Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Margarida Maria Lacombe Camargo Pesquisadora da Casa Rui Barbosa. Professora da Universidade Gama Filho (Pós-graduação) A HERMENEUTICA E,., ARGUMENTAÇAO UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO Prefácio de Vicente de Paulo Barretto 3a edição revista e atualizada Posfácio de Antonio Cavalcanti Maia RENOVAR Rio de Janeiro. São Paulo 2003 Todos os direitos reservados à LIVRARIA E EDITORA RENOVAR LTOA. MATRIZ: Rua da Assembléia, 10/2.421 - Centro - RJ CEP: 20011-901 - Tel.: (21) 2531-2205 - Fax: (21) 2531-2135 LIVRARIA CENTRO: Rua da Assembléia, 10 - loja E - Centro - RJ CEP: 20011-901 - Tels.: (21) 2531-1316/2531-1338 - Fax: (21) 2531-1873 LIVRARIA IPANEMA: Rua Visconde de Pirajá, 273 - loja A - Ipanema - RJ CEP: 22410-001 - Tel: (21) 2287-4080 - Fax: (21) 2287-4888 FILIAL RJ: Rua Antunes Maciel, 177 - São Cristóvão - RJ - CEP: 20940-010 Tels.: (21) 2589-1863/2580-8596/3860-6199 - Fax: (21) 2589-1962 FILIAL SP: Rua Santo Amaro, 257-A - Bela Vista - SP - CEP: 01315-001 Te\.: (11) 3104-9951 - Fax: (11) 3105-0359 www.editorarenovar.com.brrenovar@editorarenovar.com.br SAC: 0800-221863 Conselho Editorial Biblioteca de teses Arnaldo Lopes SUssekind - Presidente Carlos Alberto Menezes Direito Caio Tácito Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. Celso de Albuquerque Mello Ricardo Pereira Lira Ricardo Lobo Torres Vicente de Paulo Barretto Revisão Tipográfica Ana Maria Grillo Renato Carvalho Capa Julio Cesar Gomes Editoração Eletrônica TopTextos Edições Gráficas Ltda. Cln CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Camargo, Margarida Maria Lacombe. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito / Margarida Maria Lacombe Camargo; prefácio de Vicente de Paulo Barretto. - 3.ed. - Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 299p. ; 21cm. ISBN 85-7147-392-7 1. Hermenêutica (Direito). 2. LingUística. 3. Análise do discurso. 4. Retórica. I. Barretto, Vicente de Paulo. 11. Título. CDD 340.11 Proibida a reprodução (Lei 9.610/98) Impresso no Brasil Printed in Brazil Os Cursos de Pós-Graduação têm se desen- volvido no Brasil, e a produção de teses tem sido elevada e de alto nível. A Editora Renovar propõe na presente Bi- blioteca estimular a divulgação de obras que contribuam para o desenvolvimento da ciência jurídica brasileira, levando-as ao conhecimen- to do grande público. No Direito as novidades estão, de um modo geral, nas teses e nas revistas especializadas. Assim sendo, a Editora Renovar abre a sua linha editorial para os juristas que estão no início de sua carreira profissional como mes- tres e doutOres. A Biblioteca tem esperança de que venha a constituir um estímulo a estes protissionais. . E mais uma prova de que acredItamos na qualidade das obrasjurídicas brasileiras: A nos- sa linha editorial é marcada por uma ngorosa seleção realizada pelo Conselho Editorial, que reúne eminentes juristas. Editora Renovar BIBLIOTECA DE TESES RENOVAR Posse da Segurança Jurídica à Questão Social Marcelo Domanski O Prejuízo na Fraude Contra Credores Marcelo Roberto Ferro A Pessoa Jurídica e os Direitos da Personalidade Alexandre Ferreira de Assumpção Alves Estado e Ordem Econômico-Social Marco Aurélio Peri Guedes O Projeto Político de Pontes de Miranda Dante Braz Limongi O Direito do Consumidor na Era da Globalização Sônia Maria Vieira de Mello As Novas Tendências do Direito Extradicional Artur de Brito Gueiros Souza Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé Teresa Negreiros O Ministério Público Brasileiro João Francisco Sauwen Filho A Criança e o Adolescente no Ordenamento Jurídico Brasileiro Maria de Fátima Carrada Firmo Propriedade e Domínio Ricardo Aronne O Princípio da Proporcionalidade e a Interpretação da Constituição Paulo Arminio Tavares Buechele Condomínio de Fato Danielle Machado Soares A Liberdade de Imprensa e o Direito à Imagem Sidney Cesar Silva Guerra Direito de Informação e Liberdade de Expressão Luís Gustavo Grandinetti C. de Carvalho A Saga do Zangão - Uma visão sobre o direito natural Viviane Nunes Araújo Lima Mercosul e Personalidade Jurídica Internacional Marcus Rector Toledo Silva Família sem Casamento Carmem Lúcia S. Ramos A Disciplina Jurídica dos Espaços Marítimos na Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar de 1982 e na Jurisprudência Internacional Jete Jane Fiorati O Direito Econômico na Perspectiva da Globalização César Augusto Silva da Silva a ... Os Limites da Reforma Constitucional Gustavo Just da Costa e Silva O Referendo Adrian Sgarbi Segurança Internacional e Direitos Humanos Simone Martins Os Fundamentos e os Limites do Poder Regul. no Âmbito do Mercado Financeiro Simone Lahorghe O Direito Cibernético Alexandre F. Pimentel Conflitos entre Tratados Internacionais e leis Internas Mariângela Ariosi Privatizações sob Ótica do Direito Privado Henrique E. C. Pedrosa A tutela de urgência no processo do trabalho: uma visão histórico-comparativa (Idéias para o caso brasileiro) Eduardo Henrique von Adamovich Jurisprudência Brasileira sobre Transporte Aéreo José Gabriel Assis de Almeida Superfície Compulsória - Instrumento de Efetivação da Função Social da Propriedade Marise Pessôa Cavalcanti As famrlias não-fundadas no casamento e a condição feminina Ana Carla Harmatiuk Matos Invalidade processual: um estudo para o processo do trabalho Aldacy Rachid Coutinho A vida humana embrionária e sua proteção jurídica Jussara Maria Leal de Meirelles O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana: O Enfoque da Doutrina Social da Igreja C1eber Francisco Alves Conversão Substancial do Negócio Jurídico João Alberto Schützer Del Nero O Direito da Concorrência no Direito Comunitário Europeu - Uma contribuição ao Mercosul Dyle Campello Mercosul, União Européia e Constituição Marcio Monteiro Reis Direito Tributário e Globalização: Ensaio Crítico sobre Preços de Transferência Jurandi Borges Pinheiro Transexualismo. O direito a uma nova identidade sexual Ana Paula Ariston Barion Peres Direitos Reais e Autonomia da Vontade (O Prindpio da Tipicidade dos Direitos Reais) André Pinto da Rocha Osorio Gondinho A Paternidade Presumida no Direito Brasileiro e Comparado Luis Paulo Cotrim Guimarães Os Novos Paradigmas da Família Contemporânea Cristina de Oliveira lamberiam O Mito da Verdade Real na Dogmática do Processo Penal Francisco das Neves Baptista O Direito ao Desenvolvimento na Perspectiva da Globalização: Paradoxos e Desafios Ana Paula Teixeira Delgado Cooperação Jurídica Penal no Mercosul Solange Mendes de Souza Em Busca da Família do Novo Milênio Rosana A. Girardi Fachin Juizados Especiais Criminais Beatriz Abraão de Oliveira O Princípio da Impessoalidade Livia Maria Armentano Koenigstein lago O Princípio da Subsidiariedade no Direito Público Contemporâneo Silvia Faber Torres Direito, Escassez e Escolha: em Busca de Critérios Jurídicos para Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas Gustavo Amaral Decadência e Prescrição no Direito Tributário do Brasil Francisco Alves dos Santos Jr. lesão Contratual no Direito Brasileiro Marcelo Guerra Martins Acesso à Justiça - Um problema ético-social no plano da realização do Direito Paulo Cesar Santos Bezerra Concurso Formal e Crime Continuado Patr(cia Mothé G/ioche Béze A Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato Jorge Cesa Ferreira da Silva Responsabilidade Patrimonial do Estado por Ato Jurisdicional lulmar Fachin Gestão Fraudulenta de Instituições de Instituição Financeira e Dispositivos Processuais da lei 7.492/86 Juliano Breda Contratos de Software "Shrinkwrap Licenses" e "Clickwrap Licenses" Emir Iscandor Amad Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática Cláudio Pereira de Souza Neto Desconsideração da Personalidade Jurídica - Aspectos processuais Osmar Vieira da SilvaO Dano Pessoal na Sociedade de Risco Maria Alice Costa Hofmeister Presunções e Ficções no Direito Tributário e no Direito Penal Tributário Iso Chaitz Scherkerkewitz Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade em Colisão com outros Direitos Mônica Neves Aguiar da Silva Castro • Da Lesão no Direito Brasileiro Atual Carlos Alberto Bittar Filho Repetição do Indébito Tributário - O Inconstitucional artigo 166 do CTN Luis Dias Fernandes Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito Noel Struchiner Direito Tributário versus Mercado Marcos Rogério Palmeira O Direito à Educação Regina Maria F. Muniz O Abuso do Direito e as Relações Contratuais Rosalice Fidalgo Pinheiro A Legitimação dos Princípios Constitucionais Fundamentais Ana Paula Costa Barbosa A Participação Popular na Administração Pública: o Direito de Reclamação Adriana da Costa Ricardo Schier Do Pátrio Poder à Autoridade Parental Marcos Alves da Silva Paradigma Biocêntrico: Do Patrimônio Privado ao Patrimônio Ambiental José Robson da Silva O Discurso Jurídico da Propriedade e suas Rupturas Eroulths Cortiano Junior Terceirização e Intermediação de Mão-de-obra Rodrigo de Lacerda Carelli As Agências Reguladoras no Direito Brasileiro Arianne Brito Rodrigues Cal As Novas Tendências na Regulamentação do Sistema de Telecomunicações pela Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL Lucas de Souza Lehfeld A Renúncia à Imunidade de Jurisdição pelo Estado Brasileiro Antenor Pereira Madruga Filho A Mulher no Espaço Privado: Da Incapacidade à Igualdade de Direitos Maria Alice Rodrigues A Propriedade como Relação Jurídica Complexa Francisco Eduardo Loureiro O Conceito de Anulação ou Prejuízo de Benefícios no Contexto da evolução do GATT à OMC Regina Maria de S. Pereira O Direito de Assistência Humanitária Alberto do Amaral Júnior Contrato de Trabalho Virtual Margareth F. Barcelar O Direito de Resistência na Ordem Jurídica Constitucional Brasileira Maurício Gentil Monteiro Transformações do Direito Administrativo Patrícia F. Baptista • A Privacidade da Pessoa Humana no Ambiente de Trabalho Bruno Lewicki Próximos lançamentos A Defesa do Consumidor na Estrutura Sócio-Econômica do Neo-Liberalismo María Alejandra Fortuny Estado, Sociedade Civil e Princípio da Subsidiariedade na Era da Globalização Vania Mara Nascimento Gonçalves A Relação entre o Interno e o Internacional Estevão Ferreira Couto Contribuições para o Financiamento da Seguridade Social: Critérios para Definição de sua Natureza Jurídica Si/vania Conceição Tognetti Juizados Especiais Federais Cíveis Alvaro Couri Antunes Souza O Direito Frente às Famílias Reconstituídas Rosane Felhauer De Marx a Deus - Os Tortuosos Caminhos do Terrorismo Internacional Denise de Souza Soares Comissões Parlamentares de Inquérito no Brasil Jessé Claudio Franco de Alencar Responsabilidade Civil dos Pais pelos Actos dos Filhos Menores Jeovanna Malena Vianna Pinheiro Alves Regime Jurídico dos Incentivos Fiscais Marcos André Vinhas Catão O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública - Para uma Administração Imparcial Ana Paula Oliveira Ávila Franchising: Reflexos Jurídicos nas Relações das Partes Roberto Cavalcanti Sampaio O Regime Jurídico do Financiamento das Campanhas Eleitorais Sergei Medeiros Araujo Espaços Públicos Compartilhados entre a Administração Pública e a Sociedade Renato Zugno Responsabilidade Objetiva do Estado do Rio de Janeiro por Omissão na Área de Segurança Pública Antonio Cesar Pimentel Caldeira Un Estudio Comparativo de la Protección Legislativa dei Consumidor en el Ambito Interno de los Paises dei Mercosur Mirta Mora/es As Normas Constitucionais Programáticas e o Controle do Estado José Carlos Vasconcellos dos Reis • À minha família Flávio, Fábio e Estela. Si ... • Agradecimentos Este estudo foi feito com o apoio da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde trabalho como pesquisadora, e contou com a colaboração e o incentivo de muitos amigos. Em primeiro lugar, o Professor Vicente Barretto, orientador da tese que deu ori- gem a este livro; em seguida, Antonio Carlos Maia, que me franqueou sua biblioteca e cujas sugestões demonstraram uma verdadeira prova de amizade; Celso Albuquerque Mello, que me despertou para leituras importantes; José Ribas Vieira e Ana Lúcia de Lyra Tavares, parceiros de trabalho. E, também, os amigos da Casa de Rui Barbosa, em especial José Almino de Alencar, então Diretor do Centro de Pesquisas . !2 T Prefácio à primeira edição Por uma nova leitura do direito A cultura jurídica contemporânea, principalmente nos paí- ses de tradição romanística, encontra-se prisioneira de alguns impasses epistemológicos e metodológicos. A concepção do di- reito como fruto da vontade do poder e, como tal, devendo ser aplicado de forma mecânica na solução dos conflitos, ignorando realidades econômicas e sociais, acha-se contestada em seus fundamentos pela própria mudança ocorrida na estruturação do poder político. O processo de democratização, que toma conta como se fosse uma onda política de todos os quadrantes do planeta, acarretou também uma mudança substantiva na natu- reza da ordem jurídica. A ordem jurídica passou, progressiva- mente, a ter que lidar com conflitos de interesses e de valores de uma sociedade pluralista e complexa, onde a norma de direi- to reflete a vontade democrática na sua formulação e envolve, portanto, na sua aplicação o emprego de critérios metajurídicos. Para responder a esse desafio, alguns juristas e filósofos contemporâneos, como Recaséns Siches, Alexy, Dworkin, Ha- bermas, Viehweg, Perelman, Tércio Sampaio Ferraz e outros, libertaram-se de uma metodologia de análise do fenômeno jurí- dico estritamente formalista e incorporaram no processo de aplicação do direito outros instrumentos conceituais e herme- L nêuticos, que se encontram para além da ordem legal positiva- da. Nesse contexto de superação dos óbices resultantes de uma dogmática estrita, é que o livro da professora Margarida Lacom- be Camargo traz para a literatura jurídica brasileira uma contri- buição original e atualíssima, destacando-se por enfrentar, com o auxílio de alguns dos autores já referidos, o desafio nuclear para a filosofia e a teoria do direito neste final de milênio: como realizar uma radical e profunda alteração no modo de pensar e aplicar o direito, instrumento principal para assegurar a justiça na sociedade democrática e pluralista da contemporaneidade. O livro da professora Margarida Lacombe Camargo investi- ga, assim, essa mudança de paradigma na teoria do direito, procurando estabelecer os parâmetros de uma nova hermenêu- tica jurídica, que corresponda no âmbito do direito ao movi- mento geral de refundação das ciências humanas e sociais das últimas décadas. Enquanto a dogmática clássica encontrou nos grandes civilistas e nas codificações do século XIX o campo propício para desenvolver um modo de aplicação do direito, que se caracterizaria por um modelo de interpretação fundado numa concepção abstrata do direito, e no fundo ideal do Estado e da sociedade, o pensamento jurídico contemporâneo defron- ta-se, precisamente em virtude da chamada "crise do direito", com o desafio de construir uma nova forma de pensar e aplicar o direito. A "aplicação da lei", vale dizer, a adequação do fato aos ditames da norma jurídica, consistia no objetivo central da dogmática clássica, que transitava no universo fechado do siste- ma jurídico não levando em conta o que Hans Kelsen chamou de fatores "a-científicos" na análise jurídica. O direito bastava- se a si próprio, como se fosse uma mônada dentro da qual deveriam ser enquadrados os fatos e as relações sociais. A professora Margarida Camargo chama a atenção para uma distinção sutil, ainda que pouco aceita no pensamento jurídico e social brasileiro, entre o procedimento da interpretação legal e a hermenêuticajurídica. Na verdade, trata-se de uma elabora- ção mais ampliada da distinção entre dogmática e zetética, onde Tércio Sampaio Ferraz assinala a clivagem metodológica, que nos permite distinguir entre a ordem jurídica liberal e a ordem jurídica do estado demc:crático de ~ireito. Enquanto a primeira bastava-se na formulaçao de um Sistema jurídico baseado 'd" d d f' nai e~a : que o ireito posto, por ser ruto da representação legislativa, e, por proclamar formalmente direitos e garantias individuais, seria suficiente para a solução dos conflitos, o se- gundo tipo de ordem jurídica integrava no seu âmbito de nor- matização indivíduos, grupos sociais, interesses e valores, que não encontravam guarida no quadro do estado liberal de direito. A necessidade, portanto, de uma nova metodologia, de um novo pensar jurídico, voltados para solucionar os conflitos complexos de uma sociedade pluralista, exigiu, também, a consideração na aplicação do direito de fatores até então considerados ajurídi- coso Por essa razão, a hermenêutica assumiu papel de destaque na reflexão jurídica contemporânea. O processo hermenêutico considera a norma como parte integrante do sistema jurídico, mas considera-a, também, como meio para a solução de confli- tos que não se caracterizam por suas dimensões estritamente legais, pois· comportam aspectos sociais e valorativos, determi- nantes para a própria eficácia do direito. O contraponto entre o fato e a lei na compreensão hermenêutica torna-se mais eviden- te quando o procedimento interpretativo incorpora entre os dois pólos referidos a questão dos valores. Até então a doutrina e a jurisprudência consideravam o sistema jurídico como infen- so à influência dos valores encontrados na sociedade. Mas resi- de, precisamente, no conjunto de valores que fundamenta a sociedade democrátiça de direito um espaço de interpretação que não foi incorporado pela doutrina clássica, caracterizada pela dogmática civilista. O livro da professora Margarida Camargo chama a atenção, assim, para a necessidade de uma hermenêutica que pense o direito de forma concreta, o que no quadro da pós-modernida- de significa assumir alguns pressupostos metodológicos que per- mitem pensar-se na elaboração de uma nova leitura para um novo direito. Isto porque o livro abandona o culto do teórico jurídico absoluto e formalmente ideal, encontrado no modelo do direito liberal, e enfatiza o histórico, o complexo, o plural das convicções, dos interesses e das práticas, que ocorrem nas sociedades democráticas contemporâneas. Constatamos, então, como essa nova realidade social, política e institucional da pós- modernidade fez nascer não somente um novo sistema jurídico, mas principalmente um sistema que exige para a sua própria eficácia um novo método de leitura das normas jurídicas, que expressam novos valores sociais e políticos. Em conseqüência, escreve a professora Margarida Camargo, o juiz como boca da lei, aquele que dirá, finalmente, "a verdade legal" (Seabra Fagundes), deixa de ficar dependente de um modelo rígido de interpretação. Não mais é chamado o juiz para aplicar mecanicamente conceitos abstratos, quando determina- ções gerais com pretensões de plenitude deveriam domar os fatos sociais. Na verdade, ocorre exatamente o inverso no pro- cedimento hermenêutico, preconizado pela professora Margari- da Camargo. Aqui se procura fazer com que o juiz não fique prisioneiro do exercício logístico, que conflita com a realidade das relações sociais. Buscam-se na filosofia procedimentos clás- sicos que irão revelar toda a sua riqueza ao serem aplicados na análise do fenômeno jurídico. Pretende-se, em última análise, a substituição de um mode- lo - o dogmático - por uma nova racionalidade. Mas, como observa judiciosamente a professora Mar&arida Camargo, não basta substituir um modelo por outro. E necessário que se estabeleçam condições sobre as quais o raciocínio jurídico possa incorporar as dimensões da pós-modernidade, que alguns pen- sadores contemporâneos não se aventuraram a considerar. Os fundamentos dessa nova racionalidade jurídica vão deitar suas raízes no emprego da tópica e da retórica, como instrumentos analíticos essenciais para o perfeito e completo entendimento do sistema jurídico da sociedade contemporânea. Somente em- pregando-se esses recursos metodológicos é que se poderá com- preender em toda a sua extensão e complexidade a ordem jurídica do estado democrático de direito. Essa ordem jurídica pressupõe para a sua plena eficácia esse tipo de entendimento, que possa ir além da norma positiva, situando-a no contexto de uma sociedade democrática e plural, para que o direito possa constituir-se em fator de garantia, segurança e estabilidade so- cial, e, ao mesmo tempo, ser um mecanismo da prática social integrador e disciplinador do progresso social. O direito pós- moderno aparece então, quando o lemos sob essa nova ótica não como instrumento de conservação social, mas sim com~ agente da mudança social. A Editora Renovar, fazendo justiça ao seu próprio nome, publicando a tese de doutorado da professora Margarida La- combe Camargo, contribui para a mudança de um enraizado modo de pensar jurídico no Brasil. O culto do formalismo jurí- dico, e do conseqüente mecanicismo, na aplicação das normas jurídicas impregna de forma deletéria a formação jurídica nos cursos de direito no Brasil. A publicação do trabalho da profes- sora Margarida Camargo permite, assim, que se preencha um vácuo nas letras jurídicas brasileiras, onde proliferam ainda às vésperas do Terceiro Milênio tipos de entendimento do direito e de sua aplicação que constituem sérios obstáculos para a construção de uma sociedade mais livre e mais justa, como pretende a Constituição de 1988 ao estabelecer um estado democrático de direito. Vicente de Paulo Barretto UERJ/UGF Prefácio à segunda e~ição Toda nova edição traz novidades. Caso contrário, tratar-se- ia de uma reimpressão. Isso é natural principalmente depois do afã de publicar uma tese logo após a sua conclusão, quando queremos fazer circular as idéias fruto de pesquisa recente. Aliás, esse é um dos méritos da coleção de teses da editora Renovar, da qual honrosamente participo, pois permite a divul- gação de pesquisas avançadas, normalmente desenvolvidas nos programas de pós-graduação. Portanto, fora a alegria da segunda edição, compete-me anunciar como e em que extensão as mo- dificações ora inseridas foram feitas. Em primeiro lugar, os inevitáveis toques e retoques de cada nova leitura, e que geraram simples alterações na redação do texto, de forma a torná-lo mais palatável. Em segundo, as notas e citações: muitas foram incorporadas ao texto principal, tor- nando-o mais discursivo e menos intercalado; outras, antes apresentadas em língua estrangeira, foram agora livremente tra- duzidas, para facilitar o acesso ao público, mantidas algumas de língua espanhola. E, por último, alterações substanciais, de es- trutura e conteúdo. A estrutura do trabalho foi ligeiramente alterada, procuran- do um maior equilíbrio entre as suas partes e melhor disposição lógica. Nesse sentido, os dois primeiros capítulos foram fundi- dos e o penúltimo, sobre Perelman, teve seus itens reordenados. Com relação ao conteúdo, a bibliografia aumentou e, conse- qüentemente, a análise amadureceu; o que pode ser notado do acréscimo de alguns parágrafos e referências em notas. Cabe destacar que muito disso é resultado dos seminários do curso de Teoria Geral do Direito ministrado no mestrado da Universida- de Gama Filho, quando o empenho e a participação efetiva dos alunos fomentaram o debate, avançando-se na obtenção de no- vas conclusões. Somado ao prefácio do Professor Vicente Barretto, que muito nos honra desde a primeira edição, contamos agora com o também valioso estudo do Professor Antonio Cavalcanti Maia, como posfácio, sobre a importância da dimensão argumentativaà compreensão da práxis jurídica contemporânea. Este livro prevê continuidade. O projeto de pesquisa que estamos desenvolvendo no Setor de Direito da Casa de Rui Barbosa trata de tema correlato, e dará ensejo a outra publica- ção, voltada para a questão da tópica e dos princípios de direito, no processo de interpretação e aplicação das leis realizado pelos tribunais. Portanto, o esforço teórico apresentado neste traba- lho de doutorado serve de balizamento às novas pesquisas, de cunho mais pragmático. E assim o problema da hermenêutica mantém-se presente, da mesma forma com que a perspectiva tópica-retórica continua a servir-nos de paradigma. Por fim, gostaria de lembrar algumas pessoas amigas, cuja importância foi grande nesse segundo momento. Antônio Maia, sempre. Nadia de Araujo, exímia interlocutora. E as inestimá- veis colaboradoras e companheiras do dia-a-dia, na Casa de Rui Barbosa: Cristina Alexandre, Thula Rafaela e Sabrina Naritomi. Agradeço também o prestimoso apoio de Maria Suely Cruz de Almeida, da Universidade Católica de Petrópolis. Petrópolis, janeiro de 2001. Prefácio à terceira edição Esta terceira edição do livro Hennenêutica e argumentação mantém firme a idéia original de oferecer "uma contribuição ao estudo do Direito". A ciência jurídica enfrenta uma crise de paradigma, vez que os padrões de cientificidade que marcaram a Modernidade e sustentaram o aparecimento do positivismo jurídico não oferecem mais respostas a indagações mais comple- xas que envolvem a ordem jurídica. Além de situações que não se encaixam com facilidade em um ou único dispositivo legal, e portanto impossíveis de serem resolvidas mediante processo lógico-dedutivo, demanda-se, antes de tudo, legitimidade da função jurisdicional. O exercício da cidadania requer controle das decisões judiciais, tendo em vista o poder de criação do juiz e o respeito à lei. Nesse sentido, exige-se a motivação das decisões judiciais, o que significa dizer que, além da mera refe- rência legal que lhe sirva de fundamento, o juiz deve expor as razões que o levaram a decidir em determinado sentido. Não se trata, propriamente, de um controle sobre suas ações de forma a responsabilizá-lo pela sentença que não agrade a quem quer que seja, mas de compreender a decisão, de forma a propiciar uma contra-argumentação que propicie o consenso, respeitadas as regras processuais. Portanto, há de se construir um novo paradigma capaz de abalizar devidamente o pensamento e a ação jurídica. A tópica e a retórica têm oferecido alternativas. Construções teóricas de base analítica também vêm sendo apresentadas para maior con- trole e objetivação do raciocínio valorativo. E, assim, a reporta- gem que apresentamos de alguns autores e teses mantém-se atual, da mesma forma que a idéia síntese do livro: o método hermenêutico, como base do conhecimento construído pela ação interpretativa do sujeito e pela técnica argumentativa, mostra-se também bastante profícuo a tais considerações. Por isso, foi feita uma releitura de todo o texto, de forma a depurar imperfeições, perseguir o rigor técnico e aprimorar alguns con- ceitos. Vale lembrar também que as referências feitas à obra de Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, correspondem à edi- ção espanhola indicada na bibliografia, ainda que utilizadas traduções livres para o português. Persiste a intenção de um outro livro que trate especifica- mente do respeito pelos direitos fundamentais do homem con- templados nas constituições dos estados, bem como do proble- ma das normas principiológicas que lhes dão guarida, cada vez mais presentes nos ordenamentos jurídicos contemporâneos. Um trabalho voltado para a estrutura normativa e para as condi- ções de sua aplicação. Mas em seqüência aos esforços até o momento empreendidos, alguns estudos isolados foram publi- cados, para os quais remetemos o leitor, como os textos intitu- lados "Eficácia constitucional: uma questão hermenêutica"! e "O movimento de superação do positivismo jurídico na aplica- ção dos direitos fundamentais"2. Por fim, não poderia escapar destas poucas palavras o regis- tro de duas pessoas que contribuíram diretamente para as modificações feitas, com suas idéias e generosidade acadêmica. I. Publicado em Hermenêutica plural. Carlos E. de Abreu Boucault e José Rodrigo Rodriguez (orgs.). São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 369 a 390. 2. Publicado em Estudos em homenagem a Carlos Alberto Menezes Direito. Antonio Celso Alves Pereira e Celso Renato Duvivier de Albuquerque Mello (orgs). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 505 a 526. - .. São elas a doutora Hilda Bentes e Fernando Gama mestre, pela U G F e professor de direito processual civil. Agradeço também, mais uma vez, à Editora Renovar, pelo incentivo e crédito depositado. .. , Indice INTRODUÇÃO . CAPÍTULO 1 - DIREITO, HERMENÊUTICA E INTERPRE· TAÇÃO 13 1.1. O DIREITO NO ÂMBITO DA COMPREENSÃO 15 1.2. DIREITO E INTERPRETAÇÃO 19 1.3. HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO 23 1.4. DOGMÁTICA E INTERPRETAÇÃO: O CÍRCULO HERMENÊUTICO 49 CAPÍTULO 2 - O PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MO· DERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 61 2.1. A ESCOLA DA EXEGESE 65 2.2. A CRÍTICA DE FRANÇOIS GÉNY 68 2.3. A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO 73 2.4. O FORMALISMO JURÍDICO NA ALEMANHA 83 2.5. O POSITIVISMO JURÍDICO 86 2.6. A CRÍTICA DE JHERING AO FORMALISMO JURÍDICO ALEMÃO 90 2.7. A JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES 92 2.8. O MOVIMENTO PARA O DIREITO LIVRE 97 2.9. O RETORNO AO FORMALISMO COM HANS KELSEN 100 2.10. A JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES ll7 2.11. "VONTADE DA LEI" E "VONTADE DO LEGISLADOR" , 127 p I 1 CAPÍTULO 3 - VIRADA PARA O pÓS·POSITIVISMO: A DISCUSSÃO METODOLÓGICA ATUAL. . . . . . . . . . . . . .. 135 3.1. A CONTRIBUIÇÃO DE THEODOR VIEHWEG: O USO DA TÓPICA NO DIREITO ',' 139 3.2. A CONTRIBUIÇÃO DE RECASÉNS SICHES: A LOGICA DO RAZOÁVEL. 161 3.3. A CONTRIBUIÇÃO DE CASTANHEIRA NEVES: O DIREITO COMO PRÁTICA E A ANALOGIA COMO ME'TODO I75....................... CAPÍTULO 4 - A NOVA RETÓRICA DE 185 CHAIM PERELMAN . 4.1. A JUSTIÇA NO PENSAMENTO PERELMANIANO 192 4.2. A NOVA RETÓRICA 199 4.3. O AUDITÓRIO UNIVERSAL 211 4.4. DELIBERAÇÃO E JUSTIFICATIVA ',' 223 4.5. A LÓGICA JURÍDICA OU A LÓGICA DO RAZOAVEL. 228 4.6. TÓPICA E ARGUMENTAÇÃO , 235 CAPÍTULO 5 - PERSPEC)'IVAS DA RACIONALIDADE JURÍDICA CONTEMPORANEA , 249 BIBLIOGRAFIA , 261 POSFÁCIO DE ANTONIO CAVALCANTI MAIA 271 Introdução A versão original deste trabalho foi apresentada à Uni- versidade Gama Filho, em junho de 1998, como tese de doutorado. O título "Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito" remete-nos ao trata- mento dado à questão da hermenêutica jurídica, vista sob o ângulo das ciências sociais, antes denominadas "ciências do espírito",! intermediada pela interpretação, cuja base técnica, para nós, é a argumentação. A idéia de direito que assumimos corresponde especificamente ao que está na lei, na doutrina e na jurisprudência, e que compõe a cha- mada dogmática jurídica, sem desprezar os costumes.2 Re- 1. Essa denominação é trazida primeiramente por Wilhelm Dilthey, para designar as características próprias das ciências culturais a serem consideradas pela hermenêutica. São ciências que repousam sobre a experiência vivida, que deve antes ser compreendida do que mera- mente explicada. A história, a arte e o direito, por exemplo, são mani- festações que expressam o espírito dos seus autores. "We understand them by grasping this spirit. Such understanding involves our lived experience of our culture." Cf. The Oxford Companion to Philosophy, p.201. 2. Caberia lembrar aqui a idéia de "direito pressuposto" desenvolvi- conhecemos o direito como área humana e social, mas também consideramos os limites que nos são impostos pela dogmática, pois todo exercício de "compreensão", que a hermenêutica jurídica requer, encontrar-se-á referi-do a um campo conceitual próprio ditado pela razão, e que delimita a dogmática. Duas questões se apresentam como molas propulsoras deste estudo e que, de certa forma, podem constar como premissas. A primeira consiste na insuficiência da herme- nêutica jurídica tradicional, ainda em voga nos nossos cur- sos de direito; a outra, a desconfiança que pesa sobre o direito, em geral visto como produto do arbítrio dos juízes. Não se trata de estabelecer um estatuto de cientificidade para o direito, muito porque a discussão não enfrenta dire- tamente a complexa questão da interdisciplinaridade, mas ao menos trazê-lo para um campo de aceitação, legitimida- de e controle. O objeto de estudo da hermenêutica jurídica tradicio- nal consiste nas chamadas "técnicas de interpretação das leis". Com objeto certo, a hermenêutica jurídica costuma ser apresentada como ciência, mais especificamente como a parte da ciência do direito que tem por objeto as técnicas de interpretação. É esta, por exemplo, a inteligência de Carlos Maximiliano, autor brasileiro, cuja obra intitulada Hermenêutica e aplicação do direito, escrita em 1924, con- tinua a ser reeditada como uma das mais significativas so- bre o tema. Ensina o autor: da por Eros Roberto Grau em O direito posto e o direito pressuposto, p. 44: "O legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direi- to positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própria base [... ] O direito pressuposto condiciona a produção do direito pos- to (positivo). Mas o direito posto transforma sua (dele) própria base." 2 • . A H~rm~nêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a slstematlzaçao dos processos aplicáveis para determl' 'd I d . nar o sent! o e ~ a. cance as expressões do direito. [... ] Para [aphcar o direito] se faz mister um trabalho preliminar: des- cobri.r e fixar o s:ntido verdadeiro da regra positiva; e, logo depOIS, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo o executor extrai da norma tudo o que na mesma se conté~: é o que se chama interpretar...3 Esse viés cientificista pretendeu durante muito tempo estabelecer critérios de interpretação que conferissem ob- jetividade à interpretação das leis e, por conseguinte, à ta- refa jurisdicional. Na realidade, o que ocorre é que a utili- zação dessas técnicas não alcança o seu objetivo. Primeiro porque não existe entre elas nenhuma hierarquia e assim, , o seu comando torna-se fluido. Segundo, porque tal orien- tação ignora a dimensão criadora do intérprete, que volta sua atenção antes para a resolução de determinado proble- ma do que para a lei em si, analisada como hipótese virtual, e com conteúdo próprio, previamente determinado. Os livros didáticos sobre Introdução ao Estudo do Di- reit04 invariavelmente apontam para as técnicas gramati- 3. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1. Grifo nosso. 4. A título de exemplo, dentre os autores que seguem essa orienta- ção, destacamos Paulo Dourado de Gusmão, Paulo Nader, Ronaldo Poleti, Maria Helena Diniz, Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Jr., além dos clássicos da hermenêutica no Brasil, que são: Limongi Fran- ça, Carlos Maximiliano e Alípio Silveira. Este último traduz bem essa tendência ao dedicar toda uma obra sobre o conteúdo prático da her- menêutica jurídica, através da utilização de suas técnicas. Nela, en- contramos as seguintes perguntas: Quais os métodos conhecidos? Quais as Suas aplicações? Como têm sido aplicados? Qual a experiên- cia de sua aplicação? São questões que o prefaciador de Hermenêutica no direito brasileiro, Themístocles Brandão Cavalcanti, aponta como orientadoras da obra de Silveira. Para Themístocles Cavalcanti, "o 3 cal, lógico-sistemática, histórico-evolutiva, axiológica ou teleológica, com variações de nomenclatura, para indicar os procedimentos apropriados à atividade jurisdicional, que compromete tanto o juiz quanto os advogados e de- mais órgãos públicos chamados a se manifestar na lide. Ora, estas técnicas, que remontam a Savigny, com exceção da teleológica, nem por ele eram vistas como forma de se chegar a uma conclusão objetiva e previsível sobre o signi- ficado da lei. Savigny limitou-se apenas a indicar os ele- mentos constitutivos da norma, passíveis de serem consi- derados numa interpretação. São, na realidade, elementos que informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-se ao comando do problema, ou seja, à dimensão prática e concreta do caso. A idéia de método afigura-se como preocupação da ciência moderna em proporcionar resultados logicamente determinados de acordo com cada área de investigação. Mas, com relação ao direito, o intento científico enfrentou objeções, dada a sua carga valorativa, centralizada princi- palmente na questão da justiça, que nunca alcançou o sta- tus de cientificidade. De outro lado, a necessidade de or- dem e segurança faz com que, mais do que a justiça, pro- priamente, ganhe ênfase a certeza das soluções jurídicas.s problema da hermenêutica é o da exata significação dos textos legais; interpretar é traduzir a lei em termos que possam permitir a sua apli- cação com exatidão, exprimindo o sentido da norma em função, não só dos objetivos do seu autor, mas também em função das condições sociais, econômicas, políticas e do tempo em que ela é aplicada." Cf. Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, p. XV. 5. Um dos arautos da hermenêutica jurídica tradicional é o professor italiano Francesco Ferrara, que escreve, em 1921, no seu Tratatto de Diritto Civile Italiano sobre "Interpretação e Aplicação das Leis" - capítulos I1I, IV e V. São dele as seguintes palavras: "O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o instrumento 4 • Com relação à interpretação, em linhas gerais, o que prevalece atualmente, segundo a doutrina tradicional, é a "vontade objetiva da lei". A vontade subjetiva, de quem lhe deu origem, ainda que um corpo colegiado, cede lugar à vontade objetiva, que deve ser traduzida no momento de sua aplicação, quando ela é chamada a produzir efeitos. Com a evolução do pensamento jusfilosófico, a idéia de prestigiar a razão contida na lei ganha cada vez mais força, ainda que se houvesse tentado, num primeiro momento, transferir a vontade do legislador, vista como a única legí- vivo que transforma a regulamentação típica imposta pelo legislador na regulamentação individual das relações dos particulares; que traduz o comando abstrato da lei no comando concreto entre as partes, for- mulado na sentença. O juiz é a viva vox iuris. O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei ordena, é o executor e não o criador da lei. A sua função específica consiste na aplicação do direito. [...] Decerto o juiz nem sempre pode dar satisfação às necessidades práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se encontrará em momentos trágicos de ter de sentenciar em oposição ao seu sentimen- to pessoal de justiça e de eqüidade, e de aplicar leis más. Tal é, porém, o seu dever de ofício. Na reforma das leis, na produção do direito novo pensam outros órgãos do Estado: ele não tem competência para isso. Só com esta condição se pode alcançar aquela objetiva segurança jurídica que é o bem mais alto da vida moderna, bem que deve prefe- rir-se a uma hipotética proteção de exigências sociais que mudam ao sabor do ponto de vista, ou do caráter, ou das paixões do indivíduo. Esta é a força da justiça, a qual não é lícito perder, se não deve vacilar o fundamento do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qual nós devemos pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de o povo nutrir confiança em que o direito permaneça direito." Francesco Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 111 e 174. Em sentido semelhante escreve Paulo Dourado de GuSmã9: "defi- nimos direito como a realização da segurança com o mínimo sacrifício da Justiça". Cf. Introdução ao estudo do direito, 21 aed., 1997, p. 215. 5 p tima, para uma outra época. Não obstante a propriedade deste novo modo de pensar, o que se verifica, ainda, é a distância ou o desligamento entre a vontade da lei e o caso concreto no trabalho do intérprete.6 Pelo menos é o que afirma a doutrina. Paulo Dourado de Gusmão, por exem- plo, um dos mais festejados juristas brasileiros de nossa época, inicia o capítulo do seu livro dedicado à hermenêu- tica jurídica, com a seguinte frase: "A interpretação visa a descobrir o sentido objetivo do texto jurídico" / inde- pendentemente, portanto, do caso sub judice. Pretende-se que o intérprete desvele os valores prote- gidos no texto que traduz o comando legal, exploradas to- das as suas possibilidades gramaticais, bem como o que constaria das suas entrelinhas, de forma a conhecê-los an- tes mesmo de aplicar a lei ao caso concreto. A hermenêu- tica atua, assim, muito mais no campo virtual do código e da doutrina, do que no campo do real. Segue-se daí o me- canismo da subsunção, em que o fato subsume-se à lei, extraindo-se a sentença por meio de uma operação lógica, da seguinte maneira: quem matar estará sujeito à pena de detenção de 6 a 20 anos; fulano matou: logo, fulano será condenado a x anos de detenção. Ocorre que o direito lida diretamente com o elemento humano, que não é homogê- neo, e sob circunstâncias históricas e culturais diferencia- das. Ainda que se trate muitas vezes de uma questão apa- rentemente simples, como a que acabamos de apontar, em que o direito à vida é incontestável e que a matéria de fato 6. No âmbito do direito constitucional, Friedrich Müller, Konrad Hesse e Gomes Canotilho apontam para uma hermenêutica concreti- zadora, que requer do intérprete maior compromisso com a realidade social (vide bibliografia). 7. Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao estudo do direito, 17" ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 233. 6 • comprove a ocorrência do crime, os fatores pessoais cir- cunstanciais e históricos têm de ser sopesados pelo ju'iz de forma a atribuir para o réu uma pena "justa".8 Daqui depreendemos que a atividade jurisdicional não é automática e, portanto, nunca poderá ser substituída pela máquina. O juiz, como elemento humano dotado de razão e sensibilidade, é capaz de ponderar e decidir, sem que com isso lhe atribuamos arbitrariedade. A discriciona- riedade atribuída ao juiz pode, muitas vezes, produzir dú- vidas, mas para isso é exigida não apenas a fundamentação de suas decisões, como também prevalece a regra do duplo grau de jurisdição; ambas capazes de oferecer alguma espé- cie de controle. Dessa forma, discursos inconsistentes e eventuais acidentes provocados por juízes de boa-fé po- dem ser revistos pelos tribunais superiores. Afinal, fazem parte do direito a ponderação e a dialética na interpretação das leis, constando, portanto, como insuficiente para uma decisão pretensamente correta a simples aplicação de téc- nicas determinadas. Não existe técnica jurídica capaz de garantir, por si só, que o juiz julgará bem.9 8. Vale lembrar, ainda que superficialmente, a idéia da "justiça cor- retiva" apresentada por Aristóteles, no livro V, da Ética a Nicômacos, baseada na proporção aritmética possível de estabelecer um "meio- termo" entre perda e ganho. 9. Bem, aqui, no sentido de uma solução razoável; se não justa, próxi- ma do que poderia ser acreditado como justo. Aristóteles vincula a idéia de bem à idéia de excelência. Segundo ele, "o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma em conformidade com a excelência" (Ética a Nicômacos, 1098 a, p. 24.) Neste caso, julgar bem significa jul~ar acertadamente, "pois bem e acertadamente são a mesma coisa" (Etica a Nicômacos, 1143 b, p. 121). A excelência torna, então, a coisa acertada. Citando ainda Aristóteles, temos que: "Chamamos de julgamento (isto é, a faculdade graças à qual dizemos que uma pessoa julga compreensiva- mente) a percepção acertada do que é eqüitativo. Uma prova disto é 7 Pretendemos, então, demonstrar no nosso trabalho que a compreensão requerida pelo direito poderá ser reali- zada e apresentada concretamente, mediante o recurso técnico da argumentação, enquanto a argumentação, como instância dialógica, permite o exercício da liberdade, do confronto e do amadurecimento de idéias, em direção a uma solução jurídica nem certa nem errada, mas razoá- vel. lo Em lugar de procurarmos técnicas capazes de garan- tir a certeza e a objetividade científica para o direito, como forma de evitar a arbitrariedade produtora de todos os ma- les, propomos uma outra via de análise, de natureza meto- dológica, que pretende indagar antes sobre a racionalidade que preside o direito, e ver até onde é possível prever solu- ções com alto grau de certeza. Muito embora nossas conclusões pretendam contribuir para que o direito seja visto como um campo específico do conhecimento, no sentido de possuir uma tipicidade me- todológica, temos plena consciência de que este debate ainda está longe de se esgotar. A interdisciplinaridade pró- pria do direito dificulta qualquer tentativa de se tentar in- cluí-lo nos núcleos de apoditicidade que caracterizam a ciência moderna. Por outro lado, queremos fugir do niilis- mo de que tudo o que é racional, e pode ser demonstrado empiricamente, é crível; e o que não pode fica simples- mente relegado ao campo da irracionalidade ou do arbí- o fato de dizermos que uma pessoa eqüitativa é, mais que todas as outras, um juiz compreensivo acerca de certos fatos. E julgamento compreensivo é o julgamento no qual está presente a percepção do que é eqüitativo, e de maneira acertada; e julgar acertadamente é julgar segundo a verdade."(Ética a Nicômacos, 1143 a, p. 123.) 10. O termo "razoável", aqui utilizado, não deve sugerir uma decisão simplesmente aceitável, mas sim justa e legítima, conforme as teorias apresentadas ao longo do trabalho. 8 to trio. Percebemos que é essa a tendência que ainda prevale- ce nos nossos cursos jurídicos, e não é por menos que a sociologia do direito, com suas precisas técnicas de inves- tigação, tenha ocupado durante algum tempo praticamen- te todo o campo da pesquisa jurídica no Brasil. Entretanto, atualmente pode ser notado o revigora- mento da pesquisa jurídica de matriz jurisprudencial, cuja ênfase recai sobre os efeitos concretos da aplicação do di- reito, tendo em vista principalmente sua repercussão pes- soal. Este é o modelo, denominado de jurisprudencialis- mo, apontado por A. Castanheira Neves, como sucessor do normativismo legalista e do funcionalismo jurídico ante- riores, e que busca enfrentar a crise de sentido pela qual atravessa o direito. ll Tendo em vista, portanto, a necessidade de aprofun- dar-nos sobre o sentido do direito, que transparece apenas em seus efeitos concretos, isto é, nas decisões judiciais, é que procuramos, neste primeiro momento, rever os pa- drões da hermenêutica tradicional, de forma a recuperar temática de extrema importância para o enfrentamento da crise do modelo positivista. 11. A. Castanheira Neves, no trabalho intitulado "Entre o 'legislador', a 'sociedade' e o 'juiz' ou entre 'sistema', 'função' e 'problema' - os modelos atualmente alternativos da realização jurisdicional do Direi- to", publicado na separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, voi. LXXIV, 1998, fala do jurisprudencia- lismo de natureza antropológica e axiológica. Em suas palavras, "o que dá sentido ao jurisprudencialismo é uma outra perspectiva bem dife- rente. Designamo-la por perspectiva do homem (do homem-pessoa), i. é, aquela perspectiva em que o direito, com uma sua normatividade axiologicamente fundada, é assumida por, e está diretamente ao servi- ço de uma prática pessoalmente titulada e historicamente concre- ta ...... Cf. p. 18. 9 Nossa idéia é aproximar mais a teoria da argumentação da hermenêuticajurídica, ou vice-versa, pois que, em ge- ral, elas são tratadas separadamente. Por isso, situamo-nos no que agora tem sido chamado de "tradição tópico-retóri- ca", relativa às ciências que se ocupam do discurso e da dialética, mais especificamente, das chamadas "ciências do espírito". Assim, definimos o seguinte marco teórico: a hermenêutica relacionada à compreensão; a decisão jurídi- ca à atividade criadora ou de concretização; o direito cir- cunscrito fundamentalmente ao campo dogmático; a teo- ria da argumentação como técnica jurídica, para, finalmen- te, tratarmos da interpretação como processo de interme- diação entre a compreensão e a concretização da norma, tendo em vista a fundamentação legitimadora das decisões judiciais. No primeiro capítulo do livro, procuramos estabelecer algumas noções sobre o que entendemos como hermenêu- tica. Para nós, a hermenêutica não se resume no estudo das técnicas de interpretação, mas nos remete à compreensão do próprio ser no mundo, que se encontra envolvido com questões que é chamado a resolver, dentre elas a jurídica. O direito, por sua vez, não é algo que se apresente indistin- tamente do sujeito, mas algo que o sujeito histórico vive, de forma a comprometer, inclusive, as suas ações. Por ou- tro lado, a inter-relação entre compreensão e interpreta- ção, que, muitas vezes, faz com que sejam identificadas entre si, leva-nos a crer que podem ser pensadas separada- mente. No direito, a pré-compreensão é muito acentuada, uma vez que os aspectos históricos e culturais que a infor- mam encontram-se relacionados a um campo conceitual próprio, a dogmática, que orienta a ação jurisdicional. Por outro lado, a compreensão do fenômeno jurídico é facil- mente caracterizada no contraditório judicial produzido pela interpretação apresentada pelas partes. O embate 10 dialético entre teses opostas, que verificamos em juízo, é suficiente para que fique caracterizado o esforço argumen- tativo de se firmar um entendimento para cada questão, ainda que não seja o único possível e, com isso, concretizar uma determinada hipótese legal, pondo fim ao conflito. No segundo capítulo, apresentamos algumas escolas ou modelos jurídicos de tradição romano-germânica, que se desenvolveram ao longo da história e que serviram de ori- gem ao direito brasileiro, cuja fonte principal é a lei escri- ta. Dessa forma, excluem-se das nossas considerações o exemplo da common law e as correntes realistas que lhe são afeitas. O estudo do direito a partir de suas fontes: lei, costume, fato social, etc., que serviram de orientação às diversas escolas e movimentos teóricos que caracterizaram o direito do século XIX, orientam também a sua metodo- logia. Logo, pensar o direito, ou o que devemos entender como direito, é pensar qual o seu campo de incidência; enfim, como deve ser interpretado. Para a Escola da Exe- gese, por exemplo, o direito deveria ser interpretado res- tritivamente, inclusive por problemas de ordem política- é quando o Estado liberal se instaura e o racionalismo está em voga. Já a Escola Histórica é marcada pela crítica inci- siva contra o apriorismo do século XVIII, gerador de con- cepções abstratas e distantes da realidade histórica e so- cial. l2 A partir daí fica patente que a concepção hermenêu- tica da ordem jurídica é também filosófica, como mostra sua ligação com o racionalismo, o romantismo, o positivis- mo e o realismo. Convém, portanto, abordar algumas das principais' escolas jusfilosóficas que marcaram o pensa- mento continental europeu, que foi o nosso berço, de for- 12. Nesse sentido vale a leitura do verbete sobre a Escola Histórica do Direito, escrito por Alexandre Correia e publicado na Enciclopédia Saraiva do Direito, vaI. 33, p. 28 e segs. II ma a analisarmos os avanços e recuos que acompanharam a hermenêutica jurídica tradicional. Em seguida, enfatizamos o estudo da tópica, que muito contribuiu para a mudança do enfoque metodológico de base positivista. Para tanto, trouxemos ao nosso campo de considerações o trabalho de Theodor Viehweg, que serve como paradigma nessa discussão, e de outros dois juristas, Recaséns Siches e Castanheira Neves, que compartilham conosco da visão concretizadora do direito e cujas origens latino-européias facilitaram a sua entrada em nosso país, influenciando uma geração de novos juristas. No último capítulo, concentramo-nos na idéia da "lógi- ca do razoável", de Chaim Perelman, que melhor responde à questão da legitimidade na interpretação do direito, uma vez que a argumentação, na busca do acordo e do consen- so, é capaz de conferir à lei o significado mais adequado para cada situação. Tomamos, pois, como parâmetro, a Nova Retórica, que consiste numa das maiores contribui- ções jusfilosóficas de nosso século e é responsável pela enorme reviravolta que a filosofia do direito vem sofrendo. Finalmente, gostaríamos de deixar claro que, nada obs- tante recorrermos à tópica como modelo de compreensão do fenômeno jurídico, não abandonamos a visão sistêmica e dogmática inerente ao próprio direito. Daí tomarmos como referência o trabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr. - autor que talvez mais tenha trabalhado com a tópica jurídica no Brasil e que consegue aproximar o direito da tópica, sob uma perspectiva dogmática. 12 Capítulo I DIREITO, HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO o tema da hermenêutica e da interpretação jurídicas remetem-nos ao processo de aplicação da lei realizado pelo Poder Judiciário. Sob essa ótica, só faz sentido interpretar- mos a lei tendo em vista um problema que requeira solu- ção legal. Mas a aplicação da lei deverá atender, antes de tudo, o indivíduo e a sociedade a quem ela serve. Por isso, pensamos a lei em função de situações específicas, ou de casos concretos que envolvem pessoas. A norma jurídica encontra-se sempre referenciada a valores na medida em que defende comportamentos ou serve de meio para atingirmos fins mais elevados. Assim, o problema jurídico, que envolve situação de natureza valo- rativa, deve ser compreendido. Compreender é buscar o significado de alguma coisa em função das razões que a orientam. Buscar os valores subjacentes à lei, e que fogem da mera relação causa-efeito. Para aplicá-los, não basta de- tectarmos o fato e encaixá-lo a uma lei geral e abstrata 13 " li dando-lhe concretude, como se a subsunção da premissa menor à premissa maior conferisse uma solução necessá- ria, mediante operação puramente formal. Não. O direito é comprometido com valores, e a norma que buscamos no texto através da interpretação encontra-se relacionada a uma situação histórica da qual fazem parte o sujeito (intér- prete) e o objeto a ser interpretado (fato e norma). Assim, podemos afirmar que o processo de interpretação e de aplicação das leis corresponde a uma situação hermenêuti- ca, da qual nos fala Gadamer. 13 Hermes, na mitologia grega, era um deus de muita agi- lidade e sapiência. Ao nascer, desfez-se sozinho da banda- gem que o envolvia e ganhou as estradas. Conforme Junito Brandãol4 nos relata, Hermes logo furtou um rebanho de Apolo, prendendo no rabo das ovelhas um ramo que, arras- tado ao chão, apagava seus rastros. Ao ser indagado por Zeus, seu pai, sobre o ocorrido, depois de alguma relutân- cia concordou em dizer a verdade, mas não toda a verdade ou não a verdade por inteiro. E dessa forma, Hermes tor- nou-se o mensageiro predileto dos deuses: aquele que de- tém o conhecimento e que é capaz de decifrar corretamen- te as mensagens divinas. Conhecedor e intérprete das von- tades ocultas, Hermes ganhou fama de sábio, tornando- se importante, mais tarde, para o desenvolvimento da ciência. Daí se segue que a visão hermenêutica atual é aquela que privilegia a busca do conhecimento de algo que não se apresenta de forma clara. A complexidade das ciências so- 13. Cf. Hans-Georg Gadamer. Verdad y metodo. Sígueme: Salaman- ca,1993; e O problema da consciência histórica. Fundação Getulio Vargas: Rio de Janeiro, 1998. 14. Cf. Junito de Souza Brandão. Mitologia grega, vol. li, p. 191. 14 ciais, sempre referidas a valores, faz com que a verdade se apresente de forma oculta ou que seja, ao menos, discutí- v~l. Cabe falarmos em hermenêutica nesta área do conhe- c~me?~o que nã? s.e su~mete à certeza da investigação CientiflCa. E o direito nao foge à regra. A herme A t' . 'd' f neu ica JUfl_ lCa re. ere:se, assim, a todo um processo de interpre- taçao e aplIcaçao da lei que implica a compreensão total do fenômeno que requer solução. 1.1 O direito no âmbito da compreensão O conhecimento que requer compreensão difere de qualquer outro cuja repe~ição dos fenômenos seja possível e, portanto, previsível. E o caso das ciências empíricas como a física, a química e a biologia, que possuem regra~ capazAes ~e permitir-nos controlar, com algum rigor, a ocorrenC1~ de seus fenômenos. As ciências do espírito, por ~ua ~ez, dizem respeito às relações humanas que, por si só, implicam uma relação histórica e de liberdade. 15 São rela- ções que se estabelecem no campo da ética; fogem da re- 15. Gadamer define as ciências do espírito em função do comporta- ment~ ~tico .?O ?omem, t?~ando por base Aristóteles, da seguintef~:m~. As ClenClas do espmto fazem mais parte do saber moral. São ClenClas morais. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo. Agora be~, este saber-se a si mesmo como ser que atua, e o saber que tem de SI me.smo não pretende comprovar o que é. O que atua trata antes com ~o~sas que nem sempre são como são, senão que podem ser tamb~m dlstmtas. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua atuaçao; s:u sab:r deve dirigir seu fazer." Verdade e método, p. 386. !~ ~ dlmensao humana, própria das ciências do espírito, e que o pOSltlVlsmo afasta, é explicitada por Paul Ricoeur desta forma: "O ho~en: não é radicalmente um estranho para o homem, porque forne- ce smalS de sua própria existência. Compreender esses sinais é com- preender o homem." Interpretação e ideologias, p. 25. 15 petição e da imutabilidade, enquanto admitem, em lugar destas, a variedade e a probabilidade. 16 Logo, as ciências do espírito, por corresponderem a aspectos inerentes à exis- tência humana, foram muitas vezes relegadas ao estudo da moral e da religiãO, porque incapazes de produzir uma ver- dade cientificamente comprovada. Com a virada da filoso- fia, em meados do século passado,I7 para a ontologia e para o existencialismo, em que ganham proeminência o ser no 16. A respeito da atividade inovadora do espírito, capaz de instaurar formas novas de ser e de viver, ao contrário da natureza, que se repete, ensina o mestre Miguel Reale: "Se a natureza, como natureza, obedece a leis de uma previsão pelo menos estatística, e se os fatos naturais marcam um nexo de causa e efeito ou de funcionalidade, segundo o princípio de que nada acontece que não seja através de uma transfor- mação do já existente, que nada cria de novo, porque tudo, de certa maneira, se repete, já o espírito representa a inserção de algo de con- tingente na natureza, e ao mesmo tempo de vinculante do particular em uma compreensão de totalidade. [...] Ora, graças à verificação de tais fatos, podemos afirmar que o espírito humano se projeta sobre a natureza, dando-lhe uma dimensão nova. Esta dimensão nova são va- lores, como a fonte de que promanam. O valor, portanto, não é proje- ção da consciência individual, empírica e isolada, mas do espírito mes- mo, em sua universalidade, enquanto se realiza e se projeta para fora, como consciência histórica, na qual se traduz a interação das consciên- cias individuais, em um todo de superações sucessivas. [...] O elemen- to de força, de domínio ou de preponderância dos elementos axiológi- cos ou dos valores resultaria, portanto, dessa tomada de consciência do espírito perante si mesmo, através de suas obras: os valores, em última análise, obrigam, porque representam o homem mesmo, como autoconsciência espiritual; e constituem-se na história e pela história porque esta é, no fundo, o reencontro do espírito consigo mesmo, do espírito que se realiza na experiência das gerações, nas vicissitudes do que chamamos 'ciclos naturais', ou civilizações." Introdução à filoso- fia, p. 154 e 155. 17. José Lamego aponta para uma "virada hermenêutica" no final da década de 1960, precedida de um amplo debate sobre a "tópica". Cf. Hermenêutica e jurisprudêneia, p. 96. 16 seu acontecer, a ciência também aproveita p~ f ara rever seusparametros ormalistas, orientando-se para uma no d' - d va Ire-çao, marca a, ago~a, pelo pluralismo, pela intersubjetivi_ dade e pela expenência histórica. Por outro lado as . . . , malS recentes InVestIgações sobre a razão moral têm apontado ~ara uma base argumentativa que sugere o resgate da retó- nca e da tópica antigas. .. A,esfera da vida referente ao agir encontra-se antes su- ~eI~a a compre~nsã~ do sentido que ensejou a ação, do que a sImples explIcaçao de relações que lhe tenham servido de ca~sa. ~ idéia é a de que as ações humanas, orientadas para fInalIdades, encontram-se inseridas em um porq ~h' ,. d ue :stonco, a mesma forma que o intérprete é um ser tam-b~~ historicamente orientado e que faz parte de uma tra- dlçao. A norma jurídica constitui-se, assim, em um fazerh~man.?, ~arregado de sentido. E o direito, propriamente dIto, nao e no.r~a geral, porém, norma individual, pois so- mente as declso~s dos juízes é que efetivamente obrigam. ~on: a sentença e que sabemos, efetivamente, qual o nosso dIreIto ou a nossa obrigação. Antes disso, a norma atua ~penas como parâmetro e orientação para a conduta, sem I~p~tar qualquer dever, como diria Kelsen. Para nós, o direIto apresenta-se jungido à própria hermenêutica uma vez que a ~ua ~xistência, enquanto significação, de~ende da con~retlzaç~oou da aplicação da lei em cada caso julga- do. AssIm, apoIamo-nos na filosofia de Hans-Georg Gada- mer,I8 que se baseia na relação fática entre compreensão e 18. Apesar _de ~adamer não estabelecer uma nítida distinção entre compreensao ~ I~terpretação, conforme pretendemos, porque os en- tende c~m? sImilares, a sua concepção ôntica e historicista sobre a hermeneutIca serve aos nossos propósitos. José La~e~o também trabalha a filosofia de Gadamer em termos de. hermeneutIca como filosofia prática, aproximando as noções de verdade e de compreensão como contraponto da visão historicista he- 17 interpretação, no âmbito da experiência, conforme estabe- lecido anteriormente por Heidegger,19 e Dilthey,20 que já havia referenciado a hermenêutica à dinâmica da vida. 21 geliana, que propõe para o direito o método científico-espiritual. A respeito escreve: "Já não assim as impostações que acompanham a viragem ontológica da hermenêutica: segundo estas, a hermenêutica, como modalidade de filosofia prática, implicará a superação do méto- do - e a questão das garantias da objetividade -, para desembocar diretamente na questão da verdade, entendida esta não como correspon- dência mas em termos hermenêuticos, como desoeultação (aletheia). E, deste ~od~, a compreensão remeteria para a virtude dianoética da phronesis, tratando-se na aplicação hermenêutica não apenas de coor- denar a situação particular à pauta geral, mas, nessa coordenação con- seguida (Le., a realização de uma applicatio), potenciar a realização das possibilidades do direito enquanto ser possível dentro do seu con- texto vital, quer dizer, permitir a realização do justo concreto. Ou seja: por via da hermenêutica fundamentar-se-ia uma concepção jusnatura- lista que daria, simultaneamente, conta da dimensão de historicidade de todo o direito." Hermenêutica e jurisprudência, p. 90-91. 19. Para Heidegger, a compreensão é um campo de possibilidades que se abre ao ser presente. Na compreensão, a presença projeta seu ser para possibilidades. É umpoder-ser que repercute sobre a presença das possibilidades enquanto abertura. Por sua vez, o projetar da com- preensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas, e Heidegger chama essa elaboração de interpretação. Na interpretação, a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa, diz ele. Por fim, a interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice- versa: "o mundo já compreendido se interpreta." Cf. Ser e tempo, p. 204. 20. Gadamer, em Verdade e método, faz muitas referências a Dilthey, pelo viés historicista que este inaugura no âmbito da hermenêutica, apesar de acabar se distanciando do mesmo. Betti é quem mais de perto seguirá Dilthey, perseguindo o propósito, comum a ambos, de estabelecer uma metodologia de interpretação capaz de fundar uma ciência jurídica. Sobre o projeto de Dilthey e Betti, conferir o que diz José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 61, 114, 185 a 187; e Richard Palmer, Hermenêutica, p. 55 a 73. 21. Essa linha hermenêutica também tem sido trabalhada por Inocên- 18 .., 1.2 Direito e interpretação Entendemos que a existência do direito, enquanto nor- ma individual e concreta, corresponde à sua compreensão, para a qual se abrem várias possibilidades interpretativas. De fato, a concretização da norma é feita mediante a cons- trução interpretativa que se formula a partir da e em dire- ção à compreensão. Podemos definir interpretação como a a~ão mediadora que procura compreender aquilo que foi dIto ou escrito por outrem. 22 Como ação responsável e não a!eatória, procura-se, por meio da interpretação, um signi- fIcado que seja aceito ao menos por aqueles a quem inte- ressa ao intérprete, adotando-se, para tanto, técnicas de argumentação. Em contrapartida, tanto o direito objetivo, que corres- ponde à ratio legis, quanto o direito subjetivo, referente à c.io Mártires Coelho, no âmbito do direito constitucional. Nesse sen- tido, vale consultar o livro Hermenêutica constitucional _ direitos fundamentais. Vide bibliografia. 22. De acordo com Edmond Ortigues (Enciclopédia Einaudi, Impren- sa ~ac~~~al- Casa da Moeda, Portugal, 1987), no verbete Interpre- taçao, diremos que interpretar é compreender, reformulando ou re- exprimindo sob uma forma nova; a interpretação consiste em mostrar ~lgo: ~la vai do abstrato ao concreto, da fórmula à respectiva aplicação, a sua Ilustração ou à sua inserção na vida." José ~amego, cuja tese também se apóia na proposta hermenêuti- ca de Heldegger e Gadamer, apesar de não estabelecer claramente uma distinção entre compreensão e interpretação como fazemos es- "P h "c~e.ve: ara .uma ermenêutica assente em pressuposições existen- Clals-?ntológlCas, a atitude interpretativa ou compreensiva terá que ver nao com questões de subjetividade ou objetividade do sentido de algo que é dado ao intérprete, mas de um agir mediador que elabore e potencialize as possibilidades projetadas no compreender, identifica- do este, na expressão de Heidegger, COm o ser de tal poder-ser." Her- menêutica e jurisprudência, p. 91. 19 ----------- ---~- - intenção do autor numa situação específica, inserem-se no campo histórico da compreensão. O direito, como obra humana, é compreendido, e não explicado, a partir de re- lações necessárias de causa e efeito, como se para cada pro- blema jurídico houvesse uma única, inequívoca e verdadei- ra resposta. O direito, como as demais ciências do espírito, corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado se- gundo os valores que comandam a sua ação, tanto interna quanto externamente. 23 Internamente seria a própria ratio legis e, externamente, a inserção histórica do intérprete, se é que ambas as posições podem vir desassociadas. A exis- tência do direito conforma-se, assim, a uma tradição cultu- ral determinada, mas que não pode ser encarada sob uma perspectiva reducionista, uma vez que admite valores universais válidos também para outras épocas e outros lu- gares. Compreender é indagar sobre as possibilidades do sig- nificado de um acontecer próprio das relações humanas. E, nesse sentido, acreditamos que o direito só existe quando compreendido. Um código, por exemplo, contém regras gerais e abstratas constituídas em função de hipóteses pro- váveis, mas que só ganham um significado concreto quan- do remetidas à própria prática, ou melhor, quando condu- zidas pela ação, seja a ação de quem as tenha elaborado, como o legislador que prevê a realização de uma prática, seja a de quem produz a transferência da regra de um cam- po virtual dado, que é o código, para um campo de signifi- cado real- o juiz quando decide. 24 23. Os valores que comandam a ação advêm tanto do ato do legislador, quando este decide o caso típico (valores internos à lei), quanto do ato do juiz, quando, com base na decisão do legislador, decide o caso concreto (valores externos ao âmbito restrito da lei). 24. A esse respeito escreve Perelman: "O direito, tal como funciona 20 Nossa hipótese é a de que o processo de _ '. compreensao se concretiza por melO da argumentação que t . . b'l' . ' ,ecnIcamen- te VIa I Iza a mterpretação. De outro lado verl'fl' _ . ,ca-se que a compreensao, como mOVImento oposto ao da expl' - . Icaçao raclOnal,;-demonstrativa, insere-se no campo das possibili- dades. E possível aquilo que é verossímil, ou seja, aquilo que aparenta verdade, sem, no entanto, pretender sê-Ia.25 A verossimilhança não depende de fatos ocorridos, mas da probabilidade da realização de um projeto. Ora, essas pos- sibilidades nos são apresentadas mentalmente conforme tratadas pela retórica ou pela teoria da argumentação; é o momento em que o pensamento dialético se instaura. 26 A argumentação, por sua vez, é a técnica que visa ao acordo sobre a escolha do significado que pareça mais adequado às efetivamente, é essencialmente um problema de decisão: o legislador deve decidir quais serão as leis obrigatórias numa comunidade organi- zada, o juiz deve decidir sobre o que é o direito em cada situação submetida ao seu juízo. Mas nem o legislador nem o juiz tomam deci- sões puramente arbitrárias: a exposição dos motivos indica razões por que uma lei foi votada e, num sistema moderno, toda sentença deve ser motivada. O direito positivo tem como correlativo a noção de decisão, senão razoável, pelo menos raciocinada." Cf. Ética e direito, p.376. 25. Olivier Reboul, de forma bastante sintética, atribui o caráter de verossímil a "tudo aquilo em que a confiança é presumida". Cf. Intro- dução à retórica, p. 95. 26. Perelman definirá argumentação em oposição a demonstração, da seguinte forma: "Demos o nome de argumentação ao conjunto das técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão das mentes às teses que se apresentam ao seu assentimento; sendo o ter- mo tradicional demonstração reservado aos meios de prova que possi- bilitam concluir, a partir da verdade de certas proposições, pela de outras proposições, ou ainda, no terreno da lógica formal, passar, com a ajuda de regras definidas de transformação, de certas teses de um sistema a outras teses do mesmo sistema." Perelman, Retóricas, p. 369. 21 partes discursivas; acordo este fundamentado em provas concretas e opiniões amplamente aceitas. Com a argumen- tação temos condições de "visualizar" a compreensão, na .medida em que esta se traduz em algo de concreto. 27 O direito admite, pois, uma superposição entre duas esferas: a da compreensão da norma e a d~ compreensão do fato, levadas a cabo pelo ser historicamente presente, que se utiliza, pa,ra tanto, do procedimento argumentativo. Tecnicamente, a argumentação viabiliza o acordo capaz de formular a compreensão através de uma interpretação que sirva de fundamento à solução mais razoável. O método do direito é, portanto, o método tópico- hermenêutico. Cada situação deve ser compreendida em função do problema que apresenta e da tradição históricana qual se insere. Mas o seu instrumental é argumentativo. Dessa forma, podemos dizer que o direito consiste na rea- lização de uma prática que envolve o método hermenêutico da compreensão e a técnica argumentativa. Para nós, o método diz respeito à orientação para o co- nhecimento, e a técnica, às regras que dirigem essa ativida- de. Logo, compreensão e concretização encontram-se inti- mamente relacionadas: existe o que se compreende em função imediata de um aplicar. Assim, a realidade do direi- to é a mesma realidade de sua compreensão. 28 27. Quando Heidegger diz que a interpretação funda-se na compreen- são e não vice-versa, ele considera os pré-juízos como ponto de partida para toda a compreensão. Esses pré-juízos funcionam no nosso esque- ma como topoi. Para Heidegger, a interpretação sempre se funda numa visão pré- via, que "recorta" o que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpretação. Cf. Ser e tempo, p. 206-7. 28. Para Gadamer, "a realidade histórica é igual à realidade do com- preender histórico." Verdade e método, p. 370. 22 1.3 Hermenêutica e interpretação A hermenêutica mostra-se presente quando, segundo Vattimo,29 Nietzsche anuncia a morte do deus da metafísi- ca,3D entendida esta última como "a descrição universal- mente válida de estruturas permanentes e essenciais à compreensão do mundo" .31 À descrição objetiva dos fatos segue-se a busca da verdade mais persuasiva e responsável, originária da interpretação, isto é, uma interpretação que pretende validade até aparecer outra, concorrente, que a destitua. 32 O autor situa a hermenêutica na filosofia que se desen- volve ao longo do eixo Heidegger-Gadamer.33 E olhando dessa forma. anota que a hermenêutica revela os seus dois aspectos constitutivos: o da ontologia, privilegiado neste 29. Gianni Vattimo. Para além da interpretação: o significado da her- menêutica para a filosofia. 30. Vattimo finaliza o capítulo intitulado "A vocação niilística da her- menêutica", evocando Nietzsche e o sentido da morte de Deus para a modernidade, "isto é, da dissolução da verdade como evidência pe- remptória e 'objetiva'. Até agora, [afirma,] os filósofos acreditaram em descrever o mundo, é chegado o momento de interpretá-lo... ". Para além da interpretação, p. 27. 31. Vattimo, ob. cit., p. 23. 32. Passagem ilustrativa sobre a importância da argumentação e de sua matriz intersubjetiva, no processo de interpretação, encontramos no texto de Vattimo: "Os argumentos que a hermenêutica oferece para sustentar a própria interpretação da modernidade são conhecidos por serem 'apenas' interpretações; não porque acreditam em deixar fora de si uma realidade verdadeira, que poderia ser lida de modo diferen- te; mas sim porque admitem não se poder apelar, pela própria valida- de, a nenhuma evidência objetiva imediata. Isto porque o seu valor está na capacidade de dar lugar a um quadro coerente e compartilha- do, na expectativa de que outros proponham um quadro alternativo mais aceitável." Ob. cit., p. 24. 33. Cf. p. 14. 23 nosso trabalho, e o da lingüisticidade.34 Gadamer critica o cientificismo e o metodologismo modernos para reivindi- car a busca da verdade além dos limites do método cientí- fico positivo, a começar pela verdade da experiência, como ato interpretativo. Dessa forma, passemos à análise do tema, buscando um pouco das suas origens. Como vimos, a origem do termo Hermenêutica tem como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Signifi- cava trazer algo desconhecido e ininteligível para a lingua- gem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo herme- neuein, usualmente traduzido como "interpretar", e o substantivo hermeneia, como interpretação, significam transformar aquilo que ultrapassa a compreensão humana em algo que essa inteligência consiga compreender.3S O autor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêuti- ca como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir. Dizer, no sentido de anunciar ou afirmar algo, relaciona-se, antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notícias fiéis das divindades. No entanto, o predomínio da palavra entre os gregos fez com que a linguagem falada e sua ver- tente performática ganhassem relevo, e a hermenêutica passasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais im- portante do que simplesmente expressar, na medida em que as palavras racionalizam e clarificam algo; é quando ganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E, quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna com- preensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível. 34. Nesta linha poderíamos apontar o trabalho de Lenio Luiz Streck. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 35. Ver Richard Palmer. Hermenêutica. 24 UM .i. Em Roma, a hermenêutica desenvolveu-se muito com a própria prática jurídica. Os pretores e os jurisconsultos diziam o direito para cada caso concreto, sem qualquer pretensão de generalidade. Mas essas decisões consolida- ram-se com o tempo, transformando-se em máximas que se tornaram muitas vezes obrigatórias.36 A hermenêutica alcançou notável proeminência no campo religioso. O problema de interpretar corretamente a palavra de Deus era comum ao povo judeu em relação ao Antigo Testamento; aos cristãos, ao Novo Testamento; e aos protestantes, em relação à Reforma. Durante a Idade Média, a análise sistemática sobre a evidência da revelação divina deu origem à Teologia,37 e a hermenêutica assumiu o aspecto exegético da correta interpretação dos textos sa- grados, dando ensejo ao seu desenvolvimento no campo filológico. 36. O valor do argumento de autoridade em Roma é grande, haja vista a Lei das Citações, promulgada por Constantino no século IV d.e. Este estatuto legal veio corroborar o que a prática já havia confirmado: a sabedoria dos jurisprudentes notáveis tinha legitimidade para esten- der-se a situações similares. De acordo com a Lei das Citações, o juiz deveria aplicar as opiniões de Ulpiano, Modestino, Gaio, Papiniano e Paulo, da seguinte forma: em primeiro lugar, prevalece a opinião da maioria; em caso de divergência, acolhe-se a opinião de Papiniano; finalmente, não havendo regras específicas para o caso, cabe ao juiz adotar a tese que lhe pareça melhor. 37. Na Escolástica, por exemplo, procurava-se organizar racionalmen- te as idéias divinas sob a perspectiva da fé. A racionalidade encontra- va-se no instrumental utilizado, que era o texto, por meio do qual transmitiam-se as idéias reveladas. Na Idade Média existiam os "co- mentários" e as "sumas". Os primeiros originavam-se diretamente da explicação do texto, enquanto as sumas apresentavam, de forma. ra- cionalmente ordenada, a síntese dos princípios extraídos dedutIva- mente dos textos divinos. Vide J. M. Fateaud, no prefácio à 23 edição brasileira de Discurso do método, de Descartes: Editora Martins Fon- tes, 1996. 25 Para o direito, no entanto, foi extremamente significa- tiva a atividade dos glosadores da Universidade de Bolo- nha, durante os séculos XI e XII. Com a descoberta, em 1080, as leis romanas compiladas por ordem do Imperador Justiniano no século VI d.C., mais tarde chamadas de Cor- pus Iuris Civilis, iniciou-se todo um esforço acerca do seu entendimento e compreensão, de forma a adotar-se, na prática medieva, o exemplo romano. Segundo Wieacker, "a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma modelar e atemporal da sua própria vida" .38 O desenvolvimento das cidades italianas justificou a formação de uma corporação própria - a Universidade -, destinada aos estudos jurídicos para a formação de fun- cionários públicos, como síndicos, procuradores, notários e advogados. 39 Como o texto jurídico romano era muito difícil, antes de mais nada ele deveria ser explicado. E do resultado da interpretação feita pelos
Compartilhar