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C O N S E r v a Ç Ã O br Seminário da Rede 1 A C o n s e r v a ç ã o d o P a t r i m ô n i o n o B r a s i l T e o r i a e P r á t i c a Orgaização: Silvio Zancheti Gabriela Azevedo Carolina Moura Organizadores Silvio Mendes Zancheti Gabriela Magalhães Azevêdo Carolina Moura Neves A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL TEORIA E PRÁTICA 1º Seminário da Rede Conservação_BR Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada – CECI Olinda 2015 Capa Carolina Moura Neves Projeto Gráfico Gabriela Magalhães Azevêdo Todos os direitos reservados Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada Praça do Carmo, n. 5, apt. 6. – Bairro do Carmo 53120-000 Olinda PE Brasil Fone: 3439 3445 http://www.ceci-br.org ceci@ceci-br.org A Conservação do Patrimônio no Brasil: teoria e prática. Organizado por Silvio Mendes Zancheti, Gabriela Magalhães Azevêdo e Carolina Moura Neves / Olinda: Centro de Estudos da Conservação Integrada, 2015. 223 p.:il. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-98747-21-7 1. Conservação. 2. Memória. 3. Paisagem. 4. Instrumentos. A CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO BRASIL: TEORIA E PRÁTICA 1º SEMINÁRIO DA REDE CONSERVAÇÃO _ BR 12 a 13 de Novembro de 2012 Auditório do Hotel 7 Colinas Ladeira de São Francisco, Carmo. Olinda – Pernambuco – Brasil ORGANIZAÇÃO Rede Conservação_BR Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (Ceci) Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE (MDU) Curso de Mestrado em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável COMITÊ DE ORGANIZAÇÃO Flávio Carsalade (UFMG) Silvio Zancheti (Ceci e UFPE) Virgínia Pontual (Ceci e UFPE) SECRETARIA EXECUTIVA Raquel Bertuzzi (Ceci) Gabriela Azevêdo (Ceci) Carolina Moura Neves (Ceci) COMITÊ CIENTÍFICO Alex Oliveira de Souza (UEMA) Ana Carmen Jara Casco (IPHAN) Cêça Guimaraens (UFRJ) Cecília Ribeiro (UFPE e Ceci) Elio Trussiani (La Sapienza, Itália) Flaviana Lira (UNB) Flavio Carsalade (UFMG) Leonardo Castriota (UFMG) Lúcia Hidaka (UFAL) Marluce Wall Venâncio (UEMA) Natália Vieira (UFRN) Norma Lacerda (UFPE e Ceci) Paula Maciel (UNICAP) Renata Cabral (USP, São Carlos, Ceci) Rosane Piccolo Loretto (Ceci) Silvio Mendes Zancheti (UFPE e Ceci) Tomás Lapa (MDU e Ceci) Virgínia Pontual (UFPE e Ceci) Sumário Apresentação Os organizadores 03 Texto Abertura Patrimônio como construção cultural 05 Flavio Carsalade Parte 1 Patrimônio e teoria Por uma agenda de discussões sobre a conservação da arquitetura moderna 26 Flaviana Lira Gestão da conservação - restauração do patrimônio cultural: algumas reflexões sobre teoria e prática 38 Ozana Hannesch, Elisabete Edelvita da Silva, Marcus Granato e Ana Paula de Carvalho A “via crítica” no patrimônio cultural: Uma perspectiva comparativa 49 Leonardo Castriota Parte 2 Patrimônio e memória Ayrton Carvalho e a disseminação do campo da conservação no Brasil 65 Juliana Melo Pernambuco O papel da memória na conservação sustentável do patrimônio: O Cine Bandeirante em Sabará/MG 76 Fabiana De Lucca Munaier e Felipe Munaier Memória e estruturação do espaço nas colônias italianas no Rio Grande do Sul. Estudo crítico- comparativo entre Bento Gonçalves/RS e as terras de origem 87 Décio Rigatti, Lívia Piccinini e Elio Trusiani A forma segue a função? Uma contribuição ao estado atual da arte da conservação patrimonial no Brasil a partir de dois estudos de caso: o Touring Club e o Brasília Palace Hotel 108 Ana Elisabete Medeiros e Oscar Luís Ferreira Parte 3 Patrimônio e paisagem Paisagens urbanas tradicionais 124 Letícia Miguel Teixeira A paisagem do Plano Piloto de Brasília a partir de suas escalas 133 Gabriela Azevêdo e Carolina Neves Parte 4 Patrimônio e seus instrumentos CRONIDAS: Proposta de padronização de representação em mapas de danos 145 Luís Gustavo Costa e Lucas Figueiredo Baisch Por que os mestres escutam as pedras? Uma investigação sobre a trajetória profissional do trabalhador da construção civil que atua na restauração de imóveis 157 Régis Martins e Antônio de Pádua Tomasi Utilização da conservação patrimonial material como instrumento de inclusão social: Avaliação do programa Escuelas Taller no Nordeste do Brasil 167 Karla Nunes Penna e Elisabeth Taylor Delitos contra o patrimônio cultural: Insuficiências normativas brasileiras e espanholas 181 Anauene Dias Soares Identificação patrimonial e instrumentos de inventário aplicados às edificações históricas de Espírito Santo do Pinhal/SP 193 Camila Corsi Ferreira Pelas cidades: Jornadas de planejamento municipal pela proteção da memória e do patrimônio cultural dos municípios 205 Fábio José Martins de Lima Texto de Encerramento Plano de gestão da conservação para edificações de valor cultural 218 Jorge Tinoco 3 APRESENTAÇÃO Esse livro reúne os trabalhos selecionados e apresentados no seminário A conservação do patrimônio no Brasil: teoria e prática realizado entre os dias 12 a 13 de novembro de 2012, no centro histórico da cidade de Olinda, Pernambuco. Foram publicados trabalhos escolhidos, por uma avaliação criteriosa, entre um conjunto de mais de uma centena de propostas apresentadas à comissão editorial do seminário. O conjunto de artigos reflete a maturidade alcançada pela pesquisa sobre a conservação patrimonial no meio acadêmico e profissional do Brasil. Muitos e diversos temas estão contemplados com profundidade e rigor científico. Pode- se afirmar, sem desprezar contribuições importantes que, até os anos 1990, a produção sobre a conservação patrimonial reunia, basicamente, relatos de aplicações práticas de ações de restauro ou estudos preliminares, quase sempre históricos, sobre as obras que receberiam essas intervenções. Pouco se discutia sobre teoria, métodos ou abordagens de intervenção em objetos patrimoniais. Os trabalhos reunidos nesses anais são uma prova cabal dessa afirmação. Forão tratados temas teóricos e práticos da conservação patrimonial, nos seus mais variados aspectos, com uma diversidade e profundidade notável para um campo de pesquisa e discussão teórica tão recente em nosso país. Todos os textos apresentam ideias originais, inéditas e elaboradas com critérios científicos consagrados. Comentar os trabalhos apresentados seria uma tarefa exaustiva e redundante, já que foram publicados com resumos bem elaborados que facilitam a consulta do leitor. O objetivo principal do seminário foi fornecer uma panorâmica sobre o estado da arte da pesquisa da conservação do patrimônio cultural no nosso país. Também, e não menos importante, foi iniciar um diálogo estruturado e sistemático entre pesquisadores e suas equipes, para a formação de uma rede colaborativa de pesquisa. O tempo decorridoentre a publicação do livro e o seminário não arrefeceu o interesse nos temas tratados no evento. Logo após o seminário os 4 artigos apresentados no evento foram disponibilizados na página da web do Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (Ceci) e, até o momento da publicação desse volume (junho de 2015), havido sido realizados mais 29.000 downloads dos artigos. A formação da rede foi um desafio insuperável pelo Ceci. As redes científicas requerem recursos econômicos, institucionais e humanos que ultrapassam, em muito, as capacidades de organismos como o Ceci para assumir a liderança necessária para a sua consolidação. Assim, mesmo não podendo continuar a proposta da rede, o Ceci publica o livro esperando que com isso a rede possa ser assumida e desenvolvida por outras instituições ou indivíduos. Os organizadores do seminário e da publicação querem expressar gratidão a todos os colegas pesquisadores e administradores do Ceci que colaboraram na realização do seminário e da publicação. Sem o esforço e abnegação deles esses produtos não existiriam. Também, querem agradecer a colaboração dos membros do Comitê Científico do seminário pelo excelente trabalho de análise e seleção dos textos. Querem ainda estender os seus agradecimentos aos dois grandes conservadores do patrimônio no Brasil que realizaram as conferências de abertura e encerramento do seminário: Professor Flavio Carsalade e o Arquiteto Jorge de Lucena Tinoco. Olinda, junho de 2015 Silvio Mendes Zancheti Gabriela Magalhães Azevêdo Carolina Moura da Fonseca Neves Organizadores 5 PATRIMÔNIO COMO CONSTRUÇÃO CULTURAL1 Flavio de Lemos Carsalade Resumo O artigo examina a pertinência dos fundamentos da teoria da preservação vigentes nas áreas da cultura (estabilidade cultural), história (objetivismo histórico) e artes (imanência da arte) visando discutir sua validade no campo da preservação e restauro do patrimônio construído. A partir dessa análise, o autor discute o que efetivamente se preserva e restaura em arquitetura, indicando a necessidade de uma abordagem própria para este campo, a partir da contribuição da hermenêutica e do reconhecimento da intersubjetividade. Palavras-Chave: patrimônio cultural, patrimônio histórico, patrimônio artístico Introdução A noção de Patrimônio Cultural contemporânea é muito mais ampla do que aquela que se fazia há poucas décadas atrás, quando ela se estabelecia apenas sobre os pilares da história e da arte, sendo que a excepcionalidade artística ainda tutelava o reconhecimento histórico. Os tempos mudaram, mas as raízes de formação do pensamento patrimonial ainda definem com bastante intensidade o tratamento que é dado aos bens patrimoniais. A abordagem que se pretende fazer aqui é antes uma maneira de investigar as diversas faces do conceito de patrimônio e as conseqüências que elas têm nas estratégias de preservação, evitando-se mascara-las como se houvesse uma unidade de pensamento supostamente estabelecida pelas “cartas internacionais” ou que certas tensões, como por exemplo, a opção entre instância estética ou instância histórica já tivessem sido superadas pela história do restauro. 1. Princípios de preservação/ restauração A consolidação moderna de uma consistente “teoria da restauração” foi realizada pelo italiano Cesare Brandi (1906-1988), a partir das contribuições sobre o tema que já vinham sendo debatidas na Europa desde o século XIX. A sua teoria se estabeleceu sobre os dois pilares acima citados, a história e a arte, levando-o a discorrer sobre uma instância histórica e uma instância artística aplicáveis aos objetos a serem restaurados. Dois conceitos fundamentais para o entendimento contemporâneo do patrimônio – a cultura e a memória - não foram explorados, mas apesar disso, a prática contemporânea aplica a teoria brandiana indiscriminadamente aos bens a serem 1 Artigo publicado em Cadernos de Estudos do PEP V. 9 (Contribuição dos Palestrantes da 8a Oficina do PEP, Petrópolis 2008). Edição IPHAN 2009, ISBN 978-85-7334-126-3 UFMG. flavio.carsalade@terra.com.br 6 preservados, desconhecendo que toda ela foi estabelecida apenas com relação às obras de arte, hoje apenas uma parcela de nosso vasto patrimônio. Além disso, a separação entre uma instância histórica (na maior parte das vezes relacionada à matéria) e artística (na teoria brandiana associada à imagem) possibilita também uma separação entre imagem e matéria, a qual muitas vezes aponta para uma atitude simplista que reduz o trabalho de restauro a uma mera adaptação da matéria à obra de arte em sua exigência formal, desconhecendo envolventes da memória e da cultura. A partir dessas distinções – instância histórica e instância artística, imagem e matéria - de certa maneira, o processo histórico de abordagem do patrimônio e seu restauro têm se estabelecido a partir de três crenças principais, as quais procuraremos analisar aqui e que são: o objetivismo histórico (a matéria como prova inequívoca do passado), a imanência da arte (a imagem dotada de uma aura única e reveladora, imutável) e a estabilidade da cultura (a identidade e os costumes como padrões imutáveis caracterizadores de um determinado povo). 1.1. OBJETIVISMO HISTÓRICO “Vinte e cinco anos depois, tudo pode ser verdade. O homem está disposto a admitir qualquer coisa desde que traga a chancela do tempo”. (Carlos Drummond de Andrade, Fala Amendoeira) A questão do objetivismo histórico pode ser abordada sob dois ângulos. O primeiro diz respeito à epistemologia da própria disciplina da História e a segunda relativa ao par autenticidade/verdade, o qual documentaria inequivocamente a historiografia. A) Quanto à história: Embora a História contemporânea questione a idéia “objetiva” de “verdade histórica”, ela está tão arraigada no senso comum e na patrimonialidade “agregada” aos objetos que elas se confundem com a impossível busca de recuperar os fatos passados como eles realmente aconteceram, contrariando a constatação de que o discurso histórico é essencialmente dedutivo e as suas explicações são antes “avaliações” que “demonstrações”. O movimento da década de 70 conhecido como Nova História já reconhecia alguns pontos epistemológicos importantes: O acontecimento é singular: o fato histórico só acontece uma vez e não se repete. Daí decorrem três grandes problemas. Primeiro, a primazia do acontecimento (não confundir fato histórico com o acontecimento real); segundo, a parcialidade e a fragmentação dos fatos, privilegiando, como é mais usual, os indivíduos e as grandes personalidades; terceiro, a redução da História à narração (o que leva a escolhas não explícitas na narração); 7 É impossível uma reconstrução integral dos fatos exatamente como ocorreram. Na realidade, a História agrupa fatos em função do método e do historiador, sendo, portanto, extremamente influenciada pelo momento em que é escrita; Na outra ponta, as fontes que supostamente “documentariam” objetivamente os fatos podem ter sido manipuladas pelo poder (documentos “oficiais”) ou pela opinião (fontes jornalísticas) ou pelo filtro do narrador (indeterminação da memória); Constatações como essa levam, é claro, a uma grande suspeição sobre uma única verdade histórica e, consequentemente, propõe uma revisão de conceitos e métodos. B) Quanto á autenticidade É a materialidade do bem cultural, talvez, que lhe confira um status de História objetiva, pois se os momentos históricos são recriações, a matéria que sobreviveu ao tempo é um fato concreto, palpável, um documento, portanto. Uma análise desse suposto “documento”seria, então, de grande utilidade para a nossa análise. Dois problemas metodológicos ocorrem com relação aos documentos, nessa abordagem: Se não há uma neutralidade da história, como se esta fosse a narração da “verdade” dos acontecimentos, a qual história esse documento se refere? Até que ponto ele é puro e resultante de uma seleção desinteressada e até onde eles comprovariam uma determinada versão histórica, a qual, na verdade, atende às intenções das classes dominantes ou aos recortes próprios de cada historiador que os colecionou; Quais os critérios decisivamente científicos que comprovariam a suposta autenticidade do documento e como se daria a conservação dessa autenticidade? Nesse caso, ainda que seja verificada a sua idade, não há como saber se ele espelharia a verdade como ela realmente aconteceu ou se seria uma versão “fabricada” para provar uma história oficial ou desejada. Qualquer que seja a sua forma, no entanto, o documento antigo constitui um acervo patrimonial, posto que é uma herança que vem do passado e tem sua origem em um tempo que não volta mais. Independentemente de seu valor de “verdade”, ele é um objeto do passado, com potencial de expressão próprio. Isto não quer dizer, no entanto, que ele é certamente o documento comprobatório da história e nem que ele é original de um determinado fato histórico ou de um único momento específico de criação: ele deve ser absolutamente relativizado como sobrevivente do passado, mas sem a aura de um inconteste documento de uma História “real”. No entanto, e apesar disso, a idéia de preservação do documento está muito ligada aos conceitos de veracidade e autenticidade, sobre os quais repousariam o seu valor documental. Ambos são conceitos complexos que merecem uma atenção especial. O conceito de “verdade” é bastante complexo no campo da filosofia e, quando examinado quanto ao seu compromisso com a idéia de preservação, ele oferece vários ângulos de exame. No entanto, apesar de toda essa indeterminação quanto ao 8 verdadeiro e ao autêntico, o terror de se preservar uma “mentira” é tão grande na área patrimonial que vários textos e encontros foram realizados em nome da autenticidade. Para a Carta de Brasília, o entendimento sobre autenticidade repousa sobre os conceitos de identidade e herança, reconhecendo que ela não poderia ser abordada desde um ponto de vista objetivo. Ao reconhecer a mutabilidade do conceito de autenticidade, a Carta arrisca uma definição: As diferentes vertentes que integram uma sociedade apresentam leituras de tempo e espaço diferentes mas igualmente válidas, que devem ser levadas em conta no momento em que se fizer a avaliação da autenticidade [...] O significado da palavra autenticidade está intimamente ligado à idéia de verdade: autêntico é o que é verdadeiro, o que é dado como certo, sobre o qual não há dúvidas. Os edifícios e lugares são objetos materiais, portadores de uma mensagem ou de um argumento cuja validade, no quadro de um contexto social e cultural determinado e de sua compreensão e aceitação pela comunidade, os converte em patrimônio. Poderíamos dizer, com base neste princípio, que nos encontramos diante de um bem autêntico quando há correspondência entre o objeto material e o seu significado (CARTA DE BRASÍLIA, 1991, grifos nossos). A própria UNESCO, no seu Operational Guideliness, também se distancia do conceito de autenticidade como uma suposta “verdade objetiva” e se aproxima do entendimento de uma autenticidade sócio-cultural. Essa nova abordagem da autenticidade, é claro, acaba influindo também na idéia de integridade (cuja recuperação seria teoricamente a meta do restauro), a qual passa a ser relativa aos valores culturais. Colocada a questão da verdade e da autenticidade, resta-nos ainda investigar outras relações entre as duas. Vimos até agora que a autenticidade se ampara sobre dois fatores, a matéria (se ela é substituída, a autenticidade do objeto é ameaçada) e à imagem. A estes, Viñas acrescenta outros dois: a idéia que originou o objeto e a sua função material (especialmente nos bens arquitetônicos). Segundo o autor, esses fatores acabariam por gerar, na teoria do restauro, quatro concepções sobre supostos estados autênticos do objeto2: um “estado autêntico como estado original” (ou o que tinha o objeto quando acabou de ser produzido); um “estado autêntico como estado prístino” (ou seja, aquele que o objeto deveria ter, ainda que não tenha tido nunca); um “estado autêntico como estado pretendido pelo autor” (ou seja, como o mais parecido possível como o autor o queria) e um “estado autêntico como estado atual” (ou seja, a única autenticidade possível seria aquela maneira como o objeto efetivamente se apresenta a nós). Desses quatro, Viñas reconhece que a autenticidade não é um fato objetivo, mas que, “de fato, todos os objetos são autênticos, autênticos pelo fato de existir, tautologicamente autênticos.” 3 2 VIÑAS, 2003, p. 84-86 3 VIÑAS, 2003, p.93 9 1.2. IMANÊNCIA ARTÍSTICA “Arte é tudo aquilo que os homens chamam de arte” (Formaggio) Sendo a obra de arte considerada a expressão máxima da cultura e o resultado do gênio criador, a imposição da inteligência e da sensibilidade humana sobre a matéria informe, é compreensível (embora discutível) que a atividade do restauro se detivesse sobre a questão da imagem. A preservação e a continuidade de sua expressão seriam um desafio ao qual não poderiam se furtar os profissionais da área. Vale a pena, aqui, explorarmos brevemente o conceito de “imagem”. Este já foi entendido como resultado da nossa ação fisiológica de ver (ela mesma eivada de conteúdos culturais e existenciais), como representação (seja do ponto de vista comunicacional da semiologia ou da substituição do ser pela sua designação) como substituto da representação pela presentificação crítica (como na Fountain de Duchamp) ou, em Platão, como mimesis (como uma mentira que esconde a verdade) e ainda, pela fenomenologia, como sendo a forma como o objeto se nos apresenta: como ele se manifesta e como é por cada um percebido, ligado portanto à sua aparência, a qual inclui, integradamente, a sua materialidade e seu significado. Às várias concepções de imagem, ainda se acrescentam outras questões intrinsecamente ligadas a ela e que nos interessam especialmente quanto à sua preservação. Primeiramente, vamos examinar a preservação da imagem assentada na idéia de sua legibilidade. Nesse enfoque, as deteriorações causadas pelo tempo são aceitas até o ponto em que não interfiram na capacidade da obra exercer a sua expressão, ou seja, permanecer legível. A partir desse entendimento de legibilidade, vários são os tratados que definem como sendo a sua recuperação a tarefa precípua do restaurador, como a Carta do Restauro de 1972 que entende o restauro como “qualquer intervenção destinada a manter em funcionamento, facilitar a leitura e transmitir integralmente ao futuro” os objetos patrimoniais. Para empreender seu raciocínio quanto à legibilidade, Viñas nos lembra que, em primeiro lugar, que a questão da legibilidade é baseada em códigos e, portanto depende tanto do que está “escrito” quanto da capacidade de quem vai lê-lo e de seu conhecimento sobre os códigos ali utilizados e que, em segundo lugar, as lacunas eventualmente existentes em uma obra de arte necessariamente não a tornam ilegível, mas propõem uma outra forma de legibilidade, incorporando nessa nova forma também os acidentes do tempo. Os dois pontos levantados por Viñas são importantes para o entendimento do conceito de legibilidade na abordagem que aqui fazemos porque remetem à questão fenomenológica da relação entre obra e sujeito e reforçam que o procedimento do restaurona verdade é fruto de decisões pessoais do restaurador e das eleições que ele faz, privilegiando uma das possíveis leituras do objeto sobre outras. A passagem do tempo modifica a peça e, na outra ponta, também as condições de leitura do observador presente são outras. Não há, portanto, como recuperar a totalidade existencial da obra daquele momento neste novo momento, qualquer intervenção sobre ela privilegia um fator sobre o outro, na sua construção presente. 10 Esse mesmo raciocínio abre as portas para que suspeitemos também de uma visão muito determinista do conceito de deterioração. Para nos ajudar a explorar este aspecto, cabe referência à questão da pátina, a qual é muitas vezes essencial ao entendimento da passagem histórica do bem e cuja supressão acabaria por lhe retirar até mesmo sua apreensão de autenticidade. O entendimento, portanto, de deterioro como “alteração material do bem” não é suficiente, posto que a passagem do tempo, é claro, imprime suas marcas no objeto e elas não são necessariamente negativas ou destruidoras. Na verdade, consideramos deterioração aquilo que entendemos como sendo um valor “negativo” para a peça, novamente mostrando que mesmo uma questão que, a princípio parece tão centrada no objeto como o deterioro, também depende do sujeito e das relações intersubjetivas que se estabelecem. A autenticidade da expressão, outro suposto atributo da “aura” do objeto artístico, é também buscada muitas vezes no processo de restauro sob diversos enfoques tais como a congenialidade com o autor e o tempo (“é assim que o autor queria”), o proto-estado ou estado originário. Sob todas essas formas fica difícil se falar objetivamente de uma suposta expressão autêntica posto que o tempo passou para a peça e sobre ela imprimiu suas marcas, as quais não são apenas marcas materiais - também autênticas - mas mesmo as da tradição, a qual fez com que a peça se apresentasse desta ou daquela maneira aos pósteros. Sob esse aspecto, inclusive, convém lembrar que a raiz da palavra “tradição” (do latim traditio, tradere, trado) é a base tanto da palavra transmissão quanto da palavra traição, reforçando o fato de que nem sempre a transmissão é neutra e fiel. A solução brandiana para o restauro está exposta no seu primeiro axioma, onde ele define que, na obra de arte, só se restaura a matéria. Ora, para o entendimento contemporâneo de alguns autores como Bardeschi não faz sentido um entendimento de restauro centrado na preponderância da imagem e muito menos que só se restaura a matéria, para ele exatamente o que não se deve restaurar, pois é a única coisa autêntica remanescente do bem, portanto a única a se manter a salvo de qualquer intervenção. Outro problema prático do restauro levantado por Brandi e também correlato á legibilidade trazido pela questão da fragmentação e da lacuna. O conceito de lacuna apresenta problemas quer do ponto de vista semiológico, da leitura, quer do ponto de vista da percepção gestáltica, especialmente quanto à extensão lacunar. Sob o primeiro ponto de vista, a lacuna pode ser de tal ordem que interrompa a compreensão do texto e, sob o ponto de vista da segunda, ela pode interromper o liame das partes e dificultar a legibilidade da obra. O conceito de lacuna, no entanto, não é único. Para a hermenêutica gadameriana, por exemplo, ele não está centrado no objeto, mas na relação entre ele, o sujeito e a compreensão que este faz daquele, remetendo também ao intérprete. 1.3. ESTABILIDADE CULTURAL A visão antropológica contemporânea entende a cultura como sendo uma visão de mundo que estabelece padrões públicos e determina o destino das nações, uma consciência coletiva, uma forma de falar sobre identidades coletivas. Na medida em que ela apresenta esse papel intermediador, a cultura faz parte integrante de nosso ser, 11 da nossa relação com o mundo. Talvez pelo fato de que ela não seja herdada biologicamente, mas assimilada, sujeita ao vai-e-vem dos processos históricos, ela apresenta várias características que nos importam nesse momento, tais como um caráter dinâmico (com várias sub-culturas, abertas, sincréticas, instáveis) e diversos níveis interdependentes (indivíduo, grupo ou classe, sociedade). Na realidade, os valores culturais são variáveis e relativos e não predeterminados e eternos e, no seu desenvolvimento, ela se apresenta como criação e recriação contínuas, muitas vezes à base de empréstimos e trocas. As ideias culturais são expressas e comunicadas por meio de símbolos, padrões explícitos e implícitos, idéias tradicionais com valores vinculados. Como sistema simbólico, ela é influenciada e influencia as relações sociais, a economia, a arte, a religião e outras formas do ser humano se manifestar ou se comportar. Tais funções psicológicas e existenciais fazem com que a cultura nos pareça estável, sob pena de perdemos nosso próprio eixo, se assim não fosse. No entanto, não é bem assim. Na medida em que a simbologia muitas vezes se constrói sobre objetos físicos, no caso das coletividades sobre monumentos ou objetos fortes e presentes, a ilusão da estabilidade cultural leva a uma errônea imbricação entre objeto e significado, como se este último fosse imanente àquele. O entendimento de que para garantir o significado da obra é preciso mantê-la intacta ou como era está claramente centrado no objeto e na sua imanência própria e, de certa forma, desconhece a relação com o sujeito que, à sua maneira lhe impões significações pessoais e de grupos que lhes impõem também outras significações próprias. A preservação da dimensão simbólica, no entanto apresenta várias particularidades: Pelo seu caráter sinedóquico, ou seja, do particular representar o todo, faz com que, de certa maneira, a preservação dependa mais da sobrevivência do bem, seja de que maneira for, do que da estrita preservação da matéria, como mostram os exemplos de Ouro Preto e Varsóvia; Pelo seu caráter difuso, representa conceitos imprecisos (do ponto de vista descritivo, como identidade, por exemplo) ou excessivamente abrangentes (de grandes grupos sociais, como nação, por exemplo), os quais, de certa maneira, também não se associam diretamente às sutilezas e detalhes da forma ou da matéria; Pela natureza de sua seleção, remete mais a uma construção idealizada, política ou econômica do que propriamente a uma conservação intacta (da qual se aproveitam as estratégias oportunistas de preservação); Pelo fato de simbolizar vários e diferentes conceitos (valores “altoculturais”, de identificação grupal, ideológicos e até mesmo sentimentais), também apresenta diferentes modos e métodos de preservação; Pela sua estreita ligação com a sociedade e os valores a que serve, os quais muitas vezes se sobrepõem à sua função original - pois a dimensão simbólica se 12 apresenta como mais importante - causa alterações na forma e na matéria para se adaptar ao predomínio dessa função4; Pela maneira como se apresenta, na sua preservação podem se alternar valores e métodos que se relacionam mais com a sua presença como objeto artístico ou histórico, ou ainda de maneira magnificada ou reduzida; Pela flexibilidade inerente à classificação de um objeto como obra de arte, pode induzir a diferentes decisões sobre sua preservação. Essa flexibilidade, por exemplo, faz com que alguns objetos sejam considerados como pseudo-artísticos e, portanto, sem “necessidade” aparente de preservação (como “a pintura banal de uma igrejinha qualquer”), a qual poderia ser substituída (do ponto de vista artístico) ou mantida (pelo valor sentimental, ligado à memória); B) A questão da identidade É essa mesma esperança de estabilidade, de permanência, que cria a confusão quanto ao conceito de identidade, entendido como um atributo imutável,associado ao ser, como o “mesmo”, aquilo que não muda, aquilo que se aproxima do referente. Se essa concepção for utilizada de maneira rígida, como muitas vezes o é, “identidade” seria um conceito dominador e evanescente que a todo o momento entraria em choque com a realidade, esta sempre dinâmica e diversa. Face à imprecisão de seus contornos, o termo “identidade” tem apresentado vários entendimentos. Muitas vezes aparece como a tentativa de materialização de um ente coletivo dotado de coerência e continuidade, uma “objetificação cultural”5, a construção de um modelo que aparece como um conceito tão ideal que nunca acontece na prática ou acaba por determinar quais elementos devem ser preservados para construir este ente. Outras tantas vezes, a identidade aparece como “sentimento de ser”, ligado a uma suposta autenticidade do grupo. Essas acepções, como não poderia deixar de ser, acabam sendo utilizadas como plataforma de dominação, usado na prática para justificar as mais diferentes ações. Sob outro ponto de vista, a identidade também pode ser entendida pelo seu conceito complementar, a diversidade. Por esse processo, seria mais operacional reconhecer aquilo que se parece pela contraposição com o que lhe é diverso, diferente. O que acabaria por levar a um entendimento mutável de identidade como o “mesmo na recognição” ou uma repetição que se diferencia6, sempre transformação e criação. É importante, então, que não entendamos “identidade” como um conceito absoluto, pré-existente e congelado, mas sempre relacional, calcado na ação presente e na compreensão da sua diversidade e transformação. D) Quem escolhe o que é patrimônio Já em 1903, Riegl nos mostrava que, em face dessa relatividade e instabilidade cultural, a questão do patrimônio se assentava sobe valores. E, nesse caso, como se 4 Por exemplo, a mudança operada após o período de vandalismo da Revolução Francesa nos palácios que deixaram de ser residências para se tornarem espaços coletivos, patrimônio comum. 5 GONÇALVES, 1996 6 MAGNAVITA, 2003, p. 69 13 mede o valor coletivo? A régua usada tem sido a força do Estado, o gosto das elites e, modernamente, a imposição da mídia ou do capital. A partir daí podemos depreender que os valores não estão apenas no objeto, mas na compreensão que as sociedades fazem sobre ele. Essa compreensão se sobrepõe, portanto àquela de que o próprio teria uma “verdade” imanente, a qual deveria ser preservada. A questão da classificação de um objeto como patrimônio ou não parece estar ligada a uma suposta imanência do próprio objeto, impregnando-o de uma função totêmica, como se ele, por ele, fosse o catalisador das comunidades, o gerador das identidades. Também neste aspecto é colocar carga demais sobre o objeto. Na realidade, não é ele que gera as identidades, apenas as simboliza, representa valores anteriormente gerados que se agregam em torno daquilo que podemos chamar “identidades”. Dessa discussão fica claro que o “ser” patrimônio não está no caráter imanente do objeto, mas sim em uma outra forma de relação que passa também pela pessoa, comunidade ou sociedade, portanto pelo sujeito, que lhe confere tal grau. E quem é esse sujeito? Também esse sujeito tem caráter mutante, dependendo do grupo social, do tempo histórico e dos valores que lhes são inerentes. Alguns teóricos, a partir dessa constatação, tendem a estabelecer que a característica comum dos objetos-patrimônio é o significado que eles trazem consigo, ou seja, seu caráter simbólico. Dessa forma, eles seriam, antes que objetos memoráveis, objetos rememoradores7. De qualquer maneira, também não é o sujeito que, independentemente do objeto cria seus significados. Para Viñas, “a patrimonialidade não provém dos objetos, mas dos sujeitos: pode definir-se como uma energia não-física que o sujeito irradia sobre um objeto e que este reflete.” 8. No nosso entendimento – e segundo nosso método de análise – isto também não é verdade, pois aqui se coloca toda a responsabilidade sobre o sujeito. Parece-nos, antes, que a posição de patrimônio está na interação entre sujeito e objeto, no acontecimento, no fenômeno, pois se objetos específicos refletem a intenção do sujeito, de alguma forma eles têm em si certas propriedades (espaciais, históricas, artísticas) que lhe conferem esse poder. Há nisso um correlato importante com o entendimento hermenêutico sobre o objeto histórico. Segundo Gadamer, “o verdadeiro objeto histórico não é um objeto, mas a unidade de um de outro, uma relação formada tanto pela realidade da história, quanto pela realidade do compreender histórico” 9. O significado, portanto está na relação que se estabelece entre o sujeito e o objeto e a compreensão hermenêutica está na consciência dessa reciprocidade. F) Os significados patrimoniais Os debates que se fazem em torno da restauração mostram com clareza a mesma oscilação que se faz na discussão sobre o patrimônio em seu caráter histórico, artístico e cultural. Enquanto os estritos defensores do caráter histórico ainda se ressentem do positivismo e de um objetivismo documental, os defensores do caráter 7 VIÑAS, 2003, p. 55 8 VIÑAS, 2003, p. 152 9 GADAMER, 2004, p. 396 14 artístico se prendem a um idealismo calcado na expressividade da imagem, ambos centrados no objeto em si. A vertente cultural tende a aproximar-se do sujeito, enfatizando mais as questões subjetivas e do senso coletivo, em parte também considerado pelo ramo crítico-criativo relacionado ao caráter estético. A postura fenomenológica se propõe a superar essa dicotomia, na medida em que não valoriza mais o objeto ou o sujeito, mas a relação entre eles. Não há apenas o objeto em sua imanência, independente do sujeito que o observa, frui e nele intervém e nem o sujeito em sua consciência estrita que apenas usa o objeto como ponte para seus próprios pensamentos, podendo, em face a essa minimização de seu valor objetivo, alterá-lo ao seu bel prazer, posto que o sujeito e a sociedade são só o que contam. A presença do sujeito modifica a apreensão do objeto. Viñas10 nos revela que essa modificação ocorre a partir de quatro fenômenos principais: A inércia icônica, segundo a qual o espectador reconhece o objeto como está acostumado a fazê-lo e qualquer alteração na sua forma lhe parece estranha ou inverídica (como exemplo, nos pareceria estranho ver os templos gregos coloridos – como efetivamente eram no momento de sua criação, posto que nos acostumamos a vê-los brancos); O preconceito histórico, segundo o qual o objeto deve adaptar-se ao que o espectador pressupõe (que é o que acontece, por exemplo, nos filmes os quais inclusive ajudam a criar o modo como “devemos” reconhecer os diferentes períodos históricos: a Idade Média escura e sombria, a Renascença cheia de luzes); O fetichismo material, segundo o qual a verdade está no material original, ainda que a réplica seja perfeita e feita com o mesmo material do original (o espectador se sente enganado, por exemplo, quando fica sabendo que grande parte das esculturas urbanas de Florença não são as originais); A garantia dos “experts”, segundo a qual os técnicos sabem mais do que qualquer um e, portanto, seu saber é superior (eles devem, inclusive, nos dizer como devemos pensar). Um exame das atitudes do sujeito face aos bens artísticos, culturais ou históricos mostra bem como esses fenômenos sempre apareceram de uma forma ou de outra na história e condicionaram o próprio ato de intervenção neles. Por exemplo, a inércia icônica aparece no Renascimento na valorização da cultura greco-romana, como ela parecia ao homem dos séculos XIV e XV; o preconceito histórico, da mesma forma, na Renascença, na negaçãodo gótico e na adição de elementos clássicos ao Panteão ou ainda, no século XVIII com o saudosismo estilístico dos “neos” com resquícios até mesmo nas restaurações fantasiosas de Viollet-le-Duc; o fetichismo material aparece seja nos “souvenirs”, seja no documento histórico valorizado de forma diferente no Iluminismo ou no positivismo do século XIX; a garantia dos experts é também presente na história, só mudando os experts, os quais muitas vezes foram os nobres ou os clérigos.. Aos diferentes tipos de valor atribuídos aos monumentos, em função de diferentes momentos históricos e contextos correspondem também diferentes meios para sua preservação. 10 VIÑAS, 2003, p. 97-98 15 Assim, nem a imagem é a-histórica e nem a história é homogênea. A compreensão dessas premissas é fundamental para a atitude do restaurador, fazendo com que o seu juízo histórico-estético influencie substancialmente sua prática. Hoje já superamos a idéia de neutralidade científica até mesmo nas ciências humanas e sociais, onde até mesmo os próprios antropólogos, por exemplo, já não acreditam mais em uma posição “neutra” de análise de uma determinada cultura, entendendo que mesmo o observador está profundamente marcado pela cultura e tradição do homem que as examina. Por trás da vertente cultural está a questão do significado do bem para o homem e as sociedades, o qual, como vimos nos casos de Varsóvia, Veneza ou Ouro Preto, interfere decisivamente nos métodos e processos de restauração. O significado do bem muitas vezes supera a mensagem da própria imagem, fazendo com que a sua força simbólica ultrapasse a expressividade estética nele contida. Na realidade, a questão do significado ultrapassa as imposições da forma, tendo com relação a esta uma relativa autonomia. Embora a imagem congregue significados e estimule relações, o bem patrimonial parece estimular outros níveis de relação ligados ao mundo existencial do fruidor. Essa autonomia do significado em relação à obra única se exerce em diferentes maneiras: Pelo “descolamento” entre a imagem e a obra física, objeto histórico, quando a imagem precisa ser evocada ou utilizada independemente do seu suporte material existir ou não, como no caso das cidades supracitadas ou das sucessivas tentativas de reconstrução do Templo de Salomão ou do uso de suas formas como base para outros templos construídos ao longo da história; Pela sua “mutabilidade operacional”, quando a imagem precisa ser adequada ou atualizada ou reformada para melhor atender aos novos usos e práticas que nela se fazem ou dela se extraem, como ocorre na Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, em Salvador, onde vários de seus espaços são alterados ao longo do tempo, de forma a facilitar a relação com os fiéis; Pelo seu “uso icônico”, que é o caso citado por Walter Benjamin em seu texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, onde a imagem deixa de ser necessariamente associada ao seu suporte material original – a perda da aura – e ganha mundo com apropriações diversas como é o caso, por exemplo, da Mona Lisa, “pop star”; Pelo seu “significado ritualístico”, ligado a aspectos cíclicos das tradições ou à afirmação do mundo simbólico, como soe ocorrer no Oriente em práticas tradicionais como a reconstrução do Templo de Ise. 2. O que se preserva/ restaura Se compreendermos que as ações de patrimonialização e restauro não estão centradas apenas no objeto, mas também no sujeito, devemos compreender também a importância de se trabalhar o patrimônio como um campo de relações, a partir das quais se estabelece a sua compreensão, olhando com suspeita as teorias apriorísticas que sobre ele se lançam. Acreditamos que só há abertura e pacto possível entre o fruidor e o 16 patrimônio se este tiver um sentido para aquele11. A questão da significação, assim, traz consigo uma grande abertura na medida em que entendemos que não existe um significado único e universal, mas vários deles, advindos dos modos particulares a partir dos quais ele é experimentado. Da mesma forma, não há metodologia única de intervenção, mas no nosso entendimento todas elas devem levar em conta a questão de dotação de sentido, sob pena de esvaziar aquilo que se abre na historicidade do monumento O significado do bem patrimonial, entretanto, não parte apenas da sua história ou da sua esteticidade, mas da integração dessas duas formas de apropriação se estabelecendo ainda sobre uma série de referências, sejam elas de natureza espacial, de conceitos prévios emanados do mundo sócio-cultural ou pessoal, em suas vivências e memória. Alguns perigos, no entanto, se apresentam à compreensão/ interpretação (e seu rebatimento na preservação) que necessitam ser apontados para o uso adequado de nosso método12: O perigo historicista acontece quando colocamos o “contexto no lugar do texto”, ou seja, quando tentamos entender o bem patrimonial não como ele se apresenta hoje a nós, mas como ele era e se portava no contexto onde ele nasceu. Este é o perigo que conduz ao embalsamento e a mumificação do bem e que também conduz a sua apropriação excessivamente setorial (geralmente pela indústria do turismo) e que, ao tentar lhe recuperar a “verdade” do significado, acaba por lhe retirar quase todo ele; O perigo psicológico acontece quando, na preservação, procuramos interpretar a intenção do autor ou o espírito da época em uma forma de congenialidade que é mais pretensiosa do que possível. O próprio Brandi já nos alertava para o perigo dessa atitude, ao condenar a tentação do restaurador de fazer “como” o autor; O perigo objetivista13 acontece quando se procura derivar o sentido do bem a ser interpretado a partir apenas dele próprio, “tornando-o independente do autor, do contexto e do intérprete”. Segundo Brandão, esta tentação acaba por promover um insulamento da obra de arte e da Arquitetura, especialmente aquele que se verifica nos museus e galerias de arte; O perigo relativista, próximo ao historicista, acontece quando obliteramos nosso modo próprio de interpretação pela tentação de relativizar sempre a obra ao seu contexto original. Por esse perigo substituímos a fruição/ intervenção do presente pelo excesso de zelo pelo suposto documento; O perigo subjetivista acontece quando a balança pende para o lado do leitor/ restaurador que impregna o bem patrimonial com sua própria e exclusiva 11 Levantamos, inclusive, que a perda de sentido é um dos principais problemas pelo qual passa a preservação hoje. 12 Os cinco primeiros foram trabalhados a partir daqueles apresentados por Carlos Antônio Brandão em BRANDÃO, 1999, p. 115, 116. A eles acrescentamos os últimos três. 13 BRANDÃO chama a este perigo de “positivista”, mas preferi reservar este termo para as posturas esteticistas e filológicas do limiar dos séculos XIX e XX. 17 interpretação ou quando, no processo de intervenção, minimiza a presença da sua historicidade para fazer valer sua própria intencionalidade; O perigo positivista acontece quando se acredita poder trabalhar o bem apenas pelo método científico, sobre supostas bases “seguras” que a ciência ou o método analítico pudesse lhe fornecer. Aqui se enquadram tanto o método filológico quanto o método de recomposição da unidade estilística citados no início deste capítulo; O perigo idealista aparece, no patrimônio edificado, naquilo que tange ao culto à imagem ou a matéria como se elas fossem, respectivamente, os centros da expressão artística ou da historicidade do objeto. Esta discussão também será retomada com mais profundidade nos capítulos seguintes; O perigo do senso comum aparece na suposta “verdade” superficial assimiladacoletivamente ou na superficialidade do gosto ou do juízo comum. Do exame desses perigos, podemos verificar que compreender estética e historicamente não se dá a partir de uma congenialidade, nem a partir de algo que seria imanente ou transcendente ao próprio objeto, nem ainda sobre o esforço analítico, mas a consciência da filiação da obra a nosso mundo. A) O QUE SE PRESERVA Ao mudar a cultura, transformam-se os valores e transformam-se, também, é claro, as atitudes quanto ao patrimônio. Assim, parece que o que se preserva, na realidade, é a identidade em transformação, ou seja, a preservação não está na capacidade do bem de permanecer como está, mas na sua capacidade de mudar junto com as mudanças sócio-culturais. Essa concepção se choca com a acepção de imutabilidade do bem a ser preservado. Também ele, como a tradição e a cultura, está em constante transformação. Não há, portanto, como buscar a essência do objeto de restauro em uma idéia imutável de “objeto” que sobreviveu à história, pois ele está inserido na história da vida, a qual se caracteriza pela transformação. Não há esse objeto a-histórico “essencial” - além do que isso seria uma contradição com seu valor como patrimônio histórico conferido exatamente por ser histórico. Mesmo a idéia de uma transmissão “neutra”, independente da cultura e da tradição não se sustenta. Benjamin e Osborne trabalham o conceito de transmissão, comparando o pensamento de Heidegger e de Benjamin, ambos convergentes para o fato de que a História não é um ato progressivo e nem o presente um herdeiro inconteste do passado. A partir dessa convergência constatam: Enquanto o Iluminismo e o antiiluminismo conferiam à tradição o sentido de transmissão, Heidegger e Benjamin recuperaram seu sentido traiçoeiro e perigoso de uma rendição potencialmente destrutiva. O ato de “entregar” destrói o objeto cedido; não é de modo algum um “meio”, muito menos um meio “neutro”, para a transmissão do passado para o presente. Como ambos reconheceram em 1916, a tradição é não só o que é transmitido num dado tempo como também a outorga desse tempo, ele próprio na distinção entre passado e presente ao mesmo tempo que os 18 supera ao entregá-los um ao outro; ela tanto funda quanto pressupõe o tempo que tem lugar. Como Heidegger e Benjamin mostraram em 1916, a tradição é um fenômeno paradoxal, e até destrutivo, caracterizado por uma transmissão que ao mesmo tempo excede ao que é transmitido e é por ele contida. (BENJAMIN e OSBORNE, 1997, p. 29). Assim, toda transmissão ao presente seria também uma forma de destruição do passado, resultando, portanto, numa quebra da autenticidade daquilo que é transmitido, pelo menos naquela autenticidade “pura” ou a uma suposta plenitude “original” da obra de arte14. Dessas discussões resultou que os objetos que sobreviveram à torrente do tempo são, na realidade, aquilo que foi selecionado para ser passado ao futuro, portanto fruto intencionado de uma sociedade que queria ser lembrada de certa maneira, afinal a História é uma versão do fato, não o fato em si. Mas as duas impossibilidades, a da objetividade da história e a da imanência da imagem, persistem apesar da relatividade cultural e social e acabam por gerar uma tensão entre verdade e leitura que afeta substancialmente as práticas de preservação. Para entendermos as suas formas mais usuais partimos da disjunção entre História e patrimônio revelada por Lowenthal: A história e o patrimônio transmitem coisas diferentes a audiências diferentes. A história conta a todos os que querem ouvi-la o que ocorreu e como as coisas chegaram a ser o que são. O patrimônio se baseia em mitos de origem e continuidade, conferindo a um grupo prestígio e objetivos comuns. A história se engrandece quando seu conhecimento se propaga; o patrimônio se vê diminuído e degradado quando se estende. A história é para todos, o patrimônio somente para nós. A história não é completamente aberta - os investigadores protegem suas fontes, os arquivos se fecham, aos críticos se nega o acesso aos documentos e os erros são esquecidos. Mas a maior parte dos historiadores condena a ocultação. Ao contrário, as mensagens do patrimônio estão restritas aos eleitos. [...] o patrimônio se baseia em regras tribais que convertem cada passado em uma posse exclusiva e secreta. Criado para gerar e proteger interesses de grupos, somente nos beneficia se o isolamos dos demais. Compartilhar, ou inclusive mostrar, um legado histórico aos demais diminui suas virtudes e poderes. [...] Ser do clã é essencial para sobrevivência e bem estar de um grupo. (Lowenthal, 1996) (VIÑAS, 2003, p. 143-144). 14 “Duas coisas emergem do processo de ‘vir ser e desaparecer’: uma é o objeto ou evento que vem e vai, e a outra é a vinda e ida de objetos e eventos, sua tradição. Para Benjamin, o preço que se paga para se tornar um objeto de tradição é a inautenticidade e a imperfeição; tal objeto nunca pode estar autenticamente ali, integral em si mesmo, uma vez que só está ali graças ao fato de ter sido transmitido pela tradição. Sua emergência já é sempre o seu desaparecimento – o local da tradição não é um lugar onde passado, presente e futuro são reunidos para uma ação resoluta, mas um lugar onde o presente é obsedado não só por seu passado como também por seu futuro de vir a ser passado. É um lugar de luto. Aqui a origem e seus objetos jamais podem atingir a autenticidade, estando sempre em dívida com algo que não se revela”. (BENJAMIN e OSBORNE, 1997, p. 34). 19 A partir dessas constatações, Para Lowenthal, a preservação do patrimônio se acomoda ao uso que se faz dele mediante três operações fundamentais e interligadas: uma atualização (no sentido de se impor imagens e valores a personagens do passado); uma melhora (que destaca aquilo que mais se considera hoje) e uma exclusão (o que, ao contrário da anterior, consiste em “esquecer” aquilo que hoje não é apreciado) (VIÑAS, 2003, p. 146). A questão da preservação se centra agora, portanto, no conceito de transformação, ou seja, como manejar essa transformação de forma que não se rompa a delicada tessitura entre a tradição e a contemporaneidade, pois, ao intervir no bem patrimonial nós o estamos modificando, sempre, afinal pela tradição ele já nos chega alterado, pela cultura ele nos chega tematizado e, pelo tempo, com sua significação “original” perdida. B) O QUE SE RESTAURA Após o exame do conceito de preservação, resta-nos que a grande dificuldade epistemológica do restauro está na evanescência de seu objeto de aplicação. Afinal, a que se aplica o restauro? O que se restaura? A palavra restaurar, de origem latina, traz consigo a idéia de recobrar, reaver, recuperar, recompor. Ora, pelo que vimos até agora, estas são ações impossíveis com relação ao bem patrimonial, posto que, ao intervirmos na sua matéria, seja na sua estrutura ou na sua aparência, não o estamos recuperando, mas modificando-o. Além do mais, preservar e restaurar, apesar de serem conceitos interligados, não são exatamente ações associadas e nem sempre complementares, pois restaurar significa intervir em um bem, ao passo que preservar significaria apenas, a princípio, a sua transmissão através do tempo. A interligação biunívoca entre as práticas de preservação e restauração, portanto, só teriam sentido se para a transmissão do bem - e o seu vigor no presente – fosse indispensável a sua recuperação, o que já vimos não ser também sempre necessário. A ação de restaurar, portanto, se aplica apenas quando há um objetivo precípuo de superar a destruição causada na transmissão daquele bem que, sem a ação do restauro, perderia totalmente o seu potencial de significação15. Restaurar, portanto, parece ser uma ação interventivaque visa recolocar o bem patrimonial no jogo do presente através da recuperação de suas próprias perdas e é, portanto, sempre um processo de re-significação e daí uma re-criação que se faz sobre a matéria que conseguiu sobreviver ao tempo. Essas premissas poderiam nos dar a ilusão de que, então, ao desaparecer efetivamente o objeto do restauro, se desapareceria também o seu objetivo, o que, é claro, não faz sentido. Essa digressão nos leva a compreender, então, que a ação de restaurar está presente na dimensão existencial do ser, mas deve ser repensada mais quanto aos seus objetivos do que quanto aos seus objetos (sobre os quais a História da Restauração sempre versou). No entanto, não é pelas dificuldades epistemológicas relacionadas ao objeto do restauro que estariam liberados os limites de ação do restaurador. Essas dificuldades só nos mostram que, na realidade, ao aprofundarmos nossa investigação sobre patrimônio, preservação e restauro, não estamos “reduzindo” 15 O que também já vimos, através de Riegl, ser impossível, pois mesmo uma ruína é prenhe de significados. 20 a aplicabilidade desses conceitos, mas ampliando-os e com isso, também redimensionando o “objeto” do restauro. É essa a tarefa que se nos apresenta neste momento e convém começarmos por algumas distinções conceituais importantes que se dão, por exemplo, entre preservação e restauro ou entre conservação e restauro, dentre outras. Assim, o que se preserva não é: O bem “intocado”, pois se o não tocarmos ele se degrada e, ao nele tocarmos, acabamos por modificá-lo; A matéria “original”, como aparece no paradoxo da Nau de Teseu; A forma “congelada” do bem, posto que é impossível parar a ação do tempo e de cada geração sobre o bem; Uma suposta “verdade” histórica, posto que esta não existe objetivamente; O seu momento “original” de criação, posto que esse já passou e só poderia ser acessado por uma suposta congenialidade, esta também impossível; A intervenção apenas na matéria, sem com isso intervir na dimensão imaterial; A redução de seus significados ou de sua complexidade E nem se dá através de um método exclusivamente científico, universal e neutro (que pende para o lado do objeto), mas também não tão aberto que desconsidere elementos compartilhados coletivamente (o que penderia para o lado do sujeito) e nem se faz a partir de um entendimento “globalista”, onde o objeto artístico é entendido de maneira global, sem levar em consideração as especificidades de cada expressividade artística. A partir disso, entendemos que, na realidade, o que se preserva é: A “existência” do bem patrimonial, na sua capacidade de se fazer presente; A sua capacidade de pontuar a existência, referenciando-a, a sua especialidade no espaço e no tempo; A sua capacidade de nos atrair e possibilitar um pro-jeto; A fruição do presente instituída pela memória e as possibilidades abertas pelo passado: não é o retorno ao passado, mas a sua vivência no presente; A abertura de significados que a obra de arte (e de resto, mesmo o bem patrimonial não dotado de caráter artístico) “fixou” na matéria e no lugar e não apenas pelas características objetivas (formais e físicas) do objeto, portanto as suas dimensões material e imaterial; 21 A identidade em transformação: a capacidade de mudança do bem, mantendo o equilíbrio dos modos pessoal e impessoal, dentro da dinâmica do tempo e da cultura; 3. Saídas Quais seriam, portanto, as saídas para os dilemas que a própria noção de patrimônio cultural traz consigo? Até onde nos é permitido vislumbrar, podemos propor que essas saídas estão no reconhecimento da relatividade do bem patrimonial e no reconhecimento da intersubjetividade. A) RECONHECIMENTO DA RELATIVIDADE DO PROCESSO: A CONTRIBUIÇÃO DA HERMENÊUTICA Para compreendermos a relatividade do processo de patrimonialização, a Hermenêutica de Gadamer, de base fenomenológica, pode ser de importante ajuda. Em primeiro lugar, ela é entendida como cura. A cura é um conceito de Heidegger que pode ser entendido, de forma simplificada, como o exercício do ser na sua existencialidade, ou seja, na lida cotidiana do homem com as coisas, com as outras pessoas, com o mundo, dentro da vida. Essa questão pode ser exemplificada pela tradição patrimonial no Brasil Segundo José Reginaldo Santos Gonçalves, ela teria sido edificada sobre o medo da perda e sob a necessidade de se construir um projeto de nação e, segundo Vera Millet, fortemente marcada pelo controle governamental e econômico. Essas atitudes acabam por levar a um desequilíbrio entre o bem patrimonial e a vida cotidiana e continuada: ao invés do bem se assentar com serenidade no transcorrer da vida, é claro exercendo sua função referencial como sempre, ele se superexpõe e se torna espetáculo, portanto, à parte da própria seqüência “natural” dos acontecimentos, afinal, “o que está em vias de desaparecer deve ser magnificado”16. Ao se fazer assim, ele também magnifica certos significados “selecionados”, “fechando” neles a compreensão da obra preservada e criando uma distância entre ela e o seu fruidor. Outro ponto importante relacionado à questão da cura é o que se dá em decorrência da ilusão de perenidade é de que o objeto patrimonial é a imagem congelada do passado. Como imagem, ela teria, portanto, uma imanência própria que a desvincularia do fruidor, possuindo em si as propriedades necessárias para gerar sempre a mesma mensagem. Na realidade, ele é um elemento de interação reflexiva com o fruidor, seja pela consciência histórica ou artística, seja como estímulo à sua compreensão pessoal. Em segundo lugar, a Hermenêutica de Gadamer reforça a importância da relatividade do pensamento presente na consciência histórica. Para Gadamer, o homem moderno tem o privilégio de “ter consciência da historicidade de todo presente e da 16 JEUDY, 2005, p. 27 22 relatividade de toda opinião (...) e ter senso histórico significa pensar expressamente o horizonte histórico co-extensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo” 17. Esse senso histórico permite ao homem moderno se entender na perspectiva do tempo e relativizar a sua opinião, dois pontos fundamentais para se exercer a abertura necessária à interpretação hermenêutica. Quanto ao terceiro ponto, Gadamer identifica também uma consciência estética, como sendo um tipo de compreensão que se realiza a partir do próprio centro da relação entre o fruidor e a obra de arte, na verdade que aí, na relação, se estabelece. Para ele, a verdade da arte não estria na referência à realidade, como resultado de sua imitação ou transformação, mas no mundo que ela própria institui, o qual cria a sua própria verdade quando a nós se apresenta. Tal distinção que a obra de arte possibilita em relação ao objeto real – à qual Gadamer chama de “distinção estética” –uma abstração que lhe é salutar, na medida em que cria o canal específico de sua compreensão, independente dos outros elementos de sua “realidade” (seu objetivo, sua função ou o significado de seu conteúdo). Essa abstração, no entanto, não deve ser confundida com a suposta qualidade estética ligada apenas ao belo e ao gênio, os quais apontamos anteriormente, posto que o belo muitas vezes é influenciado pela consciência histórica e que a genialidade é antes o reconhecimento do outro, portanto exteriorizada. A abstração a qual Gadamer se refere está situada antes na esfera do modo da experiência, na abertura de um outro modo de vivência que a arte institui. A sua realidade objetiva, claro, é também importante para a ancoragem da obra ao mundo e para a complementação de seussignificados, mas não substitui a abertura fornecida pela realidade outra que a arte possibilita. “O que perfaz a soberania da consciência estética é poder realizar por toda parte uma tal distinção [entre a realidade e a abstração por ela criada] e poder ver tudo ‘esteticamente’.” 18. B) RECONHECIMENTO DA IMPORTÂNCIA DA INTERSUBJETIVIDADE Além das questões da relatividade colocadas pela saída hermenêutica, resta-nos também a saída do reconhecimento da intersubjetividade. Pelo que depreendemos até agora, parece ter ficado claro que o “ser” patrimônio não está no caráter imanente do objeto, mas sim em uma outra forma de relação que passa também pela pessoa, comunidade ou sociedade, portanto pelo sujeito, que lhe confere tal grau. A partir do entendimento que é a intersubjetividade que, na realidade, insitui o patrimônio, qualquer intervenção nesse patrimônio diz respeito também a essa intersubjetividade, ou seja, o que subjaz sob qualquer discurso de preservação é o discurso da ética. A missão ética presente na preservação remete aos pontos desenvolvidos anteriormente, tendo a ver com a herança e a sobrevivência, com a proteção da identidade, mas também fortemente com a preservação da verdade e da autenticidade. No entanto, se esses conceitos não podem ser estabelecidos de forma precisa e pragmática, cabe também suspeitar de que uma ética baseada em critérios acríticos também possa estar a serviço de interesses pouco claros. A partir dessa 17 GADAMER, 2003, p. 17, 18 18 GADAMER, 2004/ I, p. 136 23 constatação, supera-se, novamente, a centralidade no objeto e retorna-se, assim, à questão do sujeito e do significado. Surgem daí várias correntes, todas elas em defesa da ética, mas com visões diferentes, as quais defendem em graus também diferentes uma intervenção maior ou menor no objeto, mas que de uma forma ou de outra, estão profundamente condicionadas pelos valores de época, os quais, também por sua vez, não são homogêneos. Para Viñas, por exemplo, a preservação seria, na verdade, tanto mais “ética” quanto mais correspondesse ao horizonte de expectativa social. A discussão de valores acaba levando à inclusão do debate sobre a função do bem patrimonial, a qual além das funções psicológicas e sociais já mencionadas (proteção da identidade, herança, etc.), também leva ao resgate mesmo da sua utilidade como fator ético importante para servir à sociedade em que se insere o bem. De qualquer forma, os objetos de preservação [...] também podem desenvolver funções de natureza muito variada, tangível ou não. Ele, constantemente, produz conflitos entre os sujeitos afetados por um processo de Restauração, porque potencializar uma função habitualmente limita ou condiciona outras. A importância de cada função variará para cada usuário; a decisão eticamente correta sobre que ações desenvolver não pode basear-se nas prioridades de um indivíduo como restaurador, como químico, como historiador da arte, como proprietário, como decisor, etc. Seria eticamente mais correto (mas também funcionalmente melhor) tentar melhorar o mais sincera e equilibradamente possível as eficácias que esse objeto tem para seus usuários, para cada pessoa, para quem desenvolve alguma função de algum tipo. Nestes casos, o critério de atuação tampouco pode variar muito com respeito ao que se viu antes: em teoria o ganho funcional tem que ser máximo. (VIÑAS, 2003, p. 159). Face às sutilezas conceituais que o problema da autenticidade/ verdade apresenta – e à sua restrita circunscrição aos meios dos experts – alguns autores acreditam que a ética da preservação, para ser verdadeira, deve se estender a todos os segmentos das sociedades envolvidas. Tal postura acaba por levar à noção de que um bem é tanto melhor preservado quanto maior o número de pessoas satisfeitas com sua forma de preservação. Esta, segundo Viñas, é uma fórmula defendida seguidamente na teoria contemporânea da restauração e se funda no entendimento de uma ética baseada na “negociação (Staniforth, 2000; Avrami et al., 2000); no equilíbrio (Jaeschke, 1996; Bergeon, 1977), na discussão (Molina y Pincemin, 1994), no diálogo (Reynolds, 1996), ou no consenso (Jiménez, 1998)” 19. Para ele, portanto, a preservação não pode ser tecnocrática, mas tampouco populista, devendo ser realizada, contemporaneamente, sob a égide da negociação e sustentabilidade. É assim que a dimensão ética e o entendimento da preservação/ restauro apontam para a face do desenvolvimento sustentável. Conforme entendemos hoje esse conceito, ele aponta para a capacidade de um determinado meio de absorver os impactos da transformação, baseado na integração das agendas social, econômica, 19 VIÑAS, 2003, p. 163 24 ambiental e cultural e nunca dizendo respeito a um modelo final a ser perseguido, mas, antes, a um processo. Tudo isso, a nosso ver, em estreita correspondência com a preservação de nosso patrimônio cultural. Referências Bibliográficas BRANDI, Cesare. Teoría de la Restauración. Madri: Alianza Forma, 1988. 150 p. BARDESCHI, Marco Dezzi. Restauro: punta e da capo. Milano: Stampa, 2000. 230 p. _______________________. Conservazioni e metamorfosi, cosmogonie, bestiari, architettura 1978-1988. Firenze: Alinea, 1990. BENJAMIN, Andrew; OSBORNE, Peter (Org.). A Filosofia de Walter Benjamin: Destruição e Experiência. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. 303 p. BLOCH, Marc. Introdução à história. S/L: Publ. Europa-América, 1974. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. 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Tratando especificamente da arquitetura moderna (AM), ainda que sua importância e seus valores venham sendo progressivamente legitimados nesses documentos, são ainda reduzidas as discussões sobre a forma como os princípios de conservação dos exemplares da arquitetura de períodos anteriores podem ser aplicados aos bens desse período. Nesse sentido, este artigo discute as possibilidades de aplicação das recomendações ou cartas patrimoniais, elaboradas considerando as características dos bens culturais de períodos mais antigos, aos edifícios da AM. A abordagem não tem por objetivo apenas apontar as limitações, mas sim consolidar uma reflexão pautada na construção de caminhos possíveis de leitura e aplicação desses documentos. Considerando que no campo da conservação do patrimônio cultural não há respostas prontas, pois cada edifício demanda questões particulares, sempre que possível as discussões serão ilustradas com exemplos práticos. Espera-se, assim, construir uma abordagem com maior clareza e consistência, capaz de apontar direções que possam vir a se constituir numa agenda, ainda que embrionária, para elaboração de novas cartas, focadas nos desafios impostos pela arquitetura desse momento. Palavras-chave: recomendações internacionais, arquitetura moderna e conservação. Introdução As cartas patrimoniais são elaboradas com o fim de trazer considerações sobre aspectos relativos à conservação do patrimônio. São produzidas em encontros de entidades internacionais, como o ICOMOS, (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios) e nas sessões da UNESCO. Atendem a dois objetivos: apresentar destilação da filosofia da conservação do momento e definir diretrizes para a prática da conservação (ROWNEY, 2004). UNB. flavianalira@hotmail.com. 27 Juridicamente não têm força de lei, mas são fontes fundamentais para a concepção das normas legais e para a execução das estratégias de proteção e de conservação do patrimônio. Apesar da existência em alguns países já no século XIX de dispositivos institucionais de proteção ao patrimônio, a primeira carta de abrangência internacional só foi elaborada depois da I Guerra Mundial, em virtude da necessidade de restaurar o patrimônio destruído naquela ocasião20. A partir daí, a preocupação com o patrimônio passou a ser questão internacional. Com a instituição do título de Patrimônio da Humanidade pela UNESCO na década de 1970, há um aumento considerável na produção de cartas. De acordo com Rowney (2004), visa-se consolidar princípios universais de conservação, garantindo a salvaguarda em iguais condições dos bens classificados na Lista do Patrimônio Mundial. Mesmo buscando entendimentos ou posturas consensuais aplicáveis internacionalmente, cada país é estimulado a elaborar suas próprias cartas patrimoniais, considerando seus contextos sociais, econômicos e culturais. Em relação ao conteúdo trazido pelas cartas, pode-se constatar que são diversas as questões tratadas e que o traço comum a todas elas é a busca pela consolidação de princípios balizadores da prática. Outro aspecto perceptível a partir da leitura das cartas é que há uma significativa transformação no tempo das noções de patrimônio, de conservação e de outras correlatas ao tema. Tratando especificamente da AM, ainda que sua importância e seus valores venham sendo progressivamente legitimados nas cartas patrimoniais, não são comuns discussões voltadas para a forma como os princípios de conservação dos exemplares da arquitetura de períodos anteriores podem ser aplicados aos bens desse período. Nesse sentido, busca-se responder a uma pergunta central: em que medida os princípios destilados pelas cartas patrimoniais podem ser adotados na conservação da AM? Para tanto, o artigo encontra-se estruturado em três seções. Na primeira são explicitadas as particularidades trazidas pelos edifícios modernos e os desafios à sua conservação. Na seção seguinte, essas particularidades guiam a análise sobre como o conteúdo de algumas das mais importantes cartas trazem à conservação dos exemplares da AM. Na última seção, é realizado um exercício de síntese com o intuito de consolidar premissas envolvidas na problemática da conservação da AM, bem como apontar as direções para seu enfrentamento. 20 Como resposta a essa demanda, no ano de 1931 os países europeus organizaram conferência sobre o tema e elaboraram o primeiro documento internacional a tratar de políticas de preservação do patrimônio: a Carta de Atenas. É importante ressaltar que a referida carta, publicada em 1931 pelo Escritório Internacional dos museus, é distinta da Carta de Atenas elaborada em 1933 e publicada em 1945 pelo CIAM (Congresso Internacional da Arquitetura Moderna). 28 1. As particularidades da arquitetura moderna e os desafios à sua conservação Segundo Macdonald (2003), nos últimos vinte anos presencia-se um aumento no interesse em conservar o patrimônio do século XX. Isso pode ser observado tanto no nível nacional, como no internacional, por intermédio da atuação do DOCOMOMO. Por iniciativa do DOCOMOMO, foi publicada em 1990 uma carta focada exclusivamente na preservação da AM: a Declaração de Eindhoven (1990) 21. Mesmo sendo uma iniciativa pioneira, não há no escopo dessa declaração nenhum entendimento que já não estivesse presente em outras cartas elaboradas com o foco no patrimônio de períodos anteriores. Além da atuação de organismo de proteção local e do DOCOMOMO, também se pode observar mais recentemente aumento do interesse pela proteção da AM, por parte de agências e organismos vinculados à UNESCO. Essa tendência é expressa por meio do número crescente de conferências internacionais sobre o tema22. Todavia, apesar dos avanços recentes, a conservação do patrimônio moderno ainda traz grandes desafios. Sobre o assunto, Macdonald (2003) dispõe: Lacunas do reconhecimento (com exceção dos ícones), a ausência de pesquisas que construam um referencial teórico para a identificação desse patrimônio e a pouca proteção trazem como consequência a perda de importantes exemplares (MACDONALD, 2003, p. 1, tradução nossa). Em termos filosóficos e metodológicos, a teoria que fundamenta a conservação do patrimônio de períodos anteriores pode ser aplicada às obras da AM, todavia essa aplicação não é direta. Isso considerando que os edifícios modernos romperam a lógica projetual e construtiva tradicional, ao introduzir novas concepções arquitetônicas, novos materiais, novas tecnologias e novas estruturas. Macdonald (2003), ao buscar clarear as particularidades da AM com vistas à sua conservação, identifica sete aspectos: i. projeto e funcionalismo; ii. tempo de vida; iii. materiais; iv. detalhamento; v. manutenção; vi. pátina do tempo; vii. reconhecimento. O funcionalismo, um dos principais pilares da AM, é definidor do projeto. Macdonald (2003) discute que, em razão disso, a adaptação dos edifícios
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