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impulso 47 nº26 A Interpretação na Psicanálise Lacaniana Interpretation in Lacanian Psychoanalysis R ESUMO – O artigo apresenta, em uma visão lacaniana, as transformações ocor- ridas com alguns conceitos psicanalíticos, a partir de Freud, relacionados ao pro- cesso analítico e à interpretação. Discute a função do analista enquanto intérprete. Faz distinção entre psicoterapia e psicanálise, apontando algumas de suas diferen- ças. Palavras-chave: Lacan – psicanálise – interpretação – processo analítico. A BSTRACT – This article presents a Lacanian perspective on the changes that have occurred since Freud’s statement of principles in some psychoanalytical concepts related to both the analytical process and interpretation. It also discusses the func- tion of the analyst as an interpreter, distinguishing psychotherapy from psychoa- nalysis. Keywords: Lacan – psychoanalysis – interpretation – analytical process. R EGINA C LÁUDIA M ELGES P UGLIA Psicóloga formada pelo Instituto de Psicologia ( USP ). Psicanalista, membro-correspondente da Escola Brasileira de Psicanálise- SP pusch@sti.com.br g g y dezembro 48 99 I NTRODUÇÃO psicanálise hoje em dia é bem diferente daquela que Freud exercia em seu tempo. Tanto a prática como o contexto mu- daram. Lacan, porém, nunca deixou de recorrer a Freud e a seus ensinamentos, sempre deles partindo para então propor algo no- vo. Atualmente, nós, analistas, temos de fazer movimentos duplos e até triplos para que a psicanálise se mantenha e seja eficaz, isto é, pre- cisamos recorrer a Freud, a Lacan, a teóricos e a psicanalistas de nossa época, para daí propormos alguma modificação em nossa prática ana- lítica, que os tempos presentes exigem. O que se percebe com freqüência é que os sujeitos que sofrem procuram encontrar um Outro que lhes dê respostas para o seu sofri- mento. Em nossa sociedade não faltam alternativas e práticas que se propõem a fornecer respostas prontas. Para Lacan, entretanto, o ana- lista é o único que tem a oportunidade de “responder”. E aqui se vê como Lacan é cauteloso: “não é certeza, não é garantido, mas o ana- lista é o único que tem a chance de ser intérprete”. Mas o que é ser intérprete , como o analista interpreta , a partir do quê? E NTREVISTAS P RELIMINARES E A NÁLISE Um sujeito dirige-se ao consultório do analista numa posição de- mandante e espera, num primeiro momento, que este lhe dê soluções imediatas, que eliminem seu mal-estar. Chega numa posição de ques- tionamento por estar chocado com algo do Real com que se defron- tou, quer se trate de um acontecimento quer da insistência de um sin- toma. Deseja saber o que a psicanálise pode oferecer contra aquilo que está lhe ocorrendo, contra o seu sofrimento. Pergunta ao analista: “Vo- cê sabe o que eu tenho?”; ao que o analista responde: “Sim”. De al- guma forma existe aí uma promessa, e o analista só “promete” por sa- ber que a resposta é anterior à pergunta. Ele propõe ao analisando a regra fundamental da psicanálise: “diga o que lhe vier à mente, fale sem restrições”. E essa regra é fun- damental porque é daí que a resposta emergirá. O que se busca nas entrevistas preliminares, com a introdução da regra fundamental, é identificar a consistência da demanda e qual a es- trutura do sujeito. O texto do analisando não traz a resposta completa, de modo linear, mas, os elementos da resposta que o analista saberá pescar . O analista escuta na fala do sujeito o que ele não pede e nem pode pedir, o que ele deseja, o peso de seu gozo, o peso pulsional que A g g y impulso 49 nº26 está em jogo, e visa deslocar o sujeito da posição na qual tinha certeza sobre o objeto. O diagnóstico estrutural é fundamental, nesse momento, e só será possível estabelecê-lo na relação transferencial. As considerações que faço neste texto são aplicáveis apenas à neurose. Tanto a psicose quanto a perversão requerem que manejos na transferência sejam fei- tos, com modificações importantes, para que as análises de sujeitos com essas estruturas se tornem possíveis. Todos os atos do analista le- varão em conta a singularidade de cada caso. Os casos de depressão, toxicomania, anorexia, bulimia e alcoolismo serão considerados a par- tir da estrutura do sujeito em questão. O sujeito, ao ocupar uma nova posição inconsciente ao mesmo tempo vinculada à verdade e ao gozo, promove a retificação subjetiva, e se implica em seu dizer, assumindo a responsabilidade por suas es- colhas. Suas queixas se transformam em sintoma analítico e então a análise, efetivamente, tem início. O sujeito, estando implicado no dis- curso analítico, defronta-se com a verdade na qual acreditava até en- tão, e a põe em jogo nas relações que estabelece com a ordem simbó- lica. A associação livre, que não é da ordem da asserção, supõe e con- firma, durante este século de prática, que a resposta está escrita no in- consciente. Nos equívocos da língua surge a denúncia de um gozo instalado. Nos lapsos, nos chistes, 1 nos sonhos, no sintoma, se eviden- cia a dimensão da verdade e do gozo e, a partir deles, a série de sig- nificantes primordiais, o desenvolvimento da cadeia significante, tão particular a cada sujeito, a relação do sujeito com o vazio, com o Real, com o objeto-causa mais além das identificações. Para o sujeito, que se dirige ao analista – sujeito suposto saber – e que com ele estabelece uma relação transferencial, esse analista trans- mite uma mensagem: “É você quem detém o texto e as respostas que procura, mas sou eu que o dirigirei a elas, pois encontra-se aqui o seu analista”. Em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, Lacan afirma: “(...) é pelo que o sujeito imputa de ser (ser que está em outro lugar) para o analista que é possível o alcance da interpretação”. 2 F ANTASIA E S INTOMA Freud observou como o sujeito não podia dizer nada sobre sua fantasia, uma vez que falar sobre ela lhe causa vergonha e vai contra seus valores ideais. Dificuldade esta que só poderia ser resolvida atra- 1 Ver também alguns comentários sobre a construção de chistes em FREUD, 1969c, p. 280s. 2 LACAN, 1998a, p. 591. g g y dezembro 50 99 vés de uma nova abordagem, que será proposta por Lacan, abordagem fundada na diferenciação dos três registros: o Real, o Simbólico e o Imaginário. Com a conceituação dos três registros, a fantasia se trans- formou também num conceito fundamental para o avanço da psica- nálise. Freud, em seus últimos textos, e em particular em Análise Ter- minável e Interminável , se perguntava o que fazer com a inércia frente ao trabalho analítico. A questão da fantasia comprometia a psicanálise quanto a seu fim e quanto a seu estatuto em relação a outras discipli- nas. Lacan elaborará para a fantasia um matema fundamental. Este matema aparece como um dos elementos que estruturam a direção do tratamento no discurso analítico. Ao introduzir o objeto Real ( a ) na fantasia ($<> a )[articulação do sujeito barrado com o objeto causa do desejo (para sempre perdido)], Lacan dá à fantasia uma causalidade so- bre o sintoma. Lacan, durante seu ensino, fez inúmeras modificações na sua for- ma de pensar o funcionamento psíquico. Num primeiro momento, pensou que a imagem, e não o significante, atraía a libido. Haveria uma inércia da libido articulada à imagem bloqueando o funciona- mento da cadeia significante. Foi o momento da predominância do Imaginário em seu ensino. Num segundo momento, Lacan abordou o aspecto do gozo, vendo que havia uma conexão direta entre significante e libido. O que atraía a libido, então, seria uma imagem significantizada, a qual cha- mou de identificação fálica . Existiriaum significante especial, que no Simbólico, atrairia o investimento libidinal. Lacan fez do falo esse sig- nificante investido pelo fator quantitativo da libido. A terceira maneira que Lacan pensou essa relação significante/li- bido trouxe a fantasia como o lugar onde estes se juntam, pois a fan- tasia é uma articulação significante na qual, de um lado, está presente o sujeito dividido ($) e, de outro, a quantidade libidinal ( a ), sendo a pulsão o articulador deles ($<> a ). A única forma de fazer com que o sujeito se desembarace desse gozo presentificado na imagem, no significante e na fantasia, é dar condições para que, em sua análise, ele ultrapasse o Imaginário, dei- xando cair as identificações idealizadas, e atravesse a fantasia que cons- truiu. É justamente na fantasia que incide o destino do investimento li- bidinal, e o final da análise depende do desinvestimento libidinal da fantasia. Lacan, no Seminário 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise , não inclui a fantasia entre os quatro conceitos fundamen- g g y impulso 51 nº26 tais da psicanálise. Paradoxalmente, é um termo muito utilizado por ele. A fantasia se opõe às formações inconscientes. As fantasias não são decifradas da mesma maneira: não constituem um texto organizado pelas leis de codificação do inconsciente. A oposição entre o sonho (via régia do inconsciente) e as fantasias conscientes permitiu a Lacan criar esse novo conceito, ao qual deu ênfase durante todo seu ensino. Fan- tasia e sintonia, entretanto, têm algo em comum: ambos surgem a par- tir do enigma. Freud nos ensina que ao longo da infância o sexual faz enigma para a criança. O enigma surge a partir de um gozo pulsional, vivido no corpo e impossível de dizer. O enigma leva as crianças a construírem teorias sexuais que têm um lugar capital na construção das fantasias e no surgimento de sintomas. É no deciframento dos sin- tomas e na construção das fantasias, na análise, que encontramos res- tos destas teorias infantis, construídas a partir de um postulado de go- zo, ainda ativas no inconsciente. A trajetória desenvolvida por Lacan para a fantasia ilustra, de modo exemplar, o movimento que animou seu ensino, conduzido pela via do matema. O matema foi um artifício inventado por Lacan bastante eficiente, pois permite que se vá do universal ao particular, do mito à estrutura. Desse modo, do mito freudiano organizador da fan- tasia fundamental a partir da repressão originária, Lacan passa a uma lógica da fantasia cujo esforço se centra em articular a castração com o objeto-causa do desejo: objeto este necessário ao sujeito para ser – apesar da falta-a-ser que o constitui – e a partir do qual se faz possível um gozo para sempre parcial e a-sexual. Na análise se pode aspirar a desmontar a fantasia, mas não a in- terpretá-la. A fantasia não está submetida às leis da interpretação. Não é interpretável, mas é pivô da interpretação, não na vertente dialética que descansa na repetição significante, mas a partir do amor de trans- ferência, em sua vertente de enigma, portanto, que reaviva a falta no Outro. A fantasia fornece ao analista a chave do lugar que ele ocupa para o sujeito, o lugar do Real. A intervenção do analista no discurso do sujeito deve responder à necessidade de atualizar na transferência a pergunta relativa ao desejo do sujeito. Porém, essa resposta não é do significante, pois o significante leva consigo apenas a falta-a-ser, mas do Real: é a fantasia que responde à pergunta do desejo. O sujeito não se satisfaz com o que é. Por outro lado, sem dú- vida, o que é, o que vive, seus sintomas mesmos, lhe dão satisfação. Freud não dizia menos do que isso. Lacan o recorda dizendo: “(...) os pacientes não se satisfazem, como se diz, com o que são. E, no entanto, sabe-se que tudo o que eles são, tudo o que vivem, mesmo seus sin- g g y dezembro 52 99 tomas, depende da satisfação. (…) eles dão satisfação a alguma coisa. Eles não se contentam com seu estado, mas, estando esse estado tão pouco contentador, eles se contentam assim mesmo”. 3 Sendo tão pou- co contentáveis, se contentam. Lacan introduz nessa satisfação para- doxal a categoria do impossível e, opondo o Real ao possível, define precisamente o Real como esse impossível. Para Freud o Real aparecia como obstáculo ao princípio do prazer: o Real estava ali, mas as coisas não se ajustavam de imediato, mesmo tendo-as à mão. Lacan consi- dera demasiado restritiva essa concepção de Real e, indo além do prin- cípio do prazer, insiste na separação do conceito de Real do campo desse princípio: por sua dessexualização, pelo fato de que sua econo- mia admite algo novo que é da ordem do impossível, que concerne também à relação sexual. De acordo com o aforismo lacaniano “não há relação sexual”, isto é, não há, no inconsciente, a inscrição de sig- nificantes capazes de fazer uma elaboração de saber sobre a relação en- tre um homem e uma mulher. Isso quer dizer que não há complemen- tariedade, falta um significante no Outro. O Outro como lugar da sin- cronia significante é um lugar com uma fenda, um vazio, uma incom- pletude. Não se pode representá-lo por um círculo que se fecha, pois haverá sempre um espaço aberto, um buraco. Disso, aliás, Freud já fa- lava em relação ao recalque original. Portanto, um significante falta no Outro. Lacan o disse de muitas maneiras. É o que ele escreve com o seu S(A/), é o que ele diz com sua fórmula “não há Outro do Outro”, é o que ele expressa com sua proposição “a mulher não existe”. Falta pois um significante (e o significante é o que representa o sujeito para outro significante) que permitiria fundar uma relação entre dois signi- ficantes. Não há gozo senão do um, gozo fálico. O sintoma aparece como a tentativa realizada para invalidar a proposição: “não há relação sexual”. O sintoma indica que há algo que não funciona no Real, tanto que o neurótico encontra seu gozo no sintoma, por pouca satisfação que exista nele. Para Freud, somente poder-se-ia formar uma idéia da importân- cia da descoberta que a interpretação dos sonhos teria para o funcio- namento da vida mental ao se perceber que a construção onírica é “o modelo segundo o qual os sintomas neuróticos se formam”. 4 Num primeiro tempo para Lacan, a concepção do sintoma como formação inconsciente – num estatuto comparável ao do sonho, o lapsus ou o chiste (em que o deciframento interpretaria a realização do desejo) –, é 3 LACAN, 1988, p. 158. 4 FREUD, 1976, p. 138. g g y impulso 53 nº26 contemporânea às suas elaborações sobre a constituição do Eu através do estádio do espelho. O sintoma se fazia palavra de uma verdade, de um sentido reprimido (uma forma desviada de satisfação sexual). Em 1953, em Função e Campo da Palavra e da Linguagem , La- can já assenta o inconsciente do lado da linguagem (ele já havia de- senvolvido o conceito de inconsciente estruturado como uma lingua- gem) e a palavra ali articulada já não se sustenta no Imaginário, mas sobre um sistema Simbólico. Lacan não reduzirá o sintoma exclusiva- mente ao campo Simbólico. O laço mantido pelo sintoma com o Ima- ginário, pelo menos através do corpo, e com o Real, enquanto impos- sível de dizer, continuará sendo considerado, mas existirá uma supre- macia do Simbólico na abordagem do sintoma. Em RSI , Lacan define sintoma como “a maneira como cada um goza do inconsciente” 5 e afirma que o sintoma surge como resposta a um gozo que o princípio do prazer não conseguiu assimilar. O gozo, termo conceituado por Lacan, está do lado do objeto e se distingue do desejo. Para Lacan os sintomas têm constância, estabilidade e resistência, e alguma relação com as funções do corpo. Ressalta que, em Freud, Simbólico, Imaginário e Real são independentes e que justamente o sintoma seriacapaz de atar em nó essas três estruturas. Nos três regis- tros encontram-se: ex-sistência, consistência e buraco. O sintoma, como o quarto elemento, seria responsável pela amarração e diferen- ciação dos três registros. O sintoma é a forma que o sujeito encontra para “lidar” com a incompletude do significante, com o não poder di- zer tudo. A questão que se coloca na conclusão da análise é: como o su- jeito pode se haver com o fator pulsional? E o que está em questão é ainda a pergunta formulada por Lacan desde 1964, sobre o destino da pulsão no final da análise: “como o sujeito, que atravessou a fantasia radical, pode viver a pulsão?”. 6 O sintoma, para Lacan dos anos 70, toma o lugar da pulsão (em Freud o sintoma está entre o psíquico e o somático), aparecendo como uma fixação significante da pulsão. No sintoma, a pulsão aparece como cativa e aí apreende sua função sim- bólica de falo. O sintoma vai além da fantasia e se refere ao corpo vi- vificado pelo significante. O sintoma, após a travessia da fantasia, co- loca-se como resto irredutível de gozo. Porém, não basta dizer que ao sujeito resta seu modo de gozo. O que importa é a economia libidinal 5 LACAN, aula de 17/12/74. 6 Idem, p. 174. g g y dezembro 54 99 do sujeito, ou seja, a melhor maneira que o sujeito encontra para se ha- ver com esse resto irredutível de gozo – é o que Lacan chamou de identificação ao sintoma , o “saber fazer” com o sintoma, o Synthome , do qual o sujeito não pode se livrar, e com o qual ele terá de conviver. No final da análise ocorrerá a destituição subjetiva e o sujeito passará a ocupar uma nova posição em relação ao Outro, haverá o desvanecimento do Outro, desvanecimento da demanda: não há Ou- tro que possa satisfazer a demanda, há uma falta originária que jamais será suprida. O sujeito viverá com responsabilidade, encarregando-se do que produz. A pulsão não cessará jamais de dividir o sujeito: é im- possível separar-se disso, mas é perfeitamente possível viver como su- jeito desidealizado, porém responsável pelo seu modo de gozo. A I NTERPRETAÇÃO Freud, no início de suas descobertas, concebia a interpretação dos sonhos e das formações inconscientes como a busca de um signi- ficado, obtido apenas pelo próprio sonhador através das associações que fizesse, que proporcionariam acesso a algum conteúdo recalcado, oculto. O sujeito, com certeza, estabeleceria essas associações com o que originasse diretamente de sua vida mental, de fontes que lhe eram desconhecidas, derivadas provavelmente de algum complexo. Todo trabalho interpretativo considerava que as lembranças que acometidas ao sujeito a partir do sonho trazido para a análise eram dependentes de idéias e de emoções inconscientes. O trabalho interpretativo visava tornar consciente o inconsciente. Para Freud, a elaboração onírica 7 é o trabalho que o sujeito faz para transformar o sonho latente em so- nho manifesto. Para tanto, lança mão de condensações, deslocamentos e transformações regressivas de pensamentos em imagens. O trabalho que opera em sentido oposto e que é realizado numa sessão de análise, em que a transferência está instalada, é o trabalho interpretativo. Freud nos alerta, entretanto, que, “quanto mais o sujeito adquire conheci- mento neste campo, tanto mais obscuros serão seus sonhos”. 8 A cen- sura leva em conta o saber adquirido com a interpretação dos sonhos. O trabalho de elaboração do sonho incorpora esse saber, o que pro- voca um fechamento do inconsciente, ou uma alienação do sujeito no significante. Lacan, em “Função e campo da palavra e da linguagem em psi- canálise”, retoma uma afirmação feita por Freud na Traumdeutung : “o 7 A totalidade do cap. VI de A Interpretação dos Sonhos (mais de um terço de todo o livro) dedica-se ao estudo da elaboração onírica (FREUD, 1969a, p. 297s). 8 FREUD, 1969b. g g y impulso 55 nº26 sonho tem a estrutura de uma frase, ou melhor, atendo-nos à sua letra, de um rébus (enigma)”. 9 Esse enigma está instalado no inconsciente e o inconsciente pre- cisa de tempo para se manifestar, necessitando, para tanto, ser provo- cado. Ele não tem hora marcada. O inconsciente nem sempre fala, às vezes também descansa. Lacan considera que ocorre um processo de abertura e fechamento do inconsciente. Assim, não há de se trabalhar com o tempo cronológico nas sessões de análise, e sim com o tempo lógico do sujeito, que leva em conta momentos fecundos do incons- ciente desse sujeito. Ao analista cabe o ato analítico, desvinculado do tempo standartizado, definido a priori . A interpretação, numa visão lacaniana, pode visar três pontos: o significado; fazer aparecer significantes que estavam ocultos; e a inter- pretação do “dizer”, e não dos “ditos”. Lacan acaba considerando que a interpretação fundamental, aquela que incide, provocando efeitos na estrutura do sujeito, só deve ocorrer no nível “do dizer”. Com Lacan fica evidente que a interpretação deve ir além “do que se diz”. O que cabe ser interpretado não são os ditos do sujeito, mas “o dizer”. Para que fique bem claro a qual interpretação se está aqui refe- rindo, talvez seja preciso diferenciar psicanálise de psicoterapia . Pode- se até afirmar que com a psicanálise se consegue efeitos terapêuticos, mas com finalidades bem distintas. A psicoterapia tem como meta restaurar a “base abalada” do su- jeito, restaurar seu ego. Se um sujeito busca uma psicoterapia ou uma análise é porque sua divisão subjetiva está afetada, e o psicanalista pre- cisa estar advertido disso. Com a psicoterapia o sujeito conseguirá ape- nas que sua fantasia seja substituída por outra, o que permitirá que sua divisão e castração sejam acobertadas por novas fantasias carregadas de significações. Para Lacan, assim como para Freud, a clínica é soberana e sem- pre antecede a teoria. Se assim não fosse, a psicanálise estaria estagna- da. Se a teoria fosse anterior à clínica, a psicanálise se orientaria pelo logos , pelo conhecimento teórico inferido a priori. A psicanálise laca- niana se orienta pelo Real em jogo na posição que cada sujeito, a seu modo, ocupa. No texto L’Étourdit Lacan afirma que a psicanálise tem meta oposta à da psicoterapia. O objetivo da psicanálise não é eliminar a angústia, nem fortalecer o ego do sujeito, tampouco adaptar o sujeito à realidade. A psicanálise visa, justamente, que o sujeito se separe do 9 LACAN, 1998b, p. 238. g g y dezembro 56 99 objeto que sustentava sua “verdade” e com o qual tamponava a falta. A análise busca que o sujeito investigue, no atravessamento ou na des- construção de sua fantasia, o gozo e a inconsistência do Outro, dis- tanciando-se da fantasia por ele construída, e que passe a conviver com o seu modo de gozo, conquistando, no final de sua análise, um saber sobre a verdade. Durante este século de existência, a psicanálise ficou, e ainda es- tá, à mercê das respostas que os psicanalistas possam dar. Os psicana- listas são responsáveis não apenas pela posição do inconsciente, mas sobretudo pela existência e pela manutenção do discurso analítico. O analisando não é responsável pelo discurso analítico. Evidentemente ele tem um trabalho a fazer: manter a existência mesma desse discurso. Porém, cabe ao analista sustentar o laço analítico (suportando a trans- ferência) e a função da análise (fazer o sujeito se defrontar com a cas- tração, com sua divisão subjetiva e com a posição estrutural que ocupa em seu inconsciente). O analista só consegue realizar essa tarefa levan- do em conta sua análise pessoal e seu desejo decidido, onde a Ética do bem-dizer da psicanálise está evidenciada. Se formos rigorosos com as definições de Lacan, a interpretação é do dizer sem dito, em que não se faz o uso da palavra, e sim da letra,e esse dizer se conecta ao próprio dizer do analisando. Para Lacan o analista se auto-elimina, se subtrai em seu discurso, apesar de pagar com seu ser. Em L’Étourdit, Lacan chegou a expressar que a interpre- tação deveria ser exclusivamente um equívoco, mantendo essa tese até o final de seu ensino. Com a interpretação como equívoco, consegue- se que uma via fique aberta para diversos sentidos. O equívoco é um instrumento não sugestivo, que deixa aberta a escolha do sentido que o analisando queira dar. No nível da prática psicanalítica, pode-se con- siderar que essa forma de interpretar evitaria o discurso do mestre e que a maneira de ver do analista não seria imposta. A afirmação que Lacan faz é: “nada opera [no inconsciente] a não ser o equívoco sig- nificante”.10 É possivel enumerar três tipos de equívocos: equívoco por homofonia, equívoco gramatical e equívoco dos paradoxos. Colette Soler cita diferentes maneiras de interpretar no decorrer de uma análise.11 Remete a Lacan, que fala em interpretação desper- cebida e também em interpretação involuntária, uma vez que o ana- lista pode interpretar até com o seu humor, com sua expressão, com a cara que tem, com a maneira como se veste etc. 10 LACAN, 1973, pp. 11-12. 11 SOLER, 1995, p. 28. g g y impulso 57 nº26 O que faz com que uma intervenção seja interpretação? Toda in- terpretação provoca efeitos, é operante. Mas somente “no depois” (après-coup) se saberá quais serão esses efeitos. Lacan não é diretamente contra a interpretação significativa. Apenas afirma não ser ela capaz de resolver de modo algum o enigma do sujeito: ela apenas o desloca. O que não quer dizer que seja proi- bida ou de todo descartada. Ela pode ser útil. Para Lacan (Seminário 11), o que uma interpretação como significação possui de mais inte- ressante não é a significação por ela produzida, mas os significantes pe- los quais é formulada. Sua conclusão é a seguinte: “o interesse da in- terpretação significativa é o decifrar, fazer aparecer um significante que estava faltando ao sujeito, mas que se encontrava latente em seu dis- curso”.12 Lacan evoca a pontuação como um modo de interpretação. A pontuação garante a significação, marcando uma enunciação do sujei- to em particular. O corte da sessão, como oposto à pontuação, recorta as signifi- cações, entalha-as, esculpe-as. Interromper o sujeito no meio de uma frase impedindo que as significações, que as explicações proliferem, causa um efeito de perplexidade e até de desagrado. Para lançar mão desse modo de interpretação é preciso levar em conta as diferenças in- dividuais. Num sujeito que tem dificuldade em falar ou naquele que está muito aderido à significação, pode não provocar os efeitos dese- jados. O intuito é provocar um efeito non sense. O não-senso possui a sua fecundidade. Outra maneira de intervir é por alusão, um enunciado que par- ticipa do silêncio, que deixa a entender sem formular, que designa, que mostra. Lacan também fala em recorrer à polissemia, à pluralidade de sentidos. Em seu Seminário 17: o avesso da psicanálise, Lacan fala em cita- ção, que consiste em sublinhar algo enunciado pelo sujeito, como se se colocasse aspas em seu dizer; e também em enigma: um enunciado sem mensagem, um dizer sem proposição. O que esses modos de interpretar têm em comum é um “dizer nada”. O que não significa que eles nada profiram. O dizer do analista, na interpretação, deve ser esquecido na medida em que é silencioso. Lacan afirma que o discurso do analista é um discurso sem palavras. Pela interpretação, conduz-se o sujeito, no percurso da experiência 12 LACAN, 1988, p. 231. g g y dezembro 58 99 analítica, em direção ao limite da palavra, ao impossível de dizer. A in- terpretação aponta para a divisão do sujeito, para sua falta-a-ser. Se quiséssemos inventar uma fórmula para o dizer da interpre- tação, segundo Collete Soler, ela seria: “Você fala sozinho, você está só com seu gozo; portanto, exatamente o contrário de uma promessa de diálogo”.13 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos. Edição Standart Brasileira das Obras Psico- lógicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1969a, v. 5. _________. Análise Terminável e Interminável. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1969b, v. 23. _________. Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente. Edição Standart Brasi- leira das Obras Psicológicas Completas, Rio de Janeiro: Imago, 1969c, v. 8. _________. O Uso da Interpretação dos Sonhos na Psicanálise. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro: Imago, 1969d, v. 5. _________. Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise, Sonhos. Livro 21, Pequena Coleção das Obras de Freud (extraída da edição Standart Brasi- leira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). Rio de Janeiro: Imago, 1976. LACAN, J. O Seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992. _________. A direção do tratamento e os princípios de seu Poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a. _________. Função e campo da palavra e da linguagem em psicanálise. In: Escri- tos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b. _________. O Seminário, Livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicaná- lise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. _________. L’Etourdit. Scilicet, nº 4. Paris: Seuil, 1973. _________. RSI (Real, Simbólico e Imaginário). Aula de 17/12/74. Paris. [Seminá- rio inédito] SOLER, C. Interpretação: as respostas do analista. Opção Lacaniana, São Paulo, (13), 1995. 13 SOLER, 1995, p. 34. g g y
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