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HERMENÊUTICA E ARGUMENTAÇÃO

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Margarida Maria Lacombe Camargo
Pesquisadora da Casa Rui Barbosa.
Professora da Universidade Gama Filho (Pós-graduação)
A
HERMENEUTICA E,.,
ARGUMENTAÇAO
UMA CONTRIBUIÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO
Prefácio de
Vicente de Paulo Barretto
3a edição
revista e atualizada
Posfácio de
Antonio Cavalcanti Maia
RENOVAR
Rio de Janeiro. São Paulo
2003
Todos os direitos reservados à
LIVRARIA E EDITORA RENOVAR LTOA.
MATRIZ: Rua da Assembléia, 10/2.421 - Centro - RJ
CEP: 20011-901 - Tel.: (21) 2531-2205 - Fax: (21) 2531-2135
LIVRARIA CENTRO: Rua da Assembléia, 10 - loja E - Centro - RJ
CEP: 20011-901 - Tels.: (21) 2531-1316/2531-1338 - Fax: (21) 2531-1873
LIVRARIA IPANEMA: Rua Visconde de Pirajá, 273 - loja A - Ipanema - RJ
CEP: 22410-001 - Tel: (21) 2287-4080 - Fax: (21) 2287-4888
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FILIAL SP: Rua Santo Amaro, 257-A - Bela Vista - SP - CEP: 01315-001
Te\.: (11) 3104-9951 - Fax: (11) 3105-0359
www.editorarenovar.com.brrenovar@editorarenovar.com.br
SAC: 0800-221863
Conselho Editorial Biblioteca de teses
Arnaldo Lopes SUssekind - Presidente
Carlos Alberto Menezes Direito
Caio Tácito
Luiz Emygdio F. da Rosa Jr.
Celso de Albuquerque Mello
Ricardo Pereira Lira
Ricardo Lobo Torres
Vicente de Paulo Barretto
Revisão Tipográfica
Ana Maria Grillo
Renato Carvalho
Capa
Julio Cesar Gomes
Editoração Eletrônica
TopTextos Edições Gráficas Ltda.
Cln
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Camargo, Margarida Maria Lacombe.
Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito /
Margarida Maria Lacombe Camargo; prefácio de Vicente de Paulo Barretto.
- 3.ed. - Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
299p. ; 21cm.
ISBN 85-7147-392-7
1. Hermenêutica (Direito). 2. LingUística. 3. Análise do discurso. 4.
Retórica. I. Barretto, Vicente de Paulo. 11. Título.
CDD 340.11
Proibida a reprodução (Lei 9.610/98)
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Os Cursos de Pós-Graduação têm se desen-
volvido no Brasil, e a produção de teses tem
sido elevada e de alto nível.
A Editora Renovar propõe na presente Bi-
blioteca estimular a divulgação de obras que
contribuam para o desenvolvimento da ciência
jurídica brasileira, levando-as ao conhecimen-
to do grande público.
No Direito as novidades estão, de um modo
geral, nas teses e nas revistas especializadas.
Assim sendo, a Editora Renovar abre a sua
linha editorial para os juristas que estão no
início de sua carreira profissional como mes-
tres e doutOres. A Biblioteca tem esperança
de que venha a constituir um estímulo a estes
protissionais. .
E mais uma prova de que acredItamos na
qualidade das obrasjurídicas brasileiras: A nos-
sa linha editorial é marcada por uma ngorosa
seleção realizada pelo Conselho Editorial, que
reúne eminentes juristas.
Editora Renovar
BIBLIOTECA DE TESES RENOVAR
Posse da Segurança Jurídica à Questão Social
Marcelo Domanski
O Prejuízo na Fraude Contra Credores
Marcelo Roberto Ferro
A Pessoa Jurídica e os Direitos da Personalidade
Alexandre Ferreira de Assumpção Alves
Estado e Ordem Econômico-Social
Marco Aurélio Peri Guedes
O Projeto Político de Pontes de Miranda
Dante Braz Limongi
O Direito do Consumidor na Era da Globalização
Sônia Maria Vieira de Mello
As Novas Tendências do Direito Extradicional
Artur de Brito Gueiros Souza
Fundamentos para uma Interpretação Constitucional do Princípio da Boa-Fé
Teresa Negreiros
O Ministério Público Brasileiro
João Francisco Sauwen Filho
A Criança e o Adolescente no Ordenamento Jurídico Brasileiro
Maria de Fátima Carrada Firmo
Propriedade e Domínio
Ricardo Aronne
O Princípio da Proporcionalidade e a Interpretação da Constituição
Paulo Arminio Tavares Buechele
Condomínio de Fato
Danielle Machado Soares
A Liberdade de Imprensa e o Direito à Imagem
Sidney Cesar Silva Guerra
Direito de Informação e Liberdade de Expressão
Luís Gustavo Grandinetti C. de Carvalho
A Saga do Zangão - Uma visão sobre o direito natural
Viviane Nunes Araújo Lima
Mercosul e Personalidade Jurídica Internacional
Marcus Rector Toledo Silva
Família sem Casamento
Carmem Lúcia S. Ramos
A Disciplina Jurídica dos Espaços Marítimos na Convenção das Nações Unidas
sobre Direito do Mar de 1982 e na Jurisprudência Internacional
Jete Jane Fiorati
O Direito Econômico na Perspectiva da Globalização
César Augusto Silva da Silva
a
...
Os Limites da Reforma Constitucional
Gustavo Just da Costa e Silva
O Referendo
Adrian Sgarbi
Segurança Internacional e Direitos Humanos
Simone Martins
Os Fundamentos e os Limites do Poder Regul. no Âmbito do Mercado Financeiro
Simone Lahorghe
O Direito Cibernético
Alexandre F. Pimentel
Conflitos entre Tratados Internacionais e leis Internas
Mariângela Ariosi
Privatizações sob Ótica do Direito Privado
Henrique E. C. Pedrosa
A tutela de urgência no processo do trabalho: uma visão histórico-comparativa
(Idéias para o caso brasileiro)
Eduardo Henrique von Adamovich
Jurisprudência Brasileira sobre Transporte Aéreo
José Gabriel Assis de Almeida
Superfície Compulsória - Instrumento de Efetivação da Função
Social da Propriedade
Marise Pessôa Cavalcanti
As famrlias não-fundadas no casamento e a condição feminina
Ana Carla Harmatiuk Matos
Invalidade processual: um estudo para o processo do trabalho
Aldacy Rachid Coutinho
A vida humana embrionária e sua proteção jurídica
Jussara Maria Leal de Meirelles
O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana:
O Enfoque da Doutrina Social da Igreja
C1eber Francisco Alves
Conversão Substancial do Negócio Jurídico
João Alberto Schützer Del Nero
O Direito da Concorrência no Direito Comunitário Europeu -
Uma contribuição ao Mercosul
Dyle Campello
Mercosul, União Européia e Constituição
Marcio Monteiro Reis
Direito Tributário e Globalização: Ensaio Crítico sobre Preços de Transferência
Jurandi Borges Pinheiro
Transexualismo. O direito a uma nova identidade sexual
Ana Paula Ariston Barion Peres
Direitos Reais e Autonomia da Vontade
(O Prindpio da Tipicidade dos Direitos Reais)
André Pinto da Rocha Osorio Gondinho
A Paternidade Presumida no Direito Brasileiro e Comparado
Luis Paulo Cotrim Guimarães
Os Novos Paradigmas da Família Contemporânea
Cristina de Oliveira lamberiam
O Mito da Verdade Real na Dogmática do Processo Penal
Francisco das Neves Baptista
O Direito ao Desenvolvimento na Perspectiva da Globalização:
Paradoxos e Desafios
Ana Paula Teixeira Delgado
Cooperação Jurídica Penal no Mercosul
Solange Mendes de Souza
Em Busca da Família do Novo Milênio
Rosana A. Girardi Fachin
Juizados Especiais Criminais
Beatriz Abraão de Oliveira
O Princípio da Impessoalidade
Livia Maria Armentano Koenigstein lago
O Princípio da Subsidiariedade no Direito Público Contemporâneo
Silvia Faber Torres
Direito, Escassez e Escolha: em Busca de Critérios Jurídicos
para Lidar com a Escassez de Recursos e as Decisões Trágicas
Gustavo Amaral
Decadência e Prescrição no Direito Tributário do Brasil
Francisco Alves dos Santos Jr.
lesão Contratual no Direito Brasileiro
Marcelo Guerra Martins
Acesso à Justiça - Um problema ético-social no plano da realização do Direito
Paulo Cesar Santos Bezerra
Concurso Formal e Crime Continuado
Patr(cia Mothé G/ioche Béze
A Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato
Jorge Cesa Ferreira da Silva
Responsabilidade Patrimonial do Estado por Ato Jurisdicional
lulmar Fachin
Gestão Fraudulenta de Instituições de Instituição Financeira e
Dispositivos Processuais da lei 7.492/86
Juliano Breda
Contratos de Software "Shrinkwrap Licenses" e "Clickwrap Licenses"
Emir Iscandor Amad
Jurisdição Constitucional, Democracia e Racionalidade Prática
Cláudio Pereira de Souza Neto
Desconsideração da Personalidade Jurídica - Aspectos processuais
Osmar Vieira da SilvaO Dano Pessoal na Sociedade de Risco
Maria Alice Costa Hofmeister
Presunções e Ficções no Direito Tributário e no Direito Penal Tributário
Iso Chaitz Scherkerkewitz
Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade em Colisão com outros Direitos
Mônica Neves Aguiar da Silva Castro
•
Da Lesão no Direito Brasileiro Atual
Carlos Alberto Bittar Filho
Repetição do Indébito Tributário - O Inconstitucional artigo 166 do CTN
Luis Dias Fernandes
Uma Análise da Textura Aberta da Linguagem e sua Aplicação ao Direito
Noel Struchiner
Direito Tributário versus Mercado
Marcos Rogério Palmeira
O Direito à Educação
Regina Maria F. Muniz
O Abuso do Direito e as Relações Contratuais
Rosalice Fidalgo Pinheiro
A Legitimação dos Princípios Constitucionais Fundamentais
Ana Paula Costa Barbosa
A Participação Popular na Administração Pública: o Direito de Reclamação
Adriana da Costa Ricardo Schier
Do Pátrio Poder à Autoridade Parental
Marcos Alves da Silva
Paradigma Biocêntrico: Do Patrimônio Privado ao Patrimônio Ambiental
José Robson da Silva
O Discurso Jurídico da Propriedade e suas Rupturas
Eroulths Cortiano Junior
Terceirização e Intermediação de Mão-de-obra
Rodrigo de Lacerda Carelli
As Agências Reguladoras no Direito Brasileiro
Arianne Brito Rodrigues Cal
As Novas Tendências na Regulamentação do Sistema de Telecomunicações pela
Agência Nacional de Telecomunicações - ANATEL
Lucas de Souza Lehfeld
A Renúncia à Imunidade de Jurisdição pelo Estado Brasileiro
Antenor Pereira Madruga Filho
A Mulher no Espaço Privado: Da Incapacidade à Igualdade de Direitos
Maria Alice Rodrigues
A Propriedade como Relação Jurídica Complexa
Francisco Eduardo Loureiro
O Conceito de Anulação ou Prejuízo de Benefícios no Contexto da evolução do
GATT à OMC
Regina Maria de S. Pereira
O Direito de Assistência Humanitária
Alberto do Amaral Júnior
Contrato de Trabalho Virtual
Margareth F. Barcelar
O Direito de Resistência na Ordem Jurídica Constitucional Brasileira
Maurício Gentil Monteiro
Transformações do Direito Administrativo
Patrícia F. Baptista
•
A Privacidade da Pessoa Humana no Ambiente de Trabalho
Bruno Lewicki
Próximos lançamentos
A Defesa do Consumidor na Estrutura Sócio-Econômica do Neo-Liberalismo
María Alejandra Fortuny
Estado, Sociedade Civil e Princípio da Subsidiariedade na Era da Globalização
Vania Mara Nascimento Gonçalves
A Relação entre o Interno e o Internacional
Estevão Ferreira Couto
Contribuições para o Financiamento da Seguridade Social:
Critérios para Definição de sua Natureza Jurídica
Si/vania Conceição Tognetti
Juizados Especiais Federais Cíveis
Alvaro Couri Antunes Souza
O Direito Frente às Famílias Reconstituídas
Rosane Felhauer
De Marx a Deus - Os Tortuosos Caminhos do Terrorismo Internacional
Denise de Souza Soares
Comissões Parlamentares de Inquérito no Brasil
Jessé Claudio Franco de Alencar
Responsabilidade Civil dos Pais pelos Actos dos Filhos Menores
Jeovanna Malena Vianna Pinheiro Alves
Regime Jurídico dos Incentivos Fiscais
Marcos André Vinhas Catão
O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública -
Para uma Administração Imparcial
Ana Paula Oliveira Ávila
Franchising: Reflexos Jurídicos nas Relações das Partes
Roberto Cavalcanti Sampaio
O Regime Jurídico do Financiamento das Campanhas Eleitorais
Sergei Medeiros Araujo
Espaços Públicos Compartilhados entre a Administração Pública e a Sociedade
Renato Zugno
Responsabilidade Objetiva do Estado do Rio de Janeiro por Omissão na Área de
Segurança Pública
Antonio Cesar Pimentel Caldeira
Un Estudio Comparativo de la Protección Legislativa dei Consumidor en el
Ambito Interno de los Paises dei Mercosur
Mirta Mora/es
As Normas Constitucionais Programáticas e o Controle do Estado
José Carlos Vasconcellos dos Reis
•
À minha família
Flávio, Fábio e Estela.
Si
...
•
Agradecimentos
Este estudo foi feito com o apoio da Fundação Casa de Rui
Barbosa, onde trabalho como pesquisadora, e contou com a
colaboração e o incentivo de muitos amigos. Em primeiro lugar,
o Professor Vicente Barretto, orientador da tese que deu ori-
gem a este livro; em seguida, Antonio Carlos Maia, que me
franqueou sua biblioteca e cujas sugestões demonstraram uma
verdadeira prova de amizade; Celso Albuquerque Mello, que
me despertou para leituras importantes; José Ribas Vieira e Ana
Lúcia de Lyra Tavares, parceiros de trabalho. E, também, os
amigos da Casa de Rui Barbosa, em especial José Almino de
Alencar, então Diretor do Centro de Pesquisas .
!2 T
Prefácio à primeira edição
Por uma nova leitura do direito
A cultura jurídica contemporânea, principalmente nos paí-
ses de tradição romanística, encontra-se prisioneira de alguns
impasses epistemológicos e metodológicos. A concepção do di-
reito como fruto da vontade do poder e, como tal, devendo ser
aplicado de forma mecânica na solução dos conflitos, ignorando
realidades econômicas e sociais, acha-se contestada em seus
fundamentos pela própria mudança ocorrida na estruturação do
poder político. O processo de democratização, que toma conta
como se fosse uma onda política de todos os quadrantes do
planeta, acarretou também uma mudança substantiva na natu-
reza da ordem jurídica. A ordem jurídica passou, progressiva-
mente, a ter que lidar com conflitos de interesses e de valores
de uma sociedade pluralista e complexa, onde a norma de direi-
to reflete a vontade democrática na sua formulação e envolve,
portanto, na sua aplicação o emprego de critérios metajurídicos.
Para responder a esse desafio, alguns juristas e filósofos
contemporâneos, como Recaséns Siches, Alexy, Dworkin, Ha-
bermas, Viehweg, Perelman, Tércio Sampaio Ferraz e outros,
libertaram-se de uma metodologia de análise do fenômeno jurí-
dico estritamente formalista e incorporaram no processo de
aplicação do direito outros instrumentos conceituais e herme-
L
nêuticos, que se encontram para além da ordem legal positiva-
da. Nesse contexto de superação dos óbices resultantes de uma
dogmática estrita, é que o livro da professora Margarida Lacom-
be Camargo traz para a literatura jurídica brasileira uma contri-
buição original e atualíssima, destacando-se por enfrentar, com
o auxílio de alguns dos autores já referidos, o desafio nuclear
para a filosofia e a teoria do direito neste final de milênio: como
realizar uma radical e profunda alteração no modo de pensar e
aplicar o direito, instrumento principal para assegurar a justiça
na sociedade democrática e pluralista da contemporaneidade.
O livro da professora Margarida Lacombe Camargo investi-
ga, assim, essa mudança de paradigma na teoria do direito,
procurando estabelecer os parâmetros de uma nova hermenêu-
tica jurídica, que corresponda no âmbito do direito ao movi-
mento geral de refundação das ciências humanas e sociais das
últimas décadas. Enquanto a dogmática clássica encontrou nos
grandes civilistas e nas codificações do século XIX o campo
propício para desenvolver um modo de aplicação do direito, que
se caracterizaria por um modelo de interpretação fundado
numa concepção abstrata do direito, e no fundo ideal do Estado
e da sociedade, o pensamento jurídico contemporâneo defron-
ta-se, precisamente em virtude da chamada "crise do direito",
com o desafio de construir uma nova forma de pensar e aplicar
o direito. A "aplicação da lei", vale dizer, a adequação do fato
aos ditames da norma jurídica, consistia no objetivo central da
dogmática clássica, que transitava no universo fechado do siste-
ma jurídico não levando em conta o que Hans Kelsen chamou
de fatores "a-científicos" na análise jurídica. O direito bastava-
se a si próprio, como se fosse uma mônada dentro da qual
deveriam ser enquadrados os fatos e as relações sociais.
A professora Margarida Camargo chama a atenção para uma
distinção sutil, ainda que pouco aceita no pensamento jurídico e
social brasileiro, entre o procedimento da interpretação legal e
a hermenêuticajurídica. Na verdade, trata-se de uma elabora-
ção mais ampliada da distinção entre dogmática e zetética, onde
Tércio Sampaio Ferraz assinala a clivagem metodológica, que
nos permite distinguir entre a ordem jurídica liberal e a ordem
jurídica do estado demc:crático de ~ireito. Enquanto a primeira
bastava-se na formulaçao de um Sistema jurídico baseado
'd" d d f' nai e~a : que o ireito posto, por ser ruto da representação
legislativa, e, por proclamar formalmente direitos e garantias
individuais, seria suficiente para a solução dos conflitos, o se-
gundo tipo de ordem jurídica integrava no seu âmbito de nor-
matização indivíduos, grupos sociais, interesses e valores, que
não encontravam guarida no quadro do estado liberal de direito.
A necessidade, portanto, de uma nova metodologia, de um novo
pensar jurídico, voltados para solucionar os conflitos complexos
de uma sociedade pluralista, exigiu, também, a consideração na
aplicação do direito de fatores até então considerados ajurídi-
coso
Por essa razão, a hermenêutica assumiu papel de destaque
na reflexão jurídica contemporânea. O processo hermenêutico
considera a norma como parte integrante do sistema jurídico,
mas considera-a, também, como meio para a solução de confli-
tos que não se caracterizam por suas dimensões estritamente
legais, pois· comportam aspectos sociais e valorativos, determi-
nantes para a própria eficácia do direito. O contraponto entre o
fato e a lei na compreensão hermenêutica torna-se mais eviden-
te quando o procedimento interpretativo incorpora entre os
dois pólos referidos a questão dos valores. Até então a doutrina
e a jurisprudência consideravam o sistema jurídico como infen-
so à influência dos valores encontrados na sociedade. Mas resi-
de, precisamente, no conjunto de valores que fundamenta a
sociedade democrátiça de direito um espaço de interpretação
que não foi incorporado pela doutrina clássica, caracterizada
pela dogmática civilista.
O livro da professora Margarida Camargo chama a atenção,
assim, para a necessidade de uma hermenêutica que pense o
direito de forma concreta, o que no quadro da pós-modernida-
de significa assumir alguns pressupostos metodológicos que per-
mitem pensar-se na elaboração de uma nova leitura para um
novo direito. Isto porque o livro abandona o culto do teórico
jurídico absoluto e formalmente ideal, encontrado no modelo
do direito liberal, e enfatiza o histórico, o complexo, o plural
das convicções, dos interesses e das práticas, que ocorrem nas
sociedades democráticas contemporâneas. Constatamos, então,
como essa nova realidade social, política e institucional da pós-
modernidade fez nascer não somente um novo sistema jurídico,
mas principalmente um sistema que exige para a sua própria
eficácia um novo método de leitura das normas jurídicas, que
expressam novos valores sociais e políticos.
Em conseqüência, escreve a professora Margarida Camargo,
o juiz como boca da lei, aquele que dirá, finalmente, "a verdade
legal" (Seabra Fagundes), deixa de ficar dependente de um
modelo rígido de interpretação. Não mais é chamado o juiz para
aplicar mecanicamente conceitos abstratos, quando determina-
ções gerais com pretensões de plenitude deveriam domar os
fatos sociais. Na verdade, ocorre exatamente o inverso no pro-
cedimento hermenêutico, preconizado pela professora Margari-
da Camargo. Aqui se procura fazer com que o juiz não fique
prisioneiro do exercício logístico, que conflita com a realidade
das relações sociais. Buscam-se na filosofia procedimentos clás-
sicos que irão revelar toda a sua riqueza ao serem aplicados na
análise do fenômeno jurídico.
Pretende-se, em última análise, a substituição de um mode-
lo - o dogmático - por uma nova racionalidade. Mas, como
observa judiciosamente a professora Mar&arida Camargo, não
basta substituir um modelo por outro. E necessário que se
estabeleçam condições sobre as quais o raciocínio jurídico possa
incorporar as dimensões da pós-modernidade, que alguns pen-
sadores contemporâneos não se aventuraram a considerar. Os
fundamentos dessa nova racionalidade jurídica vão deitar suas
raízes no emprego da tópica e da retórica, como instrumentos
analíticos essenciais para o perfeito e completo entendimento
do sistema jurídico da sociedade contemporânea. Somente em-
pregando-se esses recursos metodológicos é que se poderá com-
preender em toda a sua extensão e complexidade a ordem
jurídica do estado democrático de direito. Essa ordem jurídica
pressupõe para a sua plena eficácia esse tipo de entendimento,
que possa ir além da norma positiva, situando-a no contexto de
uma sociedade democrática e plural, para que o direito possa
constituir-se em fator de garantia, segurança e estabilidade so-
cial, e, ao mesmo tempo, ser um mecanismo da prática social
integrador e disciplinador do progresso social. O direito pós-
moderno aparece então, quando o lemos sob essa nova ótica
não como instrumento de conservação social, mas sim com~
agente da mudança social.
A Editora Renovar, fazendo justiça ao seu próprio nome,
publicando a tese de doutorado da professora Margarida La-
combe Camargo, contribui para a mudança de um enraizado
modo de pensar jurídico no Brasil. O culto do formalismo jurí-
dico, e do conseqüente mecanicismo, na aplicação das normas
jurídicas impregna de forma deletéria a formação jurídica nos
cursos de direito no Brasil. A publicação do trabalho da profes-
sora Margarida Camargo permite, assim, que se preencha um
vácuo nas letras jurídicas brasileiras, onde proliferam ainda às
vésperas do Terceiro Milênio tipos de entendimento do direito
e de sua aplicação que constituem sérios obstáculos para a
construção de uma sociedade mais livre e mais justa, como
pretende a Constituição de 1988 ao estabelecer um estado
democrático de direito.
Vicente de Paulo Barretto
UERJ/UGF
Prefácio à segunda e~ição
Toda nova edição traz novidades. Caso contrário, tratar-se-
ia de uma reimpressão. Isso é natural principalmente depois do
afã de publicar uma tese logo após a sua conclusão, quando
queremos fazer circular as idéias fruto de pesquisa recente.
Aliás, esse é um dos méritos da coleção de teses da editora
Renovar, da qual honrosamente participo, pois permite a divul-
gação de pesquisas avançadas, normalmente desenvolvidas nos
programas de pós-graduação. Portanto, fora a alegria da segunda
edição, compete-me anunciar como e em que extensão as mo-
dificações ora inseridas foram feitas.
Em primeiro lugar, os inevitáveis toques e retoques de cada
nova leitura, e que geraram simples alterações na redação do
texto, de forma a torná-lo mais palatável. Em segundo, as notas
e citações: muitas foram incorporadas ao texto principal, tor-
nando-o mais discursivo e menos intercalado; outras, antes
apresentadas em língua estrangeira, foram agora livremente tra-
duzidas, para facilitar o acesso ao público, mantidas algumas de
língua espanhola. E, por último, alterações substanciais, de es-
trutura e conteúdo.
A estrutura do trabalho foi ligeiramente alterada, procuran-
do um maior equilíbrio entre as suas partes e melhor disposição
lógica. Nesse sentido, os dois primeiros capítulos foram fundi-
dos e o penúltimo, sobre Perelman, teve seus itens reordenados.
Com relação ao conteúdo, a bibliografia aumentou e, conse-
qüentemente, a análise amadureceu; o que pode ser notado do
acréscimo de alguns parágrafos e referências em notas. Cabe
destacar que muito disso é resultado dos seminários do curso de
Teoria Geral do Direito ministrado no mestrado da Universida-
de Gama Filho, quando o empenho e a participação efetiva dos
alunos fomentaram o debate, avançando-se na obtenção de no-
vas conclusões.
Somado ao prefácio do Professor Vicente Barretto, que
muito nos honra desde a primeira edição, contamos agora com
o também valioso estudo do Professor Antonio Cavalcanti Maia,
como posfácio, sobre a importância da dimensão argumentativaà
compreensão da práxis jurídica contemporânea.
Este livro prevê continuidade. O projeto de pesquisa que
estamos desenvolvendo no Setor de Direito da Casa de Rui
Barbosa trata de tema correlato, e dará ensejo a outra publica-
ção, voltada para a questão da tópica e dos princípios de direito,
no processo de interpretação e aplicação das leis realizado pelos
tribunais. Portanto, o esforço teórico apresentado neste traba-
lho de doutorado serve de balizamento às novas pesquisas, de
cunho mais pragmático. E assim o problema da hermenêutica
mantém-se presente, da mesma forma com que a perspectiva
tópica-retórica continua a servir-nos de paradigma.
Por fim, gostaria de lembrar algumas pessoas amigas, cuja
importância foi grande nesse segundo momento. Antônio Maia,
sempre. Nadia de Araujo, exímia interlocutora. E as inestimá-
veis colaboradoras e companheiras do dia-a-dia, na Casa de Rui
Barbosa: Cristina Alexandre, Thula Rafaela e Sabrina Naritomi.
Agradeço também o prestimoso apoio de Maria Suely Cruz de
Almeida, da Universidade Católica de Petrópolis.
Petrópolis, janeiro de 2001.
Prefácio à terceira edição
Esta terceira edição do livro Hennenêutica e argumentação
mantém firme a idéia original de oferecer "uma contribuição ao
estudo do Direito". A ciência jurídica enfrenta uma crise de
paradigma, vez que os padrões de cientificidade que marcaram
a Modernidade e sustentaram o aparecimento do positivismo
jurídico não oferecem mais respostas a indagações mais comple-
xas que envolvem a ordem jurídica. Além de situações que não
se encaixam com facilidade em um ou único dispositivo legal, e
portanto impossíveis de serem resolvidas mediante processo
lógico-dedutivo, demanda-se, antes de tudo, legitimidade da
função jurisdicional. O exercício da cidadania requer controle
das decisões judiciais, tendo em vista o poder de criação do juiz
e o respeito à lei. Nesse sentido, exige-se a motivação das
decisões judiciais, o que significa dizer que, além da mera refe-
rência legal que lhe sirva de fundamento, o juiz deve expor as
razões que o levaram a decidir em determinado sentido. Não se
trata, propriamente, de um controle sobre suas ações de forma
a responsabilizá-lo pela sentença que não agrade a quem quer
que seja, mas de compreender a decisão, de forma a propiciar
uma contra-argumentação que propicie o consenso, respeitadas
as regras processuais.
Portanto, há de se construir um novo paradigma capaz de
abalizar devidamente o pensamento e a ação jurídica. A tópica e
a retórica têm oferecido alternativas. Construções teóricas de
base analítica também vêm sendo apresentadas para maior con-
trole e objetivação do raciocínio valorativo. E, assim, a reporta-
gem que apresentamos de alguns autores e teses mantém-se
atual, da mesma forma que a idéia síntese do livro: o método
hermenêutico, como base do conhecimento construído pela
ação interpretativa do sujeito e pela técnica argumentativa,
mostra-se também bastante profícuo a tais considerações. Por
isso, foi feita uma releitura de todo o texto, de forma a depurar
imperfeições, perseguir o rigor técnico e aprimorar alguns con-
ceitos. Vale lembrar também que as referências feitas à obra de
Hans-Georg Gadamer, Verdade e método, correspondem à edi-
ção espanhola indicada na bibliografia, ainda que utilizadas
traduções livres para o português.
Persiste a intenção de um outro livro que trate especifica-
mente do respeito pelos direitos fundamentais do homem con-
templados nas constituições dos estados, bem como do proble-
ma das normas principiológicas que lhes dão guarida, cada vez
mais presentes nos ordenamentos jurídicos contemporâneos.
Um trabalho voltado para a estrutura normativa e para as condi-
ções de sua aplicação. Mas em seqüência aos esforços até o
momento empreendidos, alguns estudos isolados foram publi-
cados, para os quais remetemos o leitor, como os textos intitu-
lados "Eficácia constitucional: uma questão hermenêutica"! e
"O movimento de superação do positivismo jurídico na aplica-
ção dos direitos fundamentais"2.
Por fim, não poderia escapar destas poucas palavras o regis-
tro de duas pessoas que contribuíram diretamente para as
modificações feitas, com suas idéias e generosidade acadêmica.
I. Publicado em Hermenêutica plural. Carlos E. de Abreu Boucault
e José Rodrigo Rodriguez (orgs.). São Paulo: Martins Fontes, 2002,
p. 369 a 390.
2. Publicado em Estudos em homenagem a Carlos Alberto Menezes
Direito. Antonio Celso Alves Pereira e Celso Renato Duvivier de
Albuquerque Mello (orgs). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 505 a
526.
-
..
São elas a doutora Hilda Bentes e Fernando Gama mestre,
pela U G F e professor de direito processual civil. Agradeço
também, mais uma vez, à Editora Renovar, pelo incentivo e
crédito depositado.
..
,
Indice
INTRODUÇÃO .
CAPÍTULO 1 - DIREITO, HERMENÊUTICA E INTERPRE·
TAÇÃO 13
1.1. O DIREITO NO ÂMBITO DA COMPREENSÃO 15
1.2. DIREITO E INTERPRETAÇÃO 19
1.3. HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO 23
1.4. DOGMÁTICA E INTERPRETAÇÃO: O CÍRCULO
HERMENÊUTICO 49
CAPÍTULO 2 - O PENSAMENTO JUSFILOSÓFICO MO·
DERNO: DA EXEGESE À JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES 61
2.1. A ESCOLA DA EXEGESE 65
2.2. A CRÍTICA DE FRANÇOIS GÉNY 68
2.3. A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO 73
2.4. O FORMALISMO JURÍDICO NA ALEMANHA 83
2.5. O POSITIVISMO JURÍDICO 86
2.6. A CRÍTICA DE JHERING AO FORMALISMO JURÍDICO
ALEMÃO 90
2.7. A JURISPRUDÊNCIA DOS INTERESSES 92
2.8. O MOVIMENTO PARA O DIREITO LIVRE 97
2.9. O RETORNO AO FORMALISMO COM HANS KELSEN 100
2.10. A JURISPRUDÊNCIA DOS VALORES ll7
2.11. "VONTADE DA LEI" E "VONTADE DO LEGISLADOR" , 127
p
I
1
CAPÍTULO 3 - VIRADA PARA O pÓS·POSITIVISMO:
A DISCUSSÃO METODOLÓGICA ATUAL. . . . . . . . . . . . . .. 135
3.1. A CONTRIBUIÇÃO DE THEODOR VIEHWEG: O USO
DA TÓPICA NO DIREITO ',' 139
3.2. A CONTRIBUIÇÃO DE RECASÉNS SICHES: A LOGICA
DO RAZOÁVEL. 161
3.3. A CONTRIBUIÇÃO DE CASTANHEIRA NEVES: O
DIREITO COMO PRÁTICA E A ANALOGIA COMO
ME'TODO I75.......................
CAPÍTULO 4 - A NOVA RETÓRICA DE 185
CHAIM PERELMAN .
4.1. A JUSTIÇA NO PENSAMENTO PERELMANIANO 192
4.2. A NOVA RETÓRICA 199
4.3. O AUDITÓRIO UNIVERSAL 211
4.4. DELIBERAÇÃO E JUSTIFICATIVA ',' 223
4.5. A LÓGICA JURÍDICA OU A LÓGICA DO RAZOAVEL. 228
4.6. TÓPICA E ARGUMENTAÇÃO , 235
CAPÍTULO 5 - PERSPEC)'IVAS DA RACIONALIDADE
JURÍDICA CONTEMPORANEA , 249
BIBLIOGRAFIA , 261
POSFÁCIO DE ANTONIO CAVALCANTI MAIA 271
Introdução
A versão original deste trabalho foi apresentada à Uni-
versidade Gama Filho, em junho de 1998, como tese de
doutorado. O título "Hermenêutica e argumentação: uma
contribuição ao estudo do direito" remete-nos ao trata-
mento dado à questão da hermenêutica jurídica, vista sob
o ângulo das ciências sociais, antes denominadas "ciências
do espírito",! intermediada pela interpretação, cuja base
técnica, para nós, é a argumentação. A idéia de direito que
assumimos corresponde especificamente ao que está na
lei, na doutrina e na jurisprudência, e que compõe a cha-
mada dogmática jurídica, sem desprezar os costumes.2 Re-
1. Essa denominação é trazida primeiramente por Wilhelm Dilthey,
para designar as características próprias das ciências culturais a serem
consideradas pela hermenêutica. São ciências que repousam sobre a
experiência vivida, que deve antes ser compreendida do que mera-
mente explicada. A história, a arte e o direito, por exemplo, são mani-
festações que expressam o espírito dos seus autores. "We understand
them by grasping this spirit. Such understanding involves our lived
experience of our culture." Cf. The Oxford Companion to Philosophy,
p.201.
2. Caberia lembrar aqui a idéia de "direito pressuposto" desenvolvi-
conhecemos o direito como área humana e social, mas
também consideramos os limites que nos são impostos
pela dogmática, pois todo exercício de "compreensão",
que a hermenêutica jurídica requer, encontrar-se-á referi-do a um campo conceitual próprio ditado pela razão, e que
delimita a dogmática.
Duas questões se apresentam como molas propulsoras
deste estudo e que, de certa forma, podem constar como
premissas. A primeira consiste na insuficiência da herme-
nêutica jurídica tradicional, ainda em voga nos nossos cur-
sos de direito; a outra, a desconfiança que pesa sobre o
direito, em geral visto como produto do arbítrio dos juízes.
Não se trata de estabelecer um estatuto de cientificidade
para o direito, muito porque a discussão não enfrenta dire-
tamente a complexa questão da interdisciplinaridade, mas
ao menos trazê-lo para um campo de aceitação, legitimida-
de e controle.
O objeto de estudo da hermenêutica jurídica tradicio-
nal consiste nas chamadas "técnicas de interpretação das
leis". Com objeto certo, a hermenêutica jurídica costuma
ser apresentada como ciência, mais especificamente como
a parte da ciência do direito que tem por objeto as técnicas
de interpretação. É esta, por exemplo, a inteligência de
Carlos Maximiliano, autor brasileiro, cuja obra intitulada
Hermenêutica e aplicação do direito, escrita em 1924, con-
tinua a ser reeditada como uma das mais significativas so-
bre o tema. Ensina o autor:
da por Eros Roberto Grau em O direito posto e o direito pressuposto,
p. 44: "O legislador não é livre para criar qualquer direito posto (direi-
to positivo), mas este mesmo direito transforma sua (dele) própria
base [... ] O direito pressuposto condiciona a produção do direito pos-
to (positivo). Mas o direito posto transforma sua (dele) própria base."
2
•
. A H~rm~nêutica Jurídica tem por objeto o estudo e a
slstematlzaçao dos processos aplicáveis para determl'
'd I d . nar o
sent! o e ~ a. cance as expressões do direito. [... ] Para
[aphcar o direito] se faz mister um trabalho preliminar: des-
cobri.r e fixar o s:ntido verdadeiro da regra positiva; e, logo
depOIS, o respectivo alcance, a sua extensão. Em resumo o
executor extrai da norma tudo o que na mesma se conté~:
é o que se chama interpretar...3
Esse viés cientificista pretendeu durante muito tempo
estabelecer critérios de interpretação que conferissem ob-
jetividade à interpretação das leis e, por conseguinte, à ta-
refa jurisdicional. Na realidade, o que ocorre é que a utili-
zação dessas técnicas não alcança o seu objetivo. Primeiro
porque não existe entre elas nenhuma hierarquia e assim, ,
o seu comando torna-se fluido. Segundo, porque tal orien-
tação ignora a dimensão criadora do intérprete, que volta
sua atenção antes para a resolução de determinado proble-
ma do que para a lei em si, analisada como hipótese virtual,
e com conteúdo próprio, previamente determinado.
Os livros didáticos sobre Introdução ao Estudo do Di-
reit04 invariavelmente apontam para as técnicas gramati-
3. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito, p. 1.
Grifo nosso.
4. A título de exemplo, dentre os autores que seguem essa orienta-
ção, destacamos Paulo Dourado de Gusmão, Paulo Nader, Ronaldo
Poleti, Maria Helena Diniz, Miguel Reale e Tércio Sampaio Ferraz Jr.,
além dos clássicos da hermenêutica no Brasil, que são: Limongi Fran-
ça, Carlos Maximiliano e Alípio Silveira. Este último traduz bem essa
tendência ao dedicar toda uma obra sobre o conteúdo prático da her-
menêutica jurídica, através da utilização de suas técnicas. Nela, en-
contramos as seguintes perguntas: Quais os métodos conhecidos?
Quais as Suas aplicações? Como têm sido aplicados? Qual a experiên-
cia de sua aplicação? São questões que o prefaciador de Hermenêutica
no direito brasileiro, Themístocles Brandão Cavalcanti, aponta como
orientadoras da obra de Silveira. Para Themístocles Cavalcanti, "o
3
cal, lógico-sistemática, histórico-evolutiva, axiológica ou
teleológica, com variações de nomenclatura, para indicar
os procedimentos apropriados à atividade jurisdicional,
que compromete tanto o juiz quanto os advogados e de-
mais órgãos públicos chamados a se manifestar na lide.
Ora, estas técnicas, que remontam a Savigny, com exceção
da teleológica, nem por ele eram vistas como forma de se
chegar a uma conclusão objetiva e previsível sobre o signi-
ficado da lei. Savigny limitou-se apenas a indicar os ele-
mentos constitutivos da norma, passíveis de serem consi-
derados numa interpretação. São, na realidade, elementos
que informam e orientam a lei sem, contudo, sobrepor-se
ao comando do problema, ou seja, à dimensão prática e
concreta do caso.
A idéia de método afigura-se como preocupação da
ciência moderna em proporcionar resultados logicamente
determinados de acordo com cada área de investigação.
Mas, com relação ao direito, o intento científico enfrentou
objeções, dada a sua carga valorativa, centralizada princi-
palmente na questão da justiça, que nunca alcançou o sta-
tus de cientificidade. De outro lado, a necessidade de or-
dem e segurança faz com que, mais do que a justiça, pro-
priamente, ganhe ênfase a certeza das soluções jurídicas.s
problema da hermenêutica é o da exata significação dos textos legais;
interpretar é traduzir a lei em termos que possam permitir a sua apli-
cação com exatidão, exprimindo o sentido da norma em função, não
só dos objetivos do seu autor, mas também em função das condições
sociais, econômicas, políticas e do tempo em que ela é aplicada." Cf.
Alípio Silveira, Hermenêutica no direito brasileiro, p. XV.
5. Um dos arautos da hermenêutica jurídica tradicional é o professor
italiano Francesco Ferrara, que escreve, em 1921, no seu Tratatto de
Diritto Civile Italiano sobre "Interpretação e Aplicação das Leis" -
capítulos I1I, IV e V. São dele as seguintes palavras:
"O juiz é o intermediário entre a norma e a vida: é o instrumento
4
•
Com relação à interpretação, em linhas gerais, o que
prevalece atualmente, segundo a doutrina tradicional, é a
"vontade objetiva da lei". A vontade subjetiva, de quem
lhe deu origem, ainda que um corpo colegiado, cede lugar
à vontade objetiva, que deve ser traduzida no momento de
sua aplicação, quando ela é chamada a produzir efeitos.
Com a evolução do pensamento jusfilosófico, a idéia de
prestigiar a razão contida na lei ganha cada vez mais força,
ainda que se houvesse tentado, num primeiro momento,
transferir a vontade do legislador, vista como a única legí-
vivo que transforma a regulamentação típica imposta pelo legislador
na regulamentação individual das relações dos particulares; que traduz
o comando abstrato da lei no comando concreto entre as partes, for-
mulado na sentença. O juiz é a viva vox iuris.
O juiz, porém, está submetido às leis, decide como a lei ordena, é
o executor e não o criador da lei. A sua função específica consiste na
aplicação do direito.
[...]
Decerto o juiz nem sempre pode dar satisfação às necessidades
práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se encontrará em
momentos trágicos de ter de sentenciar em oposição ao seu sentimen-
to pessoal de justiça e de eqüidade, e de aplicar leis más. Tal é, porém,
o seu dever de ofício. Na reforma das leis, na produção do direito novo
pensam outros órgãos do Estado: ele não tem competência para isso.
Só com esta condição se pode alcançar aquela objetiva segurança
jurídica que é o bem mais alto da vida moderna, bem que deve prefe-
rir-se a uma hipotética proteção de exigências sociais que mudam ao
sabor do ponto de vista, ou do caráter, ou das paixões do indivíduo.
Esta é a força da justiça, a qual não é lícito perder, se não deve vacilar
o fundamento do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qual
nós devemos pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de o
povo nutrir confiança em que o direito permaneça direito." Francesco
Ferrara, Interpretação e aplicação das leis, p. 111 e 174.
Em sentido semelhante escreve Paulo Dourado de GuSmã9: "defi-
nimos direito como a realização da segurança com o mínimo sacrifício
da Justiça". Cf. Introdução ao estudo do direito, 21 aed., 1997, p. 215.
5
p
tima, para uma outra época. Não obstante a propriedade
deste novo modo de pensar, o que se verifica, ainda, é a
distância ou o desligamento entre a vontade da lei e o caso
concreto no trabalho do intérprete.6 Pelo menos é o que
afirma a doutrina. Paulo Dourado de Gusmão, por exem-
plo, um dos mais festejados juristas brasileiros de nossa
época, inicia o capítulo do seu livro dedicado à hermenêu-
tica jurídica, com a seguinte frase: "A interpretação visa a
descobrir o sentido objetivo do texto jurídico" / inde-
pendentemente, portanto, do caso sub judice.
Pretende-se que o intérprete desvele os valores prote-
gidos no texto que traduz o comando legal, exploradas to-
das as suas possibilidades gramaticais, bem como o que
constaria das suas entrelinhas, de forma a conhecê-los an-
tes mesmo de aplicar a lei ao caso concreto. A hermenêu-
tica atua, assim, muito mais no campo virtual do código e
da doutrina, do que no campo do real. Segue-se daí o me-
canismo da subsunção, em que o fato subsume-se à lei,
extraindo-se a sentença por meio de uma operação lógica,
da seguinte maneira: quem matar estará sujeito à pena de
detenção de 6 a 20 anos; fulano matou: logo, fulano será
condenado a x anos de detenção. Ocorre que o direito lida
diretamente com o elemento humano, que não é homogê-
neo, e sob circunstâncias históricas e culturais diferencia-
das. Ainda que se trate muitas vezes de uma questão apa-
rentemente simples, como a que acabamos de apontar, em
que o direito à vida é incontestável e que a matéria de fato
6. No âmbito do direito constitucional, Friedrich Müller, Konrad
Hesse e Gomes Canotilho apontam para uma hermenêutica concreti-
zadora, que requer do intérprete maior compromisso com a realidade
social (vide bibliografia).
7. Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao estudo do direito, 17"
ed., Editora Forense, Rio de Janeiro, 1995, p. 233.
6
•
comprove a ocorrência do crime, os fatores pessoais cir-
cunstanciais e históricos têm de ser sopesados pelo ju'iz de
forma a atribuir para o réu uma pena "justa".8
Daqui depreendemos que a atividade jurisdicional não
é automática e, portanto, nunca poderá ser substituída
pela máquina. O juiz, como elemento humano dotado de
razão e sensibilidade, é capaz de ponderar e decidir, sem
que com isso lhe atribuamos arbitrariedade. A discriciona-
riedade atribuída ao juiz pode, muitas vezes, produzir dú-
vidas, mas para isso é exigida não apenas a fundamentação
de suas decisões, como também prevalece a regra do duplo
grau de jurisdição; ambas capazes de oferecer alguma espé-
cie de controle. Dessa forma, discursos inconsistentes e
eventuais acidentes provocados por juízes de boa-fé po-
dem ser revistos pelos tribunais superiores. Afinal, fazem
parte do direito a ponderação e a dialética na interpretação
das leis, constando, portanto, como insuficiente para uma
decisão pretensamente correta a simples aplicação de téc-
nicas determinadas. Não existe técnica jurídica capaz de
garantir, por si só, que o juiz julgará bem.9
8. Vale lembrar, ainda que superficialmente, a idéia da "justiça cor-
retiva" apresentada por Aristóteles, no livro V, da Ética a Nicômacos,
baseada na proporção aritmética possível de estabelecer um "meio-
termo" entre perda e ganho.
9. Bem, aqui, no sentido de uma solução razoável; se não justa, próxi-
ma do que poderia ser acreditado como justo.
Aristóteles vincula a idéia de bem à idéia de excelência. Segundo
ele, "o bem para o homem vem a ser o exercício ativo das faculdades
da alma em conformidade com a excelência" (Ética a Nicômacos,
1098 a, p. 24.) Neste caso, julgar bem significa jul~ar acertadamente,
"pois bem e acertadamente são a mesma coisa" (Etica a Nicômacos,
1143 b, p. 121). A excelência torna, então, a coisa acertada. Citando
ainda Aristóteles, temos que: "Chamamos de julgamento (isto é, a
faculdade graças à qual dizemos que uma pessoa julga compreensiva-
mente) a percepção acertada do que é eqüitativo. Uma prova disto é
7
Pretendemos, então, demonstrar no nosso trabalho
que a compreensão requerida pelo direito poderá ser reali-
zada e apresentada concretamente, mediante o recurso
técnico da argumentação, enquanto a argumentação, como
instância dialógica, permite o exercício da liberdade, do
confronto e do amadurecimento de idéias, em direção a
uma solução jurídica nem certa nem errada, mas razoá-
vel. lo Em lugar de procurarmos técnicas capazes de garan-
tir a certeza e a objetividade científica para o direito, como
forma de evitar a arbitrariedade produtora de todos os ma-
les, propomos uma outra via de análise, de natureza meto-
dológica, que pretende indagar antes sobre a racionalidade
que preside o direito, e ver até onde é possível prever solu-
ções com alto grau de certeza.
Muito embora nossas conclusões pretendam contribuir
para que o direito seja visto como um campo específico do
conhecimento, no sentido de possuir uma tipicidade me-
todológica, temos plena consciência de que este debate
ainda está longe de se esgotar. A interdisciplinaridade pró-
pria do direito dificulta qualquer tentativa de se tentar in-
cluí-lo nos núcleos de apoditicidade que caracterizam a
ciência moderna. Por outro lado, queremos fugir do niilis-
mo de que tudo o que é racional, e pode ser demonstrado
empiricamente, é crível; e o que não pode fica simples-
mente relegado ao campo da irracionalidade ou do arbí-
o fato de dizermos que uma pessoa eqüitativa é, mais que todas as
outras, um juiz compreensivo acerca de certos fatos. E julgamento
compreensivo é o julgamento no qual está presente a percepção do
que é eqüitativo, e de maneira acertada; e julgar acertadamente é
julgar segundo a verdade."(Ética a Nicômacos, 1143 a, p. 123.)
10. O termo "razoável", aqui utilizado, não deve sugerir uma decisão
simplesmente aceitável, mas sim justa e legítima, conforme as teorias
apresentadas ao longo do trabalho.
8
to
trio. Percebemos que é essa a tendência que ainda prevale-
ce nos nossos cursos jurídicos, e não é por menos que a
sociologia do direito, com suas precisas técnicas de inves-
tigação, tenha ocupado durante algum tempo praticamen-
te todo o campo da pesquisa jurídica no Brasil.
Entretanto, atualmente pode ser notado o revigora-
mento da pesquisa jurídica de matriz jurisprudencial, cuja
ênfase recai sobre os efeitos concretos da aplicação do di-
reito, tendo em vista principalmente sua repercussão pes-
soal. Este é o modelo, denominado de jurisprudencialis-
mo, apontado por A. Castanheira Neves, como sucessor do
normativismo legalista e do funcionalismo jurídico ante-
riores, e que busca enfrentar a crise de sentido pela qual
atravessa o direito. ll
Tendo em vista, portanto, a necessidade de aprofun-
dar-nos sobre o sentido do direito, que transparece apenas
em seus efeitos concretos, isto é, nas decisões judiciais, é
que procuramos, neste primeiro momento, rever os pa-
drões da hermenêutica tradicional, de forma a recuperar
temática de extrema importância para o enfrentamento da
crise do modelo positivista.
11. A. Castanheira Neves, no trabalho intitulado "Entre o 'legislador',
a 'sociedade' e o 'juiz' ou entre 'sistema', 'função' e 'problema' - os
modelos atualmente alternativos da realização jurisdicional do Direi-
to", publicado na separata do Boletim da Faculdade de Direito da
Universidade de Coimbra, voi. LXXIV, 1998, fala do jurisprudencia-
lismo de natureza antropológica e axiológica. Em suas palavras, "o que
dá sentido ao jurisprudencialismo é uma outra perspectiva bem dife-
rente. Designamo-la por perspectiva do homem (do homem-pessoa), i.
é, aquela perspectiva em que o direito, com uma sua normatividade
axiologicamente fundada, é assumida por, e está diretamente ao servi-
ço de uma prática pessoalmente titulada e historicamente concre-
ta ...... Cf. p. 18.
9
Nossa idéia é aproximar mais a teoria da argumentação
da hermenêuticajurídica, ou vice-versa, pois que, em ge-
ral, elas são tratadas separadamente. Por isso, situamo-nos
no que agora tem sido chamado de "tradição tópico-retóri-
ca", relativa às ciências que se ocupam do discurso e da
dialética, mais especificamente, das chamadas "ciências
do espírito". Assim, definimos o seguinte marco teórico: a
hermenêutica relacionada à compreensão; a decisão jurídi-
ca à atividade criadora ou de concretização; o direito cir-
cunscrito fundamentalmente ao campo dogmático; a teo-
ria da argumentação como técnica jurídica, para, finalmen-
te, tratarmos da interpretação como processo de interme-
diação entre a compreensão e a concretização da norma,
tendo em vista a fundamentação legitimadora das decisões
judiciais.
No primeiro capítulo do livro, procuramos estabelecer
algumas noções sobre o que entendemos como hermenêu-
tica. Para nós, a hermenêutica não se resume no estudo das
técnicas de interpretação, mas nos remete à compreensão
do próprio ser no mundo, que se encontra envolvido com
questões que é chamado a resolver, dentre elas a jurídica.
O direito, por sua vez, não é algo que se apresente indistin-
tamente do sujeito, mas algo que o sujeito histórico vive,
de forma a comprometer, inclusive, as suas ações. Por ou-
tro lado, a inter-relação entre compreensão e interpreta-
ção, que, muitas vezes, faz com que sejam identificadas
entre si, leva-nos a crer que podem ser pensadas separada-
mente. No direito, a pré-compreensão é muito acentuada,
uma vez que os aspectos históricos e culturais que a infor-
mam encontram-se relacionados a um campo conceitual
próprio, a dogmática, que orienta a ação jurisdicional. Por
outro lado, a compreensão do fenômeno jurídico é facil-
mente caracterizada no contraditório judicial produzido
pela interpretação apresentada pelas partes. O embate
10
dialético entre teses opostas, que verificamos em juízo, é
suficiente para que fique caracterizado o esforço argumen-
tativo de se firmar um entendimento para cada questão,
ainda que não seja o único possível e, com isso, concretizar
uma determinada hipótese legal, pondo fim ao conflito.
No segundo capítulo, apresentamos algumas escolas ou
modelos jurídicos de tradição romano-germânica, que se
desenvolveram ao longo da história e que serviram de ori-
gem ao direito brasileiro, cuja fonte principal é a lei escri-
ta. Dessa forma, excluem-se das nossas considerações o
exemplo da common law e as correntes realistas que lhe
são afeitas. O estudo do direito a partir de suas fontes: lei,
costume, fato social, etc., que serviram de orientação às
diversas escolas e movimentos teóricos que caracterizaram
o direito do século XIX, orientam também a sua metodo-
logia. Logo, pensar o direito, ou o que devemos entender
como direito, é pensar qual o seu campo de incidência;
enfim, como deve ser interpretado. Para a Escola da Exe-
gese, por exemplo, o direito deveria ser interpretado res-
tritivamente, inclusive por problemas de ordem política-
é quando o Estado liberal se instaura e o racionalismo está
em voga. Já a Escola Histórica é marcada pela crítica inci-
siva contra o apriorismo do século XVIII, gerador de con-
cepções abstratas e distantes da realidade histórica e so-
cial. l2 A partir daí fica patente que a concepção hermenêu-
tica da ordem jurídica é também filosófica, como mostra
sua ligação com o racionalismo, o romantismo, o positivis-
mo e o realismo. Convém, portanto, abordar algumas das
principais' escolas jusfilosóficas que marcaram o pensa-
mento continental europeu, que foi o nosso berço, de for-
12. Nesse sentido vale a leitura do verbete sobre a Escola Histórica do
Direito, escrito por Alexandre Correia e publicado na Enciclopédia
Saraiva do Direito, vaI. 33, p. 28 e segs.
II
ma a analisarmos os avanços e recuos que acompanharam a
hermenêutica jurídica tradicional.
Em seguida, enfatizamos o estudo da tópica, que muito
contribuiu para a mudança do enfoque metodológico de
base positivista. Para tanto, trouxemos ao nosso campo de
considerações o trabalho de Theodor Viehweg, que serve
como paradigma nessa discussão, e de outros dois juristas,
Recaséns Siches e Castanheira Neves, que compartilham
conosco da visão concretizadora do direito e cujas origens
latino-européias facilitaram a sua entrada em nosso país,
influenciando uma geração de novos juristas.
No último capítulo, concentramo-nos na idéia da "lógi-
ca do razoável", de Chaim Perelman, que melhor responde
à questão da legitimidade na interpretação do direito, uma
vez que a argumentação, na busca do acordo e do consen-
so, é capaz de conferir à lei o significado mais adequado
para cada situação. Tomamos, pois, como parâmetro, a
Nova Retórica, que consiste numa das maiores contribui-
ções jusfilosóficas de nosso século e é responsável pela
enorme reviravolta que a filosofia do direito vem sofrendo.
Finalmente, gostaríamos de deixar claro que, nada obs-
tante recorrermos à tópica como modelo de compreensão
do fenômeno jurídico, não abandonamos a visão sistêmica
e dogmática inerente ao próprio direito. Daí tomarmos
como referência o trabalho de Tércio Sampaio Ferraz Jr.
- autor que talvez mais tenha trabalhado com a tópica
jurídica no Brasil e que consegue aproximar o direito da
tópica, sob uma perspectiva dogmática.
12
Capítulo I
DIREITO, HERMENÊUTICA
E INTERPRETAÇÃO
o tema da hermenêutica e da interpretação jurídicas
remetem-nos ao processo de aplicação da lei realizado pelo
Poder Judiciário. Sob essa ótica, só faz sentido interpretar-
mos a lei tendo em vista um problema que requeira solu-
ção legal. Mas a aplicação da lei deverá atender, antes de
tudo, o indivíduo e a sociedade a quem ela serve. Por isso,
pensamos a lei em função de situações específicas, ou de
casos concretos que envolvem pessoas.
A norma jurídica encontra-se sempre referenciada a
valores na medida em que defende comportamentos ou
serve de meio para atingirmos fins mais elevados. Assim, o
problema jurídico, que envolve situação de natureza valo-
rativa, deve ser compreendido. Compreender é buscar o
significado de alguma coisa em função das razões que a
orientam. Buscar os valores subjacentes à lei, e que fogem
da mera relação causa-efeito. Para aplicá-los, não basta de-
tectarmos o fato e encaixá-lo a uma lei geral e abstrata
13
"
li
dando-lhe concretude, como se a subsunção da premissa
menor à premissa maior conferisse uma solução necessá-
ria, mediante operação puramente formal. Não. O direito
é comprometido com valores, e a norma que buscamos no
texto através da interpretação encontra-se relacionada a
uma situação histórica da qual fazem parte o sujeito (intér-
prete) e o objeto a ser interpretado (fato e norma). Assim,
podemos afirmar que o processo de interpretação e de
aplicação das leis corresponde a uma situação hermenêuti-
ca, da qual nos fala Gadamer. 13
Hermes, na mitologia grega, era um deus de muita agi-
lidade e sapiência. Ao nascer, desfez-se sozinho da banda-
gem que o envolvia e ganhou as estradas. Conforme Junito
Brandãol4 nos relata, Hermes logo furtou um rebanho de
Apolo, prendendo no rabo das ovelhas um ramo que, arras-
tado ao chão, apagava seus rastros. Ao ser indagado por
Zeus, seu pai, sobre o ocorrido, depois de alguma relutân-
cia concordou em dizer a verdade, mas não toda a verdade
ou não a verdade por inteiro. E dessa forma, Hermes tor-
nou-se o mensageiro predileto dos deuses: aquele que de-
tém o conhecimento e que é capaz de decifrar corretamen-
te as mensagens divinas. Conhecedor e intérprete das von-
tades ocultas, Hermes ganhou fama de sábio, tornando-
se importante, mais tarde, para o desenvolvimento da
ciência.
Daí se segue que a visão hermenêutica atual é aquela
que privilegia a busca do conhecimento de algo que não se
apresenta de forma clara. A complexidade das ciências so-
13. Cf. Hans-Georg Gadamer. Verdad y metodo. Sígueme: Salaman-
ca,1993; e O problema da consciência histórica. Fundação Getulio
Vargas: Rio de Janeiro, 1998.
14. Cf. Junito de Souza Brandão. Mitologia grega, vol. li, p. 191.
14
ciais, sempre referidas a valores, faz com que a verdade se
apresente de forma oculta ou que seja, ao menos, discutí-
v~l. Cabe falarmos em hermenêutica nesta área do conhe-
c~me?~o que nã? s.e su~mete à certeza da investigação
CientiflCa. E o direito nao foge à regra. A herme A t'
. 'd' f neu ica
JUfl_ lCa re. ere:se, assim, a todo um processo de interpre-
taçao e aplIcaçao da lei que implica a compreensão total do
fenômeno que requer solução.
1.1 O direito no âmbito da compreensão
O conhecimento que requer compreensão difere de
qualquer outro cuja repe~ição dos fenômenos seja possível
e, portanto, previsível. E o caso das ciências empíricas
como a física, a química e a biologia, que possuem regra~
capazAes ~e permitir-nos controlar, com algum rigor, a
ocorrenC1~ de seus fenômenos. As ciências do espírito, por
~ua ~ez, dizem respeito às relações humanas que, por si só,
implicam uma relação histórica e de liberdade. 15 São rela-
ções que se estabelecem no campo da ética; fogem da re-
15. Gadamer define as ciências do espírito em função do comporta-
ment~ ~tico .?O ?omem, t?~ando por base Aristóteles, da seguintef~:m~. As ClenClas do espmto fazem mais parte do saber moral. São
ClenClas morais. Seu objeto é o homem e o que este sabe de si mesmo.
Agora be~, este saber-se a si mesmo como ser que atua, e o saber que
tem de SI me.smo não pretende comprovar o que é. O que atua trata
antes com ~o~sas que nem sempre são como são, senão que podem ser
tamb~m dlstmtas. Nelas descobre em que ponto pode intervir sua
atuaçao; s:u sab:r deve dirigir seu fazer." Verdade e método, p. 386.
!~ ~ dlmensao humana, própria das ciências do espírito, e que o
pOSltlVlsmo afasta, é explicitada por Paul Ricoeur desta forma: "O
ho~en: não é radicalmente um estranho para o homem, porque forne-
ce smalS de sua própria existência. Compreender esses sinais é com-
preender o homem." Interpretação e ideologias, p. 25.
15
petição e da imutabilidade, enquanto admitem, em lugar
destas, a variedade e a probabilidade. 16 Logo, as ciências do
espírito, por corresponderem a aspectos inerentes à exis-
tência humana, foram muitas vezes relegadas ao estudo da
moral e da religiãO, porque incapazes de produzir uma ver-
dade cientificamente comprovada. Com a virada da filoso-
fia, em meados do século passado,I7 para a ontologia e para
o existencialismo, em que ganham proeminência o ser no
16. A respeito da atividade inovadora do espírito, capaz de instaurar
formas novas de ser e de viver, ao contrário da natureza, que se repete,
ensina o mestre Miguel Reale: "Se a natureza, como natureza, obedece
a leis de uma previsão pelo menos estatística, e se os fatos naturais
marcam um nexo de causa e efeito ou de funcionalidade, segundo o
princípio de que nada acontece que não seja através de uma transfor-
mação do já existente, que nada cria de novo, porque tudo, de certa
maneira, se repete, já o espírito representa a inserção de algo de con-
tingente na natureza, e ao mesmo tempo de vinculante do particular
em uma compreensão de totalidade. [...] Ora, graças à verificação de
tais fatos, podemos afirmar que o espírito humano se projeta sobre a
natureza, dando-lhe uma dimensão nova. Esta dimensão nova são va-
lores, como a fonte de que promanam. O valor, portanto, não é proje-
ção da consciência individual, empírica e isolada, mas do espírito mes-
mo, em sua universalidade, enquanto se realiza e se projeta para fora,
como consciência histórica, na qual se traduz a interação das consciên-
cias individuais, em um todo de superações sucessivas. [...] O elemen-
to de força, de domínio ou de preponderância dos elementos axiológi-
cos ou dos valores resultaria, portanto, dessa tomada de consciência
do espírito perante si mesmo, através de suas obras: os valores, em
última análise, obrigam, porque representam o homem mesmo, como
autoconsciência espiritual; e constituem-se na história e pela história
porque esta é, no fundo, o reencontro do espírito consigo mesmo, do
espírito que se realiza na experiência das gerações, nas vicissitudes do
que chamamos 'ciclos naturais', ou civilizações." Introdução à filoso-
fia, p. 154 e 155.
17. José Lamego aponta para uma "virada hermenêutica" no final da
década de 1960, precedida de um amplo debate sobre a "tópica". Cf.
Hermenêutica e jurisprudêneia, p. 96.
16
seu acontecer, a ciência também aproveita p~ f ara rever seusparametros ormalistas, orientando-se para uma no d'
- d va Ire-çao, marca a, ago~a, pelo pluralismo, pela intersubjetivi_
dade e pela expenência histórica. Por outro lado as .
. . , malS
recentes InVestIgações sobre a razão moral têm apontado
~ara uma base argumentativa que sugere o resgate da retó-
nca e da tópica antigas.
.. A,esfera da vida referente ao agir encontra-se antes su-
~eI~a a compre~nsã~ do sentido que ensejou a ação, do que
a sImples explIcaçao de relações que lhe tenham servido
de ca~sa. ~ idéia é a de que as ações humanas, orientadas
para fInalIdades, encontram-se inseridas em um porq ~h' ,. d ue
:stonco, a mesma forma que o intérprete é um ser tam-b~~ historicamente orientado e que faz parte de uma tra-
dlçao. A norma jurídica constitui-se, assim, em um fazerh~man.?, ~arregado de sentido. E o direito, propriamente
dIto, nao e no.r~a geral, porém, norma individual, pois so-
mente as declso~s dos juízes é que efetivamente obrigam.
~on: a sentença e que sabemos, efetivamente, qual o nosso
dIreIto ou a nossa obrigação. Antes disso, a norma atua
~penas como parâmetro e orientação para a conduta, sem
I~p~tar qualquer dever, como diria Kelsen. Para nós, o
direIto apresenta-se jungido à própria hermenêutica uma
vez que a ~ua ~xistência, enquanto significação, de~ende
da con~retlzaç~oou da aplicação da lei em cada caso julga-
do. AssIm, apoIamo-nos na filosofia de Hans-Georg Gada-
mer,I8 que se baseia na relação fática entre compreensão e
18. Apesar _de ~adamer não estabelecer uma nítida distinção entre
compreensao ~ I~terpretação, conforme pretendemos, porque os en-
tende c~m? sImilares, a sua concepção ôntica e historicista sobre a
hermeneutIca serve aos nossos propósitos.
José La~e~o também trabalha a filosofia de Gadamer em termos
de. hermeneutIca como filosofia prática, aproximando as noções de
verdade e de compreensão como contraponto da visão historicista he-
17
interpretação, no âmbito da experiência, conforme estabe-
lecido anteriormente por Heidegger,19 e Dilthey,20 que já
havia referenciado a hermenêutica à dinâmica da vida. 21
geliana, que propõe para o direito o método científico-espiritual. A
respeito escreve: "Já não assim as impostações que acompanham a
viragem ontológica da hermenêutica: segundo estas, a hermenêutica,
como modalidade de filosofia prática, implicará a superação do méto-
do - e a questão das garantias da objetividade -, para desembocar
diretamente na questão da verdade, entendida esta não como correspon-
dência mas em termos hermenêuticos, como desoeultação (aletheia). E,
deste ~od~, a compreensão remeteria para a virtude dianoética da
phronesis, tratando-se na aplicação hermenêutica não apenas de coor-
denar a situação particular à pauta geral, mas, nessa coordenação con-
seguida (Le., a realização de uma applicatio), potenciar a realização
das possibilidades do direito enquanto ser possível dentro do seu con-
texto vital, quer dizer, permitir a realização do justo concreto. Ou seja:
por via da hermenêutica fundamentar-se-ia uma concepção jusnatura-
lista que daria, simultaneamente, conta da dimensão de historicidade
de todo o direito." Hermenêutica e jurisprudência, p. 90-91.
19. Para Heidegger, a compreensão é um campo de possibilidades que
se abre ao ser presente. Na compreensão, a presença projeta seu ser
para possibilidades. É umpoder-ser que repercute sobre a presença
das possibilidades enquanto abertura. Por sua vez, o projetar da com-
preensão possui a possibilidade própria de se elaborar em formas, e
Heidegger chama essa elaboração de interpretação. Na interpretação,
a compreensão se torna ela mesma e não outra coisa, diz ele. Por fim,
a interpretação se funda existencialmente na compreensão e não vice-
versa: "o mundo já compreendido se interpreta." Cf. Ser e tempo, p.
204.
20. Gadamer, em Verdade e método, faz muitas referências a Dilthey,
pelo viés historicista que este inaugura no âmbito da hermenêutica,
apesar de acabar se distanciando do mesmo. Betti é quem mais de
perto seguirá Dilthey, perseguindo o propósito, comum a ambos, de
estabelecer uma metodologia de interpretação capaz de fundar uma
ciência jurídica. Sobre o projeto de Dilthey e Betti, conferir o que diz
José Lamego, Hermenêutica e jurisprudência, p. 61, 114, 185 a 187; e
Richard Palmer, Hermenêutica, p. 55 a 73.
21. Essa linha hermenêutica também tem sido trabalhada por Inocên-
18
..,
1.2 Direito e interpretação
Entendemos que a existência do direito, enquanto nor-
ma individual e concreta, corresponde à sua compreensão,
para a qual se abrem várias possibilidades interpretativas.
De fato, a concretização da norma é feita mediante a cons-
trução interpretativa que se formula a partir da e em dire-
ção à compreensão. Podemos definir interpretação como a
a~ão mediadora que procura compreender aquilo que foi
dIto ou escrito por outrem. 22 Como ação responsável e não
a!eatória, procura-se, por meio da interpretação, um signi-
fIcado que seja aceito ao menos por aqueles a quem inte-
ressa ao intérprete, adotando-se, para tanto, técnicas de
argumentação.
Em contrapartida, tanto o direito objetivo, que corres-
ponde à ratio legis, quanto o direito subjetivo, referente à
c.io Mártires Coelho, no âmbito do direito constitucional. Nesse sen-
tido, vale consultar o livro Hermenêutica constitucional _ direitos
fundamentais. Vide bibliografia.
22. De acordo com Edmond Ortigues (Enciclopédia Einaudi, Impren-
sa ~ac~~~al- Casa da Moeda, Portugal, 1987), no verbete Interpre-
taçao, diremos que interpretar é compreender, reformulando ou re-
exprimindo sob uma forma nova; a interpretação consiste em mostrar
~lgo: ~la vai do abstrato ao concreto, da fórmula à respectiva aplicação,
a sua Ilustração ou à sua inserção na vida."
José ~amego, cuja tese também se apóia na proposta hermenêuti-
ca de Heldegger e Gadamer, apesar de não estabelecer claramente
uma distinção entre compreensão e interpretação como fazemos es-
"P h "c~e.ve: ara .uma ermenêutica assente em pressuposições existen-
Clals-?ntológlCas, a atitude interpretativa ou compreensiva terá que
ver nao com questões de subjetividade ou objetividade do sentido de
algo que é dado ao intérprete, mas de um agir mediador que elabore
e potencialize as possibilidades projetadas no compreender, identifica-
do este, na expressão de Heidegger, COm o ser de tal poder-ser." Her-
menêutica e jurisprudência, p. 91.
19
----------- ---~- -
intenção do autor numa situação específica, inserem-se no
campo histórico da compreensão. O direito, como obra
humana, é compreendido, e não explicado, a partir de re-
lações necessárias de causa e efeito, como se para cada pro-
blema jurídico houvesse uma única, inequívoca e verdadei-
ra resposta. O direito, como as demais ciências do espírito,
corresponde a um acontecer, que cabe ser interpretado se-
gundo os valores que comandam a sua ação, tanto interna
quanto externamente. 23 Internamente seria a própria ratio
legis e, externamente, a inserção histórica do intérprete, se
é que ambas as posições podem vir desassociadas. A exis-
tência do direito conforma-se, assim, a uma tradição cultu-
ral determinada, mas que não pode ser encarada sob uma
perspectiva reducionista, uma vez que admite valores
universais válidos também para outras épocas e outros lu-
gares.
Compreender é indagar sobre as possibilidades do sig-
nificado de um acontecer próprio das relações humanas. E,
nesse sentido, acreditamos que o direito só existe quando
compreendido. Um código, por exemplo, contém regras
gerais e abstratas constituídas em função de hipóteses pro-
váveis, mas que só ganham um significado concreto quan-
do remetidas à própria prática, ou melhor, quando condu-
zidas pela ação, seja a ação de quem as tenha elaborado,
como o legislador que prevê a realização de uma prática,
seja a de quem produz a transferência da regra de um cam-
po virtual dado, que é o código, para um campo de signifi-
cado real- o juiz quando decide. 24
23. Os valores que comandam a ação advêm tanto do ato do legislador,
quando este decide o caso típico (valores internos à lei), quanto do ato
do juiz, quando, com base na decisão do legislador, decide o caso
concreto (valores externos ao âmbito restrito da lei).
24. A esse respeito escreve Perelman: "O direito, tal como funciona
20
Nossa hipótese é a de que o processo de _
'. compreensao
se concretiza por melO da argumentação que t .
. b'l' . ' ,ecnIcamen-
te VIa I Iza a mterpretação. De outro lado verl'fl'
_ . ,ca-se que
a compreensao, como mOVImento oposto ao da expl' -
. Icaçao
raclOnal,;-demonstrativa, insere-se no campo das possibili-
dades. E possível aquilo que é verossímil, ou seja, aquilo
que aparenta verdade, sem, no entanto, pretender sê-Ia.25
A verossimilhança não depende de fatos ocorridos, mas da
probabilidade da realização de um projeto. Ora, essas pos-
sibilidades nos são apresentadas mentalmente conforme
tratadas pela retórica ou pela teoria da argumentação; é o
momento em que o pensamento dialético se instaura. 26 A
argumentação, por sua vez, é a técnica que visa ao acordo
sobre a escolha do significado que pareça mais adequado às
efetivamente, é essencialmente um problema de decisão: o legislador
deve decidir quais serão as leis obrigatórias numa comunidade organi-
zada, o juiz deve decidir sobre o que é o direito em cada situação
submetida ao seu juízo. Mas nem o legislador nem o juiz tomam deci-
sões puramente arbitrárias: a exposição dos motivos indica razões por
que uma lei foi votada e, num sistema moderno, toda sentença deve
ser motivada. O direito positivo tem como correlativo a noção de
decisão, senão razoável, pelo menos raciocinada." Cf. Ética e direito,
p.376.
25. Olivier Reboul, de forma bastante sintética, atribui o caráter de
verossímil a "tudo aquilo em que a confiança é presumida". Cf. Intro-
dução à retórica, p. 95.
26. Perelman definirá argumentação em oposição a demonstração, da
seguinte forma: "Demos o nome de argumentação ao conjunto das
técnicas discursivas que permitem provocar ou aumentar a adesão das
mentes às teses que se apresentam ao seu assentimento; sendo o ter-
mo tradicional demonstração reservado aos meios de prova que possi-
bilitam concluir, a partir da verdade de certas proposições, pela de
outras proposições, ou ainda, no terreno da lógica formal, passar, com
a ajuda de regras definidas de transformação, de certas teses de um
sistema a outras teses do mesmo sistema." Perelman, Retóricas, p.
369.
21
partes discursivas; acordo este fundamentado em provas
concretas e opiniões amplamente aceitas. Com a argumen-
tação temos condições de "visualizar" a compreensão, na
.medida em que esta se traduz em algo de concreto. 27
O direito admite, pois, uma superposição entre duas
esferas: a da compreensão da norma e a d~ compreensão
do fato, levadas a cabo pelo ser historicamente presente,
que se utiliza, pa,ra tanto, do procedimento argumentativo.
Tecnicamente, a argumentação viabiliza o acordo capaz de
formular a compreensão através de uma interpretação que
sirva de fundamento à solução mais razoável.
O método do direito é, portanto, o método tópico-
hermenêutico. Cada situação deve ser compreendida em
função do problema que apresenta e da tradição históricana qual se insere. Mas o seu instrumental é argumentativo.
Dessa forma, podemos dizer que o direito consiste na rea-
lização de uma prática que envolve o método hermenêutico
da compreensão e a técnica argumentativa.
Para nós, o método diz respeito à orientação para o co-
nhecimento, e a técnica, às regras que dirigem essa ativida-
de. Logo, compreensão e concretização encontram-se inti-
mamente relacionadas: existe o que se compreende em
função imediata de um aplicar. Assim, a realidade do direi-
to é a mesma realidade de sua compreensão. 28
27. Quando Heidegger diz que a interpretação funda-se na compreen-
são e não vice-versa, ele considera os pré-juízos como ponto de partida
para toda a compreensão. Esses pré-juízos funcionam no nosso esque-
ma como topoi.
Para Heidegger, a interpretação sempre se funda numa visão pré-
via, que "recorta" o que foi assumido na posição prévia, segundo uma
possibilidade determinada de interpretação. Cf. Ser e tempo, p. 206-7.
28. Para Gadamer, "a realidade histórica é igual à realidade do com-
preender histórico." Verdade e método, p. 370.
22
1.3 Hermenêutica e interpretação
A hermenêutica mostra-se presente quando, segundo
Vattimo,29 Nietzsche anuncia a morte do deus da metafísi-
ca,3D entendida esta última como "a descrição universal-
mente válida de estruturas permanentes e essenciais à
compreensão do mundo" .31 À descrição objetiva dos fatos
segue-se a busca da verdade mais persuasiva e responsável,
originária da interpretação, isto é, uma interpretação que
pretende validade até aparecer outra, concorrente, que a
destitua. 32
O autor situa a hermenêutica na filosofia que se desen-
volve ao longo do eixo Heidegger-Gadamer.33 E olhando
dessa forma. anota que a hermenêutica revela os seus dois
aspectos constitutivos: o da ontologia, privilegiado neste
29. Gianni Vattimo. Para além da interpretação: o significado da her-
menêutica para a filosofia.
30. Vattimo finaliza o capítulo intitulado "A vocação niilística da her-
menêutica", evocando Nietzsche e o sentido da morte de Deus para a
modernidade, "isto é, da dissolução da verdade como evidência pe-
remptória e 'objetiva'. Até agora, [afirma,] os filósofos acreditaram
em descrever o mundo, é chegado o momento de interpretá-lo... ".
Para além da interpretação, p. 27.
31. Vattimo, ob. cit., p. 23.
32. Passagem ilustrativa sobre a importância da argumentação e de sua
matriz intersubjetiva, no processo de interpretação, encontramos no
texto de Vattimo: "Os argumentos que a hermenêutica oferece para
sustentar a própria interpretação da modernidade são conhecidos por
serem 'apenas' interpretações; não porque acreditam em deixar fora
de si uma realidade verdadeira, que poderia ser lida de modo diferen-
te; mas sim porque admitem não se poder apelar, pela própria valida-
de, a nenhuma evidência objetiva imediata. Isto porque o seu valor
está na capacidade de dar lugar a um quadro coerente e compartilha-
do, na expectativa de que outros proponham um quadro alternativo
mais aceitável." Ob. cit., p. 24.
33. Cf. p. 14.
23
nosso trabalho, e o da lingüisticidade.34 Gadamer critica o
cientificismo e o metodologismo modernos para reivindi-
car a busca da verdade além dos limites do método cientí-
fico positivo, a começar pela verdade da experiência, como
ato interpretativo. Dessa forma, passemos à análise do
tema, buscando um pouco das suas origens.
Como vimos, a origem do termo Hermenêutica tem
como referência Hermes, o enviado divino que na Grécia
antiga levava a mensagem dos deuses aos homens. Signifi-
cava trazer algo desconhecido e ininteligível para a lingua-
gem humana. Richard Palmer nos diz que o verbo herme-
neuein, usualmente traduzido como "interpretar", e o
substantivo hermeneia, como interpretação, significam
transformar aquilo que ultrapassa a compreensão humana
em algo que essa inteligência consiga compreender.3S O
autor aponta ainda três tarefas específicas da hermenêuti-
ca como mediação, quais sejam: dizer, explicar e traduzir.
Dizer, no sentido de anunciar ou afirmar algo, relaciona-se,
antes, com a ação anunciadora de Hermes: trazer notícias
fiéis das divindades. No entanto, o predomínio da palavra
entre os gregos fez com que a linguagem falada e sua ver-
tente performática ganhassem relevo, e a hermenêutica
passasse a ser vista como ars. Explicar torna-se mais im-
portante do que simplesmente expressar, na medida em
que as palavras racionalizam e clarificam algo; é quando
ganha ênfase o aspecto discursivo da compreensão. E,
quanto a traduzir, significa que o hermeneuta torna com-
preensível o que é estrangeiro, estranho ou ininteligível.
34. Nesta linha poderíamos apontar o trabalho de Lenio Luiz Streck.
Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da
construção do Direito.
35. Ver Richard Palmer. Hermenêutica.
24
UM .i.
Em Roma, a hermenêutica desenvolveu-se muito com
a própria prática jurídica. Os pretores e os jurisconsultos
diziam o direito para cada caso concreto, sem qualquer
pretensão de generalidade. Mas essas decisões consolida-
ram-se com o tempo, transformando-se em máximas que
se tornaram muitas vezes obrigatórias.36
A hermenêutica alcançou notável proeminência no
campo religioso. O problema de interpretar corretamente
a palavra de Deus era comum ao povo judeu em relação ao
Antigo Testamento; aos cristãos, ao Novo Testamento; e
aos protestantes, em relação à Reforma. Durante a Idade
Média, a análise sistemática sobre a evidência da revelação
divina deu origem à Teologia,37 e a hermenêutica assumiu
o aspecto exegético da correta interpretação dos textos sa-
grados, dando ensejo ao seu desenvolvimento no campo
filológico.
36. O valor do argumento de autoridade em Roma é grande, haja vista
a Lei das Citações, promulgada por Constantino no século IV d.e.
Este estatuto legal veio corroborar o que a prática já havia confirmado:
a sabedoria dos jurisprudentes notáveis tinha legitimidade para esten-
der-se a situações similares. De acordo com a Lei das Citações, o juiz
deveria aplicar as opiniões de Ulpiano, Modestino, Gaio, Papiniano e
Paulo, da seguinte forma: em primeiro lugar, prevalece a opinião da
maioria; em caso de divergência, acolhe-se a opinião de Papiniano;
finalmente, não havendo regras específicas para o caso, cabe ao juiz
adotar a tese que lhe pareça melhor.
37. Na Escolástica, por exemplo, procurava-se organizar racionalmen-
te as idéias divinas sob a perspectiva da fé. A racionalidade encontra-
va-se no instrumental utilizado, que era o texto, por meio do qual
transmitiam-se as idéias reveladas. Na Idade Média existiam os "co-
mentários" e as "sumas". Os primeiros originavam-se diretamente da
explicação do texto, enquanto as sumas apresentavam, de forma. ra-
cionalmente ordenada, a síntese dos princípios extraídos dedutIva-
mente dos textos divinos. Vide J. M. Fateaud, no prefácio à 23 edição
brasileira de Discurso do método, de Descartes: Editora Martins Fon-
tes, 1996.
25
Para o direito, no entanto, foi extremamente significa-
tiva a atividade dos glosadores da Universidade de Bolo-
nha, durante os séculos XI e XII. Com a descoberta, em
1080, as leis romanas compiladas por ordem do Imperador
Justiniano no século VI d.C., mais tarde chamadas de Cor-
pus Iuris Civilis, iniciou-se todo um esforço acerca do seu
entendimento e compreensão, de forma a adotar-se, na
prática medieva, o exemplo romano. Segundo Wieacker,
"a Idade Média sentiu a cultura antiga como uma forma
modelar e atemporal da sua própria vida" .38
O desenvolvimento das cidades italianas justificou a
formação de uma corporação própria - a Universidade
-, destinada aos estudos jurídicos para a formação de fun-
cionários públicos, como síndicos, procuradores, notários
e advogados. 39 Como o texto jurídico romano era muito
difícil, antes de mais nada ele deveria ser explicado. E do
resultado da interpretação feita pelos

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