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Psicopatologia Crítica - Henriques

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GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA – PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 
 
1. História da Loucura 
 
•●• 
 
 história da loucura não se resume à história da “doença mental”. 
Enquanto a doença mental, por se tratar de uma concepção médica 
moderna acerca da loucura, possui pouco mais de 200 anos de história, a loucura, 
entendida como a experiência trágica da desrazão, acompanha a humanidade desde seu 
surgimento. Foi, portanto, relativamente recente, na virada do século XVIII para o XIX, 
que a loucura ganhou status de patologia mental, tendo sido apropriada pela medicina 
moderna. Retraçaremos a seguir um panorama das diversas e divergentes concepções 
históricas da loucura no mundo ocidental, até sua conceitualização pelo saber médico 
como “doença mental”. 
 Utilizaremos aqui o método genealógico, desenvolvido por Michel Foucault ao 
longo de sua obra, para retraçar em linhas gerais a historiografia da loucura, destacando 
as descontinuidades históricas e as rupturas conceituais, em oposição à historiografia 
linear e triunfante, de base evolucionista positivista. Nesse sentido, poder-se-ia dizer 
que Pinel operou uma escansão, um corte na evolução histórica ao designar a loucura 
como “alienação mental”; por mais que se procure precursores nobres a Pinel, este 
instaurou uma significação para loucura até então inédita no saber ocidental; depois de 
Pinel, não se retorna mais a Hipócrates, Galeno, a medicina árabe medieval ou à 
filosofia cartesiana para explicar a loucura; em suma: Pinel inaugurou uma 
discursividade sobre a loucura cujos desdobramentos ainda hoje nos perpassam. 
Passemos, então, a essa historiografia. 
 
1.1. Sociedades Pré-Históricas e Antigas 
 
 Nem sempre a loucura foi vista como doença mental. As sociedades pré-
históricas e antigas possuíam uma concepção sobrenatural da loucura; consideravam-na 
obra de maus espíritos, atribuindo sua causalidade à possessão1. Fósseis de crânios 
 
1 Não sugerimos aqui que o fenômeno da possessão se reduza ao fenômeno da loucura, tampouco que 
todos os ditos “possuídos” seriam, de fato, loucos. Isso implicaria trabalhar com uma concepção histórica 
linear e triunfante; como se os antigos, presos numa rede de significações primitivas de um mundo ainda 
encantado, vissem equivocadamente como sobrenatural (possessão), aquilo que a Modernidade, 
esclarecida pelas luzes da ciência positiva, desvelaria na sua essência, enquanto uma patologia (loucura 
 A
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 2
humanos perfurados do período Neolítico ou Idade da Pedra Polida2 foram encontrados, 
fornecendo indícios de que tais perfurações decorriam de psicocirurgias primitivas, 
chamadas trepanações, que visavam a exorcizar os maus espíritos do corpo do possuído. 
Os antigos escritos hebraicos, chineses e egípcios também atribuíam a loucura à 
possessão. 
De acordo com essa concepção, o tratamento freqüente proposto para a loucura 
era o exorcismo, realizado por um xamã ou sacerdote, que podia recitar preces, dialogar 
com os maus espíritos, insultá-los, executar magias, produzir ruídos altos, fazer a pessoa 
beber poções amargas e, até mesmo, flagelar ou deixar a pessoa passar fome. 
 
1.2. Grécia e Roma Antigas 
 
Na Grécia e Roma Antigas (500 a. C. a 500 d. C.), essas concepções sofreram 
mudanças. Explicações naturais da loucura, fornecidas por filósofos e médicos gregos, 
passaram a mesclar-se às explicações sobrenaturais tradicionais. 
Hipócrates de Cós (460-377 a. C.), considerado o pai da medicina, compreendia 
a loucura como uma doença natural, destituindo-a de implicações religiosas; 
considerava o cérebro como o verdadeiro centro da atividade mental. Segundo sua 
fisiologia, as doenças resultavam de um desequilíbrio dos quatro fluidos (ou humores 
básicos) que circulavam pelo corpo: bile amarela, bile negra, sangue e fleuma. 
Acreditava que o excesso corporal de “bile negra” (melaina kólos, em grego) causasse a 
“melancolia”, forma discreta e retraída de loucura; da mesma forma, a mania, forma 
exuberante e furiosa de loucura, seria o resultado do excesso de bile amarela circulante; 
e assim por diante. Hipócrates acreditava que o tratamento das formas de loucura 
passava necessariamente pelo tratamento das patologias físicas subjacentes. Propunha, 
por conseguinte, a restituição do equilíbrio dos fluidos corporais; por exemplo, o 
excesso de bile negra poderia ser reduzido através de uma vida tranqüila, dieta 
vegetariana, temperança, exercícios, celibato e, até mesmo, sangrias. 
Tal visão foi compartilhada pelos filósofos gregos Platão (427-347 a. C.) e 
Aristóteles (384-322 a. C.), sendo mais tarde aprimorada por influentes médicos gregos 
 
como “doença mental”). Concordamos com Foucault quando este autor assinala que o complexo 
problema da possessão requer uma história das idéias religiosas, e não uma história da loucura (1968, p. 
75); contudo, uma história da loucura requereria, a nosso ver, uma analogia com a possessão — nosso 
método é, antes, comparativo, que redutivo. 
2 Último período pré-histórico que se inicia em 8.000 a. C. e termina com o advento da escrita. 
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 3
e romanos, cujo mais importante foi Galeno (131-200 d. C.). Daí esta escola ter ficado 
conhecida como “hipocrático-galênica”. Galeno distinguia três faculdades diretivas da 
mente: a imaginativa, a racional e a mnemônica. Acreditava que alterações ou a perda 
dessas faculdades dariam origem às diferentes formas de loucura: frenitis (loucura 
febril), letargia, melancolia, mania, moria (perda do senso crítico) e delírio. 
Vale ressaltar que não se tratou da substituição de uma concepção da loucura 
“primitiva” por outra supostamente mais avançada, mas sim da sobreposição de duas 
concepções explicativas distintas (religiosa e proto-científica) que passaram a coexistir a 
partir de então. Não custa lembrar que a medicina greco-romana era reservada somente 
aos cidadãos, excluindo a plebe, ou seja, a maioria absoluta da população, da sua 
clientela. Ainda hoje, em pleno século XXI, concepções científicas da loucura convivem 
com explicações religiosas, sobretudo, a partir do fenômeno atual da proliferação 
indiscriminada de seitas neopentecostais no Brasil e da difusão em massa da noção de 
“encosto” 3. 
 
1.3. Idade Média 
 
Com o declínio do antigo Império Romano, a demonologia sofreu um paulatino 
ressurgimento, à medida que o poder do clero aumentava na Europa. Na chamada Idade 
Média ou Idade das Trevas (500-1350 d. C.), o louco era a personificação viva do mal, 
que comprovava a influência de Satã. Embora alguns cientistas e médicos ainda 
insistissem em explicações e tratamentos naturais, sua visão tinha pouco peso na 
atmosfera demonológica reinante naquela época4. 
A Idade Média foi um período conturbado de guerras, insurreições urbanas e 
pestes. As pessoas culpavam o demônio por tais perturbações e temiam ser possuídas 
por ele. Conseqüentemente, a incidência da loucura aumentou vertiginosamente. Havia 
 
3 A noção de “encosto” no Brasil assume atualmente as proporções de uma Culture-Bound Syndrome ou 
“Síndrome Ligada à Cultura” (APA, 2002, p. 837-842), que os clínicos não devem desprezar. Estudos de 
etnopsiquiatria conduzidos por François Laplantine, Geza Róheim, Georges Devereux e Tobie Nathan 
apontaram para a importância da dimensão cultural enquanto variável indispensável dos processos 
diagnóstico e terapêutico. 
4 Trabalhamos aqui com a idéia foucaultiana de “episteme” (Foucault, 2007; 2008), segundo a qual, 
certos contextos históricos privilegiariam determinadas formas de pensar e desentir, que moldariam 
nossa apreensão e nosso conhecimento do mundo, ampliando-a. Na Idade Média, as condições 
discursivas favoreceram a constituição de uma Weltanschauung (visão de mundo ou cosmovisão) 
religiosa. Na contemporaneidade, por sua vez, as condições discursivas privilegiam uma Weltanschauung 
biológica (Kurz, 1999) que redefine o estatuto do sujeito em termos cerebralistas (Ehrenberg, 2004). Esse 
conceito foucaultiano se aproxima da noção de “jogos de linguagem”, cunhada por Ludwig Wittgenstein 
(2005), e de “paradigma”, de Thomas Kuhn (2003). 
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 4
explosões de loucura coletiva em que grande número de pessoas partilhava delírios e 
alucinações. Surgiu naquela época, na Itália, a música/dança “tarantela” como antídoto 
ao “tarantismo” – possessão por um tipo de aranha chamada tarântula. Data também 
daquela época a “licantropia”, crença na possessão de homens por lobos, chamados 
“lobisomens”. 
Durante esse período, há o ressurgimento das técnicas de exorcismo, a cargo dos 
clérigos católicos, que podiam suplicar, entoar cânticos, rezar, administrar água benta 
ou bebidas amargas; caso tais técnicas não funcionassem, podiam, ainda, insultar o 
demônio e atacar o seu orgulho ou, em casos mais extremos, fazer o indivíduo passar 
fome, flagelá-lo, escaldá-lo ou estirá-lo. 
Vale ressaltar que a maioria dos hospitais ocidentais do Medievo comportava 
leitos reservados aos loucos (de fato, não passavam de jaulas). Ou seja, mesmo na Idade 
Média havia espaço para as curas médicas da loucura. Todavia, isso se limitava às 
formas de loucura tidas como curáveis (frenesis, episódios de violência ou acessos 
melancólicos). No geral, a loucura possuía uma grande extensão, sem suporte médico. 
 
1.4. Renascimento 
 
 Durante a fase inicial do Renascimento (que compreende os séculos XV e XVI), 
período de florescimento cultural e intensa atividade científica na Europa, a visão 
demonológica da loucura vai sendo paulatinamente substituída pela visão médica greco-
romana (escola hipocrático-galênica), preservada para a posteridade e aprimorada pela 
medicina árabe, cujos principais representantes foram Avicena (séc. XI) e Averróis (séc. 
XII). 
 O século XV testemunhou a abertura dos primeiros estabelecimentos reservados 
aos loucos no Ocidente, primeiramente, na Espanha muçulmana (Saragossa), em 1409, 
e posteriormente na Itália. No século seguinte, tais estabelecimentos se expandiriam 
para a Inglaterra, Áustria, França etc. Contudo, as práticas asilares são pontuais; a 
loucura é experimentada em estado livre, isto é, ela circula, faz parte do cenário e da 
linguagem comuns; é, para cada um, uma experiência cotidiana que se procura mais 
exaltar do que dominar, como o ilustram os loucos célebres na França, no início do 
século XVII. 
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 5
 Vale ressaltar que, naquele período, a demonologia continuava em alta, como o 
comprova o manual de caça às bruxas Malleus Maleficarum5, escrito em 1484 por dois 
monges inquisidores, espécie de protótipo dos modernos manuais nosográficos. 
 
1.5. Idade Clássica (séculos XVII e XVIII) 
 
 Em meados do século XVII, uma brusca mudança acontece; o mundo da loucura 
vai se tornar o mundo da exclusão. Criam-se em toda a Europa estabelecimentos para 
internação não somente dos loucos, mas de todos os indivíduos desviantes com relação 
à moral burguesa em ascensão: inválidos pobres, mendigos, desempregados, portadores 
de doenças venéreas, libertinos etc. Na França, criam-se os Hospitais Gerais (Bicêtre e 
La Salpetrière) com este propósito, cujo correspondente na Inglaterra eram as 
Workhouses. Também os antigos estabelecimentos para loucos, que haviam surgido no 
Renascimento, alinharam-se à proposta da chamada “Grande Internação”. 
 Tais novos estabelecimentos não têm vocação médica alguma; trata-se apenas de 
depósitos humanos que visavam a separar os que podem ou não fazer parte da 
ascendente sociedade capitalista. No mundo burguês em processo de constituição, o 
pecado maior passa a ser a ociosidade, e não mais o orgulho e a avidez, como na Idade 
Média. O critério de exclusão (dos residentes nas casas de internamento) é a 
incapacidade de tomar parte na produção, na circulação ou no acúmulo de riquezas. 
Tanto que, nesses estabelecimentos, reina o trabalho forçado – conforme o sugestivo 
nome dado a eles na Inglaterra (Workhouses) o atesta — como forma de expiação 
moral. 
 A loucura, durante tanto tempo manifesta e loquaz, entra num tempo de silêncio 
no qual permanecerá por um longo período, ao menos até Freud, que reconheceu na 
desrazão uma linguagem comum capaz de comunicar algo. Durante seu período de 
silêncio, a loucura é despojada de sua linguagem e, se se pôde continuar a falar algo 
dela, ser-lhe-á impossível falar acerca de si mesma. 
 A chamada Grande Internação não duraria mais que um século. Na metade do 
século XVIII, dentro do ideário revolucionário francês pautado nos princípios de 
liberdade e igualdade, surgem denúncias políticas dos seqüestros arbitrários e críticas 
 
5 KRAMER, H & SPRENGER, J. O martelo das feiticeiras. São Paulo: Record, 1996. 
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 6
dirigidas à forma tradicional de assistência, que geram um pavor popular pelas casas de 
internamento, consideradas focos do mal. 
 No fim do século XVIII, os reformadores franceses quiseram suprimir o 
internamento como símbolo da opressão do Antigo Regime. Como à loucura, por tanto 
tempo ausente do cenário social, já se associara o estigma da periculosidade, as antigas 
casas de internamento passaram a ser reservadas somente aos loucos. O internamento 
tomou, então, uma nova significação: tornou-se medida de caráter médico, justificando-
se como uma prática de tratamento; da mesma forma, a loucura ganhou uma nova 
concepção, tornando-se objeto do saber médico a partir de sua conceitualização como 
doença mental. A possibilidade de aglutinar os loucos em um mesmo espaço para 
conhecer e tratar suas loucuras permite o nascimento da psiquiatria. Pinel, na França, 
Tuke, na Inglaterra, Chiarugi, na Itália, Wagnitz e Riel, na Alemanha, todos médicos 
reformadores do hospício que humanizaram o tratamento dispensado aos loucos (é bem 
conhecido o gesto romântico de Pinel de libertar os loucos de suas antigas contenções 
físicas), inserindo suas loucuras numa nosografia6 médica. 
 
 
SELETA BIBLIOGRÁFICA: 
 
• (APA) AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION [2000] Manual Diagnóstico e Estatístico de 
Transtornos Mentais. Quarta Edição – Revista (DSM-IV-TR). Porto Alegre: Artmed, 2002. 
 
• COMER, R. Psicologia do Comportamento Anormal: passado e presente. In: Psicologia do 
Comportamento Especial. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2003, p. 01-17. 
 
• DALGALARRONDO, P. Civilização e loucura: uma introdução à história da etnopsiquiatria. Rio de 
Janeiro: Editora Cultura Médica, 1989. 
 
• EHRENBERG, A. Le sujet cérébral. Esprit, 309:130-155, 2004. 
 
• FOUCAULT, M. [1954] A constituição histórica da doença mental. In: Doença Mental e Psicologia. 
Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1968, p. 39-53. 
 
• ________. [1961] História da Loucura na Idade Clássica. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. 
 
• ________. [1966] As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2007. 
 
• ________. [1969] Arqueologia do saber. São Paulo: Forense Universitária, 2008. 
 
• KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2003. 
 
• KURZ, R. A biologização do social. In: Os últimos combates. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 191-197. 
 
 
6 A nosografia é uma nomenclatura decorrente de uma classificação, ou seja, um conjunto de termos 
particulares para a descrição de doençasem medicina; associa-se à “nosologia”, que é o estudo 
sistemático e elucidativo dessas doenças. 
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 7
• LAPLANTINE, F. Aprender etnopsiquiatria. São Paulo: Brasiliense, 1994. 
 
• WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Petrópolis: Vozes, 2005. 
 
 
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 8
2. O Surgimento da Clínica Psiquiátrica 
•●• 
 
m 1793, Philippe Pinel, médico, filósofo e ideólogo da Revolução 
Francesa, tornou-se diretor de Bicêtre, um asilo parisiense para homens. 
Lá, ele mandou desacorrentar os loucos de suas correntes, gesto mítico que se confunde 
com o nascimento da psiquiatria. A complexidade do gesto de Pinel se reflete nas 
opiniões díspares a seu respeito: se por um lado, como assinalam Gauchet & Swain 
(1980), ele teria sido um libertário, ao devolver a humanidade aos loucos, concebidos e 
tratados até então como bichos, por outro, como assinala Foucault (1968; 2000), ele 
teria sido um carcereiro, ao inscrever suas loucuras numa nosografia, aprisionando-os 
ao saber médico. Pinel esquadrinha o Hospital Geral, classificando e agrupando os 
diversos tipos de loucura em classes, gêneros e espécies, com base em seus sinais e 
sintomas; seguia o método da história natural, segundo o qual conhecer é classificar, 
separar e agrupar os diferentes fenômenos em ordens aproximativas. Escreveu o 
Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental, primeira incursão médica sobre a 
loucura. Inaugurou a clínica psiquiátrica fundando-a como uma disciplina autônoma, 
uma pura ciência da observação. Conhecer a loucura era observar, descrever e 
classificar aquilo que às vistas do alienista era estranho ao padrão moral; colocando-se 
no lugar do cientista imune às influências sócio-culturais, era ele quem determinava o 
que é normal e o que é patológico. 
Pinel concebia a loucura como “alienação mental”. Sua concepção revolucionou 
a idéia que se tinha dela até então. Considerava o louco não como desarrazoado, à 
maneira cartesiana, mas sim como um alienado de sua própria razão; por sua vez, a 
loucura não era mais concebida como o outro da razão (desrazão), mas como um 
distúrbio da paixão no interior da própria razão (alienação). Voltando à discussão entre 
Gauchet & Swain (op. cit.) e Foucault (op. cit.), se, por um lado, Pinel definiu um 
estatuto patológico para a loucura, medicalizando-a e, por conseguinte, silenciando-a, 
por outro, abriu um campo de possibilidades terapêuticas para ela, pois, até então, a 
loucura era considerada uma natureza externa ao humano, estranha à razão e, portanto, 
incurável. Em termos práticos, Pinel instituiu a possibilidade de tratamento e cura da 
loucura. Se o louco é um alienado de sua razão, e não um desarrazoado, há um resquício 
de razão nele. É possível se apegar a este resto de razão e resgatá-la no seu todo, 
curando o alienado. Propôs, por conseguinte, o “tratamento moral” da loucura, espécie 
E 
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 9
de método de reeducação pedagógica centrado na autoridade do médico, que tinha como 
premissa básica o isolamento terapêutico dos loucos nos hospícios. Como ideólogo da 
Revolução, Pinel justifica a privação da liberdade dos loucos nos hospícios como um 
gesto libertário; na verdade, a alienação mental nada mais é que o estado de privação da 
liberdade individual, de perda do livre-arbítrio, sendo o alienista, por intermédio do 
tratamento moral, o único que poderia restituir aos loucos sua liberdade subtraída pela 
alienação7. 
Pinel atribuía a loucura às causas de ordem moral (psicológicas e/ou sociais), 
tais como: as paixões intensas, muito contrariadas e prolongadas; os excessos de todos 
os tipos, as irregularidades dos costumes e dos hábitos de vida, assim como a educação 
perniciosa, fosse por brandura ou dureza excessivas. 
Resgatando a tradição hipocrático-galênica, Pinel concebe a loucura como um 
desequilíbrio do organismo, um distúrbio de suas paixões, entendendo estas como 
modificações desconhecidas da sensibilidade física e moral. Haviam as paixões 
debilitantes ou opressivas (desgosto, ódio, temor, saudades, remorsos, ciúmes, inveja 
etc.) e as paixões alegres (alegria, orgulho, amor, compaixão etc.). As duas ordens de 
paixões poderiam ser perfeitamente normais, se em grau e intensidade adequados; 
porém, se em proporções excessivas, exageradas, desmedidas, poderiam ocasionar 
alienação. 
Contrariando a anátomo-clínica e sua obstinada busca das lesões subjacentes às 
doenças através das dissecações dos cadáveres, paradigma médico da época, Pinel 
negava qualquer causalidade física à loucura (alienação mental). Sendo esta 
predominantemente um distúrbio das paixões, afirmava ser possível curá-la (por 
intermédio do tratamento moral) reeducando a mente alienada, indo de encontro ao 
dogma da incurabilidade da loucura e ao niilismo terapêutico em voga. Pinel fundou a 
“medicina mental” ou “alienismo” como uma medicina especial, já que ele não se 
encaixava ao modelo da anátomo-clínica. Consolidando o projeto alienista, Pinel retorna 
à clínica geral, deixando seu legado a Esquirol. 
 
7 Esta idéia da internação como condição sine qua non para a cura - que originaria o chamado “modelo 
asilar” de tratamento da loucura – vigoraria por aproximadamente um século e meio, norteando a 
psiquiatria até meados do século XX, ocasião na qual uma série de experiências terapêuticas alternativas 
ao asilo (Comunidades Terapêuticas, Psiquiatria de Setor, Psiquiatria Comunitária, Psiquiatria 
Democrática Italiana etc.) viria questionar a natureza segretativa e iatrogênica das práticas psiquiátricas 
até então vigentes. Tal movimento ficaria conhecido como “Reforma Psiquiátrica” e originaria o campo 
multiprofissional da Saúde Mental. 
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 10
Esquirol foi o mais fiel e o mais ortodoxo dos discípulos de Pinel e sua obra 
representa a aplicação, a ilustração e o aprofundamento das idéias de seu mestre. Por 
intermédio de seu ensino, ele foi o principal difusor das idéias pinelianas. Dentre seus 
seguidores, destacam-se Georget, Parchappe, Ferrus, Delasiauve, Baillarger, Leuret, 
Moreau de Tours etc. 
As concepções de Pinel, de Esquirol e de seus seguidores, reinaram absolutas até 
o último quarto do século XIX. Num primeiro momento, a prática alienista veio 
corroborar as assertivas de Pinel, Esquirol e seguidores, pois era o tratamento moral, e 
não os tratamentos físicos, que traziam resultados positivos para os alienados. Todavia, 
num momento posterior, o tratamento moral dá seus primeiros sinais de declínio, uma 
vez que a superlotação dos asilos praticamente impossibilitava uma observação caso a 
caso, fazendo-o perder sua eficácia. Apesar disso, e diante da ausência de um tratamento 
alternativo, ele continuaria sendo amplamente adotado, embora com algumas 
limitações8. 
 
Não é nossa intenção aqui nos aprofundar nos meandros históricos do campo 
psiquiátrico, porém, valeria à pena ressaltar uma descoberta que fundaria o pólo 
somático em psiquiatria. Tal descoberta inaugurou uma tensão bipolar no campo 
psiquiátrico entre os “psiquistas” e os “somatistas”, que perdura até hoje: no decorrer da 
história, ora determinadas condições discursivas favorecem a expansão das teses 
psicogênicas, como no pós-II Guerra Mundial, ora das teses somatogênicas, como na 
atualidade. 
Antoine-Laurent Bayle, em sua tese de doutorado em medicina de 1822, atribuía 
os sintomas psiquiátricos da neurossífilis à inflamação crônica das meninges. Bayle 
circunscreveu, assim, pela primeira vez uma organicidade intrínseca ao que se 
considerava na época uma doença mental, estabelecendo que, quando a doença 
subjacente piorava,os sintomas tomavam o mesmo rumo (doutrina da paralisia geral 
progressiva). De fato, a originalidade da descoberta de Bayle ficaria encoberta por 
algum tempo devido à tese alienista, hegemônica naquela época, que considerava as 
“lesões encontradas na autópsia dos alienados (...) quer como a expressão de moléstias 
independentes, quer como complicações ou conseqüências da loucura, bem longe de 
 
8 Reconhece-se a herança do tratamento moral em qualquer prática de infantilização e 
culpabilização/punição do louco, ainda comuns na psiquiatria e, mesmo, no campo mais amplo da Saúde 
Mental. 
GUIA DIDÁTICO DE PSICOPATOLOGIA - PROF. ROGÉRIO HENRIQUES – DEPTO. DE PSICOLOGIA UFS 11
serem as causas dela” (Bercherie, 1989, p. 59), indo de encontro à tese de Bayle. Diante 
da rejeição quase unânime de suas idéias — sem dúvida, tratava-se de idéias 
progressistas para a sua época —, Bayle abandonaria a psiquiatria, decepcionado. “(...) 
seriam necessários vinte anos para que sua descoberta começasse a ser reconhecida, e 
trinta anos para que surtisse efeito, provocando uma reviravolta completa na ciência das 
doenças mentais” (idem, p. 83). 
Se a descoberta de Bayle fundou o pólo somático em psiquiatria, o conceito de 
“degenerescência” de Morel o afundou. Em seu Traité des dégénérescences, de 1857, 
Morel cunhou o conceito de “degenerescência” no intuito de explicar a “incessante 
progressão” na Europa de males, tais como a paralisia geral, a epilepsia, o suicídio, a 
criminalidade etc. Morel tentava identificar as “forças subjacentes” que moldavam o 
destino da condição humana. Ele notou que seus pacientes recapitulavam “nos seus 
corpos a patologia orgânica característica das gerações precedentes” (apud Shorter, 
1997, p. 94). Segundo sua crença, uma característica adquirida do meio, como uma 
tuberculose, por exemplo, poderia ser transmitida hereditariamente à descendência, 
culminando, três ou quatro gerações seguintes, numa demência seguida de esterilidade. 
Tomando emprestado um termo da zoologia comparativa de sua época, Morel decidiu 
denominar esta suposta cronificação mórbida da descendência familiar com o termo 
“degenerescência”. Esta última extrapolaria o âmbito familiar, contaminando a porção 
saudável da sociedade. Portanto, era preciso extirpá-la em sua base, ou seja, aplicando 
uma política de ação que a seqüestrasse do mundo social. Assim, estavam lançadas as 
bases “científicas” da eugenia. 
 A teoria da degenerescência moreliana conheceu grande sucesso mundial. Morel 
possuía simpatizantes em vários países que difundiam sua doutrina à comunidade 
psiquiátrica, dentre os quais se destacam Richard von Krafft-Ebing, na Europa Central, 
Valentin Magnan — que se tornou o porta-voz da teoria da degenerescência na França 
após a morte de Morel —, e Henry Maudsley, na Inglaterra. 
 Durante a belle époque, a teoria da degenerescência saiu de moda entre os 
psiquiatras. A degenerescência tornou-se um objeto de piadas dentre os adeptos da 
então nascente psicanálise. Interpretações não-biológicas — tal como a abordagem 
fenomenológica de Karl Jaspers, que enfatizava a empatia com a vivência subjetiva dos 
pacientes psiquiátricos e a “compreensão” da loucura — ganharam a cena no campo 
psiquiátrico no início do século XX. 
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Assim, no início da I Guerra Mundial, a degenerescência estava desacreditada 
dentro da psiquiatria. No Entre-Guerras, os psiquiatras que continuavam adeptos de tal 
teoria eram mal vistos pelos seus colegas de profissão. Contudo, o estrago já estava 
feito e a doutrina da degenerescência, extrapolando o campo psiquiátrico, conheceria 
sua radicalização com a “solução final” proposta pelo nacional-socialismo hitlerista. 
Seria necessário o desenvolvimento da psicofarmacologia e o advento da genética 
moderna e das neurociências para que a vertente somática retomasse sua credibilidade 
no campo psiquiátrico, porém, ganhando certa desproporcionalidade (na linhagem do 
que Karl Jaspers designou de “mitologia cerebral”) na atualidade9. 
 
O fundador da clínica psiquiátrica moderna foi Emil Kraepelin (1856-1926) 10. 
Nascido na Alemanha, em 1856, ou seja, no mesmo ano que Freud, Kraepelin, ex-aluno 
de Wundt (considerado o pai da psicologia moderna), desenvolveu sua obra fundadora 
da psiquiatria contemporânea em paralelo com a nascente psicanálise. Seu gigantesco 
trabalho descritivo e classificatório constituiria uma grande síntese das conquistas 
semiológicas da psiquiatria do século XIX, como também estabeleceria um sólido 
sistema nosográfico, ao qual se referenciariam todas as principais correntes psiquiátricas 
posteriores. Mesmo a obra freudiana, em vários momentos, supõe o recorte de 
Kraepelin do campo psicopatológico, notadamente no que se refere à delimitação das 
psicoses. 
O essencial de seu pensamento foi publicado em seu famoso Tratado de 
Psiquiatria, que conheceria oito edições entre os anos de 1883 e 1915. Cada nova 
edição comportava, em geral, uma revisão da doutrina e um remanejamento da 
classificação. Seu método de abordagem dos fenômenos psicopatológicos era 
essencialmente clínico-descritivo e classificatório. Trabalhando e morando por vários 
anos na clínica psiquiátrica da Universidade de Heidelberg (que, por sua iniciativa, viria 
a se tornar, em 1918, o Instituto Alemão de Pesquisas Psiquiátricas), Kraepelin tinha 
acesso direto à observação de seus pacientes, não apenas através de consultas isoladas, 
mas podendo acompanhá-los ao longo do tempo. Dessa forma, a perspectiva 
longitudinal e evolutiva acabou por se tornar uma exigência metodológica da 
psicopatologia kraepeliniana. Descrever uma entidade mórbida era descrevê-la 
 
9 Ver (Serpa Jr., 1998). 
10 Parte do texto, a seguir, foi extraída de PEREIRA (2001). 
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minuciosamente no tempo e em sua evolução, determinando, por fim, as características 
de seu estado terminal. 
Uma dimensão importante da proposta classificatória e sistematizadora de 
Kraepelin diz respeito ao estatuto das categorias descritas. Para o psiquiatra alemão, 
tratava-se inquestionavelmente de se delimitarem entidades mórbidas, ou seja, doenças 
mentais em um sentido médico estrito enquanto entidades nosológicas clínico-
evolutivas. Dessa forma, a seu ver, uma nosografia psiquiátrica deveria ter por eixo 
metodológico a preocupação etiológica, ou seja, as entidades descritas deveriam 
corresponder precisamente a recortes nosológicos específicos, segundo as causas 
implicadas. É assim que encontramos em suas classificações a divisão entre doenças de 
causa “endógena” e doenças de causas “exógenas”, “doenças mentais congênitas” e 
“doenças mentais adquiridas” etc. O conceito de “endógeno” foi introduzido na 
medicina em 1892 pelo célebre neurologista alemão Moebius, que mereceu um estudo 
biográfico escrito pelo próprio Kraepelin. Importado da botânica, esse termo deve 
justamente ser distinguido de “somatógeno”, referindo-se, antes, a uma disposição 
individual resultante da combinação de fatores físicos e mentais. 
A grande contribuição de Kraepelin à nosografia psiquiátrica foi sua divisão 
clássica das chamadas “psicoses endógenas” em esquizofrenias (catatônica, hebefrênica 
e paranóide), paranóia e psicose maníaco-depressiva. Apesar das constantes mudanças 
de nomenclatura, essa sistematização nosográfica kraepeliniana das psicoses permanece 
atual, como o comprovam os manuais contemporâneos, CID-10 (OMS, 1993) e DSM-
IV-TR (APA, 2000), à exceção das psicoses afetivas (melancolia e/ou mania) terem 
deixado o grupo dos transtornos psicóticos passando a elencar os transtornos do humor; 
cabe ainda ressaltar que os idealizadores do DSM, chefiados pelo psiquiatranorte-
americano Robert Spitzer, reivindicam uma filiação metodológica kraepeliniana 
(Shorter, 1997), contudo, paradoxalmente, abriram mão do eixo que a caracterizava, a 
preocupação etiológica, em prol de uma abordagem exclusivamente sindrômica 
(discutiremos as implicações práticas dessa opção metodológica no cap. 5 adiante). 
 
 
SELETA BIBLIOGRÁFICA: 
 
• AMARANTE, P. O paradigma psiquiátrico. In: O homem e a serpente: outras histórias para a loucura e 
a psiquiatria. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996, p. 39-67. 
 
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• (APA) AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION [2000] Manual Diagnóstico e Estatístico de 
Transtornos Mentais. Quarta Edição – Revista (DSM-IV-TR). Porto Alegre: Artmed, 2002. 
 
• BERCHERIE, P. Os fundamentos da clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: 
Jorge Zahar, 1989. 
 
• COMER, R. Psicologia do Comportamento Anormal: passado e presente. In: Psicologia do 
Comportamento Especial. 4ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 2003, p. 01-17. 
 
• FOUCAULT, M. [1954] A constituição histórica da doença mental. In: Doença Mental e Psicologia. 
Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1968, p. 39-53. 
 
• ________. [1961] História da Loucura na Idade Clássica. 6 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. 
 
• GAUCHET, M. & SWAIN, G. La pratique de l’esprit humain. L’instituition asilaire et la revolution 
démocratique. Paris: Gallimard, 1980. 
 
• KRAEPELIN, E. [1904] Trattato di Psichiatria. 7 ed. Milano: Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 
s/d. 
 
• (OMS) ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação de Transtornos Mentais e de 
Comportamento da CID-10: descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 
1993. 
 
• PEREIRA, M. E. C. Introdução à “Melancolia” de Emil Kraepelin. Revista da Associação Psicanalítica 
de Porto Alegre: os nomes da tristeza, Porto Alegre, ano IX, n. 21, p. 165-169, dez. 2001. 
 
• SERPA JR. O. D. Mal-Estar na Natureza: estudo crítico sobre o reducionismo biológico em psiquiatria. 
Rio de Janeiro: Te Corá, 1998. 
 
• SHORTER, E. A History of Psychiatry: from the Era of the Asylum to the Age of Prozac. New York: 
John Wiley and Sons, 1997. 
 
 
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3. O Normal e o Patológico 
 
•●• 
 
os inúmeros critérios de normalidade existentes, pelo menos, três 
deles se destacam: o subjetivo, o estatístico e o qualitativo. O critério 
subjetivo associa a doença ao sofrimento, logo, está doente quem se 
sente doente; a crítica que se faz a tal critério é que, por exemplo, num quadro eufórico 
de mania, o sujeito sente-se extremamente bem, potente, disposto, enérgico, sem, no 
entanto, apresentar-se saudável. Pelo critério estatístico ou quantitativo o normal é 
sinônimo de comum, freqüente, ou mais próximo à média; todavia, a ansiedade leve e a 
cárie são muito freqüentes na população brasileira e nem por isso podem ser 
considerados saudáveis, da mesma forma que um alto Q. I., apesar de infreqüente, não 
pode ser considerado patológico. Já o critério qualitativo define que o normal é aquilo 
adequado a determinado padrão funcional considerado ótimo ou ideal; as críticas a esse 
critério recaem no relativismo cultural que ele implica, haja vista basear-se em normas 
sócio-culturais arbitrárias o que, a nosso ver, não constitui um problema em si, a não ser 
que se parta de uma concepção universalista da doença, transcultural e transhistórica, 
com a qual não compartilhamos. 
Curioso que o manual nosográfico norte-americano, o DSM-IV-TR, reserva um 
apêndice exclusivo para classificar as “Síndromes Ligadas à Cultura” (APA, 2002, p. 
837-842), descrevendo, nesse suplemento temático, as “doenças étnicas” que afetam 
culturas tidas como exóticas e que não geram um código diagnóstico, enquanto esse 
mesmo manual codifica o fenômeno da “personalidade múltipla”, uma autêntica 
“doença étnica” da cultura norte-americana, como um transtorno específico (transtorno 
dissociativo de identidade - 300.14) (ver Hacking, 2000). É nessa direção que o 
antropólogo norte-americano Atwood Gaines (1992), desconstrói o processo 
classificatório dos DSM’s e extrai uma etnopsicologia subjacente às nosografias 
psiquiátricas norte-americanas, demonstrando que elas são porta-vozes de uma das três 
tradições culturais do ocidente (particularmente, a tradição Protestante Germânica do 
Norte Europeu), que pressupõe uma noção positiva idealizada do eu: a saber, aquela de 
um “eu referencial”, autocontrolado, cujas questões existenciais centrais se referem à 
autonomia, à individualização e ao desenvolvimento/crescimento pessoal. Daí entende-
se o motivo pelo qual uma amostra representativa dos psicólogos norte-americanos 
D 
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rejeita o DSM, concebendo-o como enviesado por questões culturais e de gênero, 
reprodutor do modelo médico-psiquiátrico e guiado pelo reembolso dos planos de 
saúde11 (Hill & Fortenberry, 1992, p. 77). 
 
No tópico 3.1 faremos uma leitura do conto O Alienista, de Machado de Assis, à 
luz do critério estatístico de normalidade. O tópico 3.2 discorrerá sobre a concepção de 
Georges Canguilhem de normalidade, que abrange os critérios subjetivo e qualitativo. 
Finalmente, o último tópico, 3.3, ilustrará com um caso clínico de Oliver Sacks a noção 
canguilhemniana de normalidade. 
 
3.1. A normalidade como média estatística: análise do conto “O Alienista” 
 
 É possível identificar no conto O Alienista, de Machado de Assis, uma crítica 
voraz à escola alienista francesa de Pinel, Esquirol e seguidores, sobretudo no que tange 
a sua tentativa científica de objetivação da loucura. 
A princípio, a própria história do alienista Simão Bacamarte, personagem 
principal do conto, médico com formação erudita nas Universidades de Coimbra e 
Pádua, que foi parar não se sabe por qual motivo em Itaguaí, cidadezinha do interior 
fluminense, pode ser encarada como a reprodução da trajetória dos primeiros alienistas 
franceses, os quais, após receberem uma sólida formação em Paris, rumavam para o 
interior da França, onde construíam um asilo, criando assim um campo de trabalho e 
pesquisa. 
Tal como Pinel, em Bicêtre, Simão Bacamarte pode ser considerado um 
“reformista”. Com a criação da “Casa Verde”, primeiro hospício construído por ele em 
Itaguaí12, Simão Bacamarte conferiu aos “loucos furiosos”, “que eram trancafiados em 
sua própria casa” e viviam como bichos, um tratamento digno, científico. À semelhança 
de Pinel, seu principal objetivo com a construção da Casa Verde era “estudar 
profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhes os casos, descobrir 
enfim a causa do fenômeno e o remédio universal” (Assis, 1995, p. 22). 
 
 
11 No original, em inglês: “reimbursement driven, psychiatry-owned, non-universal, gender-biased, non-
empiric extension of the ‘ medical model’”. 
12 O nome “Casa Verde” dado ao hospício de Itaguaí, no conto, é uma referência explícita a cor das suas 
janelas, todavia, implicitamente, trata-se também da cor que designa a medicina. Estaria Machado de 
Assis fazendo uma alusão à idéia de que talvez a única escapatória dos loucos às amarras da psiquiatria 
(tanto físicas, quanto morais) estaria na passagem ao ato clássica, a defenestração? 
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Uma vez desonerado da administração [da Casa Verde], o alienista 
procedeu a uma vasta classificação dos seus enfermos. Dividiu-os 
primeiramente em duas classes principais: os furiosos e os mansos; daí 
passou às subclasses, monomanias, delírios, alucinações diversas. Isto 
feito, começou um estudo aturado e contínuo; analisava os hábitos de 
cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, osgestos, as tendências; inquiria da vida dos enfermos, profissão, costumes, 
circunstâncias da revelação mórbida, acidentes da infância e da 
mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família, uma 
devassa, enfim, como a não faria o mais atilado corregedor. E cada dia 
notava uma observação nova, uma descoberta interessante, um fenômeno 
extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regime, as 
substâncias medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, 
não só os que vinham dos seus amados árabes, como os que ele mesmo 
descobria, à força de sagacidade e paciência (Ibid, p. 24). 
 
Não estaria aí ilustrado o projeto da escola francesa alienista da primeira metade do 
século XIX? Mesmo tendo sido escrito na década de 1880 (1881-1882), este conto 
recapitula uma época anterior do Brasil Colônia por intermédio de um narrador neutro 
que lê as crônicas daquela época, e narra sua história, mantendo o distanciamento 
necessário para as críticas que tece. 
 É num diálogo entre Simão Bacamarte e o boticário Crispim Soares que o 
alienista antecipa sua primeira concepção da loucura: “A loucura, objeto dos meus 
estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é 
um continente” (Ibid., p. 27). 
 Daí a enunciação de sua primeira concepção da loucura como sendo o 
desequilíbrio das faculdades mentais: 
 
Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim (...) é ver se 
posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos 
definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito 
equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só insânia 
(Ibid., p. 28). 
 
 A conseqüência fatídica dessa primeira tese bacamartiana acerca da loucura já 
se prenuncia no título do capítulo subseqüente à sua enunciação: “O Terror”, numa 
clara alusão à Revolução Francesa. Tendo sido dotado de plenos poderes legais, o 
alienista procedeu a um encarceramento desenfreado de cidadãos itaguaienses, jamais 
visto na história da cidade. Tal como Pinel, colocando-se no lugar do cientista imune às 
influências sócio-culturais, era Simão Bacamarte quem, aleatoriamente, determinava o 
que era normal e o que era patológico. Nesse meio tempo, houve uma revolta popular 
contra seu suposto abuso de poder, liderada pelo barbeiro Porfírio, que ficaria 
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conhecida como “Revolta dos Canjicas”. Teria Simão Bacamarte algum interesse 
escuso por trás dessa coleta desenfreada — questionavam os revoltosos? Interessante 
notar que a batalha entre o alienista Simão Bacamarte e o barbeiro Porfírio reflete, em 
tese, a luta entre o douto e o leigo – vale lembrar que “barbeiro” era o temo usado na 
época para designar os cirurgiões que não tinham formação médica acadêmica e 
utilizavam técnicas curativas pouco ortodoxas como as sangrias, por exemplo. Dessa 
batalha entre Davi e Golias, ironicamente, Golias sai vencedor. Simão Bacamarte 
fortalece-se ainda mais e se conclui que o trato com a loucura é matéria de ciência, 
coisa para doutos, e não para leigos. As dúvidas quanto à idoneidade moral do alienista 
se dissiparam tão logo ele internou sua própria esposa, a qual, segundo ele, padecia de 
“mania suntuária”. Ao final de tais acontecimentos, constatou-se que 4/5 da população 
de Itaguaí estava encerrada na Casa Verde. 
 Para assombro de Itaguaí, Simão Bacamarte resolveu expedir um ofício à 
Câmara de Vereadores comunicando que todos os loucos da Casa Verde iriam ser 
postos na rua. Tal decisão refletia uma mudança em sua concepção da loucura, advinda 
do exame estatístico da vila e da Casa Verde e da constatação de que a maioria da 
população estava reclusa nesta instituição. No terceiro item desse ofício remetido à 
Câmara, o alienista enunciou sua segunda concepção da loucura: 
 
(...) a verdadeira doutrina não era aquela [loucura como desequilíbrio das 
faculdades mentais], mas a oposta, e portanto que se devia admitir como 
normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses 
patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto 
(Ibid., p. 46). 
 
 Subjacente a essa mudança de concepção de Simão Bacamarte está sua tentativa 
de redefinir a sanidade/loucura a partir de critérios estatísticos baseados na noção de 
média. De acordo com sua primeira tese, se a maioria da população de Itaguaí estava 
internada na Casa Verde, isto significava que a maior parte dos itaguaienses eram 
desequilibrados mentalmente e, portanto, loucos, o que representava um contra-senso à 
estatística e à razoabilidade científica. Tomando-se o gráfico da distribuição normal 
segundo a curva de Gauss, como o desvio da norma, representado pela loucura, poderia 
ser mais prevalente do que a própria norma? Simão Bacamarte deduziu dessa 
constatação que sua primeira tese estava errada, redefinindo a sanidade/loucura a partir 
da prevalência estatística: se o desequilíbrio mental prevalece, ele passa a ser a norma a 
partir da qual se mede o desvio-padrão, isto é, a loucura, que passa a ser entendida 
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como o perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Por trás dessa inversão de concepção 
encontra-se, portanto, a tentativa do alienista de se adequar ao critério quantitativo 
baseando-se na média estatística para definir os limites entre o normal e o patológico13. 
De início, essa nova tese bacamartiana acabaria por se comprovar devido aos 
seus desdobramentos. Após cinco meses em vigor, estavam reclusas na Casa Verde 18 
pessoas, número que pode parecer pequeno se comparado aos “loucos” reclusos 
segundo sua primeira teoria; contudo, concluiu-se que “Essa mesma desproporção 
confirmava a teoria nova; achava-se enfim a verdadeira patologia cerebral” (Ibid., p. 
49). 
É possível reconhecer, ainda, na terapêutica adotada pelo alienista na Casa 
Verde com base em sua segunda tese um tratamento moral às avessas; tal terapêutica 
consistia em “atacar de frente a qualidade moral predominante” (Ibid., p. 52). “Cada 
beleza moral ou mental era atacada no ponto em que a perfeição parecia mais sólida” 
(Ibid., p. 51). Aqui, ao invés de reeducar o louco, visava-se deseducá-lo até o limite 
suposto da sanidade mental. Tal como o tratamento moral, seu reverso mostrou 
resultados promissores. Após cinco meses e meio, todos os internos haviam restituído o 
desequilíbrio das faculdades e, portanto, a “normalidade”, ficando a Casa Verde vazia. 
Posteriormente, desencadeia-se uma crise de consciência no alienista acerca de 
seus méritos como curador: teria ele curado os loucos ou o que pareceu cura não foi 
mais que a descoberta do perfeito desequilíbrio mental, ou seja, da normalidade? 14 
 
13 Conforme o desfecho do conto, verificar-se-á que essa tentativa já nasceu fadada ao fracasso, uma vez 
que tal critério não se mostra eficaz quando aplicado à esfera psíquica. 
14 Poder-se-ia encontrar aqui uma crítica à limitação das intervenções psiquiátricas cujo panorama 
contemporâneo é o de uma proliferação indiscriminada de códigos diagnósticos que não é acompanhada 
proporcionalmente pela proliferação de condutas terapêuticas específicas? Sabe-se, por exemplo, que a 
psiquiatria, comparativamente a outras especialidades médicas, tem um dos menores elencos de 
medicamentos disponíveis, cuja ação é bastante inespecífica. Até que ponto a loucura traria em seu âmago 
a possibilidade espontânea de recuperação, assinalada por Freud no “caso Schreber” de 1911, ao 
circunscrever o delírio (seu sintoma clássico) como uma tentativa de cura? — “A formação delirante, que 
presumimos ser o produto patológico é, na realidade, uma tentativa de restabelecimento, um processo de 
reconstrução” (Freud, [1911], p. 78; grifo original). Até que ponto se descobriria a normatividadenaquilo 
que é concebido pela medicina como um signo da doença? Freud (op. cit.) não fala em cura da psicose, 
mas sim em “solução do conflito” (p. 43), “reconciliação” (p. 48-49) e “estabilização do conflito” (p. 59) 
que, em Schreber, deu-se a partir de seu trabalho delirante que culminou na transformação de seu delírio 
sexual persecutório inicial, relacionado ao seu primeiro psiquiatra (Dr. Flechsig), em delírio transexual 
salvacionista, referente a Deus: assim, Schreber, antes perseguido sexualmente por seu médico sem 
propósito algum, tornar-se-ia mulher para engravidar de Deus e dar à luz uma nova raça superior de seres 
humanos, nascida de seu próprio ventre; em suma: tornar-se-ia a “mulher de Deus” em conformidade às 
determinações da “ordem do mundo” (ver Lacan, [1955-56]; [1959]). Ainda segundo Freud [1911], o 
mecanismo psicológico da “projeção” na psicose, cujo produto é o delírio, é uma tentativa de religar a 
libido aos objetos, reconstruindo o mundo à maneira singular de cada delirante; o delírio teria, então, sua 
dimensão de poiesis. Cito outro texto mais tardio de Freud ([1924], p. 169): “(...) o delírio se encontra 
aplicado como um remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o 
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Como desfecho dessa crise, Simão Bacamarte reconhece em si mesmo as características 
do perfeito equilíbrio mental e moral. “(...) pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a 
paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as 
qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto” (Ibid., p. 52). 
Recolhendo-se à Casa Verde, faleceria dali a 17 meses, no mesmo estado em que 
entrou, “sem ter podido alcançar nada”. Tentou em vão explicar cientificamente os 
meandros da mente humana. Morreu na dúvida, sem ao menos ter entendido a si 
mesmo... 15 
 
3.2. A normalidade como normatividade segundo G. Canguilhem16 
 
 A definição das fronteiras entre saúde e doença (normal e patológico) em termos 
meramente quantitativos trouxe conseqüências, sendo a mais importante a assimilação 
da idéia de patologia à noção de “desvio” que passou a ser sinônimo de alteração 
patológica. Qualquer desvio passou a ser medido como alteração patológica; passou a 
ser medido em relação ao “normal”, que é predeterminado. Todavia, seria a definição de 
“normal” facilmente obtida, de forma tão simples e objetiva? Por trás da aparente e 
enganosa simplicidade do conceito de “normal”, haveria uma duplicidade de sentido, 
que pode alterar bastante a compreensão da relação entre normalidade e patologia. 
 Canguilhem define duas formas do que seja o “normal”. A primeira toma o 
termo como “fato”: normal aqui é o mais prevalente, o que estatisticamente se 
demonstra como a medida em torno da qual se agrupam as variações que podem 
deslizar em direção ao terreno da patologia; é algo detectado pela observação e 
objetivamente mensurável. Ao mesmo tempo existe, imersa no uso habitual dessa 
palavra, a concepção de “normal” não apenas como aquilo que “é”, mas como o que “é 
desejável”, introduzindo aí um conteúdo valorativo. Dizer de um órgão que ele é 
normal, tanto pode significar que seu funcionamento segue o padrão médio esperado, 
quanto pode significar que ele é capaz de funcionar acima desse padrão, se a vida assim 
o exigir. Neste caso, um órgão é normal não porque esteja dentro desses limites, mas 
 
mundo externo. Se essa precondição de um conflito com o mundo externo não nos é muito mais 
observável do que atualmente acontece, isso se deve ao fato de que, no quadro clínico da psicose, as 
manifestações do processo patogênico são amiúde recobertas por manifestações de uma tentativa de cura 
ou uma reconstrução.” 
15 Chamo atenção para outras leituras “psis” empreendidas desse conto, uma mais datada e psicocrítica 
(Lopes, 1981), outra mais atual, à luz da teoria lacaniana da psicose (Quinet, 2006). 
16 Parte do texto desse tópico foi extraída de Bezerra Jr. (1998). 
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porque atende com elasticidade e vigor às demandas que lhe são feitas. É normal porque 
é “normativo”, ou seja, é capaz de criar novas normas de funcionamento sempre que 
isto se fizer necessário para a preservação ou ampliação do estado de saúde do 
organismo. O coração bradicárdico de um remador, por exemplo, está fora do padrão 
habitual, mas o fato de ser desviante em relação à normalidade estatística é, neste caso, 
índice de saúde superlativa, e não de doença. Assim, a simples objetividade mensurável 
das médias não basta para qualificar o estado de um órgão ou de um organismo como 
normal ou patológico. É sempre necessário atentar para o grau de “normatividade” 
presente. 
 Canguilhem distingue claramente a “anomalia” da “anormalidade”, quando 
descreve os desvios respectivamente quantitativo e qualitativo em relação à média. 
Anomalia é qualquer diferença constatada em relação ao que é estatisticamente 
prevalente, uma simples variação, que não implica necessariamente restrição patológica. 
Exemplos desse tipo são a polidactilia, a dextrocardia, o situs inversus totalis (inversão 
total dos órgãos) etc. Todavia, a vida não é indiferente a qualquer tipo de anomalia. A 
acefalia, por exemplo, é uma anomalia incompatível com a preservação da vida, que 
dirá com sua expansão; o que define a fronteira entre os desvios que resultam apenas em 
variações próprias à pluralidade do fato vital e aqueles desvios, às vezes mínimos, que 
consideramos como anormalidade, ou patologia, não é um padrão de médias, não são 
medidas estatisticamente aferidas, mas a implicação que esse desvio tem sobre o 
processo de preservação e expansão da vida. 
 Para Canguilhem, o indivíduo não é normal porque simplesmente se adapta a 
norma X ou Y, mas sim porque possui “capacidade normativa”, isto é, capacidade de 
adaptação possível e voluntária a todas as condições imagináveis. O homem normal é o 
ser capaz de instituir novas normas para si próprio, conforme as demandas do meio, que 
expandam sua vida – já que esta possui nela mesma uma superabundância de 
possibilidades. 
 
Ser sadio significa não apenas ser normal numa situação determinada, 
mas ser, também, normativo, nessa situação e em outras situações 
eventuais. O que caracteriza a saúde é a possibilidade de ultrapassar a 
norma que define o normal momentâneo, a possibilidade de tolerar 
infrações à norma habitual e de instituir normas novas em situações 
novas (Canguilhem, 2002, p. 158). 
 
O homem só se sente em boa saúde (...) quando se sente mais do que 
normal, isto é, não apenas adaptado ao meio e às suas exigências, mas, 
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também normativo, capaz de seguir novas normas de vida” (Ibid., p. 
161). 
 
 Na prática clínica, quanto mais conhecemos o pensamento de Canguilhem, mais 
importância concedemos ao grau de normatividade do paciente. A terapêutica será 
justificada, não porque traga de volta o indivíduo para padrões de funcionamento 
previamente estipulados como normais, ou porque promova uma restitutio ad integrum, 
o que nem sempre é possível17. A justificativa estará no aumento da normatividade que 
um paciente pode alcançar, dadas as condições de limitação que a doença impôs. 
 No campo da saúde mental, a importância dessa discussão é crucial. Trata-se de 
um campo no qual se mostra evidente a fragilidade de critérios estatísticos e médias, 
não só porque os desvios em relação à média podem significar sanidade – e não 
patologia – mas porque nem sempre a normalidade implica saúde. Pelo contrário, é 
possível perceber, em alguns indivíduos, “patologias da normalidade” 18. Anormalidade, nesses casos, nada mais significa que fixidez, fragilidade psíquica, que se 
defende do inesperado, do incerto, da vida enfim, por meio da construção de 
mecanismos adaptativos rígidos. O sujeito está preso a um padrão do qual não consegue 
fugir. É normal, mas pouco tem de normativo. É a essa capacidade de superação de 
limites anteriores que Canguilhem define como o valor fundamental da vida. 
 
 Talvez a maior contribuição de Canguilhem à prática clínica tenha sido a 
relativização que ele promoveu da noção de saúde (que, como vimos, não se confunde 
com a normalidade), a qual só pode ser analisada a partir da singularidade de cada caso. 
Estendendo os limites do pensamento de Kant em Conflito das Faculdades, que pensou 
a saúde fora do campo de saber objetivo, Canguilhem argumentará que não há ciência 
da saúde, haja vista a saúde não ser um conceito científico, mas sim vulgar (no sentido 
de comum, ao alcance de todos). Dessa forma, não é o discurso científico que delimitará 
a saúde/doença, a partir de medições normativas referentes a um corpo biológico 
objetivado (“corpo-máquina”); antes, é o “corpo subjetivo” que delimita a 
saúde/doença, já que a normatividade acaba sendo o critério mais pragmático. Define-se 
o “corpo subjetivo” como o conjunto de habilidades que cada um possui e que permite 
contornar as agressões às quais se está exposto. Nunca é demais lembrar: ser saudável é 
 
17 Aliás, Canguilhem não acredita em restitutio ad integrum, uma vez que o indivíduo que caiu enfermo e 
se recuperou, isto é, que experimentou de sua saúde vencendo uma adversidade, já é outro, saindo mais 
fortalecido desse processo intrínseco à vida. 
18 Remeto o leitor ao trabalho de FERRAZ, F. C. Normopatia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. 
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ser normativo, ou seja, é a capacidade de instaurar novas normas de existência, de 
acordo com as adversidades que o meio impõe; já o patológico implica um sentimento 
de sofrimento e de impotência, sentimento de vida contrariada. 
 Quanto à definição de saúde da OMS atualmente em vigor: “a saúde é um 
completo estado de bem-estar físico, mental e social, e não a mera ausência de doença”, 
lembrou-me um conto de Jorge Luis Borges, O imortal, onde o narrador protagonista 
após exaustiva busca pela Cidade dos Imortais, decepciona-se com o que se depara ao 
encontrá-la por acaso nas suas andanças — trata-se de uma cidade triste e monótona 
onde nada acontece, existencialmente falando, afinal, tem-se a eternidade ainda pela 
frente a se viver. A ficção borgeana serve de parâmetro para se pensar os 
desdobramentos da definição utópica de saúde da OMS: numa cidade onde a doença é 
extirpada e onde o “bem-estar” é alcançado, sendo todos salubres na sua plenitude 
(ninguém morre, a não ser devido a algumas causas acidentais), a vida19 se aniquila. 
 A definição de saúde da OMS também se mostra problemática quando aplicada 
ao campo da saúde coletiva. Sabe-se que uma das formas privilegiadas de exercício do 
biopoder20 na contemporaneidade ocorre por intermédio do dispositivo21 da saúde, via 
utopia da “saúde perfeita” (Sfez, 1996), que justifica a ampla medicalização da 
população, haja vista o objetivo “altruísta” sanitário de proporcionar-lhe o tão almejado 
“bem-estar”. Contrapondo-se a esse furor intervencionista, Canguilhem adere à 
discrição e à cautela no que tange às políticas públicas de saúde, ao definir a saúde não 
somente como a vida no silêncio dos órgãos, mas também como a vida na discrição das 
relações sociais. Portanto, a saúde não solicita atenção; para que isso não se torne 
omissão, seria função do poder público ampliar a saúde — entendida na sua 
singularidade, como “margem de segurança” individual — ao seu limite máximo. A 
saúde das pessoas é um assunto ligado às próprias pessoas, eis o ponto chave do 
 
19 Entendida por Canguilhem como “polaridade dinâmica” e, portanto, como movimento dialético entre 
saúde e doença. Dessa perspectiva, saúde é a capacidade de adoecer e se recuperar. 
20 Trata-se de um conceito que Michel Foucault cunhou, em seu ensino no Collège de France, visando a 
circunscrever um novo modo de exercício do poder, surgido no fim do séc. XVIII, que tem por alvo o 
controle das populações: um poder disciplinador e normalizador que já não se exerce sobre os corpos 
individualizados nem se encontra disseminado no tecido institucional da sociedade, mas se concentrava 
na figura do Estado e se exercia a título de política estatal que pretendia administrar a vida e o corpo da 
população; ver a síntese dessa idéia em Foucault (1979). 
21 Segundo o referencial teórico-conceitual foucaultiano, muito disseminado na Reforma Psiquiátrica 
brasileira, o dispositivo é concebido como um conjunto decididamente heterogêneo que engloba 
discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas 
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o 
não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes 
elementos (Foucault, 2001). 
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pensamento de Canguilhem. Não se pode substituir os atores da saúde por elementos 
externos, haja vista que é cada sujeito quem sofre e reconhece suas dificuldades para 
enfrentar as demandas que seu meio lhe impõe. Na perspectiva de Agamben (2002), 
Canguilhem parece preferir a “vida qualificada”, da qual sua noção de normatividade se 
aproxima, à “qualidade de vida”, medida segundo os parâmetros do bem-estar, que se 
confunde com a norma moral social e que, muitas vezes, acaba por proporcionar uma 
“vida nua”, ao despojar a própria vida de sua qualificação, como no conto de Borges. 
 
3.3. Caso clínico ilustrativo “Witty Ticcy Ray” 
 
 Oliver Sacks nos relata um dos seus famosos casos clínicos. Trata-se de um 
portador de Síndrome de Tourette, transtorno neurológico caracterizado por “tiques, 
contrações espasmódicas, maneirismos, caretas, ruídos, imprecações, imitações 
involuntárias e compulsões de todo tipo, com um singular humor travesso e uma 
tendência a fazer palhaçadas e brincadeiras bizarras” (Sacks, 1997, p. 108). 
 O paciente em questão se auto-intitulava witty ticcy Ray (“Ray dos chistes e 
tiques”). Mesmo sendo portador de um transtorno neurológico grave, Ray não se fazia 
de rogado e utilizava os sintomas da doença em seu proveito próprio, dando mostras de 
sua saúde; assim, era um exímio baterista de jazz, famoso por suas súbitas 
improvisações decorrentes de seus tiques biológicos, o que lhe permitia sobreviver tanto 
financeira quanto afetivamente. 
 Se, por um lado, ele obtinha vantagens de sua doença, por outro, seu casamento 
estava ameaçado por seus impulsos: ele não se continha e berrava palavrões aos montes 
durante o coito; também não conseguia permanecer por muito tempo num emprego 
desde que se formara na faculdade. 
 Cansado de seus insucessos na vida profissional e afetiva, Ray, que contava 
então 24 anos de idade, procurou tratamento com o Dr. Oliver Sacks, após ter se 
identificado como portador de Transtorno de Tourette a partir de uma matéria que leu 
sobre o assunto no jornal. 
 A primeira intervenção de Sacks sobre Ray foi inteiramente pautada no 
paradigma médico clássico, tendo ele, em seu furor sanandis, lhe receitado o uso do 
medicamento Haldol numa dosagem que, se não eliminava, pelo menos diminuía 
bastante os sintomas da doença. Se Ray, por ser portador de um transtorno grave, 
representava um desvio com relação ao “normal”, nada mais condizente com a lógica 
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médica que resgatar suasuposta normalidade subtraída pela doença. Todavia, Ray sofria 
os efeitos dessa síndrome desde os 4 anos de idade, tendo já se identificado com o 
tourettismo; ao longo de 20 anos, ele já havia construído estratégias para lidar com os 
sintomas da doença. O que Sacks não esperava era que sua intervenção fosse 
questionada por Ray, que não se reconhecia mais sem a agilidade psicomotora e a 
rapidez de pensamento que eram sua marca registrada. Ele havia, agora, perdido as 
características que lhe faziam ser admirado pelos outros; tinha, dentre outras coisas, se 
tornado um músico medíocre, o que lhe era praticamente inconcebível. 
 Após discutirem sobre os prós e os contra do tratamento, Ray e Sacks chegaram 
a uma solução de compromisso. A intervenção de Sacks passa a se pautar na noção de 
normatividade. Durante os dias úteis, Ray permaneceria “sóbrio, sensato, convencional” 
com o Haldol, o que lhe permitia trabalhar; porém, nos finais de semana, se livraria da 
droga para poder “disparar”, tornando-se witty ticcy Ray, “inconseqüente, frenético e 
inspirado”. Desde então, existem dois Rays: o com e o sem Haldol. Conforme assinala: 
 
Ter a Síndrome de Tourette é uma loucura, é como estar bêbado o tempo 
todo. Estar sob o efeito do Haldol é sem graça, deixa a pessoa certinha e 
sóbria, e nenhum desses dois estados é realmente livre (...) Vocês, 
“normais”, que possuem os transmissores certos nos lugares certos no 
cérebro, têm todos os sentimentos, todos os estilos disponíveis o tempo 
todo: seriedade, veleidade, o que quer que seja apropriado. Nós, os que 
temos a síndrome, não: somos forçados a leviandade pela síndrome e 
forçados à seriedade quando tomamos Haldol. Vocês são livres, têm um 
equilíbrio natural: nós precisamos tirar o maior proveito possível de um 
equilíbrio artificial (apud Sacks, 1997, p. 117-118). 
 
 Ray de fato tira o melhor proveito possível e leva uma vida qualificada, apesar 
da síndrome de Tourette, apesar do Haldol, apesar da “não-liberdade” e do “artificial”, 
apesar de ser privado do direito inato da liberdade natural que a maioria de nós desfruta. 
Mas ele aprendeu com sua doença e, de certo modo, a transcendeu, dando mostras de 
sua “Grande Saúde”, como diria Nietzsche. 
 
 
SELETA BIBLIOGRÁFICA: 
 
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4. A psicopatologia como um campo de dispersão do saber 
 
•●• 
 
 expressão “psicopatologia” foi cunhada por Jeremy Benthan, em 
1817. Contudo, Esquirol e Griesinger, a partir de seus trabalhos 
publicados, respectivamente, na França (em 1857) e na Alemanha 
(em 1845), é que são considerados seus pioneiros. Em 1913, Jaspers a fundou como 
ciência autônoma, desvinculando-a da clínica psiquiátrica; para tanto, ele aplicou o 
método fenomenológico (compreensivo e descritivo) à investigação dos fenômenos 
psicopatológicos, criando assim a “psicopatologia fenomenológica”, também chamada 
de Psicopatologia Geral, conforme o título de seu livro mais famoso; a partir da 
“redução fenomenológica”, os fenômenos são colocados “entre parênteses”: descrevem-
se as vivências psicopatológicas em si, tal como elas dão-se a ver e/ou são relatadas pelo 
paciente, sem a preocupação com as suas causas e conseqüências (a psicopatologia 
fenomenológica é uma psicopatologia descritiva). Nas palavras de Jaspers: 
 
Fenômenos psicopatológicos parecem exigir este tipo de abordagem; 
uma que se propõe a isolar, fazer abstrações a partir de observações 
correlatas, apresentar como reais apenas os dados em si mesmos, sem 
tentar entender como emergiram; uma abordagem que apenas pretende 
“ver”, e não explicar (2005, p. 777-778). 
 
(...) a fenomenologia não tem nada a ver com a gênese dos fenômenos 
psíquicos. Apesar de seu emprego ser um pré-requisito para qualquer 
investigação causal, ela deixa as questões genéticas de lado, e estas não 
podem nem refutar nem corroborar seus achados (idem, p. 784). 
 
 
A descrição aqui é entendida como um primeiro passo rumo à explicação, afinal, só se 
pode explicar o que foi anteriormente descrito. 
“Psicopatologia” (do grego: psyché = alma; pathos = sofrimento, paixão, 
passividade; logos = palavra, relato) significa, num recorte de sua intrínseca polissemia, 
“falar sobre a alma que sofre”. Depreende-se de sua etimologia que o discurso sobre o 
sofrimento psíquico não é uníssono, mas sim polifônico, cujas ressonâncias ecoam em 
diversos modelos explicativos dos transtornos mentais. Dentre as chamadas 
“psicopatologias explicativas” (aquelas que se baseiam em modelos teóricos ou achados 
experimentais, buscando esclarecer a causa dos transtornos mentais), pode-se identificar 
A
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três principais vertentes em psicopatologia(ou três principais discursos sobre o 
sofrimento mental): biológica, psicodinâmica e sociocultural. Vejamos cada uma delas 
em suas linhas gerais. 
 A psicopatologia biológica concebe o ser humano como sendo determinado 
biologicamente. A base de todo transtorno mental são alterações do funcionamento 
cerebral (sejam elas anatômicas ou bioquímicas) resultantes, na maioria das vezes, de 
herança genética. O transtorno depressivo, segundo uma das hipóteses dessa vertente, 
seria causado por uma alteração na dinâmica entre os neurotransmissores, sobretudo nos 
níveis da serotonina; vale ressaltar que o estabelecimento de uma correlação entre 
déficit de serotonina e depressão não implica a descoberta de uma causalidade entre 
ambos – poder-se-ia argumentar que aquilo que o discurso biológico atribui como causa 
da depressão (déficit de serotonina), é, na verdade, o efeito fisiológico resultante da 
ação de fatores psicológicos e sociais, estes sim causais22. Os terapeutas biológicos 
empregam métodos físicos e químicos (medicamentos, eletroconvulsoterapia23, 
psicocirurgia etc.) para ajudar as pessoas a superarem seus problemas psicológicos. 
 A psicopatologia psicodinâmica surgiu com a psicanálise de Sigmund Freud, 
tendo sido aprimorada por diversos autores pós-freudianos, em sua tentativa de 
explicação dos transtornos mentais. Segundo essa vertente, o ser humano seria 
determinado por forças, desejos e conflitos inconscientes. Os transtornos mentais são 
considerados formas de expressão de conflitos inconscientes, de desejos irrealizáveis e 
de temores inacessíveis ao sujeito. Em seu ensaio Luto e Melancolia, de 1917, Freud 
utiliza o modelo do luto como parâmetro para pensar a depressão. Este transtorno é 
então concebido como uma reação à perda (real ou simbólica) e à introjeção do objeto 
perdido, com o qual o sujeito acaba por se identificar, retirando sua libido do mundo e 
reinvestindo-a em si mesmo, isto é, no objeto perdido introjetado com o qual ele se 
identificou. Assim, a auto-recriminação, que Freud identifica como signo 
patognomônico da depressão, diferenciando esse transtorno do luto normal, pode ser 
entendida como uma recriminação ao objeto perdido pelo fato deste ter lhe recusado seu 
amor; da mesma forma, as auto-mutilações e tentativas de suicídio em pacientes 
 
22 Trata-se de uma discussão interminável já que não se conhece, com precisão científica, a causa de 
nenhum transtorno mental; aliás, a adjetivação de um transtorno como “mental” advém do 
desconhecimento de sua etiologia biológica, caso contrário, o mesmo passaria a ser “neurológico”, como 
no caso da epilepsia. 
23 Segundo Bastos (2000, p. 183), a eletroconvulsoterapia (ECT), popularmente conhecida como 
“eletrochoque”, devido à sua elevada gravidade e risco de vida, só pode ser aplicada aos casos de estupor 
catatônico (na esquizofrenia) e estupor depressivo (na depressão unipolar ou transtorno bipolar), depois 
de esgotados todos os demais recursos terapêuticos disponíveis. 
Renee
Realce
Renee
Realce
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deprimidos pode ser vista como um esforço desesperado de ferir ou matar o objeto 
introjetado. Além de Freud, dos seus contemporâneos fiéis (Abraham, Ferenczi, Jones 
etc.) e dos psicanalistas pós-freudianos — dentre os quais podemos citar os adeptos da 
escola norte-americana de psicanálise (“psicologia do ego”, com base em Anna Freud), 
da escola inglesa (Klein, Winnicott etc.) e da escola francesa (Lacan, Dolto, Lagache, 
Laplanche etc.) -, outros autores dissidentes também se aventuraram na construção de 
modelos explicativos psicodinâmicos em psicopatologia, como Alfred Adler, Carl G. 
Jung, Wilhelm Reich etc. Uma característica comum que reúne tamanha diversidade de 
opinião no grupo dos teóricos “psicodinâmicos” é a coincidência no que tange às 
explicações, todas elas de natureza psicológica, para os transtornos mentais e ao 
tratamento psicoterápico (baseado nas terapias da fala) proposto para eles. 
 A psicopatologia sociocultural, como o próprio nome sugere, concebe o ser 
humano como determinado sócio-culturalmente. Os transtornos mentais seriam 
comportamentos desviantes que surgem a partir de fatores sócio-culturais adversos, tais 
como pobreza, migração, preconceito, estresse ocupacional etc. Pode-se, assim, 
entender o transtorno depressivo como tendo sua origem nas condições adversas e 
insalubres pela qual passam boa parte da população brasileira, que vive abaixo ou na 
linha da miséria; todavia, segundo esse raciocínio, deveria haver mais casos de 
transtorno mental entre as classes proletárias que entre as abastadas, o que não é 
confirmado por dados epidemiológicos, embora se constate que o meio sócio-cultural é 
um fator desencadeante e agravante dos transtornos mentais. Aqui, o tratamento 
proposto para os transtornos mentais pelos adeptos dessa abordagem, herdeiros da 
tradição marxista, se baseia na transformação das condições materiais de existência 
desfavoráveis que supostamente engendram tais transtornos, indo desde o 
assistencialismo direto às políticas sociais. 
 Quem já assistiu um debate entre adeptos dessas escolas conhece as inócuas 
discussões egóicas travadas, típicas de Babel: cada qual fala um dialeto próprio, 
hasteando a bandeira de seu reducionismo, seja biológico, psicológico ou sociológico. O 
que estaria em jogo nessa querela de escolas psicopatológicas é a idéia de uma 
causalidade única subjacente aos transtornos mentais; destes fenômenos complexos, 
cada qual acredita deter o monopólio explicativo. Tal como na parábola hindu dos cegos 
e o elefante24, cada qual acredita que sua parte representa o todo. Nesse caso, fala-se em 
 
24 Diz-se que, na antiga Índia, um grupo de cegos foram ao jardim zoológico conhecer o elefante. Como o 
animal era imenso, cada qual só teve como tatear uma parte dele; assim, um apalpou as orelhas, outro a 
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reducionismo epistemológico25, já que cada vertente acredita portar uma verdade 
absoluta acerca da natureza dos transtornos mentais. 
 O campo da Saúde Mental trabalha com a idéia de multicausalidade e entende os 
fenômenos do adoecimento psíquico como uma problemática biopsicossocial. Dessa 
perspectiva, nenhuma escola psicopatológica, isoladamente, irá dar conta da totalidade 
de questões que envolvem os transtornos mentais. Nenhum discurso contém toda a 
verdade sobre a essência dos transtornos mentais. 
 Antes de nos perguntarmos sobre um suposto grau maior ou menor de verdade 
de um discurso psicopatológico, devemos nos indagar se ele é útil ou não, e a que fins e 
resultados conduz. Ao invés da pergunta: qual discurso psicopatológico é o mais 
verdadeiro? Reformulemo-la do seguinte modo: qual dos discursos psicopatológicos é o 
mais útil para determinado paciente? Nunca devemos perder de vista que, na prática 
clínica cotidiana, lidamos com o sofrimento mental, e não com abstrações conceituais. 
 Não é preciso reduzir o sujeito aos determinantes prefixais do bio, psico ou 
sócio, trata-se de definir qual recurso terapêutico (medicamentos, psicoterapias, 
intervenções assistenciais etc.) pode ser mais salutar para um indivíduo em sua 
circunstância. Afinal de contas, conforme já assinalava Jaspers, no início do século XX, 
o objeto da psicopatologia é o ser humano em sua totalidade. 
 Nas palavras de Cláudio Lyra Bastos: 
 
Como ainda estamos muitíssimo longe de uma “teoria do campo 
unificado” na psicopatologia, e ficamos restritos às tentativas de amarrar 
as inúmeras pontas soltas – biológicas, psicológicas e sociológicas – dos 
nossos conhecimentos, a tentação de nos lançarmos às especulações 
teóricas é praticamente irresistível. A única maneira de se evitar – ou 
talvez

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