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1 2 Complementação Pedagógica Coordenação Pedagógica – IBRA 3 SUMÁRIO Objetivos do Curso UNIDADE I TRABALHANDO COM FAMÍLIAS Como conhecer a família Alguns pressupostos para intervenção em famílias. UNIDADE II UM MÉTODO DE TRABALHO COM FAMÍLIAS Contando e Conhecendo a família Possibilidades e limites no trabalho com famílias Encontros e desencontros na relação família/Escola. UNIDADE III ESCOLA É ESCOLA, FAMÍLIA É FAMÍLIA O inevitável encontro Cenas de desencontros explícitos Como as famílias vêem a Escola Situando as relações entre escola e família Como mães veem a avaliação do rendimento Escolar Condições para uma avaliação efetiva Críticas apontadas pelas mães ao processo de avaliação UNIDADE IV A ALFABETIZAÇÃO FAMILIAR: COORDENAÇÃO ENTRE AS APRENDIZAGENS A família como fundamento do desenvolvimento da Linguagem e da Alfabetização. Entrevistas com educadores sobre a temática: relação família/escola. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 4 Objetivos do Curso Conscientizar cada vez mais os educadores no sentido de construir uma parceria produtiva com as famílias. Discorrer sobre a necessidade de um conhecimento mais aprofundado sobre a relação família/escola para o estabelecimento de uma relação horizontal entre os pais e a escola. Apresentar alguns exemplos de experiências bem - sucedidas e das condições presentes nas mesmas. Considerar as diferentes formas de relações sociais propostas pelos vários contextos sociais pelos quais transitamos em especial a família e a escola. 5 UNIDADE I TRABALHANDO COM FAMÍLIAS COMO CONHECER A FAMÍLIA Algumas sugestões e cuidados quando se trabalha com famílias: Alguns cuidados podem ser resumidos como a preocupação constante em respeitar aquelas pessoas com as quais trabalhamos na sua individualidade, nas suas crenças e valores. É desejável que aqueles que pretendem ou que trabalham com famílias, façam uma reflexão crítica a respeito das próprias experiências com sua família (de origem: pai, mãe, irmãos, tios, avós; e construída: mulher/marido, filhos) e procurem conhecer os valores, crenças e mitos que foram se desenvolvendo a respeito do que é família. Procurar compreender a problemática apresentada e evitar julgamentos baseados em preconceitos científicos, moralistas ou pessoais. Pode-se lembrar aqui de um exemplo citado por uma Assistente Social a respeito de uma criança que foi deixada num centro de atendimento por sua família que desapareceu. Depois de alguns meses, reapareceram para buscar o filho. Disseram que não tinham meios para sustentar a criança, por isso deixaram onde 6 pensavam que estaria melhor do que com eles. Em momento algum acharam que tivessem abandonado a criança. Deixar o filho lá era a sua interpretação peculiar de “cuidados com a criança”. Só é possível dialogar com essa família, em vista de mudanças no seu modo de agir, se primeiro tentamos compreender o seu referencial, sem julgá-la, recriminá-la, simplesmente porque não partilha de nossos valores. O saber acumulado na área de estudos da família é útil na compreensão da problemática apresentada e no alargamento do campo de possibilidades de ação, mas as escolhas de conduta estão no âmbito da própria família. Valores de sobrevivência têm prioridades sobre quaisquer outros. Agressões físicas e sexuais têm de ser interrompidas, antes de qualquer outro procedimento com as famílias. Mas, em situações que envolvem problemas disciplinares, de higiene, de acompanhamento escolar e de saúde física e mental, as famílias, juntamente com os orientadores e coordenadores pedagógicos, podem ir construindo as alternativas de mudanças. É o caso de um grupo de mães que escolhiam temas de interesse comum, reuniam-se e, com a coordenação de uma orientadora, trocavam suas experiências. Numa dessas reuniões, escreveu uma forma extremamente criativa de ensinar divisão para seus filhos, enquanto escolhia feijão. Em outras reuniões, falou-se de métodos disciplinares, em outras, de educação sexual. As conclusões a que se chegava eram muito mais 7 possíveis em prática de que se o orientador chegasse com soluções prontas. As pessoas da família e as que coordenam os trabalhos estão numa relação dialógica, em que todos têm a possibilidade de expor- se à mudança no processo de compreender o que está acontecendo. A troca de informações possibilita a descoberta de significados comuns. Esta é a atitude que considera a família como sendo capaz de, com a devida orientação, encontrar saídas para seus problemas, de forma a possibilitar a seus filhos desfrutar os seus direitos, conforme ditam os artigos 15 a 18, do capítulo II (ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente), que trata do direito à liberdade, ao respeito e à dignidade da criança e adolescente. Nesse trabalho os orientadores também ampliam sua própria compreensão das diferentes formas de ver que as famílias têm a respeito de suas funções e responsabilidades diante das crianças e adolescentes e de suas possibilidades de ação. Para quem coordena os trabalhos: a atualização e a utilização de conhecimentos técnicos na área é tão importante quanto o estado de alerta (alimentado pelo processo avaliativo) para a própria forma de atuação na família. Para o grupo participante: o conhecimento de seu desenvolvimento no decorrer dos trabalhos (com informações 8 fornecidas pelo processo de avaliação) possibilita uma visão de processo, um plano de ação, uma perspectiva futura e a percepção de sua própria responsabilidade na escolha das alternativas. Esperamos que esses referenciais ajudem aquelas pessoas que trabalham com famílias, no sentido de criar uma condição de diálogo e participação, essenciais para a proposição de mudanças. Se, para o interesse de suas crianças e adolescentes, a família tiver de mudar procedimentos e atitudes, criando um clima de respeito, este deverá começar nos encontros com os orientadores, onde suas idéias serão consideradas e respeitadas. Alguns pressupostos para intervenção em Famílias Modos de relações interpessoais são aprendidos e podem ser modificados quando se propõe mudar a interpretação das experiências. O primeiro passo para mudar uma interpretação, ou de ver alguma coisa, é aprender a olhar por um outro ângulo. Num encontro de famílias, uma mãe apresentou a seguinte “descoberta”, feita dias antes: ela queria ver se evitando bater em sua filha de três anos, que só queria ficar no colo, ela obteria algum êxito. Até então, ela achava que, batendo, a menina pararia de insistir – o que não acontecera. Ela narrou as “conversas” que havia tido com a menina e surpreendeu-se com os bons resultados. Enquanto ela interpretava o comportamento da filha como “teimosia” (um 9 enfrentamento, portanto), ela reagia mostrando sua força. Quando ela saiu dessa interpretação e passou a ver o comportamento da filha como falta de informação, o padrão de interação mudou. Ao longo do tempo, as pessoas desenvolvem “teorias” (opiniões, noções gerais) que são interpretações e avaliações que foram se organizando – a família pensada. Além disso, vão escolhendo maneiras específicas de viver umas com as outras em família, que vão se cristalizando no cotidiano – a família vivida. Pensado e vivido estão ligados entre si, um influenciando o outro. Muitas vezes nossos valores colidem entre si e não sabemos que rumo tomar: Se apoio meu filho, ofendo meu marido, em caso de casais. É um longo caminho, cheio de ambiguidades, esse de encarar o vivido e o pensado. Difícil também, é de ir construindo um pensado pessoal, crítico. Difícil porque implica uma responsabilidade pessoal pela escolha dos rumos do vivido. Se um paidecide que não bate mais num filho, ele corre o risco de ser responsabilizado, pelo resto da família, por todas as ações indisciplinares do filho: “Ele está assim, porque você não bate”..., “Desse jeito ele vira delinquente!” e assim por diante. Pode-se perceber que o vivido e o pensado não ocorrem num vazio – eles acontecem na interação com os outros, envolvendo emoções, sentimentos. Não é nosso objetivo alongar nessa análise, mas não pode deixar de ser dito que sentimentos são um ingrediente essencial na construção de nosso modo de ver o mundo. 10 Uma pessoa que cresce em um mundo onde a violência é a moeda corrente vê o outro e o mundo de forma muito diferente de alguém que foi acolhido em um ambiente onde há respeito pessoal. Medos, culpas, ressentimentos dirigem nosso modo de perceber o outro e o mundo de forma muito diferente de coragem, autoconfiança, esperança. A forma que a elaboração de nossas experiências vai tomando, passa pelos sentimentos envolvidos durante o processo de formação. O mesmo ocorre quando queremos mudar. Imaginem aquele pai que quer parar de bater no filho, rompendo a barreira da tradição. E o medo de estar tomando uma decisão prejudicial para o filho? E a acusação de “frouxo” pelos outros homens da comunidade? Isso tudo nos faz pensar na complexidade desse processo. Por isso, escolhemos começar pela busca das ideias que estão por traz de nossas ações. Escolhemos buscar as ideias e suas relações com as ações, porque acreditamos que: Precisamos ter claro que nossas ações são orientadas por idéias que construímos ao longo de nossas vidas. Nossas ideias podem mudar, se assim o desejarmos. Mudando nossas ideias, temos um bom caminho andado para mudar nossas ações. Mudando nossas ações, também reformulamos nossas ideias. 11 Após essas considerações, podemos ver que aquilo que pensamos e vivemos está sempre interligado e, tanto a mudança de nossas ações como de nossos modos de pensar, podem mudar a direção de nossas vidas. Compreender como pensamos e como vivemos é, a nosso ver, o ponto de partida para um trabalho de mudança. Vamos definir esse “compreender” como a capacidade de pôr em palavras, descrevendo a nossa forma de agir e pensar, como se déssemos um passo atrás e nos observássemos. Acreditamos que algumas famílias têm condições de oferecer a seus filhos uma vida melhor, se mudar alguns padrões de pensamento e de ação. Exercício: 1. Faça um breve resumo sobre as sugestões e cuidados aqui apresentados para o trabalho harmonioso com famílias: ---------------------------------------------------------------------------------------------- ---------------------------------------------------------------------------------------------- ---------------------------------------------------------------------------------------------- ---------------------------------------------------------------------------------------------- 12 UNIDADE II Um Método de Trabalho com Famílias Esperamos que o método que vamos esboçar a seguir seja útil para aprofundar a compreensão de uma pessoa que está trabalhando com uma família, a respeito dos modos de agir e pensar dos membros do grupo familiar. Quando falamos em compreensão, não estamos sugerindo que seremos capazes de compreender TODOS os aspectos da vida familiar. Isso é impossível. Nós conseguimos ver algumas coisas e em cima dela desenvolvemos nosso trabalho com a família. Quando procuramos compreender uma família, as relações dos seus membros entre si e com a comunidade, o que devemos observar, num primeiro momento, são as PESSOAS. Certas coisas podem ser vistas, outras não. Pode-se ver uma expressão séria, mas não a infelicidade. Podemos dizer que uma pessoa está séria. Só saberemos o que ela está sentindo se ela nos disser ou se demonstrar com outros comportamentos. Uma expressão séria pode até ser dor de dente. Temos que tomar cuidado com as inferências. Contando e conhecendo a Família O primeiro momento para conhecer a família é a OBSERVAÇÃO. Nada mais é do que olhar. O que é olhar? É ver o 13 que se mostra. Às vezes, fica mais fácil explicar alguma coisa dizendo o que ela não é. Vamos então analisar brevemente o que não é olhar. OLHAR NÃO É JULGAR. Imagine que se está trabalhando com o sentido de introduzir mudanças de comportamento com uma família que bate nas crianças. Julgá-la, de início, como violenta e tratá-la como tal é muito diferente de antes tentar compreender as razões por que bate nas crianças. Em muitas famílias é uma crença nesse procedimento como sendo a melhor técnica disciplinar. No caso de bater em crianças é óbvio que é preciso distinguir a agressão doentia do bater como procedimento disciplinar e que ambos têm de ser interrompidos. Muitas famílias usam a punição física, mas não espancam suas crianças – elas também precisam ser informadas do dano que esse procedimento causa. OLHAR NÃO É INTERFERIR. Muitas vezes inferimos sentimentos, intenções e idéias que não correspondem ao que se passa com a pessoa. Não podemos inferir que a mãe não gosta da filha porque bateu nela. Violência nunca é gratuita. No caso de violência “doentia”, o agressor também precisa ser ouvido e compreendido, só que é garantida a proteção da criança e do adolescente, conforme o artigo 70 do ECA. (Estatuto da Criança e do Adolescente). o que se viu. Esse registro pode ser desde notas dos aspectos mais 14 Lembramos também que compreender aqui, não está sendo usado no sentido de “ser bonzinho” ou ter boa vontade, achando tudo certo. Compreender é ser capaz de descrever o que está se passando com uma família para que se possa tomar medidas que previnam danos à criança e ao adolescente. Um cuidado especial a ser tomado, quando se observa uma família, é o de não “ir” com um modelo pronto daquilo que a família “deve” ou “não deve” fazer. Irmos com soluções prontas, além de ineficiente, é desconsiderar a capacidade da família de encontrar soluções para os seus problemas, dentro do mundo em que vivem, com suas possibilidades e limitações. Olhar envolve, também, uma certa dose de paciência. Muitas vezes, temos pressa em aplicar teorias que aprendemos e/ou fomos desenvolvendo no decorrer da vida e ficamos cegos para coisas importantes que estão acontecendo à sua volta. Às vezes, tiramos do bolso uma explicação precipitada para algo que observamos e nos afastamos do que realmente está acontecendo. Finalmente, uma boa forma de sabermos se o que estamos percebendo corresponde à realidade da família é compartilhar nossas observações com as de outro observador e, mesmo, com a própria família. Nosso compromisso é com a família, não com teorias. O que vemos, muitas vezes, contraria uma teoria, mas a realidade não se encaixa numa explicação falsa. O segundo momento é o da DESCRIÇÃO. Descrever é registrar 15 importantes de uma entrevista ou visita familiar até gravações em vídeo (evidentemente com a permissão da família). Tais registros podem servir de base para análises posteriores e subsidiar decisões. Acontece que, muitas vezes, não se dispõe de tempo ou condições para notações e análises mais aprofundadas. Nesses casos, temos de ir fazendo um registro mental daquilo que estamos observando. Vejamos algumas características desse processo descritivo que podem se adaptar a qualquer forma de registro que disponhamos: - Identificar os aspectos que mais chamaram a nossa atenção É o primeiro passo para a organização de nossas observações. É uma tradução em palavras daquilo que se observou. Já vimos que é impossível observar a totalidade de aspectos referentes a uma família. Mesmo que haja dois ou mais observadores, cada um verá apenas alguns aspectos do problema. Com certeza, haverá maior riqueza de informações, masnem sempre se dispõe de uma equipe para observar uma família e o que se pode fazer é aumentar o número de observações feitas de uma só pessoa. Nesse trabalho de “tradução em palavras”, continua aquele mesmo cuidado de não se antecipar em dar “explicações” para o modo de agir da família. Normalmente essas “explicações” ajudam muito pouco e, até mesmo, prestam um desserviço, pois frequentemente acabam em 16 rótulos que se aderem à família e impedem que se vejam novos aspectos seus. Exemplificando: naquele caso da família, que deixou a criança, vindo buscá-la alguns meses depois, se a rotularmos como tendo “vínculos frouxos” ou como “incapaz de uma relação afetiva estável” com a criança, corremos o risco de caminhar para uma decisão de afastamento da criança do convívio familiar, o que pode ser desastroso para ela. O que proponho é que, em vez de pressa em encontrar os “porquês” – as explicações dos modos de agir de uma família ou de uma criança ou de um adolescente, pode ser mais compensador esclarecer bem “como” as coisas acontecem. Esse “como” vai se tornando mais explícito na medida em que aumentam os dados coletados pelas observações. Se dispusermos de anotações, podemos organizar os dados em conjuntos que englobarão aspectos comuns observados. Por exemplo, depois de algumas visitas domiciliares, podemos organizar nossos dados em conjuntos, como: relacionamentos do casal, relacionamentos com as crianças, organização do tempo, organização do espaço, atividades de lazer e outras mais que seriam tiradas das observações feitas. Dentro de cada conjunto, seria colocado tudo o que foi observado, de forma esquemática, para se ter um quadro geral. Feito isso, podemos passar para o segundo passo, para a organização de nossas observações. Porém, que estes conjuntos não nos deixem esquecer a 17 globalidade das relações e ações familiares e a inter-relação entre elas. - Seleção de aspectos comuns Comparando-se os relatos de observação já esquematizados em categorias (conjuntos), de várias visitas ou entrevistas, passa-se a procurar que aspectos se repetem. Às vezes, eles saltam à vista, mas nem sempre são tão óbvios, nem por isso, menos relevantes para a compreensão dos modos de viver e pensar que uma determinada família escolheu. Esses aspectos comuns, que se repetem, observados, depois de um tempo de contato com a família e de análise de relatos, podem dar indicações orientadoras num projeto de mudanças planejado com a família ou para orientar o encaminhamento para a criança ou adolescente. Vamos ver alguns exemplos: numa família, depois de algumas visitas, na categoria “relacionamento do casal” observou-se a mentira, “ou o mentir” , como um elemento que se repetia. Em outra família, na categoria “história da família”, um item que se repetia era a sistemática “exclusão dos homens” da família. (tanto em uma família como na outra, havia muitas outras categorias, com muitos itens que se repetiam. Estamos selecionando alguns para exemplificar o processo. Em outra família, na categoria “separação de casal”, todas as mulheres da 18 família que passaram por esse processo o interpretaram como “abandono pelo homem”. O passo seguinte é analisar o que significam tais formas de agir na família ou de interpretar os acontecimentos. Esse passo configura o terceiro momento, ANALISAR, do processo de conhecimento de uma família e de compreensão dos seus modos de agir e pensar. Nesse momento, vamos definir e esclarecer como entendemos cada um dos itens selecionados no momento anterior, dentro do contexto da família. No primeiro exemplo, acima, procuraríamos entender melhor como ocorre a mentira naquele casal, em que momentos ocorre, quem mente, para que serve a mentira. Isso é analisar. No caso específico, ficou claro que a mentira, da mulher para o homem, tinha ao mesmo tempo um significado de contestação das regras impostas pelo homem e uma aceitação do status quo ( por medo, tanto de agressão física como de abandono pelo homem). Essa análise dá uma ideia do tipo de relação entre eles e das expectativas de ambos em relação um ao outro e chegou-se a ela por meio tanto da releitura das anotações de visitas como da busca de novas informações, junto à família, a respeito desse tema. Tudo o que ocorre numa família tem um significado. Nossas ações refletem nossos modos de pensar, nossos sentimentos, nossas ambiguidades, nossas possibilidades no momento, nossas limitações. Exemplificando: a escolha do lugar à mesa ou o tempo que cada um recebe para falar é uma manifestação de hierarquia, a divisão de 19 tarefas e sua efetiva realização como um envolvimento com o cotidiano familiar e respeito entre os membros da família. POSSIBILIDADES E LIMITES NO TRABALHO COM FAMÍLIAS A definição dessas possibilidades e limites passa pela própria definição do que é família. Temos alguns parâmetros na lei (seções II, III, e IV do ECA ), mas, no cotidiano, as mais diferentes soluções são encontradas. Numa definição ampla, teríamos uma família quando pessoas convivem assumindo o compromisso de uma ligação duradoura entre si, incluindo uma relação de cuidado entre os adultos e deles para com as crianças e idosos que aparecem nesse contexto. Não há uma definição única de família, na forma de um modelo de “família ideal”. O que é ideal para um grupo de pessoas pode passar muito longe do que é ideal para outro. Há famílias e famílias, cada uma com sua especificidade. Podemos tentar, entretanto, pensar em algumas condições que podem estar presentes, focalizando a criança e o adolescente. O próprio estatuto, ao identificar os direitos fundamentais da criança e do adolescente (direito à vida, saúde, liberdade, respeito à dignidade, à convivência familiar, à educação, esporte, cultura, lazer – títulos I e II do ECA), aponta para as condições necessárias para seu desenvolvimento como pessoa. Aponta, também, para a família, como o primeiro lugar onde essas condições devem ser respeitadas. Além 20 disso, pressupõe a família como tendo a possibilidade de provar tais condições. Ao conceber, como o faz, a criança e o adolescente como “sujeitos de direitos”, o ECA assume seu valor como seres humanos. Essa é uma condição essencial para um desenvolvimento pleno: ser considerado e tratado como um ser de valor, de igual valor. É comum confundir-se igualdade de valor com poder de decisão. Essa confusão é expressa em frases do tipo: “Igualdade de valor? Quer dizer que agora a criança vai mandar na vida da casa”? Não se trata disso. É evidente que a criança e o adolescente não têm condições, informações e maturidade suficientes para administrar uma família. Igualdade de valores significa que aqueles direitos acima devem ser considerados nas decisões que os adultos tomarem. O que acontece, muitas vezes, é que a família não tem condições de garantir esses direitos à criança e é aí que entra o poder público, ajudando a família no cumprimento dos seus deveres para com as crianças e os adolescentes. Muitas vezes, o que falta à família são condições materiais mínimas. Isto, no entanto, não é razão para a criança ser afastada do convívio familiar (conforme o artigo 23 do estatuto), mas, sim, incluir família “em programas oficiais de auxílio”. Outras vezes, o que falta são informações que podem ser supridas em programas de formação. Algumas vezes, alguns de seus membros precisam de ajuda especial em programas de saúde mental. 21 O que define portanto a forma e intensidade da intervenção do poder público é o tipo e grau de carência da família e quais e quanto estão sendo desrespeitados os direitos fundamentais da criança e do adolescente (vide artigo 98 do ECA). Vejamos agora algumas possibilidades de intervenção (entendendo-se intervir comoum estar presente) na área da família. Programas de formação de cunho preventivo ou de orientação Esse trabalho pressupõe a possibilidade de a família adotar novas formas de convivência que favoreçam o desenvolvimento pessoal de todos os membros. É um trabalho que pode ser realizado com grupos de famílias e aberto à comunidade e pode influir a formação de pessoas na comunidade (agentes de orientação de saúde, educação e assistência social) que atuarão com a assessoria dos serviços locais. É, basicamente, um trabalho de informação e formação que exige uma continuidade, incluindo avaliações, acompanhamento e supervisão. 22 Programas dirigidos para famílias e/ou grupos de famílias com problemas semelhantes No caso de alcoolismo, violência e toxicomania (que habitualmente, andam juntos) é necessário, além de tratamento específico para o(s) membro(s) da família que apresenta (m) tais problemas, haver um programa de acompanhamento para a família. Nesse trabalho com a família, será verificada a sua possibilidade de assumir o cuidado das crianças e adolescentes ou não. Nesse trabalho será criado um espaço onde família e adolescentes poderão expressar seus desejos e opiniões. É um trabalho importante, por exemplo, para subsidiar a medida citada no artigo 130: “Verificada a hipótese de maus tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum”. Retirada da criança do convívio familiar Sem dúvida, trata-se de medida extrema. A observância dos artigos 23 e 24 do ECA é uma garantia a mais da criança à convivência familiar. Mas, anteriores ao direito a esse convívio, estão aqueles valores humanos que dizem respeito à sobrevivência e à dignidade pessoal. 23 Uma criança retirada da convivência familiar, sem dúvida, ficará privada de experiências de relacionamentos em que ela poderá receber e expressar amor e que são essenciais para a formação de uma imagem de si como tendo valor. Mas, é muito mais danoso para ela permanecer numa família em que sua integridade é ameaçada. Uma Instituição não substitui uma família, mas, com atendimento adequado, pode dar condições para a criança e o adolescente desenvolverem uma vida saudável no futuro. Ela pode vir a criar laços afetivos entre colegas, membros da Instituição e da comunidade que podem ajudá-la mais no seu desenvolvimento pessoal do que a convivência com uma família que ameaça a sua integridade. A retirada de uma criança de sua família é uma decisão que deve considerar o desejo da família de assumir o filho ou não. Esse desejo pode modificar-se via assistência material, orientação ou, mesmo, pelo desejo da própria criança que, em alguns casos, depois de um tempo de vida na rua, por exemplo, não aceita mais voltar para casa. A colocação em família substituta, respeitados os artigos 28 e 32, que procuram garantir as condições de um ambiente saudável para a criança, é uma solução alternativa para crianças sem condições de irem para suas famílias de origem, mas que, só por ser “família”, não se transforma, automaticamente, na segunda melhor opção, depois da família natural. 24 O mesmo raciocínio vale para instituições que, só por serem instituições, são consideradas alternativas indesejáveis. Elas não o serão, na medida em que for sendo feito um trabalho integrado com a comunidade. A criança e o adolescente poderão ter supridas algumas deficiências que a falta da família acarreta. Por exemplo, eles poderão estabelecer vínculos com figuras de identificação adultas, poderão criar laços de amizade. Essas relações não substituem laços paternos, maternos ou fraternos, mas proporcionam experiências de relacionamento que dão base a um desenvolvimento mental sadio. Não se está aqui desconsiderando a dificuldade dessa tarefa mas, sim, projetando uma possibilidade. O papel da comunidade não pode ser esquecido e esta deve ser incluída em programas de orientação e acompanhamento de famílias e, especialmente, em programas preventivos. Os desafios são muitos, mas a instituição do ECA constitui- se num avanço que, especialmente no trabalho com famílias, abre muitas frentes. Uma delas é o trabalho preventivo com famílias, que deve ter como ponto de partida a garantia de condições materiais mínimas para uma vida digna. A condição subumana de sobrevivência é o primeiro elo de uma cadeia de aviltamento dos direitos humanos.Não podemos esquecer que o primeiro direito da criança e do adolescente é o da “proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e 25 harmonioso, em condições dignas de existência (artigo 7º ). Este é o ponto de partida para todo trabalho que se fizer com crianças e adolescentes e com suas famílias. Muitas famílias, só com ajuda para melhorar sua condição de vida, deixam de criar condições para o deterioramento de suas relações interpessoais e o consequente dano para suas crianças e adolescentes. Encontros e desencontros na Relação Família/Escola Gostaria de iniciar essas reflexões relatando duas experiências que nos podem ajudar a compreender algo sobre as dinâmicas das relações entre essas duas instituições: A Família e a Escola. A primeira experiência ocorreu quando um grupo de pesquisa, depois de um período de observações numa escola da periferia de São Paulo, reuniu-se com a equipe da escola para apresentar o resultado de seu trabalho. Houve o cuidado de se preparar a reunião de forma a dar subsídios para a construção de propostas para a melhoria das condições de trabalho na escola. Uma das observações referia-se à quadra de esportes. No muro que dava para a rua, havia um pedaço que estava com marcas de terra. Ao indagar sobre o porquê daquilo, o pesquisador foi informado pelos alunos de que aquele era o lugar por onde eles pulavam nos finais de semana para jogar futebol nas quadras. 26 Este era um fato conhecido por todos – professores, alunos e pais -, mas a proibição de entrar na escola era mantida e, sistematicamente, transgredida. No caso de fazer valer a proibição, seria necessário adotar medidas de controle e punição. Não era o que ocorria. Simplesmente, era proibido, mas nada acontecia se houvesse transgressão. Para nós, isso significava que os alunos, ao pularem o muro, poderiam correr um remoto risco de punição, caso se fizesse valer a proibição, ou nada aconteceria pela vigência da política de fechar os olhos. Os alunos estavam aprendendo, ao mesmo tempo, a transgredir normas, a enfrentar o risco de punição e a impunidade, pois todos sabiam o que acontecia e não havia nenhuma consequência. Em encontros com os professores, o grupo de pesquisa mostrou a sua visão de que o que se aprende numa escola não se reduz aos conteúdos programáticos, e que atitudes, valores, sentimentos também são “ensinados” na vivência das relações interpessoais dentro da instituição. Junto com aquelas considerações, foram esboçadas algumas sugestões, com base em uma experiência anterior, ocorrida em uma escola pública de um bairro de classe média de São Paulo. Atendendo à solicitação dos alunos e pais da APM (Associação de Pais e Mestres), a diretora permitiu o uso das quadras durante os finais de semana, desde que os pais se responsabilizassem pelos cuidados com as dependências da escola. 27 Organizaram-se desde campeonatos de futebol, vôlei, até churrasco e feira de artesanato. Infelizmente, mudanças na diretoria da escola e na APM levaram ao encerramento daquelas atividades. Com essa experiência em mente, foi feita na reunião com professores e equipe pedagógica da primeira escola, a sugestão de permitir a utilização das quadrasnos finais de semana. A primeira reação dos professores foi de negarem-se a ter mais trabalho e atribuições. Tentemos arrolar alguns pontos: Os alunos e as famílias seriam co-responsáveis por um bem público. A posse desse bem estaria assegurada. Extinguir-se-ia, talvez, a sensação de que o bem público não é de ninguém, como costuma ser visto e tratado. Seria gradualmente construída uma relação de confiança mútua entre a equipe da escola e as famílias. Conflitos existiriam, sim, mas sua resolução na base de uma relação de confiança seria muito mais fácil e efetiva. Ambas as partes aprenderiam a negociar uma com a outra. Mais do que isso, aprenderiam a se conhecer, a se respeitar e a se ajudar. Seria possível, naquela região, criar um novo espaço de lazer para as crianças, jovens, homens e mulheres. Estas últimas, em especial, não têm (nem promovem) nenhum espaço de lazer. Os bares e campos de futebol, ainda são opções dos homens. A 28 alternativa da escola como área de lazer, sem dúvida traria benefícios para todos. Durante o processo, surgiriam novas alternativas de participação, adequadas àquelas famílias e àquela escola. Haveria, também, a possibilidade de parceria com outras instituições - como universidade, que poderia ser chamada a participar do projeto, além de ONGs e empresas de iniciativa privada. Seria ingênuo imaginar que um projeto desse tipo se instituiria sem esforço, sem conflitos e rapidamente. Contudo, instaurada a parceria, sem dúvida, diminuiriam os conflitos vividos atualmente na relação com as famílias, geradores de uma tensão continuada. E tensão inútil (e evitável) cansa mais do que trabalho. Exercícios: 1. Descreva sobre os critérios fundamentais para se conhecer a família. 2. O que pressupõe um programa de cunho preventivo ou de orientação á família? 3. Quais os pontos essenciais que destacamos no texto: “Encontros e desencontros na relação Família/Escola”. 29 UNIDADE III ESCOLA É ESCOLA, FAMÍLIA É FAMÍLIA O que ambas as instituições têm em comum é o fato de prepararem os membros jovens para sua inserção futura na sociedade e para o desempenho de funções que possibilitem a continuidade da vida social. Ambas desempenham um papel importante na formação do indivíduo e do futuro cidadão. São elas os primeiros “espelhos” nos quais nos vemos e nos descobrimos como sendo bonitos ou feios, inteligentes ou “burros”, bons para matemática ou para nada, simpáticos ou desengonçados, com futuro ou sem futuro, etc. São elas, também os primeiros “mundos” em que habitamos, podendo nos aparecer como acolhedores ou hostis, com tais e tais regras, costumes, linguagens. Ensinam desde o que é homem e o que é mulher até como devemos expressar os sentimentos, quais sentimentos são “bons” e podem ser sentidos (sem culpa) e quais são “maus”. Aprendemos o que é belo e o que é feio, o que tem graça e o que não tem. Aprendemos posturas, jeitos de olhar (direto e enviesado). E por aí vai. A escola, entretanto, tem uma especificidade – a obrigação de ensinar (bem) conteúdos específicos de áreas do saber, escolhidos como sendo fundamentais para a instrução de novas gerações. O 30 problema de as crianças aprenderem fração é da escola. Família nenhuma tem essa obrigação. Por outro lado, professora alguma tem de dar “carinho maternal” para seus alunos. Amor, respeito, confiança, sim, como professora e como membro adulto da sociedade. As famílias têm de dar acolhimento a seus filhos: um ambiente estável, provedor, amoroso. Muitas, infelizmente, não conseguem. Por questões econômicas – a miséria é cruel. Muitas vezes por questões pessoais. Relacionamento com filhos e de casal não é coisa assim tão fácil para muitas pessoas. Mais fácil é cobrar dos outros que sejam maduros, emocionalmente estáveis, que convivam meiga e amorosamente com um alcoólatra ou que deixem de ser alcoólatras, que tenham sempre uma palavra sábia para os filhos e filhas desobedientes, que superem as dificuldades de trabalho, que desconsiderem a violência (social e as outras), que exerçam uma crítica à comunicação de massas e cerquem suas famílias contra as ameaças da sociedade de consumo. Serviços de saúde e atenção às famílias podem colaborar muito para ajudar aquelas pessoas com dificuldades, para dar as condições necessárias às suas crianças. Como lembra Gomes (1994): “Embora seja inegável a importância da família como grupo socializador, outras agências sociais e até mesmo alguns espaços competem com ela, diuturnamente e vão se tornando demasiadamente fortes na sociedade atual. Uns positivos e até desejáveis, outros, no mínimo, discutíveis”. 31 Na possibilidade positiva, as escolas podem criar um ambiente que venha a constituir-se num “espelho” e num “mundo” para as crianças, ajudando-as a caminhar para fora de um ambiente familiar adverso e criando uma rede de relações fora das famílias de origem, que lhes possibilite uma vida digna, com relações humanas, estáveis e amorosas. O INEVITÁVEL ENCONTRO Há inúmeros fatores a serem levados em conta na consideração da relação família-escola. O primeiro deles é que a ação educativa dos pais difere, necessariamente, da escola, nos seus objetivos, conteúdos, métodos, no padrão de sentimentos e emoções que estão em jogo, na natureza dos laços pessoais entre os protagonistas e, evidentemente, nas circunstâncias em que ocorrem. Outra consideração refere-se ao comportamento das famílias das diferentes camadas sociais em relação à escola. Mesmo na escola pública, famílias de classe média desenvolvem estratégias de participação, tendo em vista a criação de condições para o sucesso escolar de seus filhos, naquilo que Van Zanten (1988) chama de “saída individual”. Nem sempre esses pais se engajam num projeto coletivo de melhoria do ensino e das relações da escola com a comunidade. Além do mais, o nível de escolaridade e a facilidade de verbalização possibilitam a esses pais uma crítica que famílias das classes trabalhadoras não conseguem ou não ousam fazer. 32 Outro fator a ser considerado refere-se às estratégias de socialização familiar: se são complementares ou não às da escola, e isto depende muito da classe social a que a família pertence. As famílias podem desenvolver práticas que venham a facilitar a aprendizagem escolar (por exemplo: preparar para a alfabetização) e desenvolver hábitos coerentes com os exigidos pela escola ( por exemplo; hábitos de conservação) ou não... Além de estratégias de socialização, as famílias diferem umas das outras quanto a modelos educativos. Bouchard (1988) distingue, de forma geral, três modelos: o “racional”, o “humanista” e o “simbiossinérgico.” No racional, os pais mantêm uma hierarquia na qual decidem e impõem suas decisões sobre as atividades e o futuro dos filhos. Dão muita importância à disciplina, à ordem, à submissão, à autoridade. Nas suas estratégias educativas, os pais “distribuem ordens, impõem, ameaças, criticam, controlam, proíbem, dão as soluções para a criança”. Orientam mais para um conformismo social do que para a autonomia. No modelo humanista, os pais se colocam mais como guias, dando aos filhos o poder de decisão, numa política que Bouchard chama de “autogestão do poder pela criança”. Entre as estratégias educativas estão as seguintes: permite e estimula a expressão das emoções pelos filhos; encoraja-os nos seus empreendimentos; humanista, há uma crença nos recursos das famílias, acatam-se suas 33 reconhece e valoriza as capacidades e potencialidades dos filhos; favorece a autonomia e a autodeterminação nos seus filhos. Sua comunicação orienta-se pelas necessidades dos filhos. No modelo simbiossinérgico, há uma “co-gestão do poder e pais e filhos são parceiros nas atividades que se destinama ambos”. “Símbio” significa “associação durável e reciprocamente proveitosa entre dois ou mais seres vivos” e “sinérgicos” corresponde aos recursos das pessoas e à ação coordenada de muitos. Entre as estratégias, Bouchard cita as seguintes: respeitam os deveres e direitos de pais e filhos, partilham responsabilidades cotidianas, desenvolvem uma consciência social (além das paredes da casa), trocam com os filhos suas experiências, emoções e sentimentos. Explicam as consequências das ações das crianças, reconhecem seus próprios erros. Como modelos, dificilmente são encontrados na sua forma pura, além de cada um apresentar vantagens e desvantagens, dependendo do momento. O interessante no relato de Bouchard é que as escolas repetem modelos semelhantes na sua relação com os pais. Há escolas que oferecem aos pais o modelo racional de participação; outras, o humanista; e outras, o simbiossinérgico. Na tendência do modelo racional, as escolas se portam como as detentoras do poder de decisão e do conhecimento. É de se esperar choques com os pais que seguem outras tendências. Na tendência educativas comuns. 34 decisões e há uma aceitação empática de sentimentos e emoções. Já na simbiossinérgica, há a valorização da interdependência, da reciprocidade a da co-gestão. Assim, os conflitos entre família e escolas podem advir das diferenças de classes sociais, valores, crenças, hábitos de interação e comunicação aos modelos educativos. Tanto crianças como pais podem comportar-se segundo modelos que não são os da escola. Isto pode não ser um problema para famílias das camadas sociais mais altas, que têm a possibilidade de escolher uma escola que se assemelhe ao seu próprio modelo. Esta não é a realidade para as classes trabalhadoras. Os modelos adotados pelas escolas dependem, em geral, da disposição das diretorias e da sua orientação. Caso haja muita discrepância entre as estratégias e os pré- requisitos exigidos pela escola, as dificuldades começam a aparecer já na relação pessoal da professora com o aluno(a). Uma forma de a escola tentar superar as dificuldades advindas dessa situação seria desenvolvendo parcerias com outras agências (serviços de formação de professores, universidades, serviços de saúde, por exemplo), para dar conhecimento aos pais dos hábitos e comportamentos esperados pela escola e desenvolver programas de formação para os pais (a exemplo do que acontece em Cuba, no Canadá, Estados Unidos e França). Tais encontros podem promover um conhecimento mútuo e o desenvolvimento de estratégias 35 CENAS DE DESENCONTROS EXPLÍCITOS Como alguns profissionais veem as famílias de seus alunos É frequente ouvirmos depoimentos dos professores ou membros de equipe escolar acerca de que as famílias são “desestruturadas”, desinteressadas, carentes e, no caso de comunidades de baixa renda, violentas. Tais condições constituem-se numa “explicação” fácil para o insucesso escolar de algumas crianças. Alguns minutos de reflexão bastam para os professores perceberem que estão indo por um atalho que não os leva à compreensão das dificuldades de alguns de seus alunos. Tal raciocínio preconceituoso só serve para atribuição de culpa a uma situação externa à escola e para um consequente afastamento do problema. Um pouco de reflexão junto a esses professores e eles se dão conta de que: “Família desestruturada” não quer dizer mais do que uma família que se estrutura de forma diferente do modelo de família nuclear “burguês”; A mera forma de a família se organizar não é responsável pelo comportamento acadêmico de suas crianças; 36 Nem todas as famílias são violentas. Percebem que a prática de bater nas crianças é a forma considerada pelas famílias como sendo a mais adequada para educar uma criança. Tal prática é utilizada como forma de punição pelo baixo rendimento; As próprias famílias são vítimas de violência ( a da segregação social e as outras); As próprias famílias podem recorrer à violência contra a escola e a professora, reproduzindo as condições como são tratadas; Sua condição de famílias trabalhadoras dificulta um acompanhamento mais próximo do trabalho acadêmico das crianças. A baixa escolaridade também dificulta esse acompanhamento. Como as famílias veem a escola Em bairros de baixa renda da cidade de São Paulo, a população é formada, em grande parte, por migrantes que têm eles próprios, uma história de escolaridade interrompida, em função do trabalho e, às vezes, por fechamento de unidades escolares na zona rural onde moravam. Estudo para eles significa, basicamente, saber ler e escrever, até para logo terem acesso ao mercado de trabalho (como trabalhadores não-especializados). Assim, essas famílias: Falam, resignadas, de suas dificuldades em conseguir vagas nas escolas e não compreendem os procedimentos (datas, prazos) 37 de matrícula. Deixam de reivindicar material didático e atribuem as dificuldades dos filhos à falta de material. Questionam as substituições e faltas frequentes dos professores, mas não podem ir às reuniões pedagógicas porque estas se dão no seu período de trabalho. Às vezes, não vão para não ouvir os problemas que seus filhos estão causando na escola, ou suas dificuldades. Encaram as dificuldades dos filhos como um mistério. O que há com suas cabecinhas que não aprendem? Espantam-se que as crianças conseguem fazer troco mas, não aprendem matemática. Atribuem isso ou à falta de vontade de estudar ou a alguma doença. Oscilam entre uma aceitação passiva do poderoso veredito da escola de que seus filhos “não levam jeito” para os estudos e uma contestação com base nas realizações da criança no dia -a dia. SITUANDO AS RELAÇÕES ENTRE ESCOLA E FAMÍLIAS Vamos retomar alguns aspectos deste texto, com o objetivo de dar algum subsídio para a elaboração de projetos que visem a implementar a participação das famílias na escola e desta na vida da comunidade. 38 O ponto de partida é o (re) conhecimento mútuo. O conhecimento das escolas a respeito das famílias é, muitas vezes, baseado em preconceitos. O mais frequente é o da família “desestruturada” – a grande responsável pelos fracassos em Língua Portuguesa, Matemática, Geografia, etc. Outros preconceitos muito frequentes são o da “carência cultural” e o do desinteresse das famílias, como vimos. O preconceito se limita a uma interpretação fechada do outro e seu mundo e define atitudes, sentimentos e ações que guardam a mesma característica de rigidez. Reconhecer significa sair dos limites estreitos do preconceito e abrir-se para novas possibilidades de ser do outro e de ser-com-o- outro. Num primeiro momento, é preciso encarar os próprios preconceitos e, depois, desejar sair dessa perspectiva limitada e ensaiar um novo olhar, de preferência interrogativo, curioso. O processo de reconhecimento pede, também, um dar-se a conhecer, que ocorre na relação face -a face, aberta e respeitosa. Não conseguimos isso só. Precisamos de “outros”: interlocutores, livros, cursos, relatos de pesquisas. Basta ler alguns textos sobre família para perceber que falar em “família desestruturada” é bobagem. O que há são diferentes estruturas de família (Szymanski). As famílias, principalmente as de crianças com dificuldades, veem a escola como um mundo incompreensível para elas, com o 39 poder de dar um veredito sobre o futuro de seus filhos. As famílias precisam aprender a linguagem da escola, principalmente a burocrática. Datas e prazos, o próprio tempo é diferente para elas. O imediatismo da miséria traz seu futuro para hoje à noite ou amanhã. Lideranças comunitárias podem ser interlocutores eficientes, pois suas atividades as capacitam para circular entre a sociedade organizada e seus própriosgrupos. Elas, em geral, são bilíngues; compreendem a língua culta e a de seu povo, no processo de inserção da sociedade. As famílias das camadas empobrecidas, principalmente aquelas formadas por migrantes da zona rural e dos estados do nordeste do país, perdem seus grupos de referência, perdem o apoio das comunidades a que pertenciam, entram em contato com novos valores veiculados pelos meios de comunicação de massa e aferram-se a práticas educativas sem maiores reflexões sobre sua eficácia. Para elas, o contato com a escola é fundamental para a criação de um universo comum para a especificação de responsabilidades da família e da escola e para a capacitação de ambas para um bom desenvolvimento do projeto educativo para crianças e jovens. Deve-se notar que há, muitas vezes, o desejo de um encontro que resulte em mudança, para o bem da criança. Mas o que se dá é um diálogo de surdos. A professora diz desanimada, que a criança está “fraquinha” e a mãe não sabe o que fazer (nem a professora, muitas vezes). 40 É frequente darem autorização para que a professora castigue seus filhos, numa tentativa de porem-se ao lado da escola. Desfiam, diante da professora, suas misérias e dificuldades e fecha-se o círculo da incompreensão mútua. Como interrompê-lo? Um reconhecimento significa, além de descobrir a própria ignorância sobre o outro e seu mundo, desvelar seus saberes e suas competências. O importante nessa proposta é que a parceria se desenvolverá na base dos recursos e possibilidades da escola e da comunidade e não a partir das dificuldades e limitações. A mediação da comunidade com seus grupos organizados pode ser muito eficiente no fortalecimento dos pais em suas funções. Experiências com grupos de pais mostram o quanto a comunicação de práticas educativas entre eles pode ser eficiente na transformação de hábitos arraigados, como, por exemplo, o de castigar as crianças. Outro aspecto a ser considerado refere-se à necessidade de atualização, tanto para os pais como para os professores, no que diz respeito às práticas educativas específicas de cada âmbito: familiar e escolar. Nota-se, frequentemente, uma confusão quanto a quem cabe a educação das crianças e quais aspectos são específicos de cada instituição. Alguns professores queixam-se de que as famílias delegam a eles toda a educação dos filhos e, com razão, sentem-se, sobrecarregados e mesmo incapazes de realizar tal tarefa. Algumas famílias que possuam crianças de zero a cinco anos, visando 41 vezes, as famílias sentem-se desautorizadas pelo professor, que toma para si tarefas que são da competência da família. Isso me faz lembrar um dito antigo que rezava: “Costume da casa vai à praça”. Esse dito separa, claramente, o público do privado mas aponta para sua inter-relação. Mostra a importância das funções socializadoras da família e do seu trabalho de inserção dos membros jovens na sociedade. Sugere que quanto maior a competência da família para realizar tal trabalho de socialização, maior a probabilidade de sucesso. Como será adquirida tal competência da família para educar os filhos? Há, muitas vezes, a suposição de que essa capacidade de formação é inata e natural (principalmente para as mulheres). Caso a família não eduque direito seus filhos, é porque não quer ou porque o filho “não tem jeito”. Outras vezes, é considerada condição inerente à classe social de nascimento – o “berço” -, o que condena à incompetência todos os que não pertencem às camadas sociais mais altas. Raramente se atribuem as dificuldades de educar as crianças e os adolescentes à simples falta de informação e, mais raramente, pensa-se em desenvolver competência para essa tarefa. Exceção digna de nota na América latina é o trabalho realizado, em escala nacional, pelo governo cubano, que promove o programa de Educação Comunitária “Para a Vida” focalizando aspectos de saúde, nutrição, desenvolvimento psicoafetivo e relações sociais (educação para a vida). Tais informações são levadas a todas as professora fazer chamada com leitura oral”. Esperam um 42 “fortalecer a responsabilidade individual e coletiva no fomento da saúde e da vida. (UNICEF, 1992). Esse programa apoiado pelo Ministério da Educação e da Saúde Pública, é amplo de informações. Uma condição importante nas relações família e escola é a criação de um clima de respeito mútuo – favorecendo sentimentos de confiança e competência - ,tendo claramente delimitados os âmbitos de atuação de cada uma. Acreditamos que equipes multidisciplinares possam colaborar para a construção de um conhecimento. A intermediação da comunidade, com a participação de seus representantes, também abre perspectivas de uma parceria, na qual a troca de saberes substitua a imposição e o respeito mútuo possa fazer emergir novos modelos educativos, abertos à contínua mudança. Como Mães veem a Avaliação do Rendimento Escolar Para algumas mães, o conceito, embora não seja expresso, aparece associado à atividade do professor, no sentido de reforço da aprendizagem – via lição de casa – e de acompanhamento das tarefas. A nota aparece como a definição do nível de aprendizagem. Outras definem a avaliação como “uma prova, um rendimento de um aluno na sala de aula”, o aproveitamento de um aluno dentro da sala de aula, como matéria”, “responder questionário, ler e copiar texto e a 43 acompanhamento por parte da professora; as notas são uma definição do rendimento do aluno. Condições para uma Avaliação Efetiva Para as mães é desejável: Associação entre avaliação e condições de ensino que garantam a aprendizagem. As mães associam o rendimento dos alunos ao interesse e à dedicação dos professores, bem como ao interesse pela matéria e à natureza desta – citam “as que saem da rotina” como as geradoras de maior interesse. O professor para elas é o grande responsável pelo rendimento dos alunos. A expectativa delas é de que eles não gritem, não faltem, expliquem bem a matéria, ficando atentos aos que, por timidez, possam não estar acompanhando, mas não o demonstrem. Esperam que os professores deem bastante tarefa de reforço e verifiquem, sistematicamente, o desempenho nessas atividades. Além disso, que os professores estejam atentos para cobrar apenas o que deram de matéria e que possam “sentar e conversar com os alunos”. Ainda com relação às condições de ensino, apontam para a necessidade de se considerar a etapa de desenvolvimento das crianças e adolescentes no planejamento das atividades escolares: “São crianças e adolescentes interessados em “outras” coisas, estão ‘descobrindo-se’ estão agitados e dispersam”, “não assumem responsabilidades, é preciso cobrar”. 44 As mães consideram natural e necessário o acompanhamento em casa: “Se a gente não ajudar, não vai”, “eu cobro”, ‘eu ensino o que sei”. As mães ressaltam, também a necessidade de disciplina e respeito mútuo entre professores e alunos, como condição efetiva de ensino. Críticas apontadas pelas mães ao Processo de Avaliação Ao apresentarem expectativas quanto a situações desejáveis de ensino, a fim de garantir uma avaliação justa, apontam para vários itens para os quais as escolas não estão atendendo. Quanto às atividades, indicam que as planejadas e implementadas, e da forma como o são, principalmente a partir da 5ª série, não se adequam a crianças como os seus filhos – que não gostam de atividades monótonas e sem sentido ( ou cujo sentido não lhes fica claro) e que nem sempre sabem o significado de um “D” ou “E” de avaliação, a não ser que representam algo ruim. Dado o grande número de faltas dos professores, apontam para a deficiência da escola em providenciar substitutos, o que prejudica muito o processo de aprendizagem dos seus filhos. Queixam-se, ainda, da forma como a escolaapresenta aos pais o resultado do trabalho dos filhos: “temos de sair correndo de uma classe para outra para ter a nota dos filhos”. Algo que não aparece como crítica, embora denuncie um ensino deficiente, é o depoimento de mães que se desculpam por não acompanhar os estudos dos filhos, devido à sua escolaridade 45 insuficiente ou ao fato de trabalharem ou terem mais filhos menores. Para elas, o sucesso dos filhos é uma questão de “sorte”, da existência de uma professora “que pegue pé”. Deixar para a família a complementação do ensino, principalmente nas camadas sociais empobrecidas, é buscar uma conivência no processo de exclusão da criança da escola. Como sugere Alves: “(...) as políticas que se ocupam da questão do menor devem centralizar seus esforços em dois aspectos: a prevenção da evasão escolar e o apoio às famílias”. As famílias sentem, ou pressentem, que uma escola autoritária, com um espaço sóbrio, destituído de emoções e de atrações lúdicas, espaço desinteressante e desmotivador, acena sempre com a possibilidade de exclusão de seus filhos, principalmente os das classes populares, matando assim o sonho de ascensão social. O que as famílias solicitam das escolas é, por um lado, que estas lhes deem maior espaço de participação e, por outro, que cumpram a sua parte no processo educativo. As famílias estão conscientes da necessidade de melhoria das condições de ensino. Não são muitas as comunidades que se organizam em movimentos reivindicatórios – mas a consciência existe. Saída é Manter Diálogo A função de educar estará incompleta se for exclusiva da escola ou ficar apenas sob a responsabilidade dos pais. A avaliação é da professora pós – doutora em educação, Fátima Guerra, do 46 Departamento de Educação da Universidade de Brasília- (UnB). “Não existe uma criança que é da escola por um turno e, no resto do dia, é outra em casa no papel de filho”, analisou em entrevista ao Jornal Correio Brasiliense – 28 de outubro/2007. Para ela, a saída é conversar sempre e mostrar interesse pela vida escolar do filho. Veja a entrevista: A escola não é suficiente para garantir o aprendizado de crianças e jovens? O raciocínio deve ser mais amplo. Vamos partir do seguinte pressuposto: não existe uma criança que é da escola por um turno e que, no resto do dia, é outra em casa no papel de filho. Educação é um pressuposto de vida, assim como ser pai e ser mãe. Se um engenheiro constrói uma ponte errada, ela cai. O que ocorre quando a construção da personalidade do filho não é bem feita? E como evitar que isso ocorra? A palavra chave é envolvimento. Não existe separação de papéis e, da mesma forma, não deve existir divisão de responsabilidade. A transferência de educação é errada. Os pais são os primeiros educadores das crianças e dos adolescentes. Quando chega a vez escola, ela entra na vida dos alunos com outras responsabilidades que são complementares. 47 Que dicas você daria aos pais? Conversar sempre. Manter-se em diálogo o tempo todo naturalmente. Ir à escola sempre, não apenas quando é chamado para uma reunião. E, por fim, mostrar interesse pela vida escolar acompanhando as tarefas sem, no entanto, invadir a privacidade do filho. Mas e quando os pais buscam aulas de apoio no turno contrário ao da escola para fazer o dever? Existem pais que, para se livrar do problema, colocam a criança na escola em um turno e no outro mantém ela em uma escola onde vai fazer o dever de casa e rever a lição. Pai e mãe ficam aliviados, com sensação de que as responsabilidades acabaram. Esse raciocínio está errado. A participação do pai deve ir além de checar o dever de casa. Participar é saber qual é a forma de pensar e ver o mundo do filho. São essas as referências que vão estruturar a vida dele. Isso também serve para os filhos mais velhos? Claro. Mas a rede de confiança deve ter sido criada antes. Na adolescência, a influência do grupo é forte. Por isso, não adianta querer se aproximar de uma hora para outra. A relação deve ser anterior, criada ainda na infância a partir do diálogo que vai se manter por toda a vida e vai servir na construção do ser humano. É importante se fazer presente. 48 UNIDADE III A ALFABETIZAÇAO FAMILIAR: COORDENAÇAO ENTRE AS APRENDIZAGENS Atualmente, a alfabetização familiar é um dos principais focos da educação infantil. Depois de anos de investigação sobre a alfabetização inicial e as práticas familiares, hoje estão sendo dados passos para uma melhoria do ensino que inclui as aprendizagens de casa através de medidas de intervenção educativas mais ou menos acertadas, que abriram um caminho necessário, no qual ainda nos restam milhas por percorrer. As práticas familiares relacionadas com a leitura e a escrita existiram durante muitos séculos, e lares e comunidades, mas é apenas durante as últimas décadas que o estudo dessas práticas se converteu, para acadêmicos, políticos e investigadores, em um campo-chave para a educação e o desenvolvimento das habilidades básicas. De repente, o comum se converteu em extra- ordinário e especial, e o tema da alfabetização familiar reclamou uma atenção e preocupação nacionais, por exemplo, em países como os Estados Unidos. A coordenação entre as aprendizagens que se realizam fora do marco escolar (antes e durante os anos de escolarização 49 inicial) e as que se desenvolvem dentro das aulas passou a ser um aspecto necessário para assegurar um processo de alfabetização baseado em máximos. A escola não pode trabalhar de costas ao que ocorre nos lares dos meninos e das meninas: sabemos cientificamente que as interações alfabetizadoras no seio familiar são cruciais para suas aprendizagens e, portanto, é necessário realizar ações educativas orientadas para esse fim. Assim, foi surgindo, nos Estados Unidos, uma diversidade de programas de intervenção educativa, centrados especificamente nas interações entre meninos e meninas e seus familiares. Alguns se baseiam na formação de familiares para a aprendizagem de estratégias que ajudem a seus filhos e filhas e para seu próprio desenvolvimento pessoal; outros priorizam o fomento de atividades intergeracionais, mas o objetivo de todos é o êxito escolar dos meninos e das meninas por meio da implicação familiar. Não obstante, entre os diferentes programas, encontramos um amplo leque de projetos e orientações pedagógicas que, em longo prazo, podem chegar a obter mais ou menos êxito entre famílias mais ou menos acadêmicas. 50 A FAMÍLIA COMO FUNDAMENTO DO DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM E DA ALFABETIZAÇÃO A investigação sobre desenvolvimento infantil começou a despontar e adquirir relevância em educação nos anos de 1960, à medida que as teorias comportamentalistas eram superadas, e aumentavam as teorias sobre a aprendizagem social. Foram documentados intercâmbios concretos entre meninos e meninas e seus contextos sociais na formação de habilidades cognitivas e linguísticas que eram centrais para a aprendizagem posterior. Com base nesses estudos, surgiu nos Estados Unidos uma variedade de projetos de intervenção em educação infantil, como Head Start, financiados pelo governo federal. Muitos estudos também foram enfocados na análise da relação entre o nível socioeconômico e o rendimento escolar dos meninos e meninas, sobretudo porque era necessário desvelar os processos que levavam as famílias de baixo nível sócioeconômico ao fracasso escolar. Os resultados das investigações foram mostrando que o nível socioeconômico, analisado em separado de fatores específicos do lar, acabava sendo um indicador fraco. Na realidade, as práticas letradas de casa - que, por sua vez, variavam segundo o nível socioeconômico - eram as que melhor explicavam as diferenças em relação ao rendimento escolar, o coeficienteintelectual e o desenvolvimento da linguagem. A partir 51 desse momento, o foco de psicólogos, linguistas e educadores começaram a girar em torno da alfabetização e das práticas letradas no seio familiar, tais como a leitura de contos. A família e o lar eram oferecidos como algo promissor na busca para entender melhor o desenvolvimento da linguagem e da alfabetização como índices específicos de rendimento escolar. Ao longo desse processo, muitos estudos insistiram na importância de fatores como o nível de instrução dos pais e das mães, a utilização de materiais escritos e a escrita em tarefas domésticas, o número de livros que se leem na casa e a frequência de leitura de contos com os filhos e as filhas em relação ao nível de aprendizagem da leitura na escola. A professora Rosely Sayão responde aos professores. Ela propõe que a relação entre escola e família seja repensada, no sentido de construir uma nova parceria em prol de uma educação democrática, que tenha em vista a autonomia e a cidadania. Qual a diferença na aprendizagem do aluno cuja família frequenta a escola e a do aluno cuja família não frequenta? Há mais de um aspecto nessa questão, pois depende do motivo que leva a família à escola. A escola tem um projeto pedagógico, uma 52 filosofia educacional, e em geral discute isso com os pais, em reuniões. No entanto, muitas vezes os pais são chamados com grande frequência só para falar dos problemas que o aluno apresenta e, nesse caso, nem é preciso a presença constante da família, que deve confiar na competência da escola para resolver os problemas de comportamento ou as dificuldades do aluno. Mas o pai que frequenta as reuniões pedagógicas e acompanha a proposta da escola, este sim pode ajudar, e muito. Sua presença é um sinal de seu interesse, e ao incentivar o filho a ir à escola, insistir para que vá todos os dias, organizar o tempo para que estude, está de fato ajudando. O resto é com a escola. Você concorda que a chamada à família para participar da educação escolar da criança expõe a fragilidade da própria instituição escolar e da própria família? A questão é bem complexa, porque muitas vezes fica difícil estabelecer a linha divisória entre o que é público e o que é privado. A escola é um espaço público, a família é um espaço privado. A escola não deve invadir o espaço da família, mas o contrário também não pode acontecer. A família é o lugar da unidade, da continuidade; a escola, o lugar da diversidade, da diferença. Nem a família, nem o professor devem ter medo de expor suas fragilidades — todos nós as temos. Se a escola tiver um plano de trabalho bem estruturado, não há o que temer: o professor terá a possibilidade de contar com algum colega para superar as eventuais inseguranças. 53 Qual seria o verdadeiro papel do professor na família do aluno? O professor não tem papel na família do aluno, mas sim com o aluno. Se esse papel com o aluno for esquecido, o professor acaba investindo energia e tempo em algo para o que não tem competência profissional, e esvazia seu papel legítimo. O que ele precisa é cumprir bem seu papel de professor, que na verdade é duplo: transmitir conhecimento e formar o cidadão. Mas isso ocorre simultaneamente. De que adianta ensinar português, geografia, matemática, se isto não está vinculado ao exercício da cidadania? Por exemplo: se numa classe de trinta alunos a maioria se submete a uma minoria ruidosa, um grupinho de seis ou sete, e o professor se concentra no grupinho e deixa de lado a classe, ele está praticando uma educação autoritária. Ele deve trabalhar com a classe toda, responsabilizar todos. Isso é uma educação democrática. Ela supõe que comecemos o jogo colocando as cartas na mesa, explicitando os direitos e deveres dos alunos e do professor. É muito mais difícil, pois supõe uma discussão exaustiva e muita conversa com os alunos. Mas o resultado é bem melhor. O que fazer quando a família não dá continuidade ao processo de formação de cidadania que a escola desenvolve? O melhor a fazer é enfatizar mais ainda a formação dada na escola: o que o aluno aprender ali, ele irá levar para casa. 54 Antigamente, tanto a escola quanto a família eram autoritárias, e ninguém pensava na relação da escola com as famílias. À medida que foi sendo valorizada a individualidade das crianças, a escola começou a chamar os pais, buscando conhecer um pouco mais seus alunos. Estabeleceu-se uma relação às vezes identificada como parceria que, com frequência, se manifesta muito mais como rivalidade. E os papéis foram se confundindo. Hoje podemos pensar em uma educação mais democrática, e às vezes não sabemos o que fazer. Esse modelo precisa ser construído na prática, nas ações do dia-a-dia. Até que ponto o educador pode interferir na conduta familiar? Cabe a ele dizer à criança que os pais estão agindo de forma incorreta? De jeito nenhum. Primeiro, porque o professor não tem condição de avaliar se os pais agem da maneira certa ou errada. Cada família é uma célula, com sua própria identidade, que não cabe a nós avaliar, ou julgar. O professor não tem competência sobre a educação de filhos, ele tem formação para educar alunos. Se o professor fosse especializado em educação de filhos, nenhum filho de professor teria problema... Nós precisamos ter humildade no trato com as famílias. Os pais já foram educados, não é o professor que vai educá-los. Escola e família têm objetivos em comum: educar aquela pessoa, aluno e filho, em uma relação de cooperação, não de rivalidade. É nisso que reside a parceria. 55 Muitas vezes deparamos com uma criança-problema e descobrimos que a causa maior está na família. Como resolver isso, se os pais dificilmente têm tempo para dedicar à vida do filho ou vir à escola? A escola tem a excelente chance de oferecer outra possibilidade a essa criança, e ao fazer isso já está ajudando muito. Se for se envolver com a família, perde essa chance. A família deu um grande passo, ao colocar o filho na escola. O pai ou a mãe faz o que pode; eles têm sua vida, a escola não vai conseguir mudá-los. Em educação, nós trabalhamos com a possibilidade de um futuro. Devemos pensar o tempo todo na criança, no aluno, e lembrar que a escola é o lugar da diversidade. Sempre haverá pais que participam mais e outros, menos. A escola tem a obrigação de trabalhar o coletivo, sem ressaltar as diferenças, ajudar os alunos a aprender que é preciso se respeitar e respeitar o grupo. Como a escola pode estimular a participação das famílias nas lições de casa dos filhos e nas atividades extraclasse (entrevistas, pesquisas etc.)? Para a lição de casa ter sentido, é indispensável que a criança consiga fazê-la sozinha. Se ela precisar da ajuda dos pais, a escola estará apostando na dependência, e não na autonomia. Mas os pais forem de fato professores. A parceria importante da família com a 56 também têm seu papel. A criança não é capaz de dar conta sozinha de todas suas responsabilidades, prefere brincar a fazer a lição. Cabe aos pais estabelecer a hora de fazer a lição de casa, ajudar na organização, cobrar... Nisso a escola deve orientar os pais. Mas não é papel da família sentar ao lado, ou mesmo ajudar a fazer a lição. Os pais que são analfabetos têm condições de ajudar na aprendizagem das crianças? Como? Eles já ajudaram, ao colocar o filho na escola. Só o ato de colocar o filho na escola condensa toda a vontade dos pais de que o filho seja melhor do que eles. Mesmo um pai analfabeto tem uma carga de saberes que troca com o filho. Ele passa informações a respeito de seu trabalho, das pessoas que trabalham com ele, dos materiais que usa da importância social de sua atividade, de sua história de vida... Isso já é o bastante, e promove a interação entrefilho e pai, e dos dois com a escola. A participação das famílias na escola está ainda muito relacionada a questões informativas e/ou festivas. Quais situações podem ser criadas para que de fato as famílias participem do processo pedagógico? O processo pedagógico é da competência da escola. Os pais não têm curso para serem professores de seus filhos, mesmo se escola é no sentido de estimular a criança a se envolver ativamente na vida escolar, a ter curiosidade por aprender e interpretar o mundo. Por que o aluno vai para a escola? Com frequência ele diz “porque meu pai manda”, isto é, não é algo de seu interesse. Cabe à escola transformar esse impulso em um gosto pelo saber e pela própria escola, permitir que o aluno entenda o sentido de saber fazer contas de dividir e multiplicar, escrever bem o português. Dar a isso um sentido prático para sua vida. Ao achar que os pais precisam ajudá-lo no seu trabalho, o professor diminui sua própria responsabilidade. Quando um professor encontra uma dificuldade, ele logo pensa “por mais que eu ensine esse aluno não aprende”, em vez de imaginar que talvez seu método, ou seu plano, esteja equivocado. Ele responsabiliza o aluno ou a família, não se interroga. O mau desempenho dos alunos é responsabilidade do professor, muito mais do que ele imagina. Isso pressupõe que ele mude sua postura diante do conhecimento, admitindo que sua responsabilidade social é imensa. 57 A escola e a família devem andar juntas no processo educacional. A opinião é praticamente unânime entre pais, alunos e professores. Segundo especialistas, a fronteira entre as duas instituições é indefinida, pois uma complementa a outra em sua função. A separação ou conflitos entre as duas partes podem resultar em insegurança para o aluno. A psicóloga Maria Clara Lopes Rodrigues, especialista em educação, define a escola como uma segunda referência para a criança. "A primeira é a família. Antes da escola, os pequenos lidam e enxergam apenas a casa." No momento em que a criança entra na escola, segundo a psicóloga, ela passa a ter uma referência social, começa a ter mais contato com o mundo, com o próximo e com seus direitos e deveres. Por isso, conforme Maria Clara Lopes, o diálogo entre família e escola é fundamental. "Muitas vezes a criança apresenta problemas no aprendizado como reflexo de situações vividas em casa. O diálogo entre as instituições interfere positivamente nesses casos", diz. De acordo com ela, as escolas devem ser abertas aos pais, que devem participar ativamente da vida dos filhos. "Quando isso não acontece e há conflito entre as partes, quem sofre é a criança, que fica insegura." Embora a escola complemente as funções de educação da família, ela não pode ter, sozinha, a obrigação de educar, como pensam alguns pais - é o que afirma Francisco Liberato Póvoa, diretor do Colégio Logosófico, em Belo Horizonte. "A escola é um suporte para a família para passar conhecimentos e ajudar na educação. Mas nada substitui o afeto e os ensinamentos da família", diz. Liberato Póvoa - ele acrescenta que a criança que tem o acompanhamento e participação dos pais em suas atividades escolares se sente amada e mais segura. Instituição deve dar abertura, diz mãe 58 Alguns pais querem participar da vida escolar dos filhos, mas encontram dificuldade para isso, pois algumas escolas não dão abertura. Esse é o caso da delegada Laura Fernandes (nome fictício), que depois de tentar várias vezes ser ouvida em vão pelos gestores da escola de seus dois filhos, um colégio de renome na região Centro-Sul de Belo Horizonte, resolveu trocar as crianças de instituição. Laura tentou conversar com coordenadores do colégio sobre o rendimento de sua filha em matemática. Tentou mostrar que ela e outros alunos estavam tendo o mesmo problema e que a professora deveria ser avaliada. "Essa foi mais uma questão sobre a qual não fui sequer ouvida." A abertura dá bons resultados na vida da professora Kátia Magalhães (nome fictício), presidente da Associação de Pais e Mestres do Colégio Loyola. "Nós, pais, temos uma sala na escola, com um canal direto de comunicação. Lá discutimos problemas pedagógicos e outros com a participação das três partes: pais, professores e filhos. Isso me deixa bastante segura." As escolas, em geral, por várias vezes, optam por um discurso teórico de poder pelo saber que acaba por afastar os pais. Não se cria um diálogo e, com isso, os pais ficam perdidos no processo. 59 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. CARVALHO, M.E.P. (2000) Relações entre família e escola e relações de gênero. Cadernos de Pesquisas nº 110. 2. ARIÈS P. História da criança e da família. Trad. D. Filsman, Rio de Janeiro, Zahar, 1978. 3. GOMES SZYMANSKI, H. Um estudo sobre significado de família. Tese de Doutorado, PUC – SP, 1988. 4. LAHIRE, B. (1997) Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. Trad. R.ª Vasques & S. Goldfeder. São Paulo: Ática. 5. POSTER, M. Teoria Crítica da Família. Rio de Janeiro, Zahar, 1979. 60
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