedade. Pode se refletir que atualmente estamos em presença de um descompasso que se afigura entre as mudanças havidas na identidade de gênero e as demandas e características presentes na atividade docente, que interpelam ainda em grande parte uma identidade de gênero tradicional. É nessa articulação defasada que se manifestam alguns dos sintomas da crise de identidade que atinge atualmente aos docentes. Aspectos estruturantes da identidade profissional dos educadores, como sua formação,o papel social da educação e das escolas também estão sendo questionados. Ao certo, não se sabe como preparar hoje os educadores, não se sabe qual seria o papel da educação e da instituição escolar numa situação como a atual, caracterizada pela restruturação do sistema capitalista e as brutais metamorfoses que acarreta (a outra face da modernização). As certezas tradicionais parecem se “desmanchar no ar”. Esses fatores, de índole estrutural da sociedade, têm influência sobre diferentes aspectos da “realidade do trabalho” nas escolas, e por essa via acabam tendo efeitos sobre a conflitiva relação estrutural que todo educador mantêm com seu trabalho. A atividade de educar, como já se viu, exige do educador o estabelecimento de um vínculo afetivo e emocional com o objeto de seu trabalho: o aluno. A realização desse afeto é interditada na medida em que a “interferência” do educador sobre o educando nunca pode ser completa, instalando a possibilidade inquietante (maior que em outras profissões) de perda de controle sobre o produto, e por essa via, de dúvidas sobre a sua competência profissional. Este conflito, que existe só em tese, pode vir a tona em situações concretas. A perda maior ou menor do controle sobre o produto ou as dúvidas sobre a competência profissional, só podem se fazer presentes na realidade do trabalho nas escolas. É no cotidiano da sala de aula que os educadores porão a prova sua competência na condução do processo de ensino - aprendizado. Nesse embate cotidiano o vínculo afetivo e emocional com os alunos, exigido pela atividade de ensinar, será em maior ou menor medida “interditado” pela realidade do trabalho. O sofrimento psíquico poderá resultar desse “jogo de interdições” que a realidade do trabalho nas escolas impõe à realização do afeto e emoção que o trabalho demanda dos educadores. É nessa realidade, em última instância, que os educadores terão que provar sua competência profissional, ou seja, produzir um sentido para o esforço e sofrimento que normalmente as atividades de trabalho lhes exigem. Gênero e trabalho nos educadores Educadores: No final do século, uma categoria “híbrida” A distinção homem - mulher foi, a quanto seja possível afirmar, a primeira divisão do trabalho na historia da humanidade, a primeira e a mais perene. Até algumas décadas atrás, o esperado seria a mulher na cozinha cuidando da casa, dos filhos, do marido, o homem a “ganhar a vida”, mulheres responsáveis pela reprodução da força de trabalho, homens responsáveis pela produção, em uma sociedade hegemonizada pela mercadoria. É dos últimos o poder econômico, consequentemente o político. Através das lutas empreendidas pelos movimentos feministas como querem alguns, por necessidades econômicas como insistem outros, provavelmente por uma combinação desses dois fatores, o quadro vem mudando rapidamente nos últimos anos; a entrada veloz das mulheres no mercado de trabalho, a conscientização das mulheres sobre seus direitos e sobre suas diferenças, tudo isto vem colocando em cheque a velha divisão entre gêneros no trabalho, particularmente quando falamos de trabalhadores da educação. A entrada da mulher no mercado de trabalho se deu através de suas habilidades construídas naquela longa história, se cuidar era o seu mister, são as profissões que demandam cuidar as primeiras a receber o fluxo de mulheres. Educar, mesmo que profissionalmente, também é sinônimo de profissão feminina. Os trabalhadores da educação constituem de fato, até a atualidade, uma categoria essencialmente feminina e este é o primeiro resultado que salta aos olhos quando se toma o conjunto da categoria. No entanto uma análise mais aprofundada permite relativizar essa afirmação, em especial, quando se efetua uma divisão segundo os graus em que lecionam os professores. O chamado primeiro grau menor (primeira a quarta série), de fato, mostra uma presença avassaladora de mulheres, já no primeiro grau maior, os homens comparecem com uma proporção importante, para atingir 39% da categoria no segundo grau. Neste último segmento já se torna difícil nomear a categoria como “feminina”, no máximo poderia se falar de uma predominância relativamente discreta de mulheres. Nossa pesquisa, apontou claramente para um aumento paulatino e constante de profissionais do sexo masculino. Ano a ano, existem mais homens do que mulheres entrando na profissão. A julgar pelos dados, está acontecendo um processo de desfeminização da categoria. Este processo está acontecendo a um ritmo menor no primeiro grau, o local onde a identidade com a reprodução no trabalho de cuidar, é mais evidente, na medida em que é mais tipicamente feminina, a categoria é também mais lentamente desfeminizada. masculino feminino professor 17,6% 82,4% funcionário 12,7% 87,3% especialista 9,9% 90,1% Figura 2, Cap. 3: Distribuição do número de educadores - professores, funcionários e especialistas - por gênero. masculino feminino Pré e primeira à quarta 2, 6% 97, 4% Quinta à oitava 19, 4% 80, 6% Segundo grau 39, 2% 60, 8% Especial 6, 1% 93, 9% Mais de uma série 23, 6% 76, 4% Figura 3, Cap. 3 – Distribuição de professores por gênero, do pré à quarta série, de quinta à oitava série, segundo grau, ensino especial e mais de uma série. Tempo de serviço masculino feminino Até 2 anos 25,9% 74,1% De 3 a 5 anos 19,7% 80,3% De 6 a 10 anos 16,9% 83,1% De 11 a 15 anos 13,1% 86,9% De 16 a 20 anos 12,1% 87,9% De 20 a 24 anos 10,3% 89,7% De 25 anos em diante 17,9% 82,1% Figura 4 , Cap. 3 – Distribuição de educadores por gênero e tempo de serviço. Um dos fatos inelutáveis que o mundo do trabalho enfrenta neste final de século é o desaparecimento progressivo dos empregos no setor primário e um crescimento do setor terciário. Indústrias tendem a demitir operários e o setor de serviços tende a contratá-los. Entre os setores de serviço, educação e saúde, segundo as projeções mais autorizadas, são os que mais se expandem. O que está ocorrendo é que os homens estão sendo expulsos ou não encontram vagas disponíveis e correm em busca de perspectivas de emprego onde eles são oferecidos. Em se tratando da tarefa de educar, uma das questões que os especialistas levantam é o modelo que se oferece ao aluno em formação: se antes haviam apenas mulheres à disposição, agora também os homens podem comparecer na condição de modelos. O próprio resultado do processo educativo se transforma ao se alterar a relação entre gênero no trabalho do educador. Tudo se encaminha para constatar que os homens reagirão diferente que as mulheres dentro da categoria profissional, não apenas porque homens e mulheres são diferentes, mas também porque os trabalhadores em educação estão em transição: a categoria está se transformando de tipicamente feminina para híbrida em questões de gênero. Feminização da docência A compreensão da forte presença feminina na profissão se remonta ao período histórico entre 1870 e 1930, quando teve lugar um processo de feminização da docência, no marco da organização do estado nacional; do sistema educativo nacional e da procura de uma identidade nacional. Naquele momento histórico, o projeto de expansão da educação de primeiro grau foi considerado pelas classes dominantes, um instrumento privilegiado para produzir uma identidade nacional que atingisse o objetivo da integração social. A expansão dos sistemas escolares nacionais a partir da segunda metade do século XX tem sido produto, em certo sentido, da promessa da escola como entidade integradora. Os sistemas educativos eram tidos pelos setores dominantes e pelas massas que lutavam pela sua democratização como poderoso dispositivo institucional de integração social (Gentile,1996:79). Essa expansão educativa projetada teria que ser acompanhada pela incorporação massiva de trabalhadores ao ensino, razão pela qual se impunha realizar investimentos na formaçãodos profissionais da educação. Foi a antiga escola normal que representou a típica forma didática da política educativa da República Velha para preparar os profissionais da educação elementar, obrigatória, gratuita, universal. Esta escola se caracterizava por um ambiente rico, complexo e orgânico no qual variados cursos anexos eram oferecidos (Nosella, 1996). Naquele momento histórico, a docência era considerada, em princípio, uma atividade que podia ser desempenhada por seres humanos, ou seja, sem distinção de sexo. Mas, tendo em conta a identidade feminina, se acreditava e enfatizava que as mulheres poderiam realizar muito melhor essa tarefa. Assim, as brasileiras foram incorporadas à docência sobre a base da articulação das concepções de feminidade e atividade docente, o que punha em evidência as diferenças de gênero existentes na sociedade (Crf. A Yannoulas, 1994) Figura 5, Cap. 3 - Quadrinho da Mafalda sobre o papel da mulher. 2No marco da expansão do capitalismo, a docência, como a enfermagem, foram consideradas atividades de trabalho, que na medida em que envolviam “o cuidado dos outros” seja crianças ou doentes, demandavam para realizar-se atributos tidos como essencialmente femininos. Para poder concretizar-se, estas atividades demandam das trabalhadoras o estabelecimento de um vínculo afetivo com o produto de seu trabalho. Não obstante essa afetividade ser constantemente “questionada” do ponto de vista de sua completa realização, configura desse modo um campo de tensão permanente entre as demandas do trabalho e as limitações na expansão do afeto-cuidado que ele mesmo impõe. Yannoulas enfatiza que a feminização da profissão docente se legitimou a partir da identidade feminina construída à época, em torno do conceito de “mãe educadora”. Segundo ela mostra, a partir do estudo minucioso de documentos da época, foi a produção dessa identidade o que fomentou o ingresso de mulheres na profissão docente no primeiro grau do sistema educativo. Aspectos da tarefa docente, como o cuidado e educação das crianças, foram considerados em parte como extensão das atividades já realizadas no lar pelas mulheres. A maternidade espiritual foi associada ao exercício da docência na escola elementar. Resta assinalar que o estado estimulou o papel docente das mulheres. Mães e mestras, as mulheres foram interpeladas politicamente quando chamadas a colaborar no processo de integração nacional, por meio da atividade docente dirigida à formação dos futuros cidadãos do país. Embora a incorporação dessas mulheres ao normalismo e ao magistério tivesse lugar num contexto caracterizado por discursos que traduziam e construíam uma identidade feminina baseada na idéia de “mãe educadora”, essa identidade não foi a simples repetição de valores ou concepções tradicionais sobre as mulheres. Do ponto de vista do gênero, essa interpelação política levou à emancipação das mulheres, na medida em que de mães educadoras elas se metamorfosearam em educadoras profissionais, participando da transmissão do saber considerado legítimo na sociedade (Crf. Yannoulas, 1994). As normalistas de azul e branco permaneceram na memória de muitos. Também são lembradas a erudição e a seriedade dos professores, os eventos culturais que animaram a escola, as solenidades, a formatura, a rica biblioteca, 2 Mafalda é de autoria de Quino, autor Argentino, datando de meados da década de 60. Os cartoons deste autor que figuram no livro, foram tirados de Baro, 1983. os laboratórios e o extenso currículo a incluir estudos de latim e francês. A escola normal de primeiro e segundo grau foi a forma didática mais importante para a preparação dos educadores. Essa escola marcou profundamente a memória brasileira, ao ponto de não haver nenhuma grande ou média cidade do estado de São Paulo (e do país) que não se orgulhe de um belo prédio que abrigou noutros tempos uma boa escola normal (Nosella, 1998: 171). Figura 6, Cap. 3 - Quadrinho da Mafalda sobre movimento de emancipação da mulher. A aquisição da identidade profissional de educadoras influenciou os comportamentos das mulheres no sentido de sua emancipação. Elas começaram a circular livremente pelas ruas e instituições urbanas, a obter dinheiro e posição própria, a produzir novos espaços legítimos de exercício do poder, vincular-se ao feminismo e ao gremialismo docente, traduzir livros, etc. (Crf. Yannoulas, 1994). Em síntese, a formação da identidade profissional destas trabalhadoras se iniciou num contexto bastante singular, onde se entrelaçaram processos tão importantes como a conformação do estado nacional, do sistema educativo nacional e da identidade nacional. Elas foram convocadas pelo Estado para exercer o papel de agentes socializadores no difícil caminho da integração nacional. A imagem pública de mães da nação colocava num lugar central e valorizado do imaginário social seu papel de educadoras. A isto se juntava a qualidade da formação recebida tanto como as exigências dos exames de proficiência para ingressar na profissão. Interessante assinalar que, se bem foi uma identidade de gênero “tradicional” o que influenciou na inserção destas mulheres na docência, haveriam sido elementos tais como a exigente formação normalista e a dinâmica do trabalho cotidiano que influenciaram logo essa mesma identidade, mudando-a, e propiciando, nesse sentido, o surgimento de valores e comportamentos emancipadores nas mulheres. Mas, um elemento a destacar é que a identidade de gênero foi o que levou a influenciar a importância e o caráter dos reconhecimentos e recompensas materiais e simbólicas obtidas pelo trabalho realizado por estas profissionais. O reconhecimento material pelo realizado estava filtrado pelos pressupostos duma identidade de gênero que considerava ao homem como o provedor principal da família e a mulher como sua dependente, cujo salário poderia chegar a ser, no máximo, um complemento da renda familiar. Ora, isso é importante porque indica que o reconhecimento/valorização no trabalho, que é um elemento central do suporte da identidade profissional, foi “filtrado” pela desigualdade inscrita na identidade de gênero característica daquele momento histórico. Um outro elemento a destacar é que a conformação da identidade profissional das docentes teve lugar num espaço diferente do clássico reservado aos homens: esfera pública/trabalho. Isto significou que seu exercício profissional acontecia na ausência de delimitação clara entre espaço privado e público. As atividades realizadas na escola foram consideradas, em parte, como um prolongamento de algumas realizadas no espaço doméstico: o cuidado e educação das crianças. Assim, essa relativa “intimidade” entre casa e espaço do trabalho aportou singularidades à construção da identidade profissional das docentes. Aqueles aspectos relativos à identidade de gênero, tais como a concepção das mulheres como dependentes, seja do pai, seja do marido, e a concepção de que o trabalho docente constituía em parte um prolongamento de algumas das tarefas realizadas no lar, foram elementos que ingressaram na estruturação da identidade profissional destas trabalhadoras. Mas, apesar disso, na medida em que o aceso à profissão requeria superar um exigente exame de proficiência e a formação das professoras era de elevada qualidade, obedecendo a padrões europeus (muito admirados e valorizados na época), o senso de competência profissional ajudava a contrabalançar os aspectos derivados da identidade de gênero que colocavam a estas trabalhadores num espaço de subordinação. Embora elitista, esta etapa da política educativa se caracterizou pelo preciosismo na formação das professoras e pela qualidade das escolas e do ensino oferecido. Mas, a adoção de uma cultura socialmente distintiva respondia perfeitamente aos objetivosdas classes econômicas hegemônicas nesse momento histórico, ou seja, fazendeiros, ricos comerciantes, profissionais liberais bem sucedidos e altos funcionários (Nosella ,1996). Destaque-se finalmente que, apesar das mulheres terem sido incorporadas à docência a partir de argumentos de identidade feminina que identificavam docência com tarefas maternais e que construíam o espaço do trabalho como um território intermediário entre casa e trabalho, é evidente que a educação das crianças não era tida apenas como um prolongamento dos cuidados familiares, e por isso a formação profissional das educadoras era exigente e de qualidade. Crise na identidade profissional dos professores? Falávamos acima que os professores e professoras das escolas públicas brasileiras estão vivendo uma crise de identidade. Essa crise, produto de um conjunto de elementos combinados, passa também pela questão de gênero, mais precisamente pela mudança qualitativa nas relações entre trabalho e gênero na profissão. Historicamente o papel de provedor foi atribuído ao homem, considerado o dono da esfera pública; à mulher cabia o papel de mãe e dona de casa, rainha da esfera privada. Mas certos aspectos da identidade feminina mudaram durante as últimas décadas. Nos referimos, por exemplo, à dependência do pai ou marido e à atribuição forte das tarefas de cuidado e educação das crianças e de atenção do lar. Hoje a mulher assume o rol de provedora, responsabilizando-se pela manutenção do grupo familiar: trata-se de uma dona de casa metamorfoseada em pai provedor. Isto significa que ela assume um espaço tido com masculino. É comum que as tarefas femininas se somem às masculinas, configurando a dupla jornada de trabalho. Isto significa que aqueles aspectos de gênero que ingressaram historicamente na estruturação da identidade das professoras no trabalho são hoje bem mais residuais, no sentido de que cada vez menos as mulheres se auto- identificam e são identificadas com eles. Os aspectos estruturantes da identidade feminina tradicional coexistem hoje com outros relativos a uma identidade “moderna”. A identidade de gênero se encontraria atualmente num espaço de transição que mostra, em grande parte, a coexistência de concepções tradicionais e modernas Os portadores destas concepções podem muitas vezes mostrarem-se emancipados num espaço, no entanto continuar se regendo por valores tradicionais em outro. Mudanças ocorridas na identidade de gênero se devem a um conjunto de fatores combinados, entre os quais destacamos aqueles relativos às lutas das mulheres pelos seus direitos; às mudanças na família nuclear, devido a possibilidade das mulheres se sustentarem com seu próprio trabalho, fazendo do casamento uma opção e não um destino certo (portanto fonte única de sobrevivência), às crises econômicas e à crise do emprego masculino, que influenciam cada vez mais na corrida das mulheres para o mercado de trabalho. Pode-se refletir, então, que essas mudanças são elementos que não podem estar ausentes na reflexão sobre a crise de identidade das educadoras atualmente. F g Um outr que está tendo l crise do empreg emprego feminin O quadr conjunto de dem trabalho uma co lutando para se tradicionais, que auto-estima das No caso atividade, esse e função de atribu As mud simplesmente “p trabalho como c de tarefas realiz Por isso associada a as demanda de va importância do dita, despojada d igura 7, Cap. 3 - Quadrinho da Mafalda sobre escolhas de carreira, tratando de ênero. o elemento a ser considerado nessa análise é o processo de “desfeminização” (ingresso de homens) ugar no meio docente e que se relaciona tanto com mudanças na identidade de gênero, como com a o, elementos que permitiriam compreender a ruptura dos limites tradicionalmente estabelecidos para o e masculino. o atual é complexo, tem-se as mudanças na identidade feminina tradicional, e, paralelamente, um andas surgidas nas escolas públicas que obrigam aos docentes a fazer muitas vezes do local de ntinuidade do espaço doméstico. Por outro lado, na medida em que as mulheres lutaram e continuam profissionalizar, o fato de serem interpeladas no espaço profissional mais nos seus atributos femininos naqueles elementos que definiriam sua competência profissional, pode ser um elemento que atinja a professoras. dos homens que estão ingressando na profissão, como parte do processo de desfeminização da lemento poderia complicar ainda mais, na medida em que eles poderiam estar sendo interpelados em tos historicamente negados aos homens. anças na identidade, materializadas no papel social de chefes de família de muitas mulheres, ou rincipal provedor”, não mais são condicentes com a idéia de considerar o salário pago pelo seu omplemento da renda familiar; ou continuar concebendo as tarefas dos educadores como continuidade adas no lar, com o qual se buscaria justificar, as vezes, a baixa remuneração por eles percebida. , a reivindicação dos professores para a obtenção de um nível de remuneração maior, além de estar pectos relativos à sobrevivência (material), está carregada de conotações simbólicas. De fato, a lorização do professor remeteria tanto á exigência da recuperação histórica do reconhecimento da papel social do educador, como a exigência do reconhecimento da tarefa profissional, propriamente e seus tradicionais atributos de gênero. Um hiato na identidade dos educadores. Em nossa sociedade, gênero e trabalho são dois determinantes estruturais da identidade. A menina aprende desde cedo a se reconhecer no espelho como mulher, o menino igualmente. O trabalhador de determinada categoria profissional carrega as marcas de sua profissão, se apresenta à sociedade como médico, enfermeiro, metalúrgico, professor. Ora, as duas pontas, que configuram assim tão marcadamente também a identidade dos educadores, estão muito ligadas entre si. Como se viu, a relação professora/mulher foi construída em toda a nossa História. Primeiro a mulher responsável pelo cuidado em casa, depois a tarefa sendo transferida para a mulher professora na escola. Nenhum conflito, exceto ciúmes de uma mãe por uma professora ou vice-versa, as duas mulheres eram responsáveis pelo cuidado e educação dos rebentos. Hoje, ao contrário, os dois papéis estão em transição: se tomamos a mulher profissional, já não é mais a rainha do lar, participa do mercado do trabalho e divide as despesas com o marido. Sabemos todos o grau de conflito que representa uma formação milenar indicando um modo de ser e as exigências deste novo papel, também indicando outro modo de ser, antagônico com o primeiro. Da dona de casa se espera a submissão, a paciência, a doçura, da profissional se espera a agressividade, a competição, a imposição de opiniões, a racionalidade. Já a professora está deixando de ser exclusivamente uma mulher; divide o seu posto de trabalho com os homens, e ainda, enquanto mulher, não se espera mais dela apenas que seja a extensão assalariada da mãe, se exige liderança, agressividade, racionalidade, atributos até a pouco considerados como parte da identidade masculina. Assume postos de chefia, enfrenta de alguma forma a violência para realizar o seu trabalho. Quanto ao homem professor está em uma seara que historicamente nunca lhe pertenceu, obrigado a lançar mão de modos de ser que nunca foram os seus, historicamente falando, a desenvolver sensibilidade, aflorar mais seus afetos, dedicar-se ao cuidado dos seus alunos. O homem passa a viver dramas que outrora pertenciam à mulher, a mulher passa pelos mesmos dramas que sempre foram masculinos. Por ora, até que esta transição não chegue a seu término, até que as gerações não se sucedam para que se tenha tempo de assimilar a nova relação gênero e trabalho entre os educadores, por ora uma monumental confusão: dois pólos a atrairos educadores para dois lugares que sempre foram antagônicos, fragilizando o educador, colocando-o perante a angústia de não se reconhecer no espelho, até que gênero e trabalho se despreguem um do outro na configuração da identidade profissional. Até que seja possível ser homem ou mulher, independentemente de ser um/a educador/a. O saber e o saber - fazer do professor No passado, dizer “eu sou professora ou professor” trazia a tona uma identidade carregada de orgulho profissional. A profissão de educador tinha prestígio social. Em primeiro lugar, a valorização da profissão remetia ao importante papel atribuído à educação na integração social, no contexto da formação do Estado nacional e dos esforços destinados à produzir uma identidade nacional. Além disso, esse prestígio remetia às exigências da profissão, tais como os requerimentos para o ingresso e a qualidade da formação recebida nas famosas e reconhecidas Escolas Normais. Por isso, embora a incorporação das mulheres ao mundo do trabalho tenha acontecido sobre as desigualdades de gênero presentes naquele momento na sociedade, foram socialmente reconhecidas e valorizadas. Depois dessa etapa fundacional, até os anos 90, se iniciaria um período fortemente caracterizado pela expansão da escolarização. Foram intentos, em parte, falhos, de superar o elitismo do sistema educativo durante o período anterior. Apesar do crescimento quantitativo do sistema, não se conseguiu durante esta longa etapa oferecer aos setores populares uma escola de boa qualidade. Para Nosella (1996), a maior parte das vezes a escola foi encarada como prolongamento dos cuidados familiares, como proteção aos mais fracos, atividade mais ligada à assistência social. Interessante destacar que num contexto de mudança da identidade feminina, essa escola, a qual o autor faz referência, pareceu demandar dos seus trabalhadores e trabalhadoras comportamentos associados apenas a cuidado e proteção das crianças, condizentes com atributos femininos mais tradicionais, e bem menos, do ponto de vista quantitativo e qualitativo, comportamentos relativos a educação no sentido de transmissão de conhecimentos considerados legítimos na sociedade. Para ele, os professores perderam a referência precisa do que devem saber, de como se deve ensinar e avaliar, ou seja, perderam aspectos essenciais da sua identidade profissional. Para o autor, estamos em face de uma crise da identidade do educador. Segundo o mesmo autor, houve durante as últimas décadas uma democratização da clientela escolar, todavia teve lugar uma deformação do método, com queda, assim, da qualidade. Se ensinou ao povo o caminho da escola, mas não se ofereceu uma verdadeira escola. De fato, se criaram pobres cursos supletivos, cursos noturnos de “faz de conta” (...) quatro ou até cinco turnos diários, superlotação de salas, sobrecarga de jornada de trabalho dos professores, má formação profissional, ridícula remuneração dos docentes, grande confusão na avaliação dos resultados, redução da hora/aula etc., tudo para cicatrizar a dolorosa ferida de uma sociedade desigual. Houveram méritos, mas se precisava não apenas expandir e democratizar o ensino, mas também multiplicar os recursos humanos e materiais na mesma proporção da multiplicação de vagas. Os setores populares que aguardaram muito tempo para ter acesso ao sistema de ensino público viram parte de suas esperanças bastante frustradas, quando conseguiram chegar às escolas. A expansão do ensino público aconteceu sem cuidado com a qualidade da infra-estrutura das escolas. Edifícios com condições ruins, carência às vezes de mateiras básicos de funcionamento da escola, ausência bem mais acentuada de recursos de apoio ao ensino e de recursos que promovem melhores condições de trabalho, etc. Fanny: “....e há também um mal-estar que é próprio da situação dos professores. Eu acredito que as pessoas têm a impressão, em todo caso falo por mim , a impressão de realmente estarmos sendo espremidos como um limão e de não sermos reconhecidos. Quando discuto com meus colegas de francês, é assim, temos a impressão de que não somos absolutamente nada, que fazemos um trabalho- me perdoe a expressão- um trabalho de merda, é isso!. Estamos lutando por nada. De termos sido ludibriados. E quando chegamos a um determinado ponto da carreira, eu estou, em que escalão? , nem mesmo sei, no décimo? Tenho 48 anos. Temos a impressão com razão, ou não, não sei bem, que tudo aquilo que fizemos não serviu para nada, nada. Chegamos a um momento em que os jovens têm vontade de fazer outra coisa. Meu colega de música diz que se realiza nos concertos, ele tem sorte, pois tem outra coisa, mas aqueles que não têm nenhuma outra coisa para fazer (.... Um colega comunista, ele tem sua luta...E mesmo que não acredite mais tanto assim, ele retomou seus estudos, ele bem , então, encontra assim um sentido para sua vida” Entrevistas de Gabrielle Balazs e Rosine Christin (janeiro de 1991), in Bourdieu, 1997 - pág. 539. Figura 9, Cap. 3 –Trecho de entrevista sobre a situação do professor e o mal-estar que sente. A crise de identidade do educador é também o resultado singelo do fato que ele, atualmente, não tem segurança a respeito do que deve saber e ensinar e de como deve ensinar. Um problema central é a formação do educador, ou seja, o processo por meio do qual ele se apropria do saber e do saber-fazer, e que significa seu ingresso na “confraria”. É aquele conhecimento que o diferencia dos leigos. Essa apropriação o leva à identificação com outros educadores, tanto como o diferencia dos leigos e de outros profissionais. Evidente, então, que o conhecimento e o saber–fazer são elementos que estruturam a identidade dos trabalhadores, na medida em que constituem a base daquilo que lhe será exigido socialmente, e que constituirá uma auto-exigência no desenvolvimento de sua atividade de trabalho: a competência profissional. Dizer, “esse professor é incompetente” significa negar-lhe no seu ser como trabalhador. Mas acontece que ele próprio pode se sentir incompetente, na medida em que sente-se impotente para resolver os problemas que se apresentam no trabalho. Ora, essa atribuição e auto-atribuição de incompetência se produz na “realidade do trabalho”, e por isso, é essa realidade que será necessário abordar para entender este aspecto da crise de identidade do trabalhador. Professor que é bom professor consegue que seus alunos obtenham alto rendimento nas provas do MEC; tem na sua sala um elevado nível de aprovação, seus alunos não faltam a aula, etc., etc. Sucede, porém, que ele não é um bom professor, mas ele é professor. Essa definição social do que significa ser bom professor constituí uma armadilha. Alguma coisa que se traduz numa exigência interna...mas quem define o que significa ser um bom professor?...quais são os parâmetros para definir o que significa ser um bom professor?. De fato, não são os professores os que definem o que significa ser bom professor. A delimitação do que seja sua competência profissional lhe é subtraída e por isso lhe é imposta. Ele pode ter consciência disso, quase sempre ele tem, mas ele não consegue ir além dessas regras do jogo social. Para ser “reconhecido” como um bom professor (e ele precisa ser reconhecido) ele vai se esforçar para realizar sua atividade de trabalho na realidade do trabalho na escola, ele desejará ser competente, ou seja, ser reconhecido como e sentir-se competente. Junta-se a isso, uma certa dúvida à respeito de qual seria o papel social da escola, com o que fica questionada a inserção destes profissionais na sociedade. Qual o papel social relevante da escola atualmente? Já lhe foi atribuído um papel na integração social, logo na integração sócio-econômica dos cidadãos, o que significava que em parte ela era garantia para a obtenção de um emprego que conduziriaà melhoria das condições de vida. Fanny: “-volto aqui a meu assunto favorito-acredito que, hoje em dia, o que assusta aos professores é que temos um papel realmente de educadores. Eu discuti com alguns colegas o ano passado porque eu concebo as coisas assim, uma palavra bem forte, não quero jogar com as palavras, mas não se trata apenas de transmitir um saber, o papel do professor hoje em dia, nós somos a Educação Nacional e as crianças pedem por isso. Eles exigem que sejamos...não que substituamos seus pais, mas que sejamos um adulto de referência com o qual se possa falar, e quando aceitamos este papel, as coisas funcionam...(...).” Entrevistas de Gabrielle Balazs e Rosine Christin (janeiro de 1991), in Bourdieu, 1997 - pág. 540-541. Figura 10, Cap. 3 – Trecho de entrevista sobre o papel de educador. No contexto das mudanças que estão tendo lugar no mundo do trabalho associadas à restruturação do capitalismo, o papel da escola na mobilidade social pode ser hoje questionado. As novas exigências do mundo do trabalho colocam cada vez mais a escola como única possibilidade de aceso ao restrito mercado de trabalho de nossos dias, embora ela não garanta a inserção. Leitura, escrita, cálculos são requisitos básicos para ter acesso a grande parte dos postos de trabalhos que antes não os exigiam. Mas as formas de inserção no mercado de trabalho mudaram. O mundo do trabalho já foi seguro, hoje não é. O desemprego e as novas formas de emprego (tempo parcial, temporário, etc.) incluíram na agenda da relação do trabalhador com seu trabalho o problema da insegurança, da incerteza. Faz pouco tempo, e isto acontecia com uma parte importante dos trabalhadores, o vínculo estável com o trabalho permitia a construção de uma trajetória que culminaria com a aposentadoria, o “descanso merecido” segundo o senso comum. Hoje a trajetória profissional, pode se ver, está muito segmentada, na medida em que, pelo tipo de vínculo de emprego que começa a predominar, é cada vez mais difícil “fazer carreira” num determinado estabelecimento ou organização. Trata-se em todo caso de estar sempre muito bem preparado para conseguir algum tipo de emprego. Em face destas mudanças, ou apesar delas, a passagem pela escola é ainda tida pelos setores populares como esperança de sobrevivência e de melhoria das condições de vida numa sociedade cada vez mais competitiva, embora cada vez fique mais claro que a escolarização não é garantia de emprego. Necessário registrar que a crença nos poderes “redentores” da educação está presente também na classe média. Segundo pesquisa do IBOPE, “O Rio contra o crime”, de 1984, essa visão que persiste nos discursos de representantes de todos os segmentos sociais, sofre o impacto da conjuntura: valorizada em períodos de expansão econômica, a freqüência às escolas em situações de baixa conjuntura é vivida como esforço inútil (Paiva, 1992 :67). De um certo modo, se espera que a escola como agência de socialização, de disciplina, constitua a ante-sala segura para o mundo do trabalho, ganhando, dessa forma, a clientela do mundo do crime, cuja segura ante-sala seria a socialização que acontece nas ruas. No Brasil, por diferentes motivos, a sociedade valoriza a escolarização, mas o conhecimento muitas vezes parece uma recompensa que recebem apenas aqueles que possuem determinadas disposições intelectuais, associadas, geralmente, aos setores sociais mais favorecidos. Às vezes, se considera os usuários mais pobres da escola pública como impossibilitados de se apropriar do conhecimento, devido às suas características socioculturais. Geralmente a relação com o ‘Outro’ se baseia numa oposição entre cultura da escola e cultura do ‘Outro’, onde a primeira é tida como superior, e por isso deve ser imposta a qualquer custo e sacrifício. Se isto não se consegue, as formas de vida do ‘Outro’ servem como justificativas negativas, do que em parte configura a profunda impotência para ensinar da escola e dos professores, perante a realidade do povo brasileiro. Necessário destacar, no entanto, que a visão da escola como “redentora” não é sustentada de forma homogênea pela população mais pobre. Fazendo referência a cultura popular, Zaluar (1992:48) explicita a presença de um lado de uma cultura popular dos jovens hedonistas, fascinados pelo poder do tóxico e da violência e que contesta os valores centrais da sociedade do trabalho tradicional. De outro, a de seus pais, portadores dos valores da velha sociedade do trabalho e que ainda acreditam no poder da escola. Pode-se refletir que essa cultura popular heterogênea expressa um corte geracional. Os pais, que continuam sustentando vigorosamente valores nostálgicos de uma sociedade do trabalho que já não existe, aquela que produzia “homens e mulheres precavidos”, que iniciavam sua vida laboral com as garantias do emprego estável e da futura aposentadoria. Época de devoção dos trabalhadores à companhia ou organização onde trabalhavam. A vida poderia ser projetada ao futuro. Homens e mulheres acreditando em parte no famoso “poder redentor” da escola, nas possibilidades de melhorar de vida a partir da apropriação do conhecimento escolar. Para eles sempre se tratou e se trata de um problema de falta de educação. Se seus filhos estudassem, conseguiriam. Nós sabemos que isso é agora em grande parte uma ilusão. Quantos não foram pegos de surpresa pela desvalorização de suas competências conseguidas com o duro esforço realizado durante a melhor parte da vida. Quantos sentem que foram enganados, ou que se enganaram. Diz o velho tango fazendo referência ao século XX... “da lo mismo un chorro (ladrão) que un gran profesor”. Já os jovens ou uma parte dos jovens dos setores populares, com seu presentismo e hedonismo, expressam melhor os valores da sociedade do trabalho atual. Uma sociedade caracterizada por vínculos de emprego efêmeros, especulação financeira que remete a valores de ganho fácil, esperteza, pressão sobre o outro, violência; características que na sua dinâmica instalam o “hoje” como horizonte de vida. Além disso, se contrapõem à suposta socialização da escola, a um tipo socialmente desejado de disciplina, que, se efetiva, resultaria mais adequada à configuração de um velho e chato “homem precavido” do “seguro mundo do trabalho” do quase ido século XX. Ao certo, nossa época se caracterizaria pelo desmanche no ar do “mito do eterno retorno” e da utopia, passado e futuro são dissolvidos no presente pelo discurso totalitário da razão instrumental do capitalismo. A tese do “fim da história” pretende anunciar o triunfo da “historia universal”, da mítica convergência planetária no “desígnio” de ocidente. Jovens dos setores populares (e também das classes médias) começam a expressar com seus valores, comportamentos, e desejos, com sua própria rebeldia e com suas canções, a metamorfoses do mundo do trabalho. Fazendo referência à pesquisa realizada com gangues e galeras de Fortaleza, Diógenes (1998) levanta que entre os jovens existe a idéia amplamente difundida de que “o trabalho não compensa”. Eles denominam qualquer indivíduo que muito trabalhe e ganhe pouco como otário. Exaltam o consumo fácil e rejeitam investimentos que impliquem dispêndio de energia (física ou mental); valores que dão estrutura ao mundo do trabalho e da escola. Por isso, tem que se refletir em que medida a escola está conseguindo ser um espaço de transmissão de uma forma de viver (moral) e de um dever ser (ética) negociado socialmente. Vários estudos mostram que o papel socializador da escola está ressentido e que esse déficit socializador pode estar vinculado a episódios de violência. É o papel socializador da escola, seus componentes morais e éticos, o que precisa ser urgentemente discutido pela sociedade em seu conjunto. Historicamente, como já foi apontado, a escola foi chamada a desempenhar diversos papéis, tais como o de favorecera integração social, e propiciar a integração sócio - econômica dos indivíduos. A escola também já foi tida, e ainda hoje é tida por muitos no Brasil, como a possibilidade de tirar as crianças pobres da rua exercendo sobre elas um tipo de disciplinamento, “salvaguarda” da caída dos jovens no mundo do crime. Algumas das contradições foram colocadas, a escola é atravessada por elas, pelos choques geracionais, por desejos cruzados. Os professores estão no meio do “fogo”, esfacelados eles mesmos, jovens e não tão jovens, pela produção na sociedade de uma ética do trabalho moderna que se contrapõe a uma outra que ainda luta pela sua sobrevivência. Perante essas realidades, qual o papel da escola?...ninguém sabe ao certo. O mundo do trabalho está em polvorosa, o advento da globalização, a radicalização sem limites da especulação financeira, o desaparecimento, via novas tecnologias, de empregos no setor industrial, a criação de mais e mais postos de trabalho na área de serviços, o desaparecimento do emprego. No plano da política, o mesmo cenário de imprevisibilidade. O desaparecimento do socialismo real trouxe para os países, mesmo os capitalistas, todo um redesenho do cenário político, a perda das grandes utopias, a revisão da lógica dual capitalismo/ socialismo, os partidos políticos no poder e na oposição incapazes de estruturar alternativas políticas mobilizadoras do conjunto da população, a descrença generalizada na política e nos políticos impedindo de se enxergar uma alternativa coerente de futuro. Socialmente os valores morais se desmantelando em uma massa amorfa que Lashley chamou de sociedade narcísica; uma sociedade onde se vive um dia de cada vez. Sem heróis, sem projetos, sem fantasias. Enfim, o final do século, mais do que nunca a cronologia pulsando no mesmo ritmo que a História. A “realidade” do trabalho nas escolas De que realidade se trata? Como em toda organização destinada à produção de bens (mercadorias) ou serviços existe nas escolas um trabalho como “deve ser” e o que poderia ser mencionado como a “realidade do trabalho” (Cfr. Dejours, 1998). O trabalho como “deve ser” é aquele teorizado, pensado e planejado. Diz respeito aos procedimentos didáticos corretos, os métodos, a utilização criteriosa dos recursos do ensino, diz respeito a psicologia das crianças e adolescentes, às formas de abordar os alunos “normais”, “problemáticos” e “alunos especiais”, diz respeito o funcionamento da organização escolar, suas normas, a distribuição de cargos e funções, as relações com os pais dos alunos, etc. Essas prescrições do trabalho começaram quando o sujeito escolheu a profissão de educador, passaram pela sua formação como professor; continuaram nos inúmeros cursos de aperfeiçoamento por ele realizados. O trabalho “como deve ser” se estendeu logo ao planejamento pedagógico recebido pela escola na qual lhe coube lecionar, e embora mais perto da realidade do trabalho, abarcou também o planejamento do grupo dos professores colegas que lecionam junto com ele na escola. Já a “realidade do trabalho” nas escolas, que lhe impõe o cotidiano, e poderá ser mais ou menos facilitadora ou obstaculizadora da sua atividade “como deve ser”. Nesta realidade ingressam um conjunto de aspectos que intervêm na configuração do cotidiano escolar, tais como as relações com colegas, os recursos que a escola possuí, os problemas singulares da instituição, como na atualidade o problema da violência, o tipo de gestão adotado, etc. Aspectos todos que em seus desdobramentos aparecerão mediando a relação do trabalhador com seu trabalho. Lembre-se, no entanto, que estamos perante um tipo de profissão, a educação, que demanda do trabalhador estabelecer vínculo afetivo e emocional com seu trabalho, e por isso os aspectos da “realidade de trabalho” acima comentados participam agregando ou subtraindo conflitos a um tipo de vínculo que é estruturalmente problemático. Ora, essa característica do trabalho do educador tem uma história singular. Permita-nos aqui, então, uma digressão não tão breve, afim de poder demonstrar com maior clareza qual a relação entre os diversos aspectos dessa “realidade do trabalho” nas escolas, ou seja, a interação no processo de trabalho, entre o tipo de vínculo demandado pela profissão dos educadores e o resto dos aspectos da realidade do trabalho. O educador e a relação com seu trabalho No lar, o cuidado dos idosos e crianças era, mais antes que agora, considerado dever exclusivo das mulheres. Muitas filhas mulheres permaneciam solteiras e dedicadas ao cuidado da mãe. Essa atividade, realizada no espaço do íntimo, demandava a presença do vínculo afetivo- emocional entre a pessoa que cuidava e a que recebia esse cuidado. O afeto era o grande veículo dessa atividade. O preciosismo da atividade realizada dependia em grande parte da magnitude desse afeto. Algumas mulheres tinham que se resignar a “sua sorte”, não apenas “escravas” das atribuições sociais, mas também de seus próprios sentimentos. O capitalismo estabeleceu uma divisão bastante rígida entre o lar, como espaço do privado, da manifestação dos afetos e emoções, e o trabalho. A profissionalização das atividades “íntimas” de cuidar e educar e a interpelação das mulheres em função desses atributos femininos para se incorporar ao mundo do trabalho criam uma situação bastante singular. A agora atividade de trabalho de educar e cuidar crianças (ou cuidar de doentes) exige, para concretizar-se, o envolvimento afetivo do profissional . No caso dos educadores, tem-se que a atividade de ensinar e sua contraparte, o aprendizado dos alunos, não aconteceria sem o envolvimento afetivo do professor com os alunos. Essa famosa “paciência” que o professor necessita ter, para que seus alunos alcancem os objetivos do aprendizado, não é algo que ele aprendeu durante sua época de estudante de magistério. Será alguma coisa que terá que experimentar na realidade do trabalho cotidiano. A paciência com crianças pequenas ou com problemas é um comportamento atribuído especialmente às mães...quem tem mais paciência que uma mãe? O professor precisa ter “paciência” de mãe para que os alunos consigam passar pelas primeiras etapas do aprendizado. Este trabalho, que decidimos rotular como “trabalho paciente”, resume a contradição da qual é portador. Trata-se de um tipo de trabalho que exige competência profissional e estabelecimento de vínculo afetivo - emocional típico de situações sociais que dizem respeito a vida privada das pessoas. Mas, esse tipo de vínculo é constantemente limitado na sua potencialidade de realização, porque se bem o trabalho exige “paciência de mãe”, os professores não são mães dos alunos, e a influência que podem ter sobre eles, o controle sobre a vida privada dos educandos, é limitado. Fica assim delineada uma contradição que a princípio não se resolve. É o afeto, é a emoção que necessitam ser às vezes controlados. Fanny: “...olhe , não posso dizer que isso se passe assim com todo o mundo, mas eles são muito legais, a garotada, porque há um desejo , eu o percebo com meus alunos de terceira, um desejo de realmente nos ajudar, até mesmo de gostar de nós. Portanto , quando ouço colegas que dizem “há, não estamos aqui para isso, não estamos aqui para gostar das crianças”, neste momento percebo que isso é absolutamente falso, que eles precisam disso, e que o professor precisa disso. Eu pelo menos tenho necessidade disso. Tenho a necessidade de estar bem com eles, bem sob todos os pontos de vista, se quero fazer um bom trabalho...” Entrevistas de Gabrielle Balazs e Rosine Christin (janeiro de 1991), in Bourdieu, 1997 - pág. 540. Figura 11, Cap. 3 – Trecho de entrevista sobre o vinculo do professor com os alunos. Há aspectos da relação do educador com o produto do seu trabalho que, a princípio, não diferem das que se estabelecem na produção entre os operáriose as autopeças produzidas. O produto não pertence ao produtor, o carro produzido pelos trabalhadores de uma montadora não pertence aos operários, tanto como não pertence aos operários da construção civil o edifício construído. De fato, o aluno alfabetizado também não pertence ao professor. A diferença aqui está na qualidade do vínculo que o trabalhador necessitou estabelecer com seu produto para que a atividade de trabalho se realize. O aluno não poderia haver sido alfabetizado sem contar com o compromisso afetivo do professor, no entanto o operário da indústria automobilística ou da construção civil poderia concluir seu trabalho sem ele. Num caso, a atividade de trabalho tem que se objetivar num sujeito, o aluno; no outro, num objeto. No primeiro caso, o trabalhador precisa entrar num certo acordo, negociar, para poder desenvolver sua atividade, no segundo ele não tem na sua frente “um outro”, mas um objeto sobre o qual imprime sua atividade. F Vemos, e trabalho, o aluno para veicular a a sob determinada ser mais ou men seguir. É num es que o educador t reconhece social trabalho” que o p exigência da com Logo ele que siga à risca das expectativas respeito da obten respeitasse o que o exige, sua ativid Rápido o obstaculizar seu prestar atenção igura 12, Cap. 3 - Quadrinho da Mafalda sobre identidade. ntão, que há tensão permanente e qualificada entre o educador e o objeto de seu . Mas essa tensão não tem existência abstrata. O afeto e a emoção necessários tividade de cuidar e ensinar aos alunos, é um tipo de vínculo que se concretiza s condições existentes nas escolas. Por isso, o conflito do qual é portador pode os exacerbado pelos aspectos da realidade do trabalho que assinalaremos a paço definido pelos múltiplos aspectos que configuram a “realidade do trabalho”, erá que pôr a prova seu saber, e, fundamentalmente, seu saber-fazer; o que se mente como sua competência profissional. Ora, é na gestão dessa “realidade do rofessor terá que responder à exigência social de ser um bom professor e à auto- petência profissional. entenderá que os diferentes aspectos da “realidade do trabalho” escolar impedem o que aprendeu durante sua formação profissional, ou que dificultam a satisfação da direção da escola, ou, em última instância, contradizem expectativas sociais à ção de um ensino de qualidade, formadas pela propaganda política. De fato, se aprendeu sobre como ensinar ou o que a direção da escola exige, da forma que ade de trabalho seria seguramente impossível de ser realizada. professor aprende que as relações sociais no trabalho podem facilitar ou querer fazer: essa realidade se lhe impõe e ele tem que aprender a lidar com ela; ao que pode ser dito e ao que deve ser calado nessa instituição; ele tem que 73 aprender que aquela secretária não gosta de dizer “bom dia”; que o diretor gosta de ser adulado, e que isso é importante para conseguir implementar certos projetos. Tem que lidar com o fato de que seu colega de turma sente ciúmes do trabalho que realiza e tentar minimizar seus logros perante o diretor que é seu amigo. Talvez terá que aprender que o problema para essa organização não é que os professores não saibam ensinar, mas pelo contrário, que desejam ser competentes, que de fato eles sejam. Pode acontecer inclusive que seja coagido pelo grupo a ocultar sua competência. Isto nos parece impossível? Prestemos, então, atenção á fala da professora P: “Uma das grandes dificuldades que enfrento na minha atual função diz respeito às relações humanas. Eu sou bastante perfeccionista e tendo a exigir tal postura das pessoas que trabalham comigo. Mas, agora estou modificando meu comportamento, tento agir com maior flexibilidade, inclusive não levo mais trabalho para casa, como costumava fazer com muita freqüência” . Figura 13, Cap. 3 - Declaração de professor sobre como foi coagido a diminuir a qualidade do seu trabalho. Interessante que a fala de P. mostra que a pressão do grupo foi efetiva. De fato, acabou admitindo que seu empenho de querer ser competente, de desejar fazer bem o trabalho, de se esforçar, era um problema de “perfeccionismo”. Ela teve que recuar para conseguir sobreviver nesse ambiente de trabalho. A flexibilização de seu comportamento, no sentido de trabalhar menos (não levar trabalho para casa) ao qual alude, foi, sem dúvida, concessão que se viu obrigada a fazer. Mas, nessa declinação, o exercício de sua subjetividade como profissional resultou interditada pela dinâmica das relações sociais. Ao tentar trabalhar “como deve ser”, em certas oportunidades, os professores aprenderão, em maior ou menor medida, que existe um déficit de infra-estrutura nas escolas; que os recursos necessários estão ausentes. Essa ausência lhes demandará maior esforço no trabalho, maior quantidade de tarefas a serem realizadas, comprometendo-se assim a qualidade do ensino. A carência de recursos, na medida em que limita as alternativas de preparação das aulas, poderá exercer influência negativa nos resultados do aprendizado, levando o trabalhador a questionar sua competência profissional. Observemos o desabafo da professora M.: “Ora, nesta escola, muitos serviços complementares, como datilografia por exemplo, são realizados pelos próprios professores, pois falta a mão-de-obra necessária. Este fato acarreta uma redução no tempo que se dispõe para a preparação de aulas. Eu busco seguir o conteúdo dos módulos de ensino, aquilo que o aluno não pode deixar de aprender, uma vez que com todas as deficiências do ensino público, torna-se difícil até mesmo concluir todas as metas previstas para o ano. Tenho liberdade para escolher a forma de ministrar minhas aulas, no entanto defronto-me com a falta de alguns recursos materiais, como a falta de pessoal que me auxilie ou mesmo de uma biblioteca maior e atualizada. Tais fatos acabam restringindo minhas possibilidades de implementar formas de ensino mais ricas e inovadoras” 74 Figura 14, Cap. 3 - Declaração de professor sobre a falta de recursos materiais. No trabalho com alunos especiais, a falta de recursos nas escolas poderá levar a questionar, de forma mais dramática, o senso de competência do professor. A professora T. faz uma observação preciosa que põe a descoberto a defasagem entre o trabalho “como deve ser” e “a realidade do trabalho nas escolas”, aspecto que segundo sua fala se complica pela ausência de recursos nas escolas: “Eu busco seguir o conteúdo programático. No entanto, este admite uma certa flexibilidade, pois lido com uma clientela diferenciada, que responde de forma não regular. Muitas vezes tenho que adequar as formas de ensino ou mesmo modificá-las para atender o objetivo de transmitir o conhecimento e garantir a apreensão. Entretanto, minha escola não consegue oferecer todos os recursos necessários. Veja bem, minha própria formação é problemática para o atendimento de deficientes. Nós devemos suprir muitas lacunas por nós mesmos”. Figura 15, Cap. 3 - Declaração de professor sobre a falta de recursos na escola. Para aqueles professores que lidam com alunos especiais, a defasagem entre o trabalho “como deve ser” e “a realidade do trabalho” nas escolas pode ser experimentada de forma mais violenta. Por isso o investimento emocional e afetivo exigido ao professor das classes especiais, para conseguir realizar sua atividade de trabalho, pode ser muito maior. Os professores também experimentarão em maior ou menor medida que o espaço da aula pode se apresentar como espaço da indisciplina, agressão, às vezes da violência; como espaço da interrupção, das dificuldades de aprendizado dos alunos. Este último aspecto é crucial. Perante às dificuldades de aprendizado dos alunos, a maior parte dos professores opta por investir duro. Na atividade de trabalho, no intercâmbioentre ele e o objeto de seu trabalho, está em jogo sua subjetividade, veiculada pelo saber e saber-fazer. Se o aluno não aprende, é a sua subjetividade que resulta interditada porque ele não consegue se objetivar no aprendizado do aluno de forma positiva. A professora C., por exemplo, trabalha pela manhã com uma turma de 30 alunos de 1ª série e à tarde com uma turma de 2ª série. Segundo ela, na primeira série: “Existem alunos de diferentes níveis e necessidades, por isso, apenas no horário das aulas, torna-se impossível prestar uma assistência individualizada aos alunos, e isso me angustia. Sinto dificuldades para conciliar ser professora e “mãe” ( que dá suporte ao ensino ), por exemplo, e a falta de tempo é um problema”. Figura 16, Cap. 3 - Declaração de professora sobre a dificuldade de dar assistência individualizada. Essa professora experimenta o drama do tipo de vínculo afetivo e emocional que o trabalho de ensino lhe exige, tem que ser mãe e professora, porque o ensino para acontecer demanda afeto e saber. Seu afeto (de mãe) não pode ser demais, porque na escola ela não é mãe. Agora, essa 75 tensão estrutural do vínculo com o trabalho se complica ainda mais, numa situação em que os alunos precisam de atenção individualizada. Essa atenção individualizada que, segundo C., esse grupo de alunos demanda, interpela com maior força seu afeto/emoção de mãe. Às vezes os professores terão que lidar com o sofrimento e a fome das crianças. Prestemos pois atenção à fala da professora P, que transmite o que significa conviver com o sofrimento do Outro na situação de trabalho: “ A demanda dos alunos é grande, porque eles apresentam problemas diversificados. Costumam trazer para a escola problemas que possuem com seus familiares e também têm muitos problemas econômicos. Eu tento ajudar no que eu posso, mas fico com muita dó quando não consigo. Eu faço o trabalho de educador no total, pois os alunos precisam de uma assistência geral”. Figura 17, Cap. 3 - Declaração de professora sobre os problemas de seus alunos. Em muitas ocasiões os professores das escolas públicas têm que lidar com crianças que estão, praticamente, cooptadas pela socialização das ruas. Eles (os professores) empreendem uma luta sem quartel contra um mundo de sombras que nem sempre conhecem, e se conhecem, agora eles estão “do outro lado”, do lado da socialização da escola. São crianças e jovens que trazem para o cotidiano das escolas suas experiências com a “fauna” da megalópole de final de século. Eles, crianças de rua ou na rua, são parte e testemunhas da existência de um universo paralelo e um pouco oculto, que pode se tornar visível nas situações mais corriqueiras. Um “frisson” na sala de aula... as vivências dos educandos se entrelaçam com as das prostitutas, traficantes, policiais violentos, vítimas e vitimários, meninos e meninas com a solidão urbana pintada nos rostos. Quantas vezes os professores terão que vivenciar no cotidiano do trabalho as misérias do mundo urbano, a face oculta de nossa modernidade. Um mundo que os interpela com sua feia face, violência, e precariedade dos laços afetivos. Não poucas vezes os professores podem se enfrentar com o fato de ter que cumprir com exigências burocráticas exageradas, com o autoritarismo do diretor, com a falta de participação nas decisões da escola, com a ausência de afetividade entre os colegas. Terá talvez que lidar com a ansiedade e preocupação dos pais dos alunos, ou com sua falta de comprometimento com o aprendizado dos filhos. Esta última questão parece preocupar muito aos professores, M. diz em tom cansado, como quem já repetiu essa fala muitas vezes sem ser atendido: “Muitas vezes as crianças necessitam de apenas uns poucos minutos diários de atenção por parte dos pais, no sentido de observar se a lição foi feita e quais as dificuldades que os filhos revelam. Porém, os pais encontram-se cada vez mais ausentes do processo educativo e isto me incomoda”. Figura 18, Cap. 3 - Declaração de professor sobre a necessidade de atenção dos alunos. 76 Uma outra professora, L. reforça a colocação de M. ao confessar: “Minha clientela é carente, mas eu não tenho do que reclamar, a não ser de uma postura ausente dos pais, que se mantêm distantes em relação à escola, prejudicando o aprendizado dos filhos. Este fato se traduz, especialmente, na ausência às reuniões” Figura 19, Cap. 3 - Declaração de professor sobre a ausência dos pais na educação dos filhos. Os problemas graves das famílias pobres, as necessidades da comunidade também poderão fazer parte da realidade do trabalho dos professores. Assim, muitas vezes, terão que conviver com o sofrimento do outro que traduz a gigantesca injustiça social. Também têm que conviver com uma remuneração claramente insuficiente, em ocasiões com o trabalho em várias escolas para completar a renda familiar, com a experiência da extensão da sua jornada de trabalho no marco da realização de outras atividades ou “bicos”. Ora, apesar de que tudo isso aconteça, ou de que algumas das situações até aqui levantadas configurem efetivamente a “realidade de trabalho” do professor, o ensino e o aprendizado dos alunos têm que acontecer. Não apenas porque o educador foi contratado para isso, mas porque o que está colocado em questão na “realidade do trabalho” na escola é seu saber e seu saber-fazer, sua competência profissional, ou seja, aquilo que sustenta sua identidade, seu ser como trabalhador. E como já foi dito, ele não apenas terá que conseguir ensinar, mas que terá que ser “um bom professor”, terá que ser competente. A “décalage” entre o “trabalho como deve ser” e a “realidade do trabalho” nas escolas encerra uma terrível armadilha para o educador; tanto mais terrível quanto mais profunda seja a referida defasagem e quanto mais ela dificulta a realização da atividade do trabalho ao professor; tanto mais perigosa, quanto mais interdite o estabelecimento do vínculo afetivo e emocional com o aluno (alunos agressivos ou violentos, desinteressados, etc.) e quanto mais limite os resultados do investimento afetivo e emocional (ausência de recursos, salas lotadas, autoritarismo gestionário, pais despreocupados, preparação inadequada, etc.). Em última instância, o que está posto em questão na relação entre o trabalhador e seu trabalho, numa atividade de cuidado, é a possibilidade dele exercer um controle massivo sobre o objeto de seu trabalho (aluno/doente). Ele plasma uma parte de sua subjetividade no aluno, atividade veiculada pelo vínculo afetivo e emocional, mas como já foi analisado, essa atividade de trabalho sofre de uma interdição estrutural (o cuidado do aluno, veiculado pelo afeto e a emoção, só pode ser realizado dentro de certos limites) que pode ver-se agravada pelas interdições que resultam da realidade do trabalho nas escolas. Do nosso ponto de vista, no caso dos professores, o tipo de vínculo exigido, para que a atividade de trabalho se realize, os faz portadores de uma fragilidade especial: a suspeição sobre a própria competência; esta fragilidade pode se manifestar com menor ou maior agudeza no cotidiano do trabalho. 77 O professor investirá contra os pesados moinhos de vento de uma possivelmente absurda “realidade” do trabalho. Acreditará ser um outro Todo-Poderoso, arremeterá contra os gigantes: violência, falta de recursos, ausência de participação, magros salários. Será que ele conseguirá vencer? Professor que é bom professor ensina, e os alunos aprendem, se ele não consegue é porque ele é um mau professor. Ninguém ousará assinalar o investimento emocional, afetivo e cognitivo que ele realizou para ser percebido e se auto-perceber como um bom professor. O depoimento de R. ilustra o vínculo que o educador estabelece entre o investimento pessoal (esforço) realizado no trabalho, aquela doação da subjetividade no exercício do saber- fazer,e sua objetivação exitosa no produto do trabalho, ou seja no aluno que efetivamente aprende: “Eu costumo utilizar os horários da minha coordenação para auxiliar aos alunos mais necessitados. Esses alunos costumam oferecer retorno. Teve um aluno, J. B., que apresentava dificuldades persistentes na aprendizagem, mas que após algumas horas de reforço tem conseguido acompanhar a turma de maneira eficiente. Para mim, este tipo de fato é muito gratificante, constituí uma fonte de prazer”. Figura 20, Cap. 3 - Declaração de professor sobre formas de auxiliar seus alunos. Essa vontade de poder, que transmite grande parte dos professores, caracterizaria o que se conhece como tipo moderno de subjetividade: um ego a busca de uma realização plena no trabalho, apenas admissível pelos grandes sonhadores. Mas a dimensão trágica destes super- homens e super-mulheres se põe de manifesto no cotidiano das escolas: são “navegantes” cercados pela violência, os magros recursos, o absenteísmo dos alunos, os graves problemas familiares dos educandos, fome, ressentimento, ódio, etc. e eles ainda “ameaçando” que vão conseguir “conquistar” esses inóspitos territórios. Quantas vezes na realidade do trabalho nas escolas os sonhos destes delirantes super-homens e super-mulheres são impiedosamente arrastados pela correnteza? O educador também pode levantar como justificativa da ausência de êxito dos seus alunos a influência indubitável dos diversos aspectos negativos da “realidade do trabalho” nas escolas; mas no seu íntimo pode haver caído na armadilha da exigência social de ter que provar sua competência a qualquer preço. Finalmente, é possível que os resultados alcançados nessa “realidade do trabalho” mais ou menos absurda o levem a duvidar da sua própria competência: “os alunos não conseguem aprender devido a falta de recursos suficientes na escola?”; “não conseguem aprender devido a suas carências socioculturais?”; ou “o problema é que eu não consigo ensinar a eles de forma adequada?”; “o problema é que eu não sei como ensinar em tais circunstâncias?”, etc. Difícil também para nós destrinchar essas responsabilidades sem cair nos comuns clichês. 78 Ora, se a semente da dúvida sobre sua competência profissional foi plantada, seu suporte identitário foi atingido. Ele investiu fortemente nos aspectos emocional, afetivo e cognitivo da sua atividade de trabalho e os resultados foram negativos, ou muito aquém do esperado em relação ao investimento feito. Ele sofreu bastante, mas agora sente que esse sofrimento não teve sentido. Desfilam pela sua mente as lembranças das horas a fio passadas preparando as aulas, os esforços para atender sempre que possível de forma individual aos alunos, surgem as imagens das brigas domésticas associadas ao fato de estar investindo tudo e mais ainda nos seus alunos, na sua profissão, ele sente-se confuso, envergonhado, errado. Como não lembrar também o dinheiro tirado do próprio bolso para ajudar na compra de materiais didáticos? Ele acreditava que podia... tinha saber, acreditava que sabia fazer e que desejava fazer. Ele estava seguro de que conseguiria. Mas é provável que em algumas ocasiões ele não consiga, e pior ainda, muito pior, que seu esforço não seja reconhecido por ninguém. Sabe que sofreu, mas alguns até acharam ridículo seu empenho, tolo até, outros lhe ofereceram sua indiferença ou um discreto sorriso capaz de transmitir dúvidas sobre sua competência. Os jornais só falam do descaso da educação pública, do rendimento ruim dos alunos nas avaliações realizadas pelo MEC, do vergonhoso lugar que os alunos brasileiros das escolas públicas alcançam nos rankings de comparações internacionais de rendimento dos educandos. Ora, o professor está sendo constantemente atingido na sua imagem pública, todo isso que parece questionar sua competência fere profundamente sua identidade. Será que já paramos para pensar nisto? Mas os professores tentam, acreditam que podem, mas pouco ou nada lhes é reconhecido porque os resultados não são bons...mas de fato, podem sê-lo? Todos, em maior ou menor medida, conhecem a realidade do trabalho na escola pública... Mas, o esforço, o investimento quixotesco dos professores não é geralmente reconhecido, ou é muito pouco reconhecido. Ora, muitas vezes ele teve que enfrentar a hostilidade daquele grupo de colegas para que suas propostas fossem aceitas; e quantas vezes alguns colegas acharam que já tinham reuniões suficientes para agregar uma a mais que ele propunha como forma de compartilhar e discutir as experiências nas salas de aula. Quantas vezes, enfim, foi desestimulado a fazer, coagido para não fazer, ridicularizado por querer fazer. Quantas vezes ele se sentiu humilhado, quantas outras foi atingido pelos olhares e comentários carregados de ironia como aquele que “quer mostrar muito trabalho” na escola, como “o professor que quer aparecer”. Quantas vezes ouviu o comentário melancólico: “deixa pra lá...quando chegam a maioria é assim...acreditam que vão conseguir...” Mas não foram só comentários, às vezes a chave da sala de arte se perdia misteriosamente, justamente o dia que ele havia marcado um encontro de trabalho para seus alunos com um reconhecido artista da comunidade, ou aquela maquete feita com tanto esmero, pintada com aquarelas para ensinar aos alunos os acidentes geográficos, que primeiro despertou sorrisos 79 burlões nos colegas e depois apareceu estragada, inutilizada. Ora, quanto ele não lutou com a realidade social e material das escolas para poder ser considerado competente na sua atividade de trabalho? Na solidão, a dúvida sobre sua competência profissional lhe corrói o cérebro. Ele investiu muito, lutou contra a realidade social e material do trabalho para poder ensinar a seus alunos, o esforço, os custos emocionais e pessoais foram muito altos, os resultados foram magros, os alunos não aprenderam tanto como ele esperava, além disso seu trabalho não foi considerado, nem valorizado. 80 -E sua família, não considerava que a senhora tinha sido bem sucedida em relação a ...estes objetivos de ser professora, etc. ? Fanny: Sim, sim, com certeza. Ela considerava que eu tinha conseguido, mas hoje em dia minha mãe se desencantou, ela se desencantou... -Ah bom, então isso foi numa certa época? Fanny: Sim, no início...Para ela, bem, o fato de que...eu ia bem na escola, que eu passava nos exames, queria dizer que eu tinha conseguido. E hoje em dia quando ela vê o modo como vivo, talvez tenha a ver também com a maneira como eu vivo., com as preocupações que eu tenho, ela me diz: “ mas afinal...”. Então ela não quer mais...isso é tudo, há muita coisa por falar aí dentro, ela tem a impressão que alguma coisa, ela não analisa, eu não falo mais disso com ela porque sei que ela se culpa por isso, já não falo mais muito a este respeito mas...ela tem a impressão de que existe alguma coisa de poder mesmo no reino da Educação nacional, é confuso, eu não falo disso, mas ora, eu sinto isso. Ela me disse, quando fui até lá no dia de Todos os Santos, fui vê-la , e levei algum trabalho para fazer, ela me disse: “ deste jeito afinal você nunca está tranqüila “ , ela não vê outra coisa além disso, ou então quando me vê deprimida, ela me diz: “ no fim das contas sua irmã está mais feliz do que você” -Sim, então ela pensa que ...não é o que ela esperava. Fanny: Não...ela pensa sem nem mesmo dizer que pensa, mas...veja bem, isso, é confuso...Não é algo expresso, não. Se falarmos de coisas pessoais, eu me casei, me divorciei em 85, meu marido me censurava o tempo todo de estar ocupada demais com meu trabalho. E de quantos colegas ouço que têm problemas conjugais por causa disso, os professores. É verdade...Tome aquela com quem falei ontem á noite pelo telefone, uma professora de maternal que está doente, ela está parada até dia 15, o médico queria que ela parasse até dia 22 masela lhe disse que tinha consultado uma psicóloga que tinha dito: “ seu problema é este”. É uma rejeição. Ela me disse : “eu não agüento mais o barulho “, bem. Ela está deprimida.” Entrevistas de Gabrielle Balazs e Rosine Christin (janeiro de 1991), in Bourdieu, 1997 - pág. 542. Figura 21, Cap. 3 -Trecho de entrevistas sobre a competência profissional e apoio da família. As condições para o aparecimento do sofrimento psíquico no trabalho estão dadas, e vejamos por que. Toda atividade de trabalho demanda, em maior ou menor medida da parte do trabalhador, esforço que se traduz numa sorte de “sofrimento” no trabalho, isto seria a realidade normal do trabalho. O espaço para o sofrimento psíquico se abre quando esse investimento carece de sentido. O trabalho, enquanto atividade, tem sentido quando o processo de objetivação da minha subjetividade no objeto do trabalho tem um sentido positivo. Ou seja, caricaturizando, quando meu investimento tem um retorno. Nesse processo o que veio à tona foi o saber e saber- fazer do trabalhador, a sua competência. O trabalhador se observa no seu produto como num espelho, seu produto o interpela. Se a objetivação da sua subjetividade no aluno mostra uma face negativa, (o aluno não aprendeu ou aprendeu muito mal) ele será recorrido por um “frisson”: sua identidade será atingida. Perante essa situação, que pode aparecer em diversos momentos do ano escolar ou no final do período letivo, o educador pode decidir procurar alívio, esquecer o sofrimento no trabalho, buscar seus amigos para se divertir. Pode desejar alguma fonte de gratificação que o leve a compensar em parte o desprazer experimentado no local de trabalho. Trata-se, enfim, de uma 81 estratégia. Mas há todo um sofrimento que ficou armazenado no seu íntimo, sua subjetividade foi atingida, ele procura esquecer, não enfrentar seu sofrimento, fazer o jogo da amnésia. Ora, estamos perante uma estratégia individual de fuga em face do sofrimento no trabalho. Poderiam existir muitas outras, tanto quanto o permitisse a louca imaginação dos homens, quando se trata de fugir do sofrimento provocado pelo social. Surge a pergunta, esta “amnésia” do sofrimento no trabalho, que efeito tem sobre esse sofrimento? O sofrimento no sentido do esforço realizado, do cansaço, das entregas pessoais, etc. faz parte da realidade normal do trabalho, mas se o trabalho tem um sentido, se ele tem significado, esse sofrimento pode se transformar em prazer. O reconhecimento dos outros pelo esforço realizado no trabalho, a valorização da entrega subjetiva do sujeito podem dar sentido ao sofrimento no trabalho, metamorfoseando esse sofrimento em prazer. Se isto não acontece, a procura de um prazer substituto ao desprazer experimentado no trabalho, é, de fato, uma estratégia. Mas é evidente que essa procura do prazer além do local de trabalho, como uma forma de amnésia do sofrimento vivido, deve ter conseqüências sobre a atividade de trabalho. De fato, se o sofrimento no trabalho carece de sentido para o sujeito, se o trabalho é apenas fonte de sofrimento, é evidente que o investimento afetivo, emocional e cognitivo do sujeito não será o mesmo permanentemente. Um bom trabalhador não pode existir em abstrato, seu ser se produz na atividade de trabalho. Mas ele poderia fazer uma outra opção. Poderia haver-se negado a entrar no jogo da amnésia e começar a trilhar o caminho do enfrentamento de seu próprio sofrimento, entendendo também que se trata do sofrimento de muitos outros, em vez de negá-lo, ocultando-o. Poderia procurar aquele colega-amigo para tentar falar do que está sentindo, para tentar fazer alguma coisa, para tentar mudar essa realidade do trabalho. São duas estratégias: uma nega, faz o jogo da amnésia, a outra enfrenta o sofrimento no trabalho. Acreditamos que: quanto maior a defasagem entre o “trabalho como deve ser” e a “realidade do trabalho” nas escolas, maior será o investimento afetivo e cognitivo exigido ao professor, maior será o esforço realizado, e por isso, maior será seu sofrimento no cotidiano do trabalho. Esse sofrimento tem sentido para o trabalhador quando seu saber e saber-fazer, que foi constantemente interpelado durante a atividade de trabalho, deu lugar a um reconhecimento e auto-reconhecimento da sua competência profissional. Inclusive, além dos resultados alcançados, quando seu esforço foi reconhecido, significando que seu trabalho foi pleno de sentido. Como já foi dito, o que está posto em jogo nesse embate cotidiano com a “realidade do trabalho” escolar são os suportes da identidade do trabalhador. 82 83 PARTE II: OFÍCIO DE EDUCADOR 84 Cap 4 – Os trabalhadores e seu trabalho Lúcia Soratto, Cristiane Olivier-Heckler Todos freqüentamos uma escola durante um período em nossas vidas, pública ou particular, grande ou pequena, urbana ou rural. Para alguns de nós foram mais de 10 anos seguidos passando, pelo menos, meio período de cada dia útil num ambiente escolar. Alguns tiveram a oportunidade de se dedicar aos estudos bem menos do que isso. Infelizmente, ainda é um privilégio conseguir concluir o ensino médio de segundo grau no Brasil, ou mesmo o básico até a oitava série. Mas são poucas as pessoas que nunca freqüentaram uma escola, pelo menos por um ou dois anos. Boa parte consegue ao menos completar as primeiras quatro séries do ensino fundamental e aprender a ler e a escrever. Que sejam 10 anos, quatro horas ao dia, 8 meses do ano, é muito tempo e não é um tempo qualquer. O fato é que o ambiente escolar faz parte das nossas lembranças infantis. Temos na memória nossa primeira professora, nossos amigos de escola, as brincadeiras no recreio. Os mais antigos lembram as dificuldades do percurso da casa até a escola, que muitas vezes ficava bem distante e exigia longas caminhadas a pé, pois ainda não havia transporte coletivo como hoje. Alguns, em melhores condições, estudaram em regime de internato, em colégios religiosos e têm outras tantas lembranças desse período; pequenas traquinagens para burlar as regras, as quais na época pareciam uma grande transgressão; pura ingenuidade infantil. São lembranças guardadas com carinho por todos nós de uma parte importante das nossas vidas. A escola é nada menos que a primeira instituição da qual fazemos parte fora da família, é nosso primeiro contato com o mundo fora da proteção do lar, longe dos pais e dos irmãos. É onde temos que aprender a conviver com outras pessoas de origens diferentes, hábitos que não conhecíamos. Para uma parte de nós é o local onde assumimos as primeiras responsabilidades pessoais, temos os primeiros compromissos. Apenas para uma parte de nós, porque a outra parte, muito antes de freqüentar uma escola, assume responsabilidades de trabalho, cuidando dos irmãos, da casa, trabalhando no campo, em oficinas, no comércio. Nem todos têm o privilégio de serem primeiramente apresentados para obrigações da vida num ambiente escolar. Mas, para muitos, é o local de descobrir seu jeito fora de casa, outros gostos, de se expor para outros e para si mesmo, descobrindo suas dificuldades e suas facilidades. As lembranças que temos dessa experiência pessoal nos acompanha para a vida toda e ficam guardadas para serem contadas para os netos. Enfim, a escola contribui na construção da nossa identidade, da nossa personalidade, de maneira básica, estrutural; organiza os nossos afetos; é onde aprendemos a viver, quiçá 85 conhecemos a primeira/o namorada/o, pelo menos um modo de lidar com nossos misteriosos impulsos sexuais, um modo de se expressar, uma outra linguagem. Estamos em um território tão importante quanto a primeira infância, vem daí, sem dúvida, a forte carga afetiva que acompanha as nossas memórias. Curiosamente, por razões que não cabem explicar aqui, as experiências que vivemos e que constituem nossa identidade com esta força nunca são consideradaspor nós como trabalho. Alguém já se lembrou da mãe, enquanto mãe mesmo, como trabalhadora? No entanto, alguém poderia duvidar que criar um garoto/a não seja um trabalhão? Com a escola se passa o mesmo, ninguém se lembra dela como instituição de trabalho. Tudo se passa como se o trabalho fosse algo exterior, e a escola está muito interiorizada para ser pensada enquanto tal. Quando pensamos em escolas, temos imagens e sensações que nos ocorrem pelo que já experimentamos na nossa trajetória particular e são tão familiares que precisamos empreender algum esforço para olharmos com outros olhos para esta instituição. Mas é justamente isso o que vamos propor neste momento. Vamos nos empenhar para olhar as escolas a partir de uma outra perspectiva que raramente alguém olha, a saber, como uma organização de trabalho. Uma enorme organização de trabalho, maior, por exemplo, do que o Mc Donald’s ou as Lojas Americanas, para citar apenas algumas das mais conhecidas do grande público. Para ficarmos apenas com a rede estadual, uma determinada secretaria de Estado seleciona e paga milhares de trabalhadores, constrói os edifícios onde estas pessoas receberão milhões de clientes, define o material a ser utilizado, os livros didáticos, os objetivos a serem atingidos, avalia a ‘produtividade’ segundo os mesmos critérios. Uma enorme corporação de trabalho que talvez seja tão ou mais passível de ser definida como um franchising do que os que citamos acima. O diretor de uma rede comercial ou de uma rede de lanchonete tem liberdade de demitir um empregado sem consulta à direção estadual, em uma escola quem demite é a secretaria. Mas sejamos modestos, consideremos apenas a escola como local de trabalho, esquecendo de suas ligações com as outras escolas, com a Secretaria deste ou daquele Estado, com o Ministério da Educação; mesmo assim se trata de uma organização nada desprezível, podemos considerá-la, sem medo de errar, como uma organização de porte médio. As pequenas empresas, em geral, têm poucos funcionários e pouca especialização de funções, comumente tendo os mesmos funcionários responsáveis por vários setores: execução, manutenção, administração, finanças e assim por diante. No caso da escola, a situação não é esta. Com exceção dos pequenos estabelecimentos, como é o caso da maioria das escolas rurais, as demais têm funcionários específicos responsáveis por setores diferentes. Existe o pessoal da secretaria, da limpeza, da alimentação, do ensino, para citar apenas os que incluem maior número de funcionários. Com toda essa divisão de trabalho, setores diferenciados, além do número de 86 funcionários e de clientes atendidos, trata-se, sem dúvida, de uma organização complexa demais para ser considerada uma pequena empresa. O esforço para administrar tudo isso, a rotina, os problemas, a burocracia não são em nada menor do que em qualquer outra empresa. Claro que existem as particularidades em função de ser uma empresa pública ligada ao estado e não uma empresa particular. O fato de não ser uma empresa com fins lucrativos e o não gerenciamento dos próprios recursos marcam diferenças importantes, mas não tiram a característica de organização de trabalho, com trabalhadores, produto, relações de trabalho e todas as demais categorias através das quais tentamos entender a dinâmica de uma empresa. A escola é uma organização de trabalho prestadora de serviços, compondo, portanto, o setor terciário da economia, o mesmo em que se localizam os serviços de saúde, comércio, lavanderia. O que a coloca nessa classificação é a sua função de prestar um serviço – educar - para clientes muito especiais - crianças e adolescentes. A relação direta com o cliente, como acontece nas escolas e em qualquer outra empresa ou instituição prestadora de serviços, implica em um trabalho com características muito particulares. O trabalhador desta organização está constantemente expondo seu trabalho a críticas diretas dos clientes e nem podemos nos iludir que, sendo estes crianças ou adolescentes, a situação seja diferente. Muito pelo contrário, quem trabalha com clientes nestas faixas de idade sabe muito bem que são críticos mordazes e com muito menos pudor para desaprovar alguma coisa que não está agradando do que alguém de meia idade que tem certas reservas adquiridas com o tempo e a experiência. Precisam ser conquistados o tempo todo, bem tratados, bem atendidos, do contrário manifestam seu descontentamento das formas mais constrangedoras e inesperadas. Que um professor do colegial, responsável por matemática, tente errar uma conta para ver o que lhe acontece ou, mesmo que acerte, não pode sequer parecer inseguro. Posto que escolas são empresas prestadoras de serviços coloca-se, entre outras, a questão da qualidade dos serviços prestados que são o produto desse tipo de empresa. A exigência de qualidade em serviços é uma constante e vem sendo muito discutida atualmente, em função do crescimento deste setor da economia. Na prestação de serviços, a qualidade depende diretamente do trabalho e unicamente dele. Condições organizacionais podem facilitar ou dificultar, mas quem responde pela qualidade é o trabalhador responsável e ninguém mais. Tudo depende do trabalhador e da sua relação pessoal com o cliente. O produto não é algo concreto que se possa pegar, tal qual uma peça de roupa ou um eletrodoméstico, é bem mais sutil e, por vezes, totalmente abstrato. O que queremos dizer é que o produto vai se construindo o tempo todo durante a relação entre trabalhador e cliente. A satisfação do cliente, neste caso, ocorre durante o processo e não somente ao final, depois que o trabalhador terminou a sua parte. Disso podemos tirar, pelo menos, 87 duas conclusões. A primeira é que o nível de exigência e de tensão para o trabalhador é muito maior do ponto de vista afetivo e a segunda é que o trabalhador, em função dessa demanda, precisa estar bem do ponto de vista emocional para estar em condições de desempenhar adequadamente sua função e sempre atualizado para conseguir responder às necessidades dos clientes. Uma empresa pública prestadora de serviços precisa ser pensada, também em termos da disparidade, que por vezes acontece, entre as necessidades do cliente e o que a organização se propõe ou tem condições de oferecer, bem como o papel do trabalhador nessa situação. Estamos vivendo tempos de mudanças, surgem novidades que alteram a nossa vida e são introduzidas com uma velocidade estonteante. Basta estarmos atentos ao nosso dia-a-dia para percebermos como a tecnologia está se impondo, mudando os hábitos das pessoas, criando necessidades. Longas cartas para amigos ou parentes distantes são cada vez mais raras; telefones cada vez mais acessíveis; o correio eletrônico, mais rápido e eficiente, vai se difundindo. Trabalhadores não estão mais presos exclusivamente ao local físico de trabalho à espera de ligações ou dependentes dos equipamentos do escritório, temos hoje os telefones celulares que nos permitem a comunicação em movimento e os micro-computadores portáteis. Há algumas décadas, não precisamos mais estar fisicamente presentes em qualquer lugar do mundo para inteirar-nos dos acontecimentos e das notícias internacionais. Em minutos, passamos da África à América do Norte, passeamos por territórios em guerra, visitamos a Bolsa de Valores em Nova Iorque e, em seguida, podemos ir para uma cozinha de um restaurante no sul da França para aprendermos um prato típico local. Para essa viagem, em minutos, por locais tão distantes temos as TV’s a cabo, as transmissões via satélite, sistemas integrados de computadores via Internet e assim por diante. É nesse mundo que vivemos hoje, ao qual temos que nos adaptar e sobreviver. Claro que nem todas as pessoas têm acesso à Internet, aparelhos de Fax, telefonia celular e nem mesmo telefone fixo na residência. Aliás, cada uma destasnovidades tecnológicas atingem de fato um número bem restrito de pessoas. Mas, mesmo para os que não têm acesso direto a essa tecnologia, o mundo não é o mesmo que antes e, para que as pessoas em qualquer condição sócio-econômica possam se inserir no mercado de trabalho cada vez mais exigente e participar do mundo em que vivem, não podem ficar alheias a toda essa parafernália. A televisão, um bem de consumo adquirido pelas pessoas com pagamentos, às vezes, sabe-se lá em quantas prestações, é a porta de acesso que permite às pessoas colocar o mundo para dentro das suas casas, apesar de todas as críticas que podemos fazer à programação que é oferecida aos telespectadores. A TV leva para dentro da casa mais simples informações sobre toda essa tecnologia e as pessoas querem se inteirar disso, cria-se uma necessidade que antes não estava presente. Além disso, as pessoas querem sempre um emprego melhor, melhor que o atual, melhor que o dos pais e, para 88 isso, nos dias de hoje é preciso acompanhar o que está acontecendo, manter-se informado, dominar os novos equipamentos, estar em dia com a tecnologia; até mesmo aqueles empregos em pequenos escritórios que antes exigiam datilografia, hoje exigem noções básicas de microcomputação. Mas, afinal de contas, por que dissemos tudo isso, por que nos desviamos tanto das escolas e dos professores para falar sobre o desenvolvimento tecnológico no mundo moderno? Porque é nesse mundo que vivem os alunos que freqüentam as escolas, bem como as suas famílias, e suas demandas são permeadas pelas novas necessidades, as quais vão se impondo através destas mudanças que viemos descrevendo. Dissemos que a organização educacional nem sempre tem condições de atender as demandas que recebem, contudo essa demanda atinge diretamente o profissional que trabalha com os clientes. Em última instância, cabe a solução, a busca por formas de atender o que aparece no dia-a-dia do exercício profissional. Como fica este trabalhador diante de uma demanda que não pode ser atingida por conta das condições organizacionais? Pode ignorar simplesmente, se conseguir não se importar com isso, ou tentar por conta própria atualizar-se e fazer aquilo que estiver ao seu alcance. De qualquer modo, não é um papel fácil para o trabalhador. É dele a angústia de lidar com a impossibilidade de atender ao desejo do outro, à necessidade trazida para o seu espaço de trabalho. É bom lembrarmos que estamos falando sobre questões do trabalho e dos trabalhadores na prestação de serviço da rede estadual de ensino. Para compreender melhor o que se passa, precisamos refletir sobre a escola como organização de trabalho e sobre professores e funcionários como profissionais submetidos a condições específicas de trabalho que devem ser conhecidas, mantidas ou modificadas, dependendo do caso. Trata-se de uma organização de trabalho, prestadora de serviços altamente complexos; com uma clientela exigente e altamente dinâmica; geradora de um produto indiscutivelmente essencial, em um momento histórico particularmente delicado, como se vê. Mas, por que pensar a escola como organização de trabalho? Não seria melhor entrar no debate que anima o pensamento humano desde Sócrates? Como ensinar? O que ensinar? Filosofia da educação? Pedagogia? Função da educação neste final de século? Sem dúvida, são debates importantes, tão importantes a ponto de todos dependermos destas condições para que seus resultados se concretizem, se não quisermos correr o risco de construir um castelo na areia. A questão é que qualquer que seja a proposta educacional, a filosofia subjacente, será preciso que haja trabalhadores em educação aptos a implantá-las, que hajam escolas aparelhadas para abrigá-las. Estamos hoje como um cineasta com um roteiro brilhante, os atores já escolhidos, o cenário desenhado, cada cena do filme montada e sem 89 dinheiro sequer para comprar o filme, sem máquina para filmar. Semanalmente ocorrem por este país calorosos e glamorosos debates sobre os destinos maiores da educação. Enquanto escrevemos, trava-se uma luta eleitoral, na qual a educação no país ocupa lugar central, e nada mais se diz além de aumentar os salários dos professores. Aliás, o mesmo que se disse em todas as campanhas eleitorais desde a Proclamação da República. Qualquer debate, por mais profícuo, por mais ilustrado que seja, ou leva em conta as condições de trabalho na escola, as contradições dos trabalhadores que o realizam, ou estará fadado a engordar as estantes de nossas bibliotecas apenas. Quem faz a educação, qualquer educação, é o educador. Educadores trabalham nas escolas, os problemas de trabalho dos educadores são conhecidos? As contradições existentes nas escolas estão equacionadas? Os estudiosos do trabalho, os responsáveis por maximizar seus resultados desde a invenção da administração científica por Taylor, avançaram muito em superar seus desafios: o que é necessário para que um trabalhador faça sua obrigação com competência, com prazer, com dedicação. Existe hoje uma parafernália técnica admirável para se compreender e enfrentar os desafios sobre o trabalho. No entanto, nada disto se leva em conta quando se pensa em educação. Comprometimento no trabalho, satisfação dos trabalhadores, relacionamento com a hierarquia, atitudes perante o trabalho, carga mental no trabalho, temas que são triviais em qualquer organização de trabalho sequer são aventados quando se discute a crise da educação brasileira. Não foi por acaso que a iniciativa de discussão destes temas tenha partido de uma confederação sindical. Os trabalhadores reunidos em seus organismos de classe sabem muito bem das dores e prazeres da labuta cotidiana, sabem das condições em que exercem e nas quais deveriam exercer suas atividades, são educadores, são trabalhadores em educação, querem discutir o seu trabalho. As empresas automobilísticas, para dar apenas um exemplo, já sofreram dezenas de reformulações visando melhorias nas condições de trabalho e na saúde mental de seus trabalhadores, algumas mais avançadas, como a Toyota e a Volvo, chegaram a contribuir inclusive com modelos novos de gestão e divisão do trabalho para as outras esferas de produção e para o avanço teórico no estudo do trabalho humano. Enquanto isto, o professor entra na sala de aula e lhe falta giz, carece por vezes de um armário para guardar suas tralhas. Com a diferença que um trabalhador de uma indústria automobilística muitas vezes, ainda hoje, é contratado para apertar o mesmo parafuso centenas de vezes ao dia, enquanto um professor é contratado para inventar o futuro de pessoas, para construir o futuro do país, para empolgar, desenvolver corações e mentes. Qualquer reforma que se tentar na educação que não leve em conta as condições objetivas e subjetivas de trabalho dos educadores não pode ser levada a sério. 90 A pior organização Diariamente, milhares de trabalhadores saem à procura de emprego e centenas de novas vagas são colocadas à disposição no mercado por empresas públicas e privadas. Cada uma das partes está à procura da melhor transação, candidatos almejando um emprego e empregador, representando uma empresa, avaliam o valor um do outro, pesam os prós e os contras à luz das condições do mercado e fecham ou não um contrato de trabalho. As relações que se estabelecem são comerciais, daí a expressão “mercado de trabalho”, onde se realiza a compra e a venda da força de trabalho. O valor que esta mercadoria assume está sujeito a variações em função da oferta e da procura, de fatores conjunturais de economia e política nacional e mundial e de tantas outras condições que não seria razoável e nem possível declinar aqui. O fato é que nesta transação cada uma das partes busca o melhor e tem critérios próprios de avaliação. O trabalhador procura uma empresa que lhe ofereça boas condições de trabalho, salários adequados,segurança, estabilidade, possibilidade de crescimento profissional, progressão na carreira, recompensa apropriada para seu esforço e reconhecimento social, para listar apenas algumas. Nem sempre, em função das condições do mercado e do valor que este trabalhador conseguiu agregar à sua força de trabalho, o mesmo pode alcançar tudo que almeja, mas pode, ao menos, evitar as piores condições. Pensando dessa forma, vejamos o que seria a pior organização para um trabalhador escolher para se empregar: aquela que oferece salários muito baixos, remunerando mal a sua força de trabalho; que não oferece plano de carreira, que não tem esquema de avaliação que recompense o trabalhador proporcionalmente ao seu esforço; que ofereça infra-estrutura precária para a realização do trabalho e pouco conforto para o trabalhador; que tenha relações burocratizadas, de modo que caminhos intermediários dificultem a realização do trabalho e a obtenção de recursos de forma rápida e eficiente; cujo trabalho implique em alto nível de responsabilidade sem nenhum privilégio em retribuição; cujo trabalho seja exigente, desgastante e sem reconhecimento social associado. Infelizmente, encontramos a maior parte destas condições na rede estadual de ensino. Os salários são reconhecidamente baixos. Mais de 40% dos professores ganham menos de 500 reais por 40 horas semanais de trabalho e pouco mais de 10% ganham 1000 reais ou mais. Mesmo entre os professores responsáveis pelo 2o grau, cuja exigência de escolaridade formal é de nível superior completo, mais de 30% ganham menos de 500 reais mensais pelas 40 horas semanais. Apenas 14% dos que têm nível superior têm remuneração a partir de 1000 reais. Em alguns estados, mais de 70% ganham menos de 500 reais por 40 horas semanais. Mesmo entre os professores responsáveis pelo ensino de 2o grau, encontram-se nesta faixa, mais de 60% do total. O mesmo ocorre entre os professores com nível superior completo, independente do nível de 91 ensino em que trabalham (dados mais completos sobre remuneração na parte IV deste livro). A partir de uma comparação com trabalhadores brasileiros em ocupações menos qualificadas, alguém poderia argumentar que estes salários não estão baixos para os padrões nacionais, mas não é uma comparação razoável, apesar da desvalorização que o trabalho do professor sofre, já que as exigências de formação para o professor são claramente definidas inclusive do ponto de vista legal. Portanto, em termos salariais, as condições oferecidas ao professor não são compensadoras e estão em desacordo com o nível de exigência da função. Mas não é só de salário que vive o trabalho e o trabalhador. Este último inclui entre os quesitos desejáveis para uma empresa as possibilidades de progressão na carreira, o que significa o reconhecimento social e financeiro do esforço deste trabalhador na busca de crescimento profissional. Galgar níveis na carreira representa uma forma importante de concretização do reconhecimento da competência e do desempenho do trabalhador. Um bom plano de carreira é tão desejável para o trabalhador a ponto de, algumas vezes, o mesmo aceitar um emprego com um salário inicial baixo, mas em uma organização que tenha um bom plano de carreira, pela expectativa de um futuro profissional promissor. O raciocínio feito pelo profissional é econômico estrito senso; ‘se eu me dedicar muito, fazendo um bom trabalho, estudando, aprendendo, ampliando minhas habilidades e meus conhecimentos, posso obter com o tempo uma colocação muito boa em retribuição ao meu esforço’. O fato é que as pessoas querem ser reconhecidas, querem ver seu esforço valorizado. A retribuição para o trabalho realizado tem uma dimensão subjetiva expressa através de reconhecimento, status, e uma dimensão objetiva expressa através de dinheiro, currículo, ambas fundamentais para o trabalhador. Inclusive, do ponto de vista emocional, tocando na auto-estima, no sentimento de realização profissional e na satisfação do trabalhador. E quais são as possibilidades de progressão na carreira de um professor da rede estadual de ensino? Quantos degraus ele pode galgar, para onde pode crescer dentro da instituição pela experiência adquirida no exercício da função, pelo bom trabalho realizado, a partir da demonstração de empenho e competência, através da busca de aprimoramento e reciclagem de conhecimentos? Os professores ingressam por concurso público e o cargo inicialmente ocupado vai ser o mesmo por toda a carreira, com poucas exceções que passam a ocupar cargos de direção ou coordenação de área ou ainda alguns poucos cargos de chefia. A variação salarial prevista através de benefícios por tempo de serviço (os anuênios e similares) independem do trabalho e do trabalhador, trata-se de uma relação apenas com o tempo na organização, o que significa que funcionários excelentes, medianos ou muito ruins têm exatamente o mesmo tratamento legal e são igualmente remunerados. Portanto, não há um reconhecimento associado ao desempenho, à competência ou ao esforço individual. 92 O profissional que ingressa nesta carreira não tem muitos degraus à sua frente dentro da instituição, o que exclui mais uma forma de motivação importante para iniciar num emprego com estas condições e, principalmente, para permanecer nele ao longo dos anos. Em termos de carreira, o emprego do professor na rede estadual também não oferece condições desejáveis ou compensadoras para o trabalhador. Tão importantes como salário e carreira são as condições de trabalho. O desgaste a que trabalho e trabalhador se submetem perante a falta de condições para a realização do trabalho pesam na balança e, nos dias de hoje, tendem a pesar cada vez mais. Vejamos como se encontram estas condições nas escolas da rede estadual de ensino. As condições de trabalho destes profissionais são muitas vezes bastante precárias. Viajando por este país afora, ao passar por estradinhas de terra que ligam nada a lugar nenhum, não raro nos deparamos com uma pequena habitação onde sobre a porta maior podemos ler “Escola Profª. Fulana de Tal”. Não precisamos abrir a porta para sabermos que ali desenrola-se a mais nobre das profissões sob as mais severas condições de trabalho. Para enfrentar um sol escaldante, pequenas janelas; para escrever, pedaços mínimos de giz e quadros que já foram negros, além de carteiras que se movimentam desengonçadamente. As condições de infra-estrutura em alguns lugares estão muito comprometidas, chegando a faltar material básico como giz, apagador, carteiras e cadeiras. Em alguns estados, 57,5% das escolas estão com suas carteiras e cadeiras em péssimas condições de uso e, em 47,5%, os quadros negros estão desgastados pelo efeito do tempo. Mesmo quando as condições não chegam a níveis preocupantes, o que se encontra na maioria das vezes são apenas as condições básicas para funcionamento, dizendo de outro modo, uma estrutura mínima para a realização do objetivo principal da instituição: o processo educacional. Raras são as vezes em que o educador tem ao seu alcance, oferecidos pela instituição, materiais e recursos que vão além desse mínimo, para que possam enriquecer suas aulas, tornando seu trabalho mais interessante, mais eficiente e eficaz. Mais que isso, incentivo e estímulo à essa forma de trabalho, à utilização deste tipo de recurso, muitas vezes não fazem parte da cultura organizacional, não havendo, portanto, um ambiente propício e receptivo para iniciativas dos profissionais nesta direção e, muitas vezes, havendo dificuldade inclusive para incorporar propostas de programas que chegam às escolas a partir de iniciativas governamentais. (vide Parte III, capítulo sobre infra-estrutura nas escolas, neste livro). Mas será suficiente buscarmos sustentação somente nestes itens para afirmarmos que as condições de trabalho dos professores são geralmente precárias? Certamenteque não. Infelizmente, o aprofundamento da análise piora nossas conclusões. Espera-se mais do ambiente de trabalho. O conforto, por exemplo, é algo buscado por todos os trabalhadores e a possibilidade 93 de menor produtividade devido a condições desfavoráveis do trabalho não pode ser considerada uma conseqüência inesperada. Apesar da importância das condições de trabalho para a qualidade do serviço e para o bem estar do trabalhador, em mais de 62% dos estados ocorrem problemas de acesso às escolas e em 70% o problema da agressão aflige a professores, funcionários e alunos. Na maioria dos estados a falta de higiene externa, isto é, fora das salas de aula, incomoda a todos e nem estamos falando das más condições de uso das instalações sanitárias de alunos e professores, o que ocorre em muitas instituições. Não se pode negar que alguns projetos são desenvolvidos por parte do governo no sentido de melhorar as condições de ensino (mais freqüente) e as condições de trabalho (menos freqüente). Na maioria das escolas de todos os estados, existe, por exemplo, sistema de antena parabólica e aparelhos de televisão e vídeo cassete para uso dos professores e repasse aos alunos. Muito bem, seria muito bom se providências deste tipo fossem suficientes, mas não são. Além disso, ainda pesam as características de cultura que precisariam ser trabalhadas para a implementação destes programas e seu melhor aproveitamento. Mais ainda, recursos que melhoram a qualidade das aulas e permitem enriquecer o trabalho do professor faltam em muitos locais. Biblioteca, computadores, oficinas de trabalhos especiais não existem em muitas escolas de diversos estados. Vamos tomar apenas alguns itens como exemplo: enquanto em alguns estados 90,3% das escolas possuem bibliotecas, em outros somente 38,6% as têm; a presença de oficinas de trabalhos especiais nas escolas apresenta uma variação de 3,7% a 33,3%; entre os estados da Federação a presença de copiadoras varia de 5,9% a 93,1%. É importante destacar que a falta de materiais básicos é diferenciada nas regiões geográficas do país, variando de 2,0% a 10,8% de escolas que enfrentam problemas com a falta ou más condições desses recursos. Pode parecer pouco, mas em se tratando de materiais básicos o esperado seria que não faltassem em nenhuma escola. Visto dessa forma não podemos considerar que estamos diante das melhores condições. Ainda uma outra característica que merece ser considerada pelo olhar do trabalhador diz respeito às condições administrativas ou aos trâmites burocráticos necessários para o desenrolar das atividades diárias da instituição. Pode não parecer e, de fato, dificilmente atentamos para isso, mas já refletimos um pouco sobre o fato da escola representar uma estrutura de alta complexidade, semelhante a uma empresa qualquer. Nela estão presentes todos os problemas relativos a recursos humanos, financeiros e materiais tão comuns no dia-a-dia dos empresários (que por sinal são extremamente bem remunerados para exercerem estas funções). Vamos pensar um pouco sobre o funcionamento administrativo destas organizações. Obedecendo à lógica do modelo organizacional, que, no serviço público, é a vertical e de hierarquia em linha, nas escolas o poder de tomar decisões é muito fragmentado. Um diretor para 94 modificar a grade curricular da escola, se tentasse, não poderia simplesmente reunir os professores e os pais da comunidade atendida pela sua escola e, com base nas reivindicações tanto de caráter sócio-econômicas quanto culturais, fazer as suas modificações, pois o currículo é único e determinado pelo MEC e vale para todo o país. De fato, não poderia ser diferente, uma vez que o objetivo final, o ponto de chegada é o mesmo para todos. Espera-se que, ao final do processo, os estudantes estejam em condições de se inserirem no mercado e concorrer a empregos em qualquer parte do país, prestar vestibular para as universidades de sua escolha, exercer integralmente seus direitos de cidadão onde queiram, enfim, que todos tenham acesso e consigam usufruir de um ensino de qualidade que seja efetivo para as suas necessidades em qualquer local do país. No entanto, os caminhos para se atingir estas metas variam. Ora, país gigantesco como o nosso guarda diferenças regionais que devem ser respeitadas para que esse caminho possa ser percorrido, mas que muitas vezes são esquecidas e pouco espaço efetivo resta para que, regionalmente, os devidos cuidados sejam tomados em função da própria distribuição dos recursos e da distância entre a fonte dos mesmos e o usuário. O Estado ou a Federação obrigatoriamente devem reservar parte de suas receitas e destiná-las ao sistema educacional. Em outras palavras, existe um processo financeiro que determina quanto é o custo operacional–dia por aluno. Seria razoável que este valor fosse integralmente repassado às escolas e seu gerenciamento feito diretamente pelos beneficiários, não seria? Mas isto ainda não acontece. Ainda hoje, apesar dos esforços do governo, na verdade quem gerencia estes recursos são os secretários de educação ou os prefeitos das cidades. Para não tornarmos cansativo o debate, citaremos somente a escolha do livro didático e a merenda escolar para ilustrar o efeito dessa dinâmica administrativa no trabalho diário dos profissionais em educação. Quanto ao livro escolar, sua publicação é nacional e, de um modo geral, consubstanciado na cultura regional do sul e sudeste do país. Fotos e exemplos ilustram os textos destinados a alunos que nunca tiveram contato com aquela realidade, mesmo tendo a televisão diminuído esta distância cultural. Sinal de trânsito nos livros é semáforo, enquanto para algumas outras localidades chama-se de sinaleiras; assim como para um mesmo típico passatempo infantil temos as denominações, conforme a região, de pandorga, pipa e papagaio. Cabe aos professores buscar formas de ensinar a seus alunos conceitos que não fazem parte ou, pelo menos, são conhecidos por outra terminologia pelos alunos da sua sala de aula. A merenda escolar é um outro bom exemplo. Os alimentos ainda são recebidos em gêneros por muitas localidades. Esta situação, além de provocar perda de alimentos pela dificuldade de armazenamento ou pela não aceitação do alimento oferecido, pode gerar dificuldades na organização do trabalho e provocar situações que chegam a ser, no mínimo, curiosas. Uma destas ocorreu nos idos de 1982/3, quando foi enviada para cidades do nordeste uma carga de merenda escolar contendo leite de soja e sardinhas em lata, sendo o mesmo conteúdo encaminhado para Fernando de Noronha. Ora, trata-se de um arquipélago cujo peixe 95 consumido era pescado e sem hábito de consumo de leite de soja, portanto estes alimentos vindos do continente não faziam o menor sentido ali naquele local. Tratam-se de dificuldades geradas pela impossibilidade de flexibilização do processo de trabalho, pelo não gerenciamento dos próprios recursos financeiros, pela impossibilidade de escolher os instrumentos mais adequados para o exercício da função, respeitando as especificidades das condições locais. Trata-se da dificuldade em influenciar no gerenciamento e distribuição de recurso, mesmo que seja para o bem estar dos integrantes da instituição; condições muito frustrantes para os profissionais. Este afastamento do processo decisório apenas gera dificuldades para o bom desenvolvimento do trabalho nas escolas, não diminuindo em nada as responsabilidades presentes no trabalho do educador. Independente das condições sob as quais trabalham, o grau de responsabilidade para os trabalhadores em educação permanece o mesmo. Por terem como tarefa a preparação do futuro do outro, sendo (principalmente) os professores os depositários da confiança de crianças, adolescentes e adultos, na esperança que este futuro seja melhor, seus respectivos trabalhos, independente das condiçõesem que são realizados, guardam o peso desta importância. Quem nunca ouviu numa reportagem de TV uma criança ou um adolescente dizendo que “gostaria de estudar para ser alguém na vida”? São os desejos, os sonhos, os projetos de vida dos outros que, de certo modo, estão nas mãos do educador. Qual o peso disso nos ombros do professor? Qual a importância, que responsabilidade está em questão? Difícil estimar, difícil descrever. Por outro lado, qual o reconhecimento social do papel dos professores do ensino público? Atribui-se importância indiscutível à educação, “a escola é uma extensão da família”, os professores assumem não raras vezes o papel de conselheiros, amigos e confessores, mas nada disso se transforma em recompensas concretas: prêmios por produtividade, abonos salariais; estes são mecanismos ainda fora dos programas de remuneração do Serviço Público. Quando muito uma plaquinha dos colegas no dia em que se aposenta. Trabalho desgastante e muito exigente, com parcos recursos tanto materiais quanto financeiros, implicando na necessidade, em algumas localidades, de recorrer à comunidade em busca de suprimentos para o funcionamento das escolas. Professores e demais trabalhadores em educação têm que se desdobrar para dar ao aluno condições de aprendizagem e desenvolvimento. Diferente de muitas profissões, o trabalho de educador reveste-se de peculiaridades que não são levadas em conta, não apenas pela necessidade do estudo continuado, mas também pelas exigências da própria realização das tarefas. O trabalho do professor continua além da sala de aula. Provas devem ser corrigidas, figuras devem ser recortadas para ilustrar os novos conteúdos, exercícios de fixação devem ser “inventados”. Enfim, as tarefas continuam e nem por isto há uma compensação financeira ou mesmo o reconhecimento social merecido. Se faz bem feito, nada mais que obrigação cumprida; se não, recebe críticas de todos os lados. 96 O trabalho de professor é revestido de características tão peculiares que ele não pode se dar ao luxo de sofrer, de ficar cansado. Um bom professor deve estar sempre disponível para atender aos seus alunos e aos pais deles. Não pode se dar ao luxo de ficar triste, pois sua tristeza certamente prejudicará o desempenho dos alunos, já que para eles o professor é um baluarte, uma fortaleza. O sorriso tem que estar sempre presente, mesmo que coração e mente sofram. Se o professor não for criativo, não for capaz de criar estimulações constantes para captar a atenção de seu aluno, tal como o publicitário faz com o consumidor, a monotonia tomará conta de seu trabalho e a atenção do aluno se dispersará. O professor tem que estar em processo de reciclagem diuturnamente, para, quando questionado (e os questionamentos surgem nas formas e momentos mais inesperados possíveis), ter respostas corretas, atuais. Deve ter conhecimentos e habilidades suficientes; procurar formas diferentes de dizer a mesma coisa; formas de prender a atenção do ouvinte, de tornar interessante coisas que a princípio nem sempre seriam; precisa empregar esforço para aproximar do dia-a-dia do aluno aquilo que vem nos livros a partir de outra diversidade, deve saber e se empenhar em lidar com realidades muito diferentes, interesses muito distintos; enfim, cabe ao professor motivar os alunos, construir a cena, independente das condições do palco. Ser professor hoje em dia deixou de ser compensador, pois além dos salários nada atrativos, perdeu também o "status" social que acompanhava a função poucas décadas passadas. Os colégios Estaduais de Educação já não são mais os mesmos “colégios Estaduais de Educação”. Atribui-se importância indiscutível à educação, mas o reconhecimento não atinge os profissionais responsáveis por este trabalho. Salários baixos; condições precárias; falta de flexibilidade na administração de recursos; pouca perspectiva de progressão na carreira; trabalho importante, exigente e sem reconhecimento no mesmo nível. Visto desta forma, em termos organizacionais, tudo o que a escola fornece ao trabalhador a coloca como uma das piores organizações para se trabalhar. Melhor enfatizar, coloque-se na posição de alguém com pelo menos 12 anos de escolaridade, muitas vezes com 16 anos (superior completo) em busca de trabalho e nós te oferecemos um emprego com as seguintes características: Salário pela metade do que paga o mercado. Carreira sem grandes possibilidades de ascensão. Falta de condições básicas para o exercício da profissão. Reconhecimento social baixo combinado com alta responsabilidade. 97 Burocratização excessiva. Quem seria o candidato a aceitar tal trabalho? Quem se habilita a dedicar seus melhores anos a trabalhar em uma das piores organizações disponíveis no mercado? Quem quer trabalhar muito e ganhar pouco? Milhões de jovens fizeram esta escolha pelo Brasil afora, milhares de jovens farão esta escolha amanhã. Professores. O melhor trabalhador O empregador por sua vez, na busca pelo melhor trabalhador, também tem seus critérios e sai à sua procura. Como seria o melhor trabalhador, quais características seriam desejáveis em seu perfil? Tudo o que qualquer organização precisa é de um trabalhador satisfeito com o seu trabalho e comprometido com a sua empresa. Vários empresários acreditam, e recebem reforço pelos profissionais voltados à área de recursos humanos, que somente através das atitudes decorrentes destes sentimentos atinge-se o diferencial entre empresas concorrentes, ou seja, aquilo que chamamos de qualidade. De fato, a satisfação no trabalho já foi considerada como a grande chave para se atingir a produtividade nas empresas e instituições de trabalho; muitos e muitos estudos perfilados buscando medir e conquistar o trabalhador satisfeito com o seu trabalho, mais e mais aspectos e/ou dimensões de trabalho analisadas. Acreditava-se ter atingido a fórmula para garantir a eficiência, a lucratividade a custos compensadores, buscava-se o trabalhador mais satisfeito. Nestes tempos, os trabalhadores organizados e/ou intelectuais que assumiam sua defesa denunciavam com a mesma ênfase o caráter alienado e alienante destas pesquisas e políticas dentro das empresas; tratava-se (dizia-se) de uma forma cor-de-rosa de escravizar o trabalhador. Outra vez, a polarização conhecida de todos nós: se é bom para os patrões, não pode ser bom para os empregados. Ironicamente, o avanço das pesquisas em Psicologia do Trabalho mostrou que as coisas não eram tão simples assim. Os vínculos entre satisfação e produtividade foram se mostrando frágeis ou simplesmente inexistentes; chegou-se a pensar que o conceito de satisfação pouco serviria para o estudo do trabalho e as sínteses desenhadas a partir de todo este acúmulo de pesquisas geraram uma conclusão que poderia ser formulada da seguinte maneira: não há associação direta entre satisfação e produtividade, mas há relações fortes entre satisfação e bem- estar, saúde física e psíquica do trabalhador. Assim, as possíveis relações entre eficiência e 98 satisfação percorrem o seguinte percurso: satisfação no trabalho, maior bem-estar e trabalhador mais saudável , maior produtividade. O que era visto como uma forma de super-exploração do trabalho transformou-se, portanto, em um ‘direito’ do trabalhador, responsável inclusive por sua saúde mental. As pessoas têm direito de viverem satisfeitas; se trabalham, têm direito à satisfação no trabalho. Enquanto administradores e psicólogos se interessam menos pelo tema, os trabalhadores se interessam cada vez mais. Em outras palavras, a questão da satisfação no trabalho migrou do plano técnico para o plano ético; passou a fazer parte da busca maior, que acompanha a vida de todos nós, a busca do bem-estar e o combate ao sofrimento. Na nossa pesquisa a satisfação foi medida através das seguintes questões: 1. Eu me arrependo de ter escolhido estaprofissão. 2. Quaisquer que sejam os problemas do meu trabalho, estou satisfeito com a minha escolha. 3. Se eu pudesse, mudaria de emprego. 4. Em geral, estou satisfeito com o meu emprego atual. 5. Muitas vezes, quando estou trabalhando, sinto que estou perdendo tempo. Figura 1, Cap. 4 - Escala de satisfação Os resultados em nossa pesquisa mostraram que 86% dos professores da rede pública de ensino de 1o e 2o graus mostram-se satisfeitos com seu trabalho apesar das dificuldades que enfrentam. Satisfação no Trabalho Série em que leciona Satisfeitos Insatisfeitos Total Pré e 1ª à 4ª 91,0% 9,0% 100% 5ª à 8ª 84,8% 15,2% 100% 2º grau 84,5% 15,5% 100% Vários níveis 84,8% 15,2% 100% Total 86,8% 13,2% 100% Figura 2, Cap. 4 - Problemas de satisfação no trabalho entre os professores por série em que lecionam Com relação ao comprometimento com as organizações, vários significados estão associados ao seu uso quando se trata da linguagem cotidiana, e nem sempre, no meio organizacional, gestores, técnicos e empregados estão se referindo à mesma idéia. Assim, para não incidirmos no mesmo risco, faremos alguns esclarecimentos conceituais. Na língua inglesa comprometimento (to commit) tem quatro grandes significados (OXFORD Dictionary; WEBSTER’S Dictionary): a) a noção de confiar a, colocar sob custódia; b) encarregar, comissionar, designar; c) fazer algo errado, cometer uma ofensa e d) envolver, engajar. Já na língua portuguesa, há dois eixos principais de significados (Dicionário Caldas Aulete, 1980; Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 1986): a) a idéia de ocorrência de ações que 99 impedem ou dificultam a consecução de um determinado objetivo, causando enviesamento, dificuldade e b) a idéia de engajamento, colocar-se junto, agregamento, envolvimento, causando produtos ou estados desejáveis. Porém, na esfera científica, o termo comprometimento se diferencia quanto ao seu significado do uso cotidiano. O comprometimento pode ser compreendido como uma adesão, um forte envolvimento do indivíduo com variados aspectos do ambiente de trabalho (Bastos, 1994). As definições dadas por diversos estudiosos do assunto apontam algumas dimensões comuns a todas elas: o desejo de permanecer na organização e de exercer as suas atividades, a identificação com os objetivos e valores organizacionais e o engajamento e empenho em favor da organização. Contudo, o conceito de comprometimento organizacional, mesmo na esfera científica, ainda traz ambigüidades, estando sujeito a existência de fenômenos tais como crenças, valores, intenções comportamentais, sentimentos (Osigweh,1989 apud Bastos,1994). Estudiosos da área têm referido que a literatura trata essa ambigüidade como vertentes de estudo: a afetiva ou atitudinal, na qual a expressão é verbal, e se fala de sentimentos, crenças, valores, desejos; e a comportamental, passível de observação através de comportamentos (Mowday et al.,1982 apud Bastos, 1994). Outros autores, dentro de um enfoque geral de apego ao trabalho, referem dois aspectos a serem considerados. O primeiro diz respeito às características dos ambientes de trabalho, as quais os autores dividem em três grandes categorias: sistemas de ambiente de trabalho; objetos do local de trabalho e condições humanas; e as recompensas/pagamentos por trabalhar. O segundo, refere-se à reação do indivíduo com relação ao seu trabalho, podendo haver reações: intelectuais, de avaliação e julgamento; emocionais, com respostas afetivas; e aquelas estritamente comportamentais, com respostas musculares a estímulos ambientais. Isso significa que não há uma única fonte de apego na relação trabalhador e trabalho e que múltiplos apegos podem aumentar a força do vínculo entre eles (Dubin, Hedley e Taveggia,1976 apud Bastos,1994). Enfim, embora ainda existam outras abordagens, os estudos mais recentes sobre o Comprometimento Organizacional indicam a prevalência de duas abordagens: o enfoque afetivo (ou atitudinal) e o enfoque instrumental. Essa abordagem afetiva constitui um campo novo de estudos na área do Comportamento Organizacional. Sua consolidação deu-se a partir do clássico trabalho de Mowday, Porter e Steers (1982). Nesta vertente, o comprometimento é entendido como um estado no qual o indivíduo se identifica com a organização e seus objetivos e deseja manter-se como membro, de modo a facilitar a consecução desses objetivos (Bastos 1994). Os autores utilizam três dimensões para a definição desse construto: 100 a) os sentimentos de lealdade; b) o desejo de permanecer e c) a intenção de se esforçar em prol da organização. O enfoque instrumental (iniciada por Becker, conforme citado em Bastos, 1994), é considerada a segunda grande vertente. Filia-se ao enfoque sociológico, concebendo o comprometimento como um mecanismo psicossocial de trocas (side-bets) entre o indivíduo e a organização, baseado no processo individual de ajustamento a posições sociais. Nesta vertente, o comprometimento é visto como uma função das recompensas e custos associados com a condição de integrante da organização; sendo definido como uma tendência a se manter engajado na organização devido aos custos associados à sua saída. Assim, essa linha consistente de ação seria a permanência na organização e os side-bets seriam os vários investimentos do trabalhador que tornam custosa a saída da mesma. Essa linha de pesquisa destaca a idéia de que o vínculo pode se fortalecer se a organização atender às expectativas do trabalhador. Torna-se fácil distinguir os dois enfoques, afetivo e instrumental, através da afirmação de Meyer, Allen e Gellatly, três pesquisadores norte-americanos envolvidos nos estudos de comprometimento (1990 apud Bastos 1994): “Empregados com forte comprometimento afetivo permanecem na organização porque eles desejam, enquanto aqueles com forte comprometimento instrumental permanecem porque eles necessitam” (p.710). Na nossa pesquisa, o aspecto abordado pelo protocolo foi o comprometimento afetivo, através das seguintes questões: 1. Eu realmente me interesso pelo destino desta organização. 2. Eu me sinto orgulhoso de dizer às outras pessoas que sou parte da organização em que trabalho. 3. Estou contente por ter escolhido esta organização para trabalhar, comparando com outras organizações que considerei na época da contratação. Figura 3, Cap. 4 - Escala de comprometimento Os resultados nos mostraram que mais de 90% dos professores estão comprometidos com a organização em que trabalham, identificam-se com os objetivos da mesma, defendem a escola de críticas externas e não estão arrependidos por fazerem parte dela. Comprometimento Comprometidos não comprometidos Total 101 pré e 1ª à 4ª 92,6% 7,3% 100% 5ª à 8ª 92,4% 7,5% 100% 2º grau 91,4% 8,5% 100% Vários níveis 92,4% 7,5% 100% Total 92,3% 7,6% 100% Figura 4, Cap. 4 - Problemas de comprometimento entre professores por séries em que lecionam. Apesar do enfoque da pesquisa ter sido afetivo, no momento em que realizamos as entrevistas individuais pudemos conferir alguns exemplos de comprometimento comportamental, ou seja, ações que reforçam e revelam o comprometimento afetivo. Para enfocar esta posição assumida pelos professores frente à sua organização de trabalho, bem como todo o empenho no atendimento aos clientes e o envolvimento com a atividade, nada melhor que a fala de alguns deles: “É impossível prestar uma assistência individualizada aos alunos e isso é ‘angustiante’, é difícil conciliar os diversos papéis que às vezes a gente tem que desempenhar: professora e mãe (que dá suporte ao ensino); a falta de tempo é um problema. Às vezes tenho que usar os horários de coordenação para poder auxiliar os alunos mais necessitados. Mas é interessante, porque esses alunos costumam oferecer retorno. Tem um menino que apresentava dificuldades persistentes na aprendizagem,mas após algumas horas de reforço, tem conseguido acompanhar a turma de maneira eficiente. Coisas desse tipo são muito gratificantes e são fontes de prazer.” É o envolvimento afetivo que leva esta profissional a encontrar alternativas frente à falta de tempo para que o aluno possa ter a assistência mais individualizada que necessita para melhorar seu desempenho. Ora, diante de um limite institucional como o tempo, um profissional poderia simplesmente atribuir à instituição as más condições que têm efeito negativo para os alunos e “lavar suas mãos”. Mas não, a educação deste aluno é assumida como objetivo pessoal tal qual a educação dos filhos, haja visto as referências feitas ao papel de mãe. Esta professora encontrando um tempo no seu dia para realizar aulas de reforço. Claro que este nível de envolvimento também pode resultar em efeitos negativos, como conflitos de papéis, investimento afetivo acima do esperado de forma a tornar-se inadequado para o desempenho da função, falta de retorno equivalente ao esforço empreendido. Porém, neste caso, a professora em questão considera gratificante o retorno que tem dos alunos e se mostra bastante satisfeita. Um outro professor que trabalha com adultos refere: “Gosto da atividade que realizo e não me vejo fazendo outra coisa. Quero fazer cursos de aperfeiçoamento no ensino especial de adultos, pois a formação que recebi foi para trabalhar com crianças”. Além da satisfação obtida com a atividade de trabalho, observamos a vontade deste profissional continuar a formação como forma de adquirir mais recursos para melhorar seu desempenho e atender mais adequadamente seus alunos. O professor tem claro que é ele mesmo 102 o principal instrumento do seu trabalho e que do seu desenvolvimento depende o resultado do mesmo, de forma que busca qualidade. A fala de outro profissional, com 10 anos de profissão, ilustra a relação de troca entre professor e aluno, fonte de satisfação e reforço do comprometimento desse profissional com seu trabalho, além de expressar a valorização do seu produto: “Gosto de ensinar, principalmente quando sinto interesse. Quando é assim, não me importo nem mesmo de passar do horário. Fico satisfeito quando dou uma boa aula, quando tenho um bate-papo legal com os alunos, pois sinto que há retorno. Acho que na tarefa de ensinar deve- se ter ideal, procurar dar aulas motivadoras. Não gosto de aulas sem a participação dos alunos. Quando pergunto alguma coisa, gosto que todos respondam. Não quero aula parada. O salário não é alto, mas dá para fazer minhas coisas, suprir minhas necessidades. Entretanto, o ganho é muito suado, o trabalho é muito. No final do mês fico até com pena de gastar o dinheiro, pois foi tão difícil de ganhar”. Apesar do salário não muito atraente, a relação do trabalhador com o seu trabalho é tão positiva e gratificante que o salário, mesmo sendo fundamental para a sobrevivência do indivíduo, acaba ocupando um lugar secundário na sua fala. Não significa que o trabalhador não sinta o problema com o salário, mas sim que o prazer que deriva do trabalho ocupa um lugar importante afetivamente, a ponto do trabalhador esquecer momentaneamente dos seus problemas concretos e mergulhar nos encantos de uma função que o coloca como uma pessoa tão importante para o outro. Uma outra professora relata: “Gosto de inovar os métodos de ensino. Levo em conta principalmente o sucesso e a satisfação dos alunos no ato de aprender.” Novamente, vemos que esta profissional se coloca ativamente no papel de criar as melhores condições para que o objetivo maior da instituição seja realizado. Um outro, ainda, diz desejar que os alunos exercitem sua capacidade de criar, raciocinar e, com este objetivo, elabora as questões que usa em sala de aula. Em provas, pede para os alunos elaborarem uma questão e a resolverem. Considera suas aulas muito diferentes. Refere sentir prazer pelo que faz. Retomando as abordagens explicitadas acima, fica claro que não se trata de comprometimento instrumental. No capítulo anterior, estávamos refletindo justamente sobre as condições organizacionais precárias. Aqui, empenho e dedicação colocados a serviço da arte de ensinar é o que vemos nesta fala, bem como na grande maioria das anteriores. A identificação destes profissionais está com a representação subjetiva de que propiciar a aprendizagem dos alunos é algo sério e construtivo. Esta visão positiva em relação à educação ainda está sendo suficiente para evitar que nossos professores caiam na descrença em relação à instituição escola e para mantê-los comprometidos com os objetivos da mesma. 103 É interessante observar como nesses poucos exemplos, outras características destes profissionais começam a aparecer. Parece que empresários e profissionais de recursos humanos, de fato, têm razão. Estas falas demonstram que, seja como causa ou conseqüência, junto com os sentimentos de satisfação e comprometimento, outras atitudes acompanham a realização do ofício. Ora, o que mais deseja uma organização? Ou seja, por que ela prefere funcionários satisfeitos e comprometidos? Justamente para que tenham autonomia e controle sobre o trabalho, sendo capazes de tomar decisões e assumir responsabilidades na medida certa da necessidade; para que reconheçam a importância do seu trabalho e do produto que resulta do seu esforço; que seja centrado no seu trabalho, concentrando-se nas suas tarefas e reservando um lugar importante para o mesmo entre os outros valores de sua vida; que se relacionem bem, cooperando com os colegas, aceitando e reconhecendo a necessidade da ajuda oferecida pelos mesmos. São características que se tornam imprescindíveis do ponto de vista do empregador e da sociedade. O que seria da educação caso, na falta de um giz, o professor simplesmente se negasse a dar aula por não ter as condições necessárias; se, diante de uma dificuldade apresentada por alguns alunos, o professor não soubesse criar novas formas de explicar um mesmo conteúdo e se não tivesse autonomia para fazer alterações no seu cronograma; se, diante de uma turma com alunos de várias faixas etárias, não usasse sua habilidade e seu talento para tratar cada caso como um caso; se a toda hora, na busca de melhores condições de trabalho, não comparecesse à escola, comprometendo o conteúdo programático daquele ano; se não tivesse a iniciativa de trocar informações com seus colegas na busca de integração dos conteúdos? O fato é que os professores da rede pública de ensino de 1º e 2º graus se apresentam com estas características em níveis que nenhum empregador ousaria se queixar. Vejamos: Entre eles, quase 90% percebem ter controle sobre o trabalho, ou seja, realizam com autonomia suas atribuições e acreditam que estão nas suas mãos as condições para realizar um bom trabalho, sentem-se, portanto, responsáveis pela qualidade do produto que oferecem para a sociedade e assumem o mérito e o ônus pelo seu desempenho. Mais de 90% sabem que realizam um trabalho importante para a sociedade. O mais espantoso é que isso independe das condições de infra-estrutura de que dispõem para realizar suas atividades e, mais ainda, independe do nível salarial. Significa dizer que os educadores, apesar de condições muitas vezes desfavoráveis, estão satisfeitos, gostam daquilo que fazem, sentem-se realizados com os resultados que produzem, conseguem sentir prazer pelo desenvolvimento do seu trabalho. A satisfação que o trabalho proporciona, associada ao sentimento de que seu trabalho tem um produto e à realização pessoal através do trabalho é que estão mantendo esta atitude de comprometimento do professor com a organização da qual faz parte. Satisfação no trabalho Remuneração Satisfeitos Insatisfeitos Total 104 Menos de 299 86,8% 13,2% 100% de 300 a 499 87,2% 12,7% 100% de 500 a 699 85,1% 14,8% 100% de 700 a 999 87,1% 12,8% 100% mais de 100087,6% 12,3% 100% Total 86,7% 13,2% 100% Figura 5, Cap. 4 - Problemas de satisfação no trabalho por faixa salarial (categorizada para professores) Satisfação no trabalho Satisfeitos Insatisfeitos Total escassez de recursos 89,5% 10,4% 100% escolas com recursos médios 86,8% 13,1% 100% escolas bem equipadas 85,8% 14,1% 100% índice de materiais para facilitar o trabalho do professor e a aprendizagem do aluno Total 86,8% 13,1% 100% Figura 6, Cap. 4 - Problemas de satisfação no trabalho por recursos materiais que facilitam o trabalho do professor e a aprendizagem do aluno. Comprometimento Remuneração Comprometidos Não comprometidos Total Menos de 299 93,0% 7,0% 100% de 300 a 499 92,9% 7,1% 100% de 500 a 699 91,7% 8,3% 100% de 700 a 999 92,1% 7,9% 100% mais de 1000 93,3% 6,7% 100% Total 92,5% 7,5% 100% Figura 7, Cap. 4 - Problemas de comprometimento por faixa salarial (categorizada para professores) Comprometimento comprometidos não comprometidos Total escassez de recursos 91,9% 8,1% 100% escolas com recursos médios 92,4% 7,6% 100% escolas bem equipadas 92,2% 7,8% 100% índice de materiais para facilitar o trabalho do professor e a aprendizagem do aluno Total 92,3% 7,7% 100% 105 Figura 8, Cap. 4 - Problemas de comprometimento por recursos materiais que facilitam o trabalho do professor e a aprendizagem do aluno. Outros índices encontram-se na mesma faixa. Mais de 90% dos professores, apesar de reconhecerem a necessidade da questão financeira, priorizam, em grau de importância, o trabalho em si. Os índices se repetem também com relação ao percentual de profissionais que não têm problemas importantes de relação social no trabalho, sendo assim capazes de oferecer o melhor de si, além de poder cooperar com colegas, apesar das eventuais adversidades. Os resultados da nossa pesquisa indicaram que boas relações sociais no ambiente de trabalho estão também associadas com comprometimento. Isso significa dizer que estes aspectos andam juntos: na presença de um, há uma grande probabilidade de que o outro seja encontrado. Comprometimento Relações sociais no trabalho comprometidos não comprometidos Total sem problemas 94,8% 5,1% 100% pré e 1ª à 4ª Com problemas 60,4% 39,6% 100% Total 92,6% 7,3% 100% sem problemas 94,9% 5,0% 100% 5ª à 8ª Com problemas 64,6% 35,4% 100% Total 92,4% 7,5% 100% sem problemas 94,1% 5,8% 100% 2º grau Com problemas 66,3% 33,6% 100% Total 91,4% 8,5% 100% sem problemas 94,9% 5,0% 100% Vários níveis de ensino Com problemas 68,1% 31,8% 100% Total 92,4% 7,5% 100% Figura 9, Cap. 4 - Presença / ausência de comprometimento entre professores por problemas de relacionamento com colegas. Vejamos, ainda, o que falam outras duas professoras: “Costumamos planejar aulas juntas e quando uma professora precisa faltar um dia, sempre pode contar com outra para substituí-la junto à turma.” “Quando não consigo realizar meus objetivos junto aos alunos, especialmente quando um deles abandona a escola, sinto-me péssima. Nestas ocasiões, minhas amigas dão força, levantam a moral. Essas atitudes impulsionam o professor a continuar.” Estas falas demostram um forte sentimento de equipe com o grupo de companheiros de profissão. Na segunda, ainda se destaca o envolvimento pessoal com o ensino a ponto de sentir- se afetar emocionalmente diante da dificuldade dos alunos e, em seguida, a possibilidade de apoio oferecido pelos colegas nos momentos difíceis. 106 O fato é que, no que se refere à cooperação e ao relacionamento social no trabalho, a atividade docente, formalmente, não exige contato tão freqüente e nem dependência entre profissionais diferentes. Contudo, estas professoras, que acima falam, sabem que a integração é fundamental para que o ensino não seja fragmentado, para que haja troca entre os profissionais e para que diferentes disciplinas sejam vistas como parte de um objetivo maior que é a boa formação geral do aluno. Assim, buscam a partir de iniciativa própria, a complementação do seu trabalho através da união do esforço de um grupo de colegas e, o mais importante, são capazes de recebê- las e de valorizá-las. É bem verdade que esta integração não é fácil, ela não depende somente dos professores, mas em grande parte do modo de funcionamento da organização através das coordenações de área, por exemplo. Enfim, essa integração envolve questões técnicas e administrativas que não estão completamente nas mãos dos professores. Mas há uma parte que depende exclusivamente deles: a disponibilidade para um bom relacionamento com os colegas, para um trabalho cooperativo e para aceitar ajuda e crítica. Os dados da pesquisa confirmam que, provavelmente entre os professores, não haja maiores problemas de relações sociais no trabalho, de forma que, se essa integração entre as disciplinas os níveis de ensino não acontece de fato, cabe rever a forma de gestão e as normas administrativas da organização. Trabalhador muito especial este do qual estamos falando, que não realiza mecanicamente suas atribuições; não se trata da execução protocolar, mas da tentativa de construir o processo com o aluno. Tem iniciativa própria, é ousado, cria e assume a responsabilidade de suas inovações. Onipotente na medida exata, pois ao mesmo tempo em que sabe o valor que tem enquanto educador e da importância do trabalho que realiza, é capaz de buscar e oferecer ajuda. Sabe que seu ofício é nobre, grandioso e por isso requer competência de grupo, união. É interessante notarmos a capacidade e a clareza com que estes profissionais diferenciam o que sentem pela atividade e pelas questões institucionais. Vejamos esta fala: “Sinto-me totalmente motivado com os alunos, o que não acontece quando penso na coordenação ou no governo. Tenho paixão pela minha profissão. Procuro demonstrar isso através da minha dedicação.“ Ou seja, os professores não ignoram as adversidades institucionais, não estão alienados à ela, mas conseguem usufruir do prazer da atividade independentemente destas questões. Sem dúvida, a fala destes profissionais reflete o pensamento e atitudes de outros tantos; os dados da pesquisa oferecem suporte nessa direção e é justamente esse conjunto de características que compõem: o melhor trabalhador. O que vimos até aqui sobre esse trabalho é fantástico. Em todos os quesitos considerados, encontramos em torno de 90%, ou seja, praticamente a totalidade dos trabalhadores em condições favoráveis. Um índice indiscutivelmente excelente para qualquer organização pública ou privada. 107 Significa dizer que diretores, gerentes e administradores podem contar com a grande maioria deste corpo de profissionais para qualquer empreendimento, pois por estas características mostram que são capazes de assumir como uma questão pessoal os problemas e as dificuldades de trabalho. Ainda em termos organizacionais, temos aqui o trabalhador ideal, o que todo empresário pede aos céus para a boa qualidade do trabalho. Como pode? Mesmo para quem nunca se preocupou com trabalho ou organizações de trabalho a equação não fecha. Nossa pesquisa avaliou a organização perguntando pelo país afora que condições de trabalho ela oferecia, resultado: é uma das ‘piores’ organizações de trabalho possíveis de se encontrar. Em seguida, avaliamos os trabalhadores em busca do que está errado, o que é possível melhorar junto aos professores, resultado: encontramos um dos ‘melhores’ trabalhadores disponíveis no mercado. Ou seja: Pior organização = Melhor trabalhador. Não é preciso ser um especialista para desconfiar que alguma coisa está errada. Agora, se você for um especialista, então terá certeza de que algo está errado; se for um gerente, um empresário, um administrador, um especialista em recursos humanos, um psicólogo do trabalho ou das organizações, afirmará com toda a certeza: Impossível, quantopior a organização, pior será o trabalhador que ela abriga, quanto melhor a organização melhor o trabalhador. Desde 1910 que estamos, nós, os especialistas, afirmando isto. Certo? Errado. Erra o bom senso, erram as opiniões técnicas. A prova empírica de que erram é que as escolas continuam existindo, os professores continuam prestando concursos, nossos alunos continuam aprendendo a escrever, as condições que encontramos em alguns lugares deste país seriam mais do que suficientes para que o nosso pesquisador se deparasse com uma placa na porta:” Escola fechada por falta de quem queira trabalhar aqui”. Erram não apenas porque a vida se mostrou diferente do que prevê a teoria, erram também conceitualmente, um erro, diga-se muito comum em ciências humanas. Correlação muitas vezes se confunde com determinação. 108 Vejamos um exemplo, o aumento do PIB (produto interno bruto) está altamente correlacionado com taxa de fertilidade (quantos filhos em média uma família tem). Quanto maior o PIB, menor a fertilidade. Eis uma correlação que não significa nada em termos de determinação, na verdade a equação é a seguinte. Aumento do PIB = melhoria do nível educacional. Melhoria do nível educacional = mais acesso a informações, mais lazer e melhor possibilidades de trabalho para a mulher. Mais acesso ao trabalho e à cultura = menos procriação. Por economia de espaço, fizemos apenas uma aproximação grosseira ao problema, mas já suficiente para o que queremos apontar. Agora, temos condições de voltar ao nosso problema. Existe, de fato, uma alta correlação entre condições de trabalho e a satisfação e comprometimento do trabalhador. Porque as condições permitem que o trabalhador possa render ao máximo no seu trabalho. Mas, imagine por um momento a seguinte situação. Ar condicionado, cadeiras ergonômicas, cafezinho, lanches à disposição, carro doado pela empresa para todos os trabalhadores, salário três vezes maior do que o mercado, e tudo o mais que você puder imaginar como mordomias. Seja que o trabalho consiste em, digamos, encher com a mesma palavra folhas e mais folhas de papel que serão incineradas e levadas ao lixo no momento seguinte, logo depois de estarem prontas. Quer trabalhar ali? Sua resposta provavelmente seria não. Falta nesta empresa por nós inventada o fundamental: o sentido do trabalho, o significado do que se faz. Havendo sentido e significado, as condições de trabalho e as atitudes do trabalhador passam a ser boas preditoras umas das outras; em não havendo, desaparece o poder explicativo entre as mesmas. Se quisermos entender a equação impossível que relatamos acima, precisamos nos debruçar exatamente sobre esta questão: O que é o trabalho? Qual o seu sentido? 109 Cap 5 - Trabalho: atividade humana por excelência Lúcia Soratto, Cristiane Olivier-Heckler Impõe-se uma pausa em nosso percurso para discutir o trabalho em si, enquanto atividade, independentemente de quem o realiza e da organização em que se encontra. Estamos falando do trabalho visto não como mera necessidade para a sobrevivência, concreto, objetivo, inserido no mercado de trabalho formal ou informal, mas sim como uma atividade humana nobre e muito especial. E o que tem de especial nesta atividade, o que a diferencia de outras tantas atividades que realizamos no nosso contato cotidiano com o mundo que habitamos? É simples: falamos em trabalho quando, independente da relação financeira definida por vínculos empregatícios, contratos de trabalho, salários, deveres e direitos trabalhistas, uma atividade resulta em um produto que transforma a natureza e permanece no tempo e no espaço. Alguma coisa deve ser transformada portanto, mas também não basta qualquer transformação para que estejamos falando em trabalho. Um macaco comendo uma banana está transformando alguma coisa em outra, mas se trata de uma transformação química e biológica que todo organismo vivo e saudável é capaz de fazer. Quando falamos em trabalho humano é a outro tipo de transformação que estamos nos referindo. Falamos da transformação intencional, planejada, resultando num produto que antes só existia na mente humana e que é exteriorizado através do trabalho e passa, assim, a fazer parte do mundo, adquire vida própria, torna-se independente do seu criador e do momento de sua criação. A palavra criador está muito bem empregada aqui, pois trata-se puramente de atividade de criação, a qual exige capacidades cognitivas somente possíveis aos integrantes de uma única espécie entre as centenas de milhares que habitam ou habitaram o nosso planeta. Através do trabalho, atividade criativa de transformação do mundo, quanto já fomos capazes de transformá-lo. Em poucos séculos mudamos terras, céus e mares (nem sempre para melhor é verdade), mas criamos asas e voamos, construímos barcos e nadamos, mudamos paisagens pela agricultura, aplainamos terrenos acidentados, construímos estradas e ligamos locais distantes, criamos formas de comunicação com o mundo todo e o fizemos parecer menor, tudo ficou mais próximo. Frutos do trabalho humano, dessa nobre atividade que coloca o homem na posição onipotente de criador, e que muitas vezes nos parecem tão naturais que nos esquecemos de nos espantar diante de tudo que já construímos. Estamos falando sobre trabalho de uma forma genérica, trabalho humano acumulado ao longo dos séculos. Graças ao trabalho, gerações posteriores partem do que foi construído pelas anteriores, transformando, completando, renovando, mas cada geração não precisa redescobrir 110 tudo, reinventar a roda, a lâmpada; o produto do trabalho conserva as riquezas de uma geração para as seguintes e permite que continuem do ponto que as anteriores pararam. Daí sua nobreza, sua fascinação. “A ação mais fugaz de qualquer animal, por exemplo, um rato comendo um pedaço de queijo, já implica transformação da natureza e do organismo nela envolvido. Se parássemos aqui, não haveria como distinguir trabalho de qualquer outra atividade, de qualquer outro organismo... A diferença entre a ação do rato e a do trabalhador é que, a primeira, apresenta um circuito duplo (Sujeito – Objeto) e, a segunda, uma relação tripla (Sujeito – Objeto – Significado). Na ação vulgar, o sujeito se transforma ao transformar o objeto e vice-versa. No trabalho, o circuito se abre para uma terceira relação, um signo que fica (signo-ficare), o significado, o qual por sua vez se transforma e é transformado pela ação recíproca do sujeito e/ou objeto. O significado se define pela permanência além e apesar da relação com o objeto, ou seja, define-se pela transcendência à relação Sujeito – Objeto . Abre indefinidamente, portanto, o circuito da ação... Que seja a ação de tomar um copo d’àgua. A mão segura e movimenta o copo, a água entra na boca...cumpre suas funções fisiológicas...a ação não é transcendente, nenhum desses processos escapa à dinâmica estabelecida entre S - O. Agora, que se imagine o mesmo objeto realizado por um garoto propaganda em um comercial na televisão, tentando nos convencer que aquela água é melhor que as outras...O porte sedutor do modelo espera criar uma identificação com outras façanhas associadas à saúde, ao bem-estar, ao prazer...enfim, outra vez incontáveis significados são produzidos e transformados por aquele gesto. Agora, o gesto transcendeu a ele mesmo, permanece além e apesar de seus atores, envolve salário, técnica, mercado. É trabalho...O significado, por definição, é eterno (signo que fica). Ao abrir a ação para além de si, ao transformar em transcendente o gesto, o trabalho o imortaliza. O humano é um animal histórico exatamente nessa medida e por estas vias: os gestos da dona de casa, do marceneiro, do garoto propaganda, e de quantos mais exemplos lembrarmos, sempre estarão fazendo parte da vida de todos nós, além e apesar do autor.” (Codo, 1997, pg. 25-27). Figura 10, Cap. 5 - Definição de trabalho O trabalho,enquanto atividade criativa e de transformação, modifica não apenas o mundo, mas também o homem que o executa. O homem se reconhece no seu trabalho e se orgulha daquilo que constrói, se orgulha do fruto do seu trabalho e também se transforma nesse processo. Modifica seus hábitos, seus gostos, seu jeito de se vestir, seu modo de comportar-se. O trabalho enriquece o homem e não estamos aqui falando em dinheiro, em acúmulo de bens (mesmo porque distribuição de renda é um capítulo à parte), estamos falando em conhecimento, experiência, habilidades, enfim, desenvolvimento da forma mais ampla que podemos pensar. 111 Mas o trabalho nem sempre retorna para o trabalhador dessa forma tão positiva. Trabalho com estas características é trabalho não fragmentado, aquele em que o mesmo trabalhador pensa e executa, sozinho ou em conjunto com outros trabalhadores, mas nunca privado do conhecimento do todo, mesmo que execute apenas algumas das etapas que compõem o processo de trabalho. Porém, nem sempre é assim que as coisas se dão no mundo do trabalho. Às vezes, o produto do trabalho, a parte que permanece além do trabalhador, esconde as condições vergonhosas em que o mesmo foi produzido. Alguns legados da civilização, produtos do trabalho, tal e qual descrevemos a pouco, foram realizados de forma que em nada nos orgulhamos. As pirâmides do Egito são bons exemplos. Sobreviveram séculos enfrentando o sol escaldante do deserto e os ventos que sopram constantemente e estão lá para milhares de turistas admirarem todos os anos. Ninguém nega as qualidades arquitetônicas, a capacidade de levar a cabo um projeto destes no meio do deserto e mesmo a capacidade de abstração para tal criação, no entanto, para a execução de tal projeto, muitos homens em condições absolutamente precárias e inaceitáveis deixaram ali seu suor e sua dignidade num trabalho desprovido de significado, forçado, trabalho escravo. Os trabalhadores que executaram o projeto foram totalmente excluídos do seu planejamento, foram na realidade meros executores de ordens alheias, faziam trabalhos que, em função das condições em que eram realizados, assemelhavam-se ao trabalho que se impõe aos animais. Poderíamos ainda lembrar de tantos outros, como o trabalho fragmentado em migalhas das indústrias automobilísticas do início do século, por exemplo. Mas não vamos seguir por este caminho. O objetivo aqui é apenas fazer a distinção entre o trabalho enquanto atividade humana que transforma o mundo, criando produtos que permanecem além do trabalhador e as formas que assume quando inserido num contexto social, econômico e político. 112 “Na linha de montagem o trabalho é dividido e cronometrado eletronicamente, por esteiras que passam à frente do trabalhador e distribuem a tarefa para cada um deles... A maior parte dos trabalhadores tinha 35 segundos para inserir componentes eletrônicos em uma chapa. Ocorre, que os trabalhadores, na sua grande maioria mulheres, utilizam 30 ou 25 segundos de forma coordenada para inserção de componentes e conversam, literalmente, durante os outros dez segundos, em um “papo” interrompido cada vez que a esteira se movia. Mas a fábrica, preocupada em controlar esse tipo de inserção de burla do sistema, introduz um cronômetro, manipulado por um técnico da administração, medindo a cada tempo o trabalho. Se por acaso o ritmo da esteira estiver mais lento do que a capacidade física dos trabalhadores, a esteira será acelerada, e a produção se incremente. Quando começa o uso do cronômetro o trabalhador quebra seu ritmo de 25, e passa a utilizar os 35 segundos, cronometrados pela esteira. Há também um código de ética complicadíssimo entre os trabalhadores, repleto de sanções a quem apresentar ao cronometrista um tempo mais curto que o definido. Se, por um lado, o ritmo da produção é aumentado, ou seja, a esteira começa a passar mais rapidamente, o trabalhador erra propositadamente, fazendo cair o nível de produção... Ainda do ponto de vista do tempo utilizado para produção, um outro local de disputa é o banheiro...o operário procura utilizar um pouco mais de tempo do que lhe é concedido, enquanto a fábrica procura meios de controle que denunciem se o operário gastou mais tempo no banheiro. É muito comum que o banheiro seja utilizado para reuniões rápidas, e já houve casos de movimentos paradistas que foram organizados ali...É fácil compreender quando uma instituição com um número bastante grande de pessoas tenha de estabelecer normas para a “boa convivência” entre eles. O problemas que essas normas, assim como o produto do trabalho, são elaboradas na ausência radical do trabalhador, que não interfere ou participa na determinação de sua própria movimentação dentro da fábrica...” (Codo, 1985, pg. 80-83). Figura 11, Cap. 5 - Exemplo de trabalho numa linha de montagem Se pudemos falar sobre o trabalho de forma genérica para entendermos melhor sua extensão e sua riqueza, por outro lado não podemos nos furtar de falar sobre o trabalho concreto, aquele que acontece nos campos, nas fábricas, nas oficinas, nas casas, nas escolas. Passamos a falar, a partir daqui, de diferentes modos de organização do trabalho e, dessa perspectiva, as formas de planejamento e execução para se obter um produto através da transformação da natureza são muitas e não podem ser abstraídas do momento em que acontecem. Esse trabalho pode ser completo ou fragmentado e, em conseqüência, mais ou menos rico em significado; o 113 mesmo trabalhador pode ser responsável pelo planejamento e execução ou, ao contrário, pode ser totalmente excluído de uma das partes do processo, dependendo do modo como o trabalho está organizado num determinado momento. As formas de dividir o trabalho (trabalhos diferentes ou o mesmo trabalho) vão se configurando a cada etapa do percurso histórico da humanidade. O quadro visto anteriormente pode ser um exemplo do que estamos dizendo; o problema com a linha de montagem é que ela rouba do trabalho o seu significado e do trabalhador a sua possibilidade de realização. Para entender o trabalho nesta dimensão real, que de acordo com o contexto em que está inserido assume características muito distintas e é vivido de modo diferenciado pelo trabalhador, muitas áreas de conhecimento têm se empenhado: Sociologia, Economia, Ergonomia, Psicologia, Administração, cada uma dentro da sua especificidade, oferecendo a sua parcela de contribuição para a compreensão do fenômeno. A Psicologia Organizacional e do Trabalho muito tem apontado sobre os efeitos para o trabalhador da relação do trabalhador com o processo de trabalho. A idéia de que quanto mais criativo e completo for o trabalho, mais o homem cria a si mesmo e, quanto mais fragmentado, mais ele se aliena é amplamente defendida pelos estudiosos da área. Para chegarem a esta afirmação, várias categorias foram estudadas, entre elas destacamos o ciclo de trabalho, relação com o produto do trabalho e controle sobre o trabalho. A questão é que os vários conceitos estão interligados. É impossível falarmos sobre um sem que este seja permeado pela relação do trabalhador com os demais, e o interessante é que todos parecem levar ao mesmo lugar: ao rumo do prazer ou ao rumo do sofrimento. A complexidade destas interrelações merece que declinemos um pouco mais sobre estes temas: O ciclo do trabalho Adam Smith defendeu os ciclos de trabalho cada vez menores, tendo como argumento básico o controle do trabalhador sobre o processo de trabalho, Taylor e Ford trataram de operacionalizar e sistematizar a ‘descoberta’. No entanto, a evolução do conhecimento mostrou exatamente o contrário, quanto menor o ciclo de trabalho, pior o controle do trabalhador, mais alienada sua relação com o produto, mais insatisfeito e menos comprometido o trabalhador. A melhor alegoria sobre esta descoberta está no filme ‘tempos modernos’ de Charles Chaplin, forçado a apertar o mesmo parafusodurante toda a sua jornada de trabalho, o herói termina enlouquecendo, se confunde com a máquina, sai apertando os botões do vestido da moça que passa na rua. 114 Ao contrário, quanto maior o ciclo, maior a possibilidade de um planejamento no qual o trabalhador é senhor de seu trabalho, melhor compreensão das vicissitudes do produto, menor a alienação, maior a satisfação e o comprometimento, a possibilidade de gerir seu tempo, a possibilidade de conseguir retorno (feed-back) sobre o trabalho realizado. O ciclo de trabalho de um professor, à rigor, leva um ano, permite um planejamento pelo trabalhador, permite avaliar-se e avaliar a turma e reformular as tarefas caso encontre um problema, permite, portanto, maior controle sobre o trabalho, melhor relação com o produto, menor alienação, mais envolvimento. O Produto do trabalho Quando nos referíamos ao homem que transformava a natureza com suas próprias mão, dissemos que ele deixava ali a sua marca; impregnava o meio com sua subjetividade, sendo possível desta forma reconhecer o fruto da transformação como seu e a si mesmo como humano. No entanto, quando o homem vende sua força de trabalho, não é ele quem desfruta do produto do trabalho, nem pode reconhecê-lo como seu. A subjetividade investida na ação não pode ser totalmente recuperada, pois entram aí elementos de mediação: salário, técnica e normas institucionais. Ao invés do produto de seu trabalho, o qual o trabalhador pode chegar a nunca nem mesmo conhecer, se pensarmos, por exemplo, na fragmentação de uma linha de produção, o homem recebe dinheiro (investimento objetivo recuperado na relação de troca). Mas, e o investimento emocional, aquele que retornava no momento da reapropriação do produto, que, em última instância, é o reconhecimento de si mesmo enquanto parte da humanidade? Acontece que, para o ser humano, não é possível investir somente a energia física quando realiza um trabalho; a relação não é apenas e nem pode ser meramente objetiva. Ali estão também depositadas suas alegrias, suas insatisfações, suas queixas e sonhos, enfim, a subjetividade que não se pode deixar guardada na gaveta antes de sair de casa toda manhã para ir trabalhar, tal e qual fosse seu trabalho uma relação direta com a natureza. Quando não há espaço para que se dê vazão a essa afetividade, quando não é possível o reconhecimento do próprio esforço no produto final, ameaçando a identidade do trabalhador, ele sofre. Torna-se óbvio que esta relação com o produto do trabalho só é possível caso seu trabalho não seja fragmentado e caso ele tenha autonomia e controle durante o processo de produção. 115 O Controle sobre o trabalho É certo que há tarefas que pela sua natureza permitem maior ou menor flexibilidade, mas, ainda mais importante que as características intrínsecas das atividades envolvidas no trabalho, é o modo como este se organiza e as condições do próprio trabalhador frente à esta organização. Uma determinada atividade pode ser executada de várias maneiras, mas se, por exemplo, a organização do trabalho estiver estruturada de tal forma que não permita a flexibilidade, o trabalhador sentir-se-á tolhido na sua liberdade de ação, o que, em grau bastante elevado, também acarretará em sofrimento para este trabalhador. Precisamos pensar que há três esferas diferentes de necessidades, as quais estão interagindo na determinação do controle sobre o processo de trabalho: a necessidade ou capacidade do próprio trabalhador, da organização do trabalho e da tarefa em si. Na primeira esfera, temos a necessidade de controle por parte do trabalhador. As características individuais é que regem a maior ou menor necessidade de ter controle sobre o processo produtivo e, dependendo do confronto que houver desta necessidade com as condições das outras duas esferas, como mencionamos, configurar-se-á o sofrimento psíquico do trabalhador. Sob um outro prisma, temos a forma como o trabalho está organizado e, nesta, a possibilidade de mudanças é maior. Muitas vezes a distância entre planejamento e execução acaba ocorrendo em função de uma gerência excessivamente centralizadora ou pelo crescimento acelerado da organização, sendo que, neste caso, tem a função de garantir a uniformidade das tarefas. Por fim, há tarefas que exigem maior estruturação prévia, cujo planejamento independe do trabalhador que vai executá-las, como, por exemplo, a de um trabalhador de construção civil num canteiro de obras. Ele tem que executar as tarefas exatamente como pré-determinadas pelo engenheiro responsável pelo projeto. Pequenas variações na quantidade de barras de ferro ou na proporção de cimento, neste caso, podem ser fatais para a qualidade do produto final. O que queremos enfatizar é que, quando se realiza um trabalho não fragmentado e com longos ciclos, o controle do trabalhador sobre o processo é inevitável, pois as responsabilidades automaticamente aumentam, o que colabora para que se tenha uma bom conhecimento do produto final, reconhecendo-o como seu. Quando se tem uma boa relação com o produto, dificilmente temos problemas de controle sobre o trabalho. Caso contrário, estamos falando de um trabalho excessivamente fragmentado. Da mesma forma, aquele trabalhador que tem possibilidade de ter controle sobre o trabalho, tem maiores probabilidades de conhecer o processo como um todo e, conseqüentemente, ter uma melhor relação com o produto do seu esforço. 116 O trabalho do professor Voltemos agora para o trabalho do professor. Viemos constatando que estes profissionais têm se percebido satisfeitos, comprometidos, com boa relação com o produto do seu trabalho e com controle sobre o processo de trabalho. Mas que o professor faz? Como é o seu trabalho? De uma forma geral, o professor recebe o conteúdo programático para aquele ano letivo que, comumente, tem definição externa ou pode incluir a sua participação; organiza o cronograma que pretende seguir para neste período dar conta do programa; decide ou participa da decisão sobre o método a ser utilizado para transmitir cada conteúdo; opta (sozinho ou em conjunto com outros profissionais) pelo material didático de apoio que vai empregar; prepara cada uma das suas aulas, usando, muitas vezes, o tempo fora do trabalho, é verdade; aborda em sala de aula cada um dos temas, trabalhando os conteúdos, indo além deles, exemplificando, estimulando, instigando, resolvendo dúvidas; prepara avaliações da turma até a etapa realizada, marca uma data e aplica a avaliação escolhida, em seguida corrige, verifica os resultados e repassa-os para os alunos, obtendo para si mesmo e oferecendo para os alunos retorno do processo; em seguida, pode reforçar conteúdos, modificar exemplos que não cumpriram seu papel, repensar sua forma de proceder em sala de aula e passar para uma nova etapa na seqüência do programa. No final do ano letivo, certifica-se de quantos alunos atingiram os objetivos esperados, obtendo um retorno de sua eficiência e do seu esforço empreendidos na arte de ensinar. Processo completo com começo, meio e fim. Agora, imaginemos uma aula que se passasse em uma linha de montagem, parecida com aquela que Henry Ford inventou para produzir automóveis. A um professor fosse destinado somente a preparação das aulas, a outro apenas a preparação do material didático de apoio, a outro a animação em sala, a outro escrever no quadro, a outro fazer exposições orais, a outro responder dúvidas dos alunos, a outro a preparação das avaliações, a outro, ainda, apenas a correção dos trabalhos. Poderíamos continuar nessa brincadeira e fazer cortes ainda menores nas atividades do professor, mas acreditamos que o mostrado por nós é suficiente para termos uma idéia sobre a infinidade de atividades diferentes que compõem o trabalho do professor. Podemos, ainda para contrastar com o trabalho efetivamente realizado peloprofessor, pensar numa situação mais próxima da realidade: um trabalhador de uma fábrica de sapatos, onde lhe cabe apenas a realização de uma única etapa do processo de confecção do calçado, o corte da palmilha, por exemplo. Do sapato que vai resultar do processo completo, este trabalhador só vê uma parte que, aliás, pouco lembra o produto final. Provavelmente ele não será capaz nem mesmo de reconhecer em qual modelo de sapato estão aquelas palmilhas que cortou durante a última semana. Se for pedido para que ele mesmo faça um sapato, muito provavelmente não saberá. Mais que isso, se nunca tivesse visto um sapato na sua frente, possivelmente não seria capaz de 117 imaginá-lo a partir da sua contribuição para o produto final: a palmilha. Sob esta organização do trabalho, torna-se muito difícil para o trabalhador reconhecer sua participação no produto final da empresa, mesmo tendo se ocupado efetivamente da confecção de parte do produto. O esforço que empenhou não o torna detentor do conhecimento de como se faz um sapato. O que esse trabalhador leva consigo quando perde ou abandona o emprego é muito pouco, não o qualifica para atuar em outros lugares a não ser que consiga se empregar exatamente na mesma função. Se quisesse, por exemplo, continuar fazendo seu trabalho sozinho no fundo do quintal, não saberia fazer o restante do processo que não está sob seu domínio. Este trabalhador é dependente do seu emprego, não apenas porque precisa do seu salário no final do mês para a sua sobrevivência e de sua família, mas porque depende de mais tantos outros trabalhadores, os quais às vezes nem mesmo conhece, conforme o tamanho da fábrica e a disposição dos setores. Precisaria, para fazer sapatos sozinho, além da matéria-prima e dos equipamentos, de cada um dos outros trabalhadores, cada qual detentor de uma partezinha do conhecimento sobre o processo, que, isoladamente, não leva a lugar nenhum. Quais as diferenças entre a primeira situação descrita para os professores e as duas últimas? São muitas e importantíssimas. Vejamos cada uma a seu tempo. 1. O tamanho do ciclo de trabalho, bastante longo para professores e curto para os outros trabalhadores. O professor tem uma série de atividades que realiza numa certa seqüência (prepara aula - trabalha em sala o que preparou - avalia), mas sem rigidez nos detalhes; o intervalo de tempo que leva até repetir uma mesma atividade é longo, sendo que o trabalho não se torna repetitivo em função disso. No caso do trabalhador que faz as palmilhas, ao contrário, o ciclo é curto e a mesma atividade deve ser refeita em um pequeno espaço de tempo, não havendo variação, o trabalho torna-se pobre e repetitivo, não sendo muito estimulante para o trabalhador. 2. A flexibilidade é outro ponto de contraste entre as duas situações. O professor, tendo uma série de atividades diferentes para realizar e estando todas sob sua responsabilidade, pode organizá-las do modo que lhe parecer mais conveniente. Não havendo seqüência rígida, nem pré- definição externa das atividades, as possibilidades de variação são enormes. Exceto nas grandes etapas do processo como preparação de aula - aula - avaliação que, obviamente, não podem ser invertidos conforme mencionado antes, ou a seqüência da abordagem dos temas, os quais seguem uma ordem de complexidade que dificilmente poderia ser modificada com sucesso; no mais, cabe ao professor a definição do que fazer primeiro em sala de aula e, principalmente, de como fazê-lo. Dada essa flexibilidade, que é inerente ao trabalho do professor, este pode inovar sempre no seu modo de trabalhar. Um professor pode escolher os exemplos que vai usar, não estando satisfeito com sua escolha pode encontrar outros. Se está no meio de uma aula e percebe que aquele assunto está particularmente difícil para sua turma pode se deter mais tempo, modificar a forma de explicar, dar atenção especial a alguns, enquanto pede a outros que resolvam algum 118 exercício. Pode usar situações do dia-a-dia para ilustrar algum ponto, um filme que se ajusta perfeitamente ao evento que quer explicar naquele dia, até mesmo a última compra no supermercado ou a última reforma da casa podem oferecer situações para serem trabalhadas em sala de aula associadas a um assunto qualquer quando está ensinando Português, Matemática, Ciências. O leitor pode estar se perguntando sobre as tarefas burocráticas que envolvem este ofício e que não são poucas e nem mesmo de menor importância: controle de presença, preenchimento de diário de classe, preparação das provas, correção de provas, cálculo das médias. De fato, são atividades que implicam numa maior rotina, são mais repetitivas e menos criativas, mas, por outro lado, não têm horário e nem seqüência pré-definida. Mesmo sob uma direção da escola centralizadora com normas rígidas para essas atividades, ainda assim, dentro de sala de aula ninguém rouba a direção da cena, que é necessariamente do professor. Rotina do trabalho sem rotina com rotina Total pré e 1ª à 4ª 97,9% 2,0% 100% 5ª à 8ª 96,2% 3,7% 100% 2º grau 94,7% 5,3% 100% Total 96,7% 3,3% 100% Figura 12, Cap. 5 - Problemas de rotina entre professores segundo as séries em que lecionam. Vimos, portanto, que rotina não é um problema para estes profissionais, mas busquemos as palavras dos próprios professores para ilustrar esse fato: "Na sala de aula não dá para ter rotina. Cada dia é diferente. A gente planeja tudo direitinho, segue o roteiro, mas acaba fazendo diferente do plano. Não cansa, a rotina cansa." "Trabalho com flexibilidade para alfabetizar, promovo mudanças na forma de ensino que objetivam principalmente a fácil assimilação e retenção do conteúdo pelos alunos, além de uma “quebra” de rotina, o que torna o processo mais prazeroso e estimulante." "Costumo lecionar aquilo que é básico no conteúdo programático e que os alunos não poderão deixar de saber em virtude do vestibular, por exemplo. No restante eu inovo. Nunca repito os trabalhos de um ano para o outro." 3. Controle sobre o trabalho: Estamos diante de um trabalho que exige um papel ativo do seu executor, que não só permite como impõe a criatividade para que a obrigação de cada dia seja cumprida. Podemos imaginar o trabalho de um professor sendo realizado de uma forma mecânica, apenas cumprindo as tarefas pré-definidas, seguindo uma definição protocolar de cada passo pré- definido? Será que um professor, agindo assim, conseguiria ajudar seus alunos no processo 119 educacional? O que aconteceria quando a primeira dúvida surgisse numa aula de Matemática, por exemplo? E quando num assunto um pouco mais difícil a metade da sala não compreendesse, o que faria esse professor? Poderia simplesmente ignorar e seguir seu roteiro, mas para onde iria, o que conseguiria como resultado desse procedimento? E quando surgisse aquela pergunta inesperada de um aluno mais curioso? Como lidar com cada uma destas situações se o caminho já está pré-definido? E a dinâmica da sala de aula, não é justamente uma composição de todas estas situações? Temos, portanto, um trabalho cujo controle é eminentemente do trabalhador e que não acontece se este não assumir seu papel ativo no processo. O professor em sala de aula é o dono da situação, ali quem define é ele. Claro que não está sozinho, muito pelo contrário, está acompanhado de 20, 30, 40 alunos, às vezes mais que isso. Cada um ali dentro está ativo, também pensa, se entusiasma, se cansa, se irrita, se encanta, tem dúvidas, tem dificuldades; enfim, sente, deseja, gosta e desgosta daquilo que está fazendo. Existe, então, uma demanda ativa por parte de cada um desses seres pensantes que compõem o ambiente de trabalho do professor que se faz e se altera a cada novo dia de trabalho. São muitas subjetividades compondo um grupo que precisa negociar para que o ensino-aprendizagem se efetive. O professor depende do alunopara que seu trabalho se realize e portanto não está sozinho. Certamente, já ouvimos a expressão muito usada, pelos professores, na busca de colaboração, de que o sucesso da aprendizagem depende 50% do professor, 50% dos alunos. Sabemos que cada aluno traz consigo sua história pessoal e seu contexto, com adversidades praticamente impossíveis de serem controladas pelo professor, mas a situação sé dá toda ali dentro da sala de aula. As negociações, os acordos e desentendimentos acontecem ali sob seus olhos, ao vivo e a cores, e o sucesso ou não dos seus 50% de responsabilidade depende unicamente das ferramentas que dispõe para lidar com as situações: criatividade, imaginação, empatia, empenho, garra e amor pelo que faz. Difícil, sim, tarefa muito difícil, é verdade, mas também muito compensadora O professor sabe que depende diretamente do seu esforço os resultados que obtém. As dificuldades são muitas, mas compensadas pela gratificação de um trabalho completo, que permite inovação e envolvimento afetivo do trabalhador. 4. Possibilidade de expressão afetiva: o professor pode imprimir o seu jeito, dar o tom e a cor que melhor lhe pareça na aula ministrada, sabendo que serve como modelo para os alunos e podendo espelhar-se no desenvolvimento dos mesmos. Aqui, a capacidade de empatia não é apenas permitida, ela se faz imprescindível para que o processo de ensino-aprendizagem ocorra com maior qualidade. O professor não consegue ensinar se não fizer um vínculo afetivo com os alunos. Visitemos novamente o nosso sapateiro (ou ‘palmilheiro’ para melhor caracterizá-lo). As possibilidades de expressão afetiva neste trabalho são poucas. Este trabalhador passa o dia no seu posto de trabalho fazendo sua tarefa: palmilha após palmilha que vão para uma caixa e seguem para outro trabalhador. Não faz parte do seu trabalho o contato com o outro, normalmente atrapalha, ou pelo menos o contra-mestre acha que atrapalha. Se está em uma empresa que 120 compreende o valor do relacionamento afetivo entre companheiros de trabalho, ao menos neste modo, seu relacionamento interpessoal no trabalho fica poupado, pode se refazer nos intervalos, num cafezinho ou ainda, dependendo da disposição dos equipamentos no seu setor e da presença de outros funcionários próximos, pode trocar idéias, fazer contatos. O dia inteiro em uma fábrica de sapatos, fazendo uma só coisa, com movimentos repetidos, tendo que respeitar o ritmo da produção, sem a opção de criar, sem a possibilidade de trocar idéias com os colegas do mesmo setor. Quanto tempo ele é capaz de suportar e a que custo? As possibilidades de inovação, de introduzir um detalhe diferente na atividade são muito restritas em função, justamente, do ciclo curto de trabalho. O número de atividades que compõem o processo deste trabalho não permite a flexibilidade na atuação, resta ao trabalhador pouco espaço para imprimir a sua marca pessoal no que faz. Em que esse trabalhador pode variar? 5. O produto do trabalho é outra característica que marca uma diferença muito grande, não somente entre o trabalho do professor e o do sapateiro, mas também quando se compara o primeiro com muitos outros trabalhos. A representação que é possível para cada um destes trabalhadores (professor e ‘palmilheiro’) sobre o produto do seu trabalho não se compara e as diferenças se devem à própria natureza do trabalho e ao modo que cada um deles está organizado. O professor participa do início ao fim do processo, com noção sobre cada uma das etapas e com a possibilidade de reconhecer através do sucesso ou não dos alunos o que se passou durante o ano de trabalho e em que resultou o seu esforço. No caso do ‘palmilheiro’, estamos falando de um trabalho fragmentado, que, salvo uma perfeita integração entre os diversos trabalhadores, não possibilita o conhecimento de todo o processo, nem o ajuste de cada uma das etapas para um melhor resultado e nem mesmo o reconhecimento da contribuição individual de cada trabalhador no produto final. Um marceneiro que desenha uma mesa, corta a madeira, lixa as peças, cola e pinta, ao final do processo tem à sua frente, para si mesmo e para os outros, um produto concreto. Mesmo o ‘palmilheiro’ tem um produto concreto, objetivo. Ao final de um dia de trabalho tem muitas palmilhas que confeccionou e que podem ser vistas por qualquer pessoa. Mas será que nos dois casos o sentimento do trabalhador com relação ao produto do seu trabalho é o mesmo? Não, não é. O marceneiro que projetou e fez a mesa foi responsável pela criação de um objeto com uma finalidade clara, com um valor de uso definido, sabe que seu esforço está ali concretizado num objeto que pode presentear alguém, vender ou usar. Pode se reconhecer em um produto que não existia antes e passou a existir como fruto do seu esforço. Quando observar alguém almoçando ou jogando cartas naquela mesa, saberá que tem um pouco de si ali e poderá se orgulhar disso. No caso do ‘palmilheiro’, apesar da objetividade do produto que resulta do seu trabalho, como não se trata do produto final, não sai das suas mãos o valor de uso que este terá ao final do processo e, 121 por isso, não pode ser facilmente reconhecido para que este trabalhador se orgulhe. Estamos dizendo que o importante para a percepção do trabalhador sobre o produto do seu trabalho é, menos a objetividade material do produto, mais a possibilidade de reconhecer e reconhecer-se no valor de uso daquilo que produziu. E quanto ao professor? Não estamos falando de um produto qualquer, não se trata de um objeto visível, como é o caso das mesas e mesmo das palmilhas, mas se trata de um produto com valor de uso claro e definido, sendo o professor também responsável por todas as etapas do processo. Além destes aspectos, é inquestionável o valor social das atividades de um professor. O produto do seu trabalho não só é facilmente reconhecido por ele mesmo, como também por aqueles que estão fora do processo. Ninguém questiona a importância do ensino, da educação, de aprender e ensinar, e o professor sabe que o seu trabalho é peça central nesses processos. O trabalho do professor é composto por processos variados, em sua grande maioria envolvendo ciclos longos e flexíveis; possibilita ao trabalhador a expressão da sua criatividade, estimulando também seu crescimento pessoal e profissional; a possibilidade de exercício de controle sobre os processos que compõem esta atividade profissional, permite que o seu executor sinta-se dono do processo, responsável pelos resultados e importante para aqueles que atende no seu exercício profissional. Esse controle dá ao trabalhador a dimensão da responsabilidade que está sob suas mãos, mas também o prazer de se sentir importante para o outro; a expressão da subjetividade faz parte do trabalho diário desse profissional que resulta numa atividade enriquecida do ponto de vista afetivo. Boa parte das características do trabalho do professor, as quais levantamos até aqui, e que consideramos desejáveis e desejadas pelo trabalhador, são condições que certamente aumentam a complexidade do trabalho, as dificuldades na sua execução, as responsabilidades que devem ser assumidas e o nível de exigência de dedicação do profissional responsável. A verdade é que flexibilidade do trabalho, possibilidade de controle sobre o processo, demanda de expressão afetiva, necessidade de criatividade e inovação pedem um trabalhador que esteja presente de corpo e alma no seu trabalho, que se disponha a se dedicar, enfim, que atribua importância ao que faz na vida profissional. E porque um trabalhador vai querer um trabalho tão exigente e tão mal remunerado como esse? Porque um trabalho com estas características desafia o trabalhador e estimula seu desenvolvimento, explora suas potencialidades e leva-o a descobrir novas. Num trabalho assim, um trabalhador consegue ter prazer naquilo que realiza, nãosó porque pode ver claramente o benefício que está fazendo para o outro, o que é extremamente gratificante, mas principalmente porque consegue ver os benefícios que o trabalho faz para si mesmo. Consegue ver mudanças na sua pessoa. Após anos de trabalho percebe que mudou, que ficou mais experiente, que as dificuldades de um tempo atrás, as quais pareciam intransponíveis, puderam ser superadas, passa 122 a ver outras que não via antes e que se tornam agora desafiadoras. Tudo isso faz com que as pessoas se sintam ativas, vivas, participantes efetivas do mundo em que vivem. Se o professor tem condições organizacionais ruins de trabalho e ainda assim se mostra muito bem, então é o próprio trabalho (valor de uso) e não o valor de troca que o move; é o próprio trabalho, e não as condições em que se realiza, o primeiro e o mais importante preditor dos altos níveis de satisfação, comprometimento, boa relação com o produto e centralidade no trabalho demonstrados por estes profissionais. Enquanto muitos trabalhadores suportam o trabalho e através do salário buscam satisfazer seus desejos, os professores, ao contrário, suportam os salários para continuar tendo o privilégio de satisfazer um desejo que é o de todos nós, mudar o mundo através de sua ação, transformar com seu trabalho a si mesmo e ao outro, inventar um futuro a partir de seu próprio gesto. Enquanto muitos trabalhadores contam com excelentes condições de trabalho para suportar e compensar um trabalho sem sentido, o professor suporta as péssimas condições de trabalho para preservar a chance de fazer a História, a nossa História, com as próprias mãos. Com a palavra, eles mesmos: "Se não precisasse do dinheiro continuaria trabalhando, porque o trabalho ajuda as pessoas a viverem. O trabalho é tudo, não consigo viver sem trabalhar. Faltam dois anos para aposentar-me. O dinheiro é importante, ajuda, mas não é o mais importante." "Escolhi o trabalho como professora por opção e apesar de todas as dificuldades que cercam a profissão, como o salário, por exemplo, estou satisfeita com ela. Apenas a questão financeira me levaria a cogitar a hipótese de trabalhar em outra atividade, mas isto não está em meus planos, por enquanto. Trabalho nesta profissão porque gosto." 123 Cap 6 - Escola: uma organização multiprofissional Lúcia Soratto, Cristiane Olivier-Heckler O cotidiano de uma escola não se faz somente com os professores, na realidade, soma-se ao trabalho destes o de muitos outros profissionais para que resulte como fruto desse esforço coletivo, criado a partir da diversidade profissional, o êxito de cada dia letivo. Para tanto, no interior de uma escola faz-se necessário representantes de uma infinidade de categorias: merendeiras, pessoal da secretaria, pessoal de limpeza, marceneiros, profissionais ligados à saúde, vigias. Se refletirmos sobre o cotidiano das escolas, pensando em um dia típico de aula, feito aquelas redações nas quais o aluno após as férias descreve um dia na praia, se nos colocássemos esta tarefa de descrever um dia na escola, não da perspectiva de um aluno, mas de um visitante que vai percorrer todo o ambiente para compreender o que se faz ali e quem são as pessoas que ali se encontram, poderíamos começar pela porta de entrada do estabelecimento. Ali encontramos um profissional com uma função definida: cuidar da portaria. Este funcionário, geralmente um homem, ali permanece durante todo o dia recepcionando os visitantes, encaminhando as correspondências recebidas, dando informações a respeito das diversas seções da escola. Nas escolas das séries iniciais, ele conhece os rostos dos pais, dos alunos e zela pela segurança das crianças menores. Em muitas escolas, ele tem por obrigação receber as cadernetas de freqüência dos alunos na chegada dos mesmos e devolvê-las no final do turno. Compete a ele cuidar da disciplina dos alunos próximo ao portão da escola, evitando brigas, por exemplo. Tem por função também impedir que os gazeteiros saiam da escola sem permissão e antes do horário. Nestas atividades, passa um dia completo de trabalho numa escola, 8 horas diárias, 40 horas semanais. Passando por este, adentrando um pouco mais, em geral atravessando um pátio, encontramos a cozinha. Pode ser grande ou pequena, com equipamentos industriais ou semi- industriais, ou mesmo com utensílios e equipamentos bem parecidos com uma cozinha doméstica. Em qualquer destes casos uma coisa em comum, em todas vamos encontrar pessoas trabalhando bem cedo. Bem antes da hora do primeiro lanche do dia já podemos ouvir movimento na cozinha. Nada espantoso, afinal para que os alunos possam se alimentar bem, saboreando uma comida gostosa, muito trabalho anterior se faz necessário. É preciso escolher, lavar, separar, cortar, mexer, cozinhar, fritar, assar os alimentos que comporão a merenda daquele dia. Tudo isso demanda esforço, suor, cansaço. Nada que a satisfação e o elogio não possam compensar, mas significa trabalho, muito trabalho. Trabalho que aparece em poucos instantes entre um sinal sonoro e outro, um momento de intervalo para o trabalho do professor e para as tarefas do aluno em sala de aula, mas que, para acontecer, depende do trabalho de vários profissionais com funções bem definidas e lugar reservado durante muitas horas. Aliás, são horas antes e horas depois, porque 124 em seguida a um intervalo e antes do próximo uma outra tarefa se faz necessária; ou seja, a limpeza de tudo o que foi usado: talheres, pratos, copos, panelas, formas. Tudo precisa estar limpo para que o segundo turno aconteça, como se fosse o primeiro: nova preparação dos alimentos para as próximas turmas, a distribuição dos alimentos, a limpeza e mais um dia de trabalho que termina. Quanto trabalho está implicado e passa muitas vezes despercebido, relegado a segundo plano, encarado como de menor importância. Se continuarmos neste passeio, podemos caminhar até a secretaria da escola. Sempre há uma, mesmo que improvisada, mesmo que dividida com alguma outra função, mesmo que com apenas um funcionário. Alguém tem que cuidar da parte administrativa, burocrática da escola, a qual exige muita atividade para que esteja bem encaminhada. São matrículas de novos alunos para serem feitas, transferências, atualização de dados, arquivamento de material, elaboração dos boletins com as notas dos alunos para serem enviados aos pais, reprodução em copiadora ou mimeógrafo, trabalhos solicitados pelos professores, preparação de documentos oficiais a serem remetidos, participação das reuniões administrativas, elaboração das atas, recepção de pessoal, para citar algumas das atribuições destes profissionais. Trabalho típico de escritório, tão parecido com o que ocorre em qualquer empresa e ao mesmo tempo realizado num outro ambiente com características próprias, com uma dinâmica particular, pois faz parte do contexto escolar, segue o calendário. Este trabalho e o trabalhador sentem e fazem parte do clima que reina nesse ambiente. Em geral, até fisicamente próxima da secretaria, vemos a biblioteca. Na biblioteca trabalham pessoas que, na maioria das vezes, não possuem uma formação específica, mas a dedicação é tanta que o serviço é executado como se tivessem esta formação. Catalogam os livros; realizam o controle dos empréstimos; auxiliam alunos e professores na busca de algum volume não localizado; ajudam os alunos na procura de textos e até auxiliam no entendimento dos mesmos; recuperam livros danificados; elaboram ensejos que estimulem a freqüência à biblioteca, tais como semana literária, comemoração do dia do livro etc. Nas escolas que contam com equipamentos audiovisuais, muitas vezes são as pessoas que trabalham na biblioteca as responsáveis pelo empréstimo e utilização dos mesmos. Sem representar uma localização característica, existe na maioria das escolas uma seção denominada de serviços gerais, que tem porresponsabilidade executar os pequenos serviços de manutenção das instalações da escola. Abarca pequeno número de pessoas trabalhando (boa parte das vezes apenas um funcionário), executando os mais diversos serviços: carpintaria para consertar as carteiras, portas, quadros negros, fechaduras e uma infinidade de outros pequenos serviços; consertos na parte elétrica para garantir a iluminação e bom funcionamento da rede de energia da escola; manutenção hidráulica (bombeiro) para realizar consertos, resolvendo problemas de torneiras que pingam, descargas dos vasos sanitários que insistem em funcionar 125 continuamente ou não funcionar, pela limpeza das caixas d’água e das fossas quando elas existem. Muito comum, geralmente no local mais escondido possível, funciona um setor da mais alta relevância para a escola. Deste setor parte a primeira impressão sobre a escola, é o setor da limpeza. Não se sabe bem o porquê, mas, em geral, é um local pequeno, mal iluminado e até com aspecto desagradável, onde vassouras, rodos, baldes de plástico velhos, panos de limpeza são amontoados e o cheiro dos desinfetantes paira no ar. No entanto, é deste local que pessoas de extrema dedicação retiram seus instrumentos de trabalho para executarem uma tarefa primordial - limpar a escola. Limpeza numa escola é fundamental. Fundamental para preservação da saúde de professores, alunos e dos próprios funcionários, fundamental para impressionar o visitante que chega, fundamental como exemplo para os alunos de como a higiene deve ser preservada. Em escolas com grandes áreas verdes, compete também a este setor manter os jardins e arruamentos limpos e bem cuidados. Algumas vezes, são também responsáveis pela limpeza das áreas externas que circundam as escolas. Para cuidar do patrimônio da escola, no momento em que todos dela se afastam para merecidos descansos, surge outro personagem solitário, ao qual se dedica pouca atenção - o vigia. Ele é o responsável pela segurança noturna do estabelecimento. Tem por obrigação impedir que vandalismos aconteçam, que pessoas utilizem as instalações indevidamente. Tem ainda por obrigação desligar as luzes que não estão sendo utilizadas, verificar se existem vazamentos ou consertos emergenciais a serem realizados pelo setor de manutenção da escola na manhã seguinte. Sua participação é tão discreta que, muitas vezes, nem mesmo seus companheiros de trabalho sabem seu nome, onde mora ou do que mais gosta. É a segurança invisível da escola. Cada um destes com obrigações muito claras, com uma função definida e cuja ausência é capaz de provocar grandes transtornos, chegando, no limite, ao impedimento do exercício da atividade principal pela qual a escola responde. Poderíamos dizer coisas semelhantes para outros profissionais que também fazem parte desta rotina e deveríamos, se isso não implicasse em nos estendermos demais e nos tornarmos cansativos. Mas basta para ilustrarmos o que dissemos logo no início, a saber que uma escola não se faz apenas com professores, mas a partir do esforço conjunto de muitos profissionais. Não podemos pensar numa escola sem estes funcionários, que condições teria para receber seus alunos e manter as atividades do dia? O que seria feito em cada momento que um destes funcionários deveria entrar em cena e desempenhar seu papel? Não precisamos ir muito longe neste exercício para concluirmos que seria um caos. Professores e estudantes certamente não conseguiriam desempenhar seus papéis, mesmo que sejam deles os papéis principais. Falamos um pouco sobre diferentes profissionais que figuram nas escolas ao lado dos professores e já foi possível, ainda que sumariamente, atentar-nos para a importância dos 126 mesmos. Nosso próximo passo é deter-nos nas condições organizacionais sob as quais eles trabalham, mas uma dificuldade se impõe nesse caminho. Estamos diante, não de uma categoria profissional, senão de muitas, são dezenas de categorias representadas numa mesma organização. Será que estamos autorizados a falar destes trabalhadores desempenhando atividades tão diferentes como um único grupo ocupacional? No caso dos professores a situação era mais simples, pudemos agrupá-los em torno de uma atividade comum: todos ensinam. Não pretendemos com isso apagar as diferenças existentes, reconhecemos que elas existem e são importantíssimas: são disciplinas, níveis de ensino, tamanho das turmas, número de turmas, turnos de trabalho, tudo varia. Cada uma destas características representa condições de trabalho diferenciadas e pode afetar e afeta o trabalhador, mas os professores continuam sendo professores com uma característica maior que imprime sua marca: as condições que enfrentam em função da atividade de ensinar fazem com que tenham benefícios e problemas compartilhados, apesar de todas as outras diferenças. Mas, no caso dos funcionários, não podemos dizer o mesmo. Não temos uma atividade em torno da qual se agrupem. Cozinhar, arquivar, datilografar, vigiar, podemos encontrar um elo que ligue os profissionais responsáveis por estas atividades? Pode parecer que não, mas podemos sim. Então vejamos: Todos estes trabalhadores, com incumbências tão distintas, trabalham numa mesma organização: uma instituição voltada para o ensino. Significa dizer que a cozinheira (aqui merendeira) não trabalha numa indústria alimentícia ou num restaurante; o carpinteiro não trabalha numa carpintaria, o agente administrativo não trabalha num escritório de contabilidade. Nenhum destes trabalha numa organização cuja missão esteja ligada diretamente à sua função, todos trabalham em escolas e, apesar disso, nenhum tem como função direta o ensino. Encontramos aqui o elo de ligação entre estes profissionais: todos desempenham o que chamamos de “função meio”. Uma característica forte o suficiente, que permite olharmos para profissionais tão diferentes como um grupo vivenciando condições que os aproxima em termos das relações estabelecidas com o trabalho e das dificuldades enfrentadas na vida profissional. Mas vamos esclarecer melhor de que estamos falando quando chamamos um conjunto de funções de “função meio” e outro de “função fim”. Toda organização, empresa ou instituição, tem um objetivo ou missão, como muitos gostam de chamar, traduzindo a finalidade para a qual ela existe. No caso da escola, a sua missão ou objetivo central é educar. O grupo de profissionais que está ligado oficialmente e reconhecidamente a essa missão - os professores - desempenham o que chamamos de “função fim”. São eles que, em sala de aula, em contato direto com os clientes da instituição - os alunos - participam diretamente do processo de ensino-aprendizagem, construindo com o seu trabalho o próprio processo. O segundo grupo, os trabalhadores em “função meio”, que nas escolas são os funcionários ocupando as mais diferentes funções, também está ligado à realização do objetivo 127 central da organização, mas de forma indireta. Realizam funções e atividades que fornecem a base, o terreno sobre o qual é possível realizar a meta principal da organização. Apesar da ligação indireta destes profissionais com o objetivo principal da organização, quase nada funciona na sua ausência e o mesmo é verdadeiro para qualquer empresa, em qualquer setor da economia. A existência destas funções coloca um paradoxo do ponto de vista da empresa e do trabalhador, pois tratam-se de atividades ao mesmo tempo muito importantes e muito desvalorizadas. Do ponto de vista da empresa, apesar destes funcionários não atuarem diretamente no seu produto principal, não estando diretamente ligados à geração de lucro (no caso de empresas com fins lucrativos, por exemplo), mas, por outro, lado tornam a empresa totalmente dependente do seu trabalho, impedindo seu funcionamento na sua ausência, inviabilizando a realização da própria missão e, no caso de empresas privadas, impedindo o lucro.Pelo lado do empregado, este, ao mesmo tempo que tem uma função essencial, vê que seu trabalho não compõe diretamente o produto principal da organização, não sendo reconhecido tal como deveria pela importância efetiva que tem. Tudo o que dissemos até aqui é válido para o trabalho em qualquer empresa e também para o que acontece nas escolas, mas neste último caso temos uma especificidade, de fundamental importância, que diferencia as instituições de ensino de outras organizações: a atividade de educar que aproxima “função fim” e “função meio”, transformando todos os profissionais desta organização em educadores. A idéia do ensino escolar como transmissão de conteúdos em situações estruturadas dentro das salas de aula já foi superada, há muito, por educadores e especialistas. Sabemos, hoje, que fazem parte da educação as situações vividas pelo educando no seu cotidiano: as visitas ao supermercado quando acompanha os cálculos feitos pelo caixa; as consultas ao dentista quando aprende noções de higiene e assepsia; os passeios pelas ruas aprendendo as sinalizações do trânsito; as viagens quando tem noções de geografia, aprendendo sobre a distribuição das águas, o relevo, o clima e assim por diante. Do mesmo modo, nas escolas o ensino não se restringe ao que o professor planejou e pretende ensinar a cada dia de aula. O processo é contínuo e não cessa quando o aluno coloca os pés para fora da sala e vai para o recreio, reiniciando logo depois que este retorna. Os professores sabem que o contato cotidiano, as lições recolhidas durante o lanche, a algazarra na frente da escola, são tão importantes quanto a boa aula de Matemática. Temos fora da sala de aula um outro grupo de educadores; educadores não reconhecidos por não terem oficialmente esta função, mas requisitados o tempo todo para assumi-la. Uma merendeira que trabalhe em uma escola não é uma merendeira, cuida da algazarra dos garotos, policia por bons hábitos, faz vínculos afetivos com seus alunos/clientes; um porteiro de uma escola não é um porteiro, espera pela mãe/pai, dá notícias do garoto, cuida da segurança da turba que se forma defronte à escola. Em síntese, é impossível a um funcionário de escola se 128 furtar ao papel de educador. Ocorre que é um educador conhecido como funcionário; seu papel de educador, apesar de sempre presente, permanece clandestino, ninguém na escola o considera assim, nem mesmo ele, na maior parte das vezes. Vemos, portanto, que esta distinção entre “função fim” e “função meio” em qualquer organização e, especialmente nas escolas, não se trata de um mero artifício para podermos falar em apenas dois grupos de profissionais em lugar de abordarmos toda a diversidade que encontramos. Pertencer a um ou outro bloco coloca estes trabalhadores em condições de trabalho, status e reconhecimento muito distantes, mas principalmente, implica em diferenças subjetivas da relação que se estabelece com o próprio trabalho. Mas vamos abordar separadamente cada um destes tópicos à semelhança do que fizemos com os professores. Condições organizacionais Vimos que as condições enfrentadas pelos professores não são as melhores, muito pelo contrário. Os professores sofrem com baixos salários, condições inadequadas de infra-estrutura e equipamentos, falta de conforto e condições adequadas de trabalho. Se isso acontece com os trabalhadores que realizam as “funções-fim” da instituição, como estarão as condições dos que realizam as “funções-meio”? Em termos salariais, encontramos neste grupo os piores níveis entre os profissionais ligados à educação. Quase 90% dos funcionários recebem abaixo de R$ 500,00 e 47,4% recebem abaixo de R$ 200,00, por 40 horas semanais de trabalho. Há estados, nos quais apenas 24,3% recebem acima de R$ 150,00 e apenas 18,6% recebem acima de R$ 200,00 pelas mesmas 40 horas semanais. São de fato salários baixos, mas neste caso não podemos atribuir esses níveis mais baixos de salário somente à posição da função na composição da organização. É verdade que o nível de qualificação exigido para os professores é bem maior que o exigido para a maioria destas funções de apoio e essa é a maior razão para a variação no nível salarial comparativamente. Mas, de qualquer modo, são as funções pior remuneradas e, em conseqüência, o poder de compra e o nível de vida é muito pior. As condições de trabalho também são bastante precárias em alguns estabelecimentos. Claro que, se em alguns lugares faltam recursos até mesmo para a realização do trabalho ligado diretamente ao cliente, quanto mais para a realização das funções de suporte e apoio ao ensino. As instalações representam um bom exemplo para ilustrar as condições vividas por estes profissionais. Na grande maioria das escolas existe uma sala de professores, em algumas, com melhores condições, chega a ter armários para que os materiais utilizados no trabalho sejam guardados, ou mesmo duas salas, sendo uma de trabalho e outra para os intervalos. Mesmo que não tenham as condições ideais, e muitas não têm, garantem um espaço que serve tanto para o 129 trabalho quanto para um breve descanso, um momento para recuperar o fôlego entre uma e outra aula, para a interação social, para um cafezinho, para aliviar as tensões. Mas, e no caso dos funcionários? Para estes não existe um espaço destinado à preparação do trabalho ou para os intervalos, salvo raríssimas exceções. Na maioria das vezes, o que vemos é um quartinho bem pequeno com os equipamentos, uma espécie de depósito que não tem nenhuma outra função. Não há um local para que se possa respirar aqueles 5 minutos entre uma tarefa cumprida e outra que deve ser iniciada. Evidentemente, de alguma forma, outros espaços são criados e acabam desempenhando esta função que, apesar de tão fundamental, é tantas vezes desconsiderada. Na ausência de local próprio, serve um cantinho no pátio, um espaço na cozinha, um banheiro mais isolado. As pessoas não se restringem assim tão fácil, não se intimidam, sempre encontram formas alternativas para alguma coisa que é importante e estes momentos de parada para um descanso rápido e para interação social são fundamentais, qualquer que seja o trabalho. Porém, estamos falando aqui de uma questão institucional e, institucionalmente, este espaço não é previsto para os funcionários. Apesar das condições objetivas serem precárias para os funcionários, não encontramos aí o principal impacto de atuar em “funções meio” numa organização. A principal conseqüência é subjetiva e diz respeito às impossibilidades de controle sobre a rotina e sobre a própria atividade; à percepção de carga excessiva no trabalho; às dificuldades de reconhecimento social e de reconhecimento do produto resultado do esforço de todos os dias. Os resultados da nossa pesquisa revelam que 20,7% dos funcionários apresentam problemas com relação ao trabalho rotineiro. Considerando as diversas áreas de atividades dos funcionários das escolas, administrativo, apoio ao ensino e operacional, temos que estes últimos apresentam o maior percentual de trabalhadores incomodados com a rotina do próprio trabalho (21,6%). Para esclarecer, funcionários administrativos são aqueles que ocupam cargos com apoio administrativo, auxiliar administrativo, assistente administrativo, agente administrativo, secretaria e cargos afins; os de apoio ao ensino são cargos como inspetor e funcionário de biblioteca e cargos afins; e os operacionais são os que ocupam cargos como alimentação, vigilância, portaria, serviços gerais, limpeza, manutenção e cargos afins. Problemas de Rotina sem rotina com rotina Total Suporte administrativo 80,2% 19,8% 100% Suporte à educação 83,4% 16,6% 100% Suporte operacional 78,4% 21,6% 100% 130 Total 79,3% 20,7% 100% Figura 13, Cap. 6 - Problemas de rotina entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. De fato, as atividadesdos funcionários, na maior parte das vezes, envolvem poucas operações, repetitivas e que permitem poucas inovações, restringindo a criatividade e as manifestações individuais. Cada tarefa tem uma seqüência definida, que uma vez concluída, já implica na execução de uma próxima. Pensemos no trabalho de um agente de conservação e limpeza. Cabe a este profissional a limpeza das salas; para tanto, todos os dias lava e encera o chão; passa pano úmido no quadro negro; limpa as carteiras e as mantém alinhadas; recolhe o lixo. Deve também limpar os banheiros; limpa o vaso sanitário, lava o chão, limpa paredes e azulejos e lava as pias. Ainda deve limpar as áreas de uso comum e administrativas. No final do dia tudo está sujo novamente, devendo portanto ser arrumado. No dia seguinte ele repetirá os mesmos passos. Trabalhos rotineiros, em geral, não são desejáveis porque não são estimulantes, não desafiam, não instigam aquele que o executa a buscar novos conhecimentos, a procurar melhor desempenho, a tentar superar-se. Queremos mais do nosso trabalho do que a mera sobrevivência e a satisfação dos nossos sonhos de consumo. O trabalho traz consigo um papel fundamental na nossa existência pelo que representa em si mesmo, enquanto atividade. Através dele nos desenvolvemos, superamos nossos limites, nos tornamos mais competentes, ampliamos nossas possibilidades de atuação e levamos isso para a vida, para os nossos relacionamentos, para o nosso mundo fora do trabalho. Ora, um trabalho que não permita esse desenvolvimento não é visto com bons olhos, independentemente do salário. Um exemplo clássico para esta situação é a experiência vivenciada pelos bancários estatais na época em que estes funcionários eram bem remunerados. O trabalho era repetitivo, monótono, nada atraente, mas o salário era muito bom. Isso criava um dilema para estes profissionais, pois, ao mesmo tempo em que não gostavam do que faziam, não podiam perder um emprego tão bem remunerado. As conseqüências, principalmente emocionais, para os funcionários nessa situação foram bastante sérias e mereceram inclusive atenção técnica. Com relação ao controle sobre o trabalho, nossa pesquisa revela que 20,6% dos funcionários apresentam problemas a este respeito. Novamente aqui, os funcionários operacionais se destacam por apresentarem o maior percentual de trabalhadores insatisfeitos com relação ao controle (23,1%). Para a maior parte das funções que chamamos de “meio”, existem padrões que não podem ser modificados pelo empregado, estando a liberdade de ação limitada à normas, à rotina e, às vezes, à própria natureza da atividade. 131 Controle no trabalho Com controle Sem controle Total Suporte administrativo 83,0% 16,9% 100% Suporte a educação 87,7% 12,3% 100% Suporte operacional 76,8% 23,1% 100% Total 79,3% 20,6% 100% Figura 14, Cap. 6 - Problemas de controle entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. Por exemplo, o agente de conservação e limpeza pode, na melhor das hipóteses, optar se quer primeiro enfileirar as carteiras ou passar o pano no quadro negro; ou se quer primeiro lavar o vaso ou as paredes. Mas nem mesmo os horários para os serviços em cada área podem ser escolhidos, já que a limpeza de cada local deve ser realizada nos momentos em que os alunos não estão presentes. Como conseqüência, há momentos em que até o ritmo de trabalho foge do controle do trabalhador. Seguindo o mesmo exemplo, um agente deve sempre terminar a limpeza das salas antes da chegada dos alunos na escola. O tempo destinado para esse serviço é invariavelmente o mesmo, independente do tipo de atividade que foi exercida nesta sala. Ou seja, o fato da sala ter sido utilizada para atividades comuns de uma aula de Matemática ou como um “laboratório” para uma aula de pintura e colagem de educação artística não é considerado e cabe ao trabalhador adaptar seu ritmo sob as diferentes circunstâncias. Importante lembrar que, neste caso, estamos falando sobre uma atividade na qual o esforço físico prevalece, e, portanto, os efeitos sobre o não controle do ritmo de trabalho podem trazer conseqüências físicas mais sérias. São atividades que exigem uma posição curvada por quase todo o dia, são baldes cheios de água que devem ser carregados de um lado a outro, sem contar a exposição às intempéries do tempo. A questão é que falta de controle e de autonomia são características que, na maioria das vezes, são inerentes às próprias atividades, as quais não permitem que o trabalhador possa decidir o melhor momento para executá-las, ou a ordem com que devem ser realizadas, exatamente porque estas tarefas servem como suporte ao funcionamento da instituição. O andamento e a rotina da organização são ditados por normas que fogem ao controle daqueles que executam as funções-meio e são definidos pelo objetivo final da organização. Associado ao trabalho rotineiro e à falta de controle sobre o trabalho, aparece também a queixa dos funcionários com relação à carga mental excessiva de trabalho. Entre eles, 17,2% sentem-se insatisfeitos com relação a este aspecto. Considerando somente os funcionários operacionais, temos 19,8% de trabalhadores com problemas. Carga no trabalho 132 sem carga com carga Total Suporte administrativo 86,7% 13,2% 100% Suporte a educação 89,3% 10,7% 100% Suporte operacional 80,1% 19,8% 100% Total 82,7% 17,2% 100% Figura 15, Cap. 6 - Problemas de carga entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. Tais dados não são de todo inesperados. É natural que trabalhadores expostos a atividades rotineiras, à impossibilidade de tomar decisões relevantes e de exercer controle sobre o próprio trabalho tragam consigo a sensação de carga mental excessiva. Estamos afirmando que a percepção de carga mental no trabalho não é uma queixa referente apenas aos trabalhos intelectuais. A impossibilidade de ser criativo, de poder implantar sua subjetividade naquilo que faz, que predomina no trabalho operacional, é incômoda e desconfortável. Afinal, não somos só corpo. “Somos corpo, mente e alma”. O que fazer com o desejo de contribuir, com o potencial de criação, com o conhecimento adquirido ao longo dos anos de experiência sobre questões do dia-a-dia nas escolas? Ter que se calar, ter que não ver, é um esforço igualmente cansativo e estressante. Um outro ponto que merece destaque é a questão da relação dos funcionários com o produto final de trabalho e o conseqüente reconhecimento social associado à função destes trabalhadores. Os resultados da nossa pesquisa mostram que 19,7% dos funcionários não reconhecem a importância do produto de seu trabalho nem para si e nem para a sociedade. Os operacionais mantêm a vanguarda, com 23,7% de seus representantes estando insatisfeitos. Produto do Trabalho sem problema com problema Total Suporte administrativo 86,5% 13,4% 100% Suporte a educação 87,1% 12,8% 100% Suporte operacional 76,2% 23,7% 100% Total 80,2% 19,7% 100% Figura 16, Cap. 6 - Problemas com o produto do trabalho entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. Estamos diante de uma situação bastante complicada. Se mesmo o professor não se vê reconhecido socialmente, apesar de não ter dúvidas quanto à importância do seu trabalho, tanto menos o funcionário que, pela própria natureza da atividade, muitas vezes nem consegue ter claro qual a importância daquilo que faz. Ao comparar o seu trabalho com o do professor, a situação se agrava ainda mais. Assim como para a sociedade, também para o funcionário é mais fácil ver a importância e a razão de ser do trabalho do professor, não só porque o professor ensina e é para isso que a escola existe, mas também porque o produto do trabalho do professor é mais visível. Os 133 alunos chegam à escola, passam o ano participando das aulas do professor e vão passando de umasérie para a seguinte. As modificações são claras, podem ser vistas por qualquer observador. Claro que há repetências, desistências, fracassos, mas, em geral, o saldo costuma ser positivo. Neste caso, trabalho feito é trabalho feito e segue-se em frente. No caso dos funcionários, principalmente para os operacionais, embora a questão seja válida também para os demais, a situação é bem diferente. O trabalho que é feito hoje, muitas vezes é desfeito no mesmo dia e novamente tem que ser refeito. O produto se desfaz, desaparece, tem vida curta, impedindo o trabalhador de se reconhecer e de se orgulhar daquilo que fez. Estes trabalhadores até podem ter claro o produto específico do seu trabalho num plano mais imediato, como por exemplo: o banheiro limpo, uma torneira consertada, a papelada em dia. Contudo, a dificuldade que se impõe está em outro lugar, está em estabelecer os vínculos com o produto final da instituição. Trata-se da dificuldade de vislumbrar qual o papel daquele seu produto numa realidade maior para o objetivo final da instituição, para a vida do aluno; falta um lugar para o seu trabalho na representação social da escola. A falta de reconhecimento, bem como a pouca importância que muitas vezes está associada a estas funções, contribuem para esta dificuldade. É verdade que as condições de trabalho das diversas atividades dos funcionários nem sempre são as mesmas. As funções de um auxiliar administrativo ou de um secretário podem ser mais complexas e a de um porteiro pode exigir menor esforço físico, por exemplo. No entanto, a questão de falta de controle sobre o ritmo de trabalho, rotina, carga mental e reconhecimento do produto final, comparativamente com os professores, por exemplo, são problemas comuns a esses funcionários, mesmo que com algumas diferenças nos percentuais. Passando por todas estas considerações, não é difícil compreender porque encontramos percentuais tão altos de problemas quando o trabalhador avalia suas condições subjetivas no trabalho. Enquanto professores ficaram com percentuais sempre abaixo de 10% de problemas em quaisquer dos quesitos considerados, entre os funcionários os percentuais dobraram. São aproximadamente 20% de profissionais apresentando problemas nas relações de trabalho, percentual que se eleva ainda mais entre os funcionários operacionais. Através de uma olhada superficial, diríamos que o percentual de funcionários satisfeitos no trabalho (83,8%) não difere muito dos percentuais apresentados com relação às condições subjetivas no trabalho. Satisfação no trabalho Satisfeitos Insatisfeitos Total Suporte administrativo 82,3% 17,7% 100% Suporte a educação 87,7% 12,3% 100% suporte operacional 84,4% 15,6% 100% Total 84,8% 16,2% 100% 134 Figura 17, Cap. 6 - Problemas com satisfação no trabalho entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. Contudo, vale observar que a nossa pesquisa revelou que a satisfação decresce na medida em que se distancia a compatibilidade entre a função exercida e a qualificação formal do funcionário. Entre os mais escolarizados, estão menos satisfeitos sobretudo aqueles que desempenham funções operacionais. Porém, considerando somente os funcionários operacionais com até 1º grau completo, nossa pesquisa demonstrou que 87,5% sentem-se satisfeitos com seus respectivos trabalhos e lembramos que funcionários com este nível de escolaridade representam 76,2% dentre os operacionais acima especificados, tratando-se, portanto, da maioria. Satisfação no trabalho Satisfeitos Insatisfeitos Total 1 gr completo e incomp 90,2% 9,8% 100% 2 gr completo e incomp 84,2% 15,8% 100% Suporte administrativo Univers e pós-univers 72,8% 27,2% 100% Total 82,3% 17,7% 100% 1 gr completo e incomp 89,6% 10,4% 100% 2 gr completo e incomp 92,6% 7,3% 100% Suporte a educação Univers e pós-univers 78,2% 21,8% 100% Total 87,7% 12,3% 100% 1 gr completo e incomp 87,5% 12,5% 100% 2 gr completo e incomp 75,9% 24,1% 100% Suporte operacional Univers e pós-univers 64,6% 35,4% 100% Total 84,5% 15,5% 100% Figura 18, Cap. 6 - Problemas com satisfação no trabalho entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional, distribuídos pelo grau de escolaridade que possuem. Grau escolar categorizado 1 gr completo e incomp 2 gr completo e incomp univers e pós-univers Total Suporte administrativo 11,6% 66,8% 21,6% 100% Suporte a educação 16,2% 53,07% 30,7% 100% suporte operacional 76,2% 22,02% 1,7% 100% Total 51,6% 38,84% 9,6% 100% Figura 19, Cap. 6 - Distribuição de funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional por escolaridade. Sob este ponto de vista, de modo impressionante, apesar destas condições vividas na instituição, os funcionários se apresentam satisfeitos. É verdade que não são exatamente os 135 mesmos índices que encontramos para os professores, mas, ainda assim, são excelentes; são trabalhadores que, independente dos problemas de trabalho, sentem-se satisfeitos com sua ocupação e não se arrependem da opção que fizeram. Por outro lado, apesar de satisfeitos, os funcionários apresentam índices de falta de comprometimento organizacional relevantes (18,0%). O fato de 23,4% dos funcionários perceberem o trabalho apenas como um meio para realizarem-se fora dele, ou seja, estarem centrados mais no dinheiro do que no trabalho em si, ajuda-nos a entender essa questão. Comprometimento Comprometidos Não comprometidos Total Suporte administrativo 82,3 17,7% 100 Suporte à educação 82,2 17,8% 100 Suporte operacional 81,7 18,3% 100 Total 82,0 18,0% 100 Figura 20, Cap. 6 - Problemas de comprometimento entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. Centralidade no dinheiro Não centrado Centrado Total Suporte administrativo 85,1% 14,9% 100% Suporte a educação 83,9% 16,1% 100% Suporte operacional 71,4% 28,6% 100% Total 76,6% 23,4% 100% Figura 21, Cap. 6 - Problemas de centralidade no dinheiro entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. A faixa etária da maior parte destes trabalhadores, situada entre 30 e 50 anos (65,5%), boa parte assumindo o papel de principal provedor da família (quando não de único provedor), associados à baixa escolaridade (sobretudo entre os operacionais) e à conseqüente dificuldade de inserção no mercado de trabalho, justificam a preocupação maior com o dinheiro e explicam a satisfação com o emprego diante das dificuldades do mercado. A falta de um trabalho estimulante, envolvente, que capture as potencialidades do trabalhador e, principalmente, o não reconhecimento por parte da instituição, dos companheiros e da sociedade, por sua vez explicam o percentual mais elevado de falta de comprometimento entre estes profissionais. Ora, estar satisfeito com o trabalho não significa ignorar que existem coisas que não estão bem, é sobre isto que estivemos falando até então. Significa sim, considerar a realidade sócio- econômica, disponibilidades de mercado, suas próprias qualificações e, sobretudo, suas 136 necessidades pessoais, não só de sobrevivência, mas também de afeto, de algo que é certo, com que se pode contar. O apoio afetivo originado pela relação entre os companheiros de trabalho tem um papel bastante importante na vida destes profissionais. Cabe-nos, neste momento, refletir sobre mais este papel que o trabalho exerce na vida destas pessoas: o papel socializador. Estamos falando, de forma geral, de trabalhadores com baixo poder aquisitivo e baixa instrução. Tratam-se de pessoas humildes e batalhadoras. Durante as entrevistas realizadas, destacaram-se alguns pontos em comum entre estes profissionais. São histórias de vida marcadas por pouco lazer; vida familiar conturbada; separações e perda de pessoas queridas; dificuldade de vínculo afetivo, em grande parte pela própria dificuldade de sobrevivência.A vida é dura, faltam recursos até mesmo para o básico. Muito esforço é necessário para conseguir, por exemplo, proporcionar estudo para os filhos. Filhos que carregam consigo o peso do desejo de sucesso dos pais, até para compensar as dificuldades passadas por eles próprios. O desejo de que os filhos possam ter uma vida diferente é muito marcante em alguns relatos. Nossa pesquisa revela que as relações sociais no trabalho fornecem um suporte que beneficia uma maior número de funcionários do que o suporte sócio-afetivo fora do contexto do trabalho. Relações sociais no trabalho sem problema com problema Total suporte administrativo 92,66 7,34 100 suporte a educação 91,98 8,02 100 suporte operacional 92,32 7,68 100 Total 92,43 7,57 100 Figura 22, Cap. 6 - Distribuição de problemas de relações sociais no trabalho entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. Suporte Afetivo sem problema com problema Total Suporte administrativo 80,1% 19,9% 100% Suporte a educação 78,6% 21,4% 100% Suporte operacional 72,4% 27,6% 100% Total 75,3% 24,7% 100% Figura 23, Cap. 6 - Distribuição de problemas de suporte afetivo entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. Suporte social sem problema com problema Total 137 Suporte administrativo 80,2% 19,8% 100% Suporte a educação 78,0% 21,9% 100% Suporte operacional 76,8% 23,2% 100% Total 78,1% 21,9% 100% Figura 24, Cap. 6 - Distribuição de problemas de suporte social entre funcionários das áreas administrativa, educacional e operacional. Ter a segurança de que no dia seguinte encontrar-se-á a mesma colega de anos e anos com quem sempre se falou sobre os problemas do dia-a-dia, com quem sempre se compartilhou as peculiaridades de uma vida inteira de batalhas; de que no dia seguinte alguém se importa com o fato de sua presença; saber que, dia após dia, se tem um espaço e tarefas que, aconteça o que acontecer na sua vida pessoal, continuarão lá esperando para serem realizadas, são certezas reconfortantes. Estas necessidades supridas, em parte, pelo trabalho, não fazem com que os funcionários não estejam atentos às dificuldades que enfrentam no seu exercício profissional, nem que se orgulhem da organização que trabalham incondicionalmente, ou seja, não são suficientes para que se sintam comprometidos com a organização. De fato, torna-se difícil “vestir a camisa” daquele que não nos valoriza, que não faz com que nos sintamos importantes, que não compreende a forma como nos esforçamos por ele, que não nos oferece condições dignas de trabalho. Pode parecer paradoxal, mas não é. Ainda com relação a escolaridade, a situação que encontramos quanto à qualificação formal destes profissionais é, no mínimo, curiosa, gerando uma situação inusitada. Um dado que chamou a atenção foi que 65% dos operacionais possuem apenas primeiro grau incompleto de escolaridade, mas também, quase 20% deles tem segundo grau incompleto ou mais. Surpreende a quantidade de trabalhadores com alto nível de escolaridade, tendo em vista que se trata de um reduto tradicional dos trabalhadores com níveis mínimos de escolarização. Isto pode ser explicado pelo incremento de uma oferta crescente de pessoas com maiores níveis de escolaridade e pelo fato da educação ser um valor social. Estes fatores levam a que, na prática, ou formalmente, se incrementem os requisitos educacionais para o desempenho de cargos que outrora tinham menores exigências. Soma-se a isto a crise do emprego que obriga os trabalhadores mais escolarizados a aceitar empregos cujas tarefas não exigem o uso dos conhecimentos que possuem. Levando a escolaridade em consideração, observamos que os problemas enfrentados pelos mais escolarizados e pelos menos escolarizados no mesmo grupo ocupacional se diferencia muito. Entre os trabalhadores operacionais de menor grau de escolaridade (que são a maior parte), uma parcela maior experimenta penosidade no trabalho e avalia que trabalha apenas por dinheiro, 138 além de ter sentimentos de qualificação inferior, embora seus cargos não exijam qualificação. Já os operacionais que possuem maior grau de escolaridade têm problemas de comprometimento, cooperação, rotina, satisfação no trabalho e de relacionamento com o produto. Concluindo, não são apenas as condições organizacionais as responsáveis pelos problemas no trabalho dos funcionários. Caraterísticas da própria atividade, além, é claro, das características pessoais, também são responsáveis pela percepção reportada por estes trabalhadores sobre seus respectivos trabalhos. Se esta é a situação que se apresenta, quaisquer que sejam as providências tomadas ou a tomar para a melhoria dos níveis de ensino e/ou de qualificação dos professores, terão que enfrentar o fato de que as escolas estaduais se estruturam sobre pés de barro. Exatamente os trabalhadores responsáveis pela sua manutenção básica, pela infra-estrutura, aquela que permite que os professores ensinem e que os alunos aprendam, estão apresentando um quadro preocupante: salários significativamente mais baixos, mesmo quando comparados com os baixos salários da categoria; nível de escolaridade baixo; vários índices nas escalas de trabalho fortemente comprometidas; condições organizacionais precárias. Enfim, parece haver muito pouco de positivo no trabalho dos funcionários, principalmente dos funcionários operacionais. Ficará difícil pensar em melhorias de qualquer tipo sem levar em conta este setor. Como poderá um professor pensar em qualidade de ensino-aprendizagem, se não puder contar com o material de apoio didático, disponível e em condições de funcionamento, oferecidos pelo pessoal de apoio ao ensino; se não tiver uma sala de aula com quadro-negro, carteiras inteiras consertadas pelo auxiliar de serviços gerais, prontos para serem usados? Como cobrar organização e responsabilidade com as tarefas, se o calendário escolar, cadernos de chamada, boletins não estiverem disponíveis e organizados pelo pessoal da área administrativa; se a sala não estiver arrumada pela faxineira? Como ensinar respeito e cidadania se a escola estiver depredada, se as paredes estiverem pichadas e ninguém fizer nada; se não houver alguém zelando por aquilo que é nosso? Como passar noções sobre espaço público, se os banheiros e áreas comuns não tiverem sido cuidadosamente limpos pela agente de conservação e limpeza? Como falar sobre relacionamento humano se os alunos não estiverem iniciado seu turno escolar sendo recebidos calorosamente pelo porteiro ao chegar na escola; se a merenda não tiver sido carinhosamente preparada e distribuída pela merendeira? São tantos “comos” e “ses” envolvidos no cotidiano de uma escola que antecedem o alcance do produto final, que não nos arriscamos nem mesmo à tentativa de esgotá-los nessas citações. Certamente, seríamos injustos, e esqueceríamos de algum detalhe. Mas são os detalhes, “simples” detalhes que, muitas vezes, fazem a diferença. 139 PARTE III: IMAGENS E MIRAGENS DA ESCOLA PÚBLICA 140 Cap 7 - Violência e Agressão Analia Soria Batista, Patrícia Dario El-moor Em um livro que se transformou em um marco importante na América Latina, chamado “Ação e Ideologia. Psicologia Social desde Centroamérica” 3, Ignacio Martin Baró aceita o desafio de compreender o contexto da violência característico de El Salvador. Para tal fim percorre diferentes enfoques sobre o fenômeno, identificando seus elementos e processos para reintegrá- los numa original totalidade que lhe permita entender a América Central, o particular, no entanto sem particularizar o modo de apreensão da questão. O percurso analítico realizado mostra que embora sua intenção seja entender antes de tudo o contexto da violência política ali instalada, vários dos elementos e processos que permitem a compreensão do problema transcendem o chamado paradigmada violência política que caracterizou a nossa região até pouco tempo. Do particular podemos buscar uma apreensão universal, do historicamente situado, um deslocamento no tempo. Baró (1983) distingue etmologicamente os termos violência e agressão. Este psicólogo social latino-americano propõe entender violência como a aplicação de uma força excessiva a algo ou a alguém, entretanto agressão seria a violência dirigida contra alguém com o propósito de causar-lhe dano. Ambos termos entranham uma valoração negativa, embora os psicólogos os utilizem de formas diferentes. Alguns outorgam uma valoração negativa apenas à violência. A agressão pelo seu lado não teria valoração nem negativa nem positiva, na medida em que se trataria de um instinto ou de um impulso (dependendo da corrente de pensamento teórico) característico da espécie humana e direcionado à luta pela sobrevivência individual e coletiva. O apelo biológico da agressão estaria na base dos discursos de alguns estudiosos que insistem em sustentar que no cotidiano das escolas acontecem ações agressivas entre gerações diferentes e indivíduos da mesma idade, mas que o vínculo entre estas e o que se considera como violência seria na prática inexistente. Jurandir Freire Costa (1984) define violência como o emprego desejado de agressividade com fins destrutivos; ou seja, a violência ocorre quando há desejos de destruição de parte do algoz. Além disso, este último, a vítima e os observadores traduzem a ação realizada como violenta (VG. Fukui, 1992). Segundo essa definição, além de existir uma motivação de destruição 3 Por ironia trágica, Baró morreu assassinado por militares em El Salvador, em 1979, exatamente uma vítima do processo que ajudou a compreender. 141 no indivíduo, a própria sociedade identifica e menciona o ato por ele realizado como violento. Chamamos aqui a atenção para dois fatos complementares: 1) a definição social da violência comporta uma base ética, e 2) o comportamento tido como violento muda historicamente e pode ser diferente em cada contexto sócio- cultural, ou seja, ele é relativo no tempo e no espaço. Além disso, a definição social e histórica da violência e da agressão, do que seja mencionado como violência na sociedade, e a sua valoração positiva ou negativa, poderá depender dos interesses conflitantes que caracterizam uma sociedade de classes. Um exemplo disto temos na chamada violência no campo no Brasil. Para Baró, no entanto, na medida em que o que é mencionado como violência em determinado momento histórico, traz as “marcas” dos conflitos sociais que atravessam uma sociedade capitalista, será necessário primeiro avançar na compreensão do que seja o ato violento. Trata-se então primeiro de entender o ato em questão “em abstrato”, fora de seus condicionamentos histórico - sociais, para logo tentar compreende-lo na sociedade brasileira da atualidade. Um primeiro desafio será decidir se o ato violento ou agressão tem que ser compreendido como um simples dado positivo (behaviorismo ortodoxo), ou se é necessário valorar a significação do fato desde a perspectiva do autor (pessoa ou grupo) e desde o ponto de vista da sociedade (behaviorismo menos ortodoxo). Baró (1983), enfatiza que desde o ponto de vista da significação psicossocial das ações violentas ou agressivas, a compreensão do fato passa pela justificação esgrimida em face do mesmo, o que permite ir além da aparência (fachada) da conduta. Essa justificação tem que ser examinada no marco dos interesses e valores concretos que caracterizam cada sociedade ou grupo social (VG. Baró, 1983). Aspectos analíticos do ato violento ou agressão Segundo Baró, quatro elementos devem orientar o exame do ato violento ou da agressão. Em primeiro lugar, esse ato comporta uma estrutura formal. Por isso, é necessário distinguir o tipo de violência ou agressão de que se trata: se ela está sendo um meio para conseguir um fim, ou se pelo contrário, ela é um fim em si mesma. Na sociedade predomina o primeiro tipo de violência, embora a segunda também esteja presente, resgatando uma visão da violência ou agressão produto da maldade ou transtorno mental de quem a executa. O segundo elemento apontado diz respeito aos aspectos pessoais que ingressam no ato. O terceiro aponta a presença de um contexto possibilitador do ato, constituído por valores e normas, formais e informais, que vão na direção da aceitação da violência como um estilo de comportamento, sendo então esse comportamento “invocado” no contexto. O quarto elemento aponta o papel do contexto imediato da 142 ação violenta, por exemplo, nas comunidades onde as pessoas costumam andar armadas é fácil que uma briga qualquer termine em morte. Muitas vezes esse contexto violento está institucionalizado ou seja, convertido em normas, rotinas etc. É importante destacar que quando existe uma institucionalização da violência na sociedade ou em uma parte dela, a pior opção em face dessa realidade é incrementar a repressão pública e/ou privada. A represália violenta num contexto de institucionalização/rotinização da violência pode levar ao incremento dela, na medida em que será difícil distinguir o que é defesa do que é ataque, o que é proteção, do que é agressão. Figura 1, Cap. 7 – Quadrinho da Mafalda sobre violência. Violência ou agressão e sociedade Já adiantamos que certos enfoques apontam a violência humana ou agressão como vicissitudes de forças biológicas (enfoque instintivista: modelo teológico e modelo psicanalítico). Outros, centrados no ambiente (ambientalistas), apontam o papel da frustração na produção da agressão e ao fato da aquisição e condicionamento social do comportamento agressivo. Para Baró (1983), não seria necessário procurar as raízes da agressão e da violência no interior das pessoas, mas nas circunstâncias em que vivem e se encontram, seja porque as pessoas vejam frustradas suas aspirações, ou porque aprendam a conseguir seus objetivos mediante a violência. Em ambos 143 os casos a fonte da violência estaria fora dela. Um chamado de atenção: o importante é examinar que tipo de violência se aprende ou se desencadeia, dirigida contra quem ou o quê, e com que efeitos na realidade concreta de uma sociedade. Finalmente, Baró alude ao enfoque histórico (Fromm, 1975) do fenômeno da violência acentuando que cada estrutura social configura o caráter dos membros, sendo que uma das possibilidades é a configuração da pulsão agressiva que leva o indivíduo a obter satisfação destruindo e matando. O ser humano estaria aberto aos comportamentos violentos mas essa abertura só se materializa ao longo da história de cada pessoa. Os fatores imediatos no desencadeamento da violência são a frustração, um meio propício para isso, a pressão grupal, a disponibilidade do poder e, especialmente, o convencimento sobre seu valor instrumental. Para entender a violência a partir de uma perspectiva psicossocial, Baró integra os vários enfoques (seus elementos e processos) numa totalidade. Mencionaremos apenas aqueles elementos que resultem interessantes para pensar o problema da violência nas escolas na sociedade brasileira atual. Para o autor, o ser humano é um ser aberto à violência e agressão como possibilidades comportamentais que têm sua base na configuração do próprio organismo. Que estas possibilidades se materializem ou não dependerá das circunstâncias sociais em que se encontrem os indivíduos e das exigências particulares que cada pessoa tenha que confrontar na sua própria vida. O ponto de partida da análise da violência exige: ter em conta a existência da violência estrutural inscrita nas sociedades, que não se reduz apenas a uma desigual distribuição dos recursos disponíveis impedindo ou limitândo a satisfação das necessidades básicas da maioria do povo; e que supõe ademais um ordenamento