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Diário Internacional de Semiótica do Direito V/13 [1992] A CONSTRUÇÃO RETÓRICA DO DIREITO i Por KATHARINA SOBOTA (Universidade Johannes Gutenberg de Mainz) I - Às vezes é útil resumir os resultados em mão e integrá-los a uma visão mais geral. Esta perspectiva mais ampla é geralmente alcançada por conceitos como "a Lei/o Direito", "o discurso legal", ou - o termo prevalecente na teoria Continental - "o sistema legal". Os riscos ligados a essas entidades abstratas são bem conhecidos 1 ; contudo, se alguém usa o termo "sistema" como uma mera suposição auxiliar, e leva em consideração a intenção Wittgensteiniana de esquecer-se o conceito após usá-lo, tem-se a chance de escapar aos riscos comuns de holismo e sistematização. Uma boa maneira de manter o ceticismo voltado para os conceitos próprios de um indivíduo consiste em substituí-los intencionalmente por metáforas ambíguas. Esta metáfora poderia ser a imagem da teia: enquanto o termo "sistema" é capaz de nos cativar com o seu som claro, simples e científico para sempre, a metáfora teia nos leva a uma esfera de ordem delicada, em que os conceitos não possuem significados fixos e assim não podem nunca teias tem uma certa tradição por trás. Acima de tudo, é preciso lembrar o pensamento de Friedrich Nietzsche, que comparou o mundo humano de conceitos com uma "construção de teias de aranhas" 2 . No mesmo contexto, ele também inventa metáforas como "andaimes e brinquedos" ou "marcenaria e entabulamento 3 " ("scaffolding and playthings" ou "timberwork and planking"), mas ele sempre retorna à imagem da ”teia de aranha", a qual lhe parece a mais apropriada para circunscrever um dos seus pensamentos centrais: nomeadamente, que qualquer coisa que tenhamos como a "verdade", até as categorias mais básicas da nossa orientação, "é produzida dentro de nós mesmos e fora de nós mesmos com a mesma necessidade que uma aranha tece" 4 . Então nós estamos "construindo gênios" que, de longe, suprimem as abelhas, uma vez que o material que usamos para as nossas construções não é retirado da natureza, como é o caso da cera das abelhas, mas de nós mesmos: são os aspectos mais sutis da matéria dos conceitos que nós aplicamos, 1 Veja o criticismo do conceito de "a unidade e identidade do sistema legal" por Bernard S Jackson, Direito (lei?), Fato e Coerência Narrativa (Coerência do Direito, do Fato e da Narrativa?) (Merseyside: Publicações de Deborah Charles, 1988) 131ff. 2 Friederich Nietzsche, Über Wahreit und Lüge im aussermoralischen Sinne, in Die Geburt der Tragöidie Unzeitgemäfe Betrachtungen Nachgelassene Schriften, 1870-1873, Kritische Studienausgabe, ed. G. Colli, M. Montinari (2 Aufl., Berlin/New York: de Gruyter, 1988),873ff.,882, 885: "Bau aus Spinnef~iden", traduzido pelo autor 3 Ibid.,at 888: "Geriist und Spielzeug", "Geb/ilk und Bretterwerk." 4 Ibid.,at 885; italics by the author. por meio de poesia e retórica 5 . Em outras palavras, certezas humanas (como, por exemplo, os sistemas de ciência, moralidade ou direito) são produtos criados por si próprios. Nietzsche vê nossas convicções como teias que estamos constantemente tecendo, acreditando ao mesmo tempo os fios auto-tecidos (tecidos por nós mesmos) são expressões de uma ordem prévia. O que nós acreditamos ser verdade são metáforas inventadas pelas quais nós constituímos nossas relações pessoais 6 . Nós não somos observadores externos, mas estamos sentados no centro da nossa teia em formato de estrela, estabilizando os significados. Nesse aspecto, nos comportamos como se fôssemos a medida de todas as coisas 7 . II - Com essa referência a Protágoras, por último, se torna óbvio onde as raízes das considerações de Nietzsche são encontradas: naquele pensamento da antiguidade cultivado pelos Sofistas sob o nome de "Retórica", considerado não só como procedimento prático para produzir convicções, mas também uma disciplina analítica explorando os padrões desses processos 8 (8). Ao procurar esses padrões retóricos, os retóricos descobriram que concepções humanas, especialmente sobre o que é justo e injusto, eram "teias linguísticas": elas consistiam de opiniões baseadas na linguagem. Elas eram articuladas, produzidas e influenciadas por meio dos sinais. Diferente da primeira semiótica, que era mais interessada na estrutura das "redes", a retórica concentrou-se desde o começo no "processo de girar e tecer", isto é a produção das teias de semiótica. O produto (direito como um sistema de sinais) ou o produtor (seres humanos) têm sido menos importantes que a questão "como é produzido?". Os termos "sinal" e "utilizador de sinais" (discurso, orador, audiência) assim não são as categorias básicas de análise, mas são introduzidos secundariamente como um "meio de persuasão" 9 . A categoria primária é o ato retórico de acarretar, mudar, extinguir concepções humanas (como o que é justo ou injusto). A vantagem dessa abordagem consiste na verificação empírica potencial: se o padrão retórico constitui ou não sucesso pode ao menos ser "verificado" aproximadamente pelo sucesso ou fracasso da ação em questão (por exemplo, ganhar ou perder o julgamento). III - Durante os últimos anos, tem crescido o interesse pela construção retórica dos nossos conceitos legais. Mesmo assim, nós ainda não sabemos muito sobre os padrões de "como o Direito (lei) é produzido". Das várias abordagens, que parecem todas promissórias em um sentido ou no outro, eu 5 Ibid., at 882, 88O. 6 Ibid.,at 880-883; cL Ottmar Ballweg, "Analytische Rhetorik als juristische Grundlagenforschung", in R. Alexy, R. Dreier, U. Neumann (eds.),Rechts- und Sozialphilosophie in Deutschland heute (Stuttgart: Franz Steiner, 1991), 45-54 (ARSP Beiheft Nr. 44). 7 Nietzsche, supra n.2, at 883. 8 Cf. Ottmar Ballweg, "Analytical Rhetoric, Semiotic and Law", in R. Kevelson (ed.), Law and Semiotics, Vol.1 (New York: Plenum, 1987), 25-33;idem, "Entwurf einer analytischen Rhetorik', in H. Schanze (ed.), Rhetorik und Philosophie (Miinchen: Wilhelm Fink, 1989), 229-247. 9 Aristoteles, Ars Rhetorica, L2.2-6. A semiótica é o estudo da construção de significado, o estudo do processo de signo e do significado de comunicação gostaria de mencionar apenas algumas: o conceito de "regras narrativas" de Bernard Jackson, o estudo empírico dos chamados "padrões socio-pragmáticos" de Pompeu Casanovas, e a análise das interações entre juízes e júri de Paul Robertshaw. Finalmente, há a pesquisa moderna em retórica, que tem abordado o tema de três maneiras até então: (1) Theodor Viehweg, o fundador da Escola de Mainz, e Ottmar Ballweg fizeram uma pesquisa básica, e tentaram mostrar que a análise das ações jurídicas encontra-se na competência da retórica. (2) Esse trabalho sobretudo teórico foi completado por análises textuais. Fundamentais, assim, são os estudos sobre argumentação jurídica de Chaïm Perelman, e a análise de decisões da Bundesverfassungsgericht (corte constitucional) de Waldemar Schreckenberger. (3) O terceiro grupo interessa-se na lei como o sistema social retoricamente constituído. Essa abordagem, que foi iniciada por Ballweg, também, será mais desenvolvida futuramente neste trabalho, levando em consideração os resultados da análise textual. O sucesso mais importante que nós ganhamos até agora neste campo é, possivelmente, a conclusão de que tudo é muito mais imponderável e paradóxico que o esperado pelo otimismo científico. De todo modo, há alguns resultados que podem levar a investigações mais profundas na direção correta. Eles ainda não fornecem informação exata sobre padrões individuais legais de comportamento, mas eles representam um catálogo provisório de condições fundamentais, respondendo a pergunta de quando e sob que circunstâncias a teia do direito continua a ser girada e tecida comsucesso, e quando não. Seguindo a terminologia atual eu nomearei essas condições "restrições" (constraints). Em discussões futuras, nós podemos, talvez, encontrar uma palavra menos enganosa, sem associações de "leis externas" ou "coerções invencíveis". No momento, eu não consigo ver um conceito que poderia substituir esse termo tradicional. A palavra "restrições" nos previne de confundir o desenvolvimento de padrões legais como arbitrariedade 10 . Por outro lado, o uso de "restrições" não implica um sistema legal que seja governado por leis axiomáticas. Ele na verdade sugere que a formação do direito é moldada por algumas funções fundamentais e pelo jeito como o sistema cumpre essa tarefa: especialmente pela maneira como ele resolve o problema de manter o que é: o Direito precisa continuar a si mesmo; as aranhas precisam sustentar suas teias. 1. Restrição da Decisão. No nível acadêmico, o Direito às vezes aparenta ser uma história sem fim. Entretanto, nas práticas do dia a dia há situações em que são proibidas discussões infindáveis. Elas exigem que os juristas despertem o sentimento que – finalmente – uma resposta foi encontrada. Isso não significa que os advogados e juízes precisam solucionar um conflito, mas que eles são frequentemente questionados para concluí-lo 11 . Essa “conclusão” de conflitos (na forma de “solucioná-los”) é o tipo de tarefa que é 10 K. Sobota, “System and Flexibility in Law”, Argumentation 5/1 (1991), 275- 282 (“Legal Argumentation”) 11 O. Ballweg, Rechtwissenschaft und Jurisprudenz (Basel: Helbing & Lichtenhahm, 1970), 23, 85f. 112f. “The Conflict is not concluded by solution, but it is oslved by conclusion (Der Konflikt wird nicht durch Losung esperada que o sistema jurídico realize dentro das interações com outros sistemas sociais. Para desempenhar essa tarefa, os juristas têm de transferir o caos da disputa cotidiana para uma certa ordem, a ordem da padronização legal. Eles têm de traduzir 12 um problema infinito em um finito 13 . Eles efetuam isso especialmente com a ajuda de procedimentos legais, especialmente pelos rituais com um crescente nível de rigor. Contudo, o principal meio é fornecido pela linguagem: pela força da ordenação da gramática (Nietzsche), pela as expectativas da coerência no que diz respeito ao conteúdo 14 e pelo estilo caracterizado por uma alta flexibilidade semântica, isso ajuda adaptar às diferentes situações concretas. Outra maneira é a arte de alusão: por exemplo, em uma argumentação jurídica a norma em que a conclusão é supostamente baseada não é usualmente mencionada 15 . A interação dessas táticas contraditórias atrai os participantes rixosos (quarreling participants) para os rumos do pensamento legal 16 . Isso canaliza os conflitos do dia a dia em um sistema de certeza – um sistema de certeza que é construído à base de incertezas... a “água fluente” da existência humana 17 . 2. Restrição de vínculo O Direito não existe como um fenômeno por si só. Surge a partir do modo como as pessoas se comportam, e perece quando os modelos de comportamento não são mais seguidos. Assim como a aranha precisa continuar tecelando diariamente no fito de sustentar a teia, nós precisamos invocar o fenômeno do Direito dia após dia para “mantê-lo”. Sempre que a cadeia de evocações se rompe, a lei perece. Apenas muito raramente é possível restaurar a forma da lei que não tem sida exercida por muito tempo, e sempre que provado possível, o sucesso foi devido à uma intervenção não – legal, mas política ou acadêmica (v.g. recurso às tradições escritas). A fim de permitir evocações diárias do fenômeno do Direito, a sociedade deve ter energia e espaço para fazê-lo. Ambos desses são ausentes em situações de miséria existencial, bem como em estados totalitários onde a função de acabar com os conflitos não é realizada pela lei, mas por outros sistemas (religião, política, etc.) 18 . beendet, sodern durch Beendung gelost)”, at 105; idem, “Science, Prudence et Philosophie du Droit”, ARSP LI/4 (1965), 543ff., esp. At 554 with reference to Art. 4 Code Civil: “ Le juge qui refusera de juger, sous pretexte du silence, de l’obscurité ou de l’ insuffisance de la loi, pourra être poursuivi comme coupable de déni de justice.” 12 James Boyd White, Justice as Translation. An Essay in Cultural and Legal Criticism (Chicago: The University of Chicago Press, 1990). 13 Ballweg, supra n.6, at. 50 14 As to the concept of “legal coherence” cf. Jackson, supra n.1 15 K. Sobota, “Don’t Mention the Norm”, International Journal for the Semiotics of Law IV/10 (1991), 45-60. 16 Cf. Thomas Michael Seibert, Aktenanalysen. Zur Schriftform juristicher Deutung (Tubingen: Gunter Narr Verlag, 1981). 17 Nietzsche, supra n.2, at 882. 18 K. Sobota, “Geburt und Tod fiktiver Welten”, in M. Heuser, W. Schmidt (eds), Gestalt. Gestalwerdung – A restrição de associação demanda não apenas os fios da teia legal, mas também que eles sejam coesos 19 . Para atingir esse objetivo, a retórica legal é forçada a seguir uma tática dupla: de um lado, tem que ser o momento manifesto da ordem jurídica no presente, por outro lado, tem que se referir ao futuro 20 . Análogo a uma série de TV que satisfaz a curiosidade dos espectadores apenas parcialmente – e os estimula com um “suspense” para assistir a continuidade da série, a retórica legal deve cuidar para que algo permaneça em aberto – apesar da sua função de ordenar (organizar). A fórmula perfeita para o cálculo da justiça significaria seu fim, de uma vez por todas. A abertura da lei, necessária por razões dramáticas, é mais bem garantida pela discrepância entre as demandas dos homens e os meios dos homens para construir justiça. Que lei, que julgamento, que opinião deveria ser considerada como a última? No sistema legal que é construído na concepção da disputa legal, e em uma sociedade que é aberta ao criticismo e às vezes interessada em aprimoramentos, partes da ordem legal sempre parece suscetível à reavaliação e, assim, estimula a participação no discurso legal. Esses críticos articulando suas visões com meios imanentes ao sistema são aqueles que criam a tensão sem a qual a retórica da lei não poderia existir. Parte desses fatores dinâmicos não são apenas revisão de julgamentos e alteração das leis, mas também discussões acadêmicas com suas utopias e insolucionáveis oposições conceituais (v.g. justiça geométrica ou aritmética? 21 Individual ou comunidade? Lei positivista ou natural?) 22 . Quão intenso o criticismo pode ser a fim de ser produtivo depende na verdadeira demanda por ordem. Uma sociedade entediada ama mais o crítico do que a sociedade abalada por eventos alarmantes. Em tempos de irritação, a retórica legal deve enfatizar seu aspecto ordenado, sua “plenitude”: a lei é a “universal, contínua entidade”. A magistratura, a administração e a legislatura enfrentam incessantemente novos problemas, e esses problemas são resolvidos pelos meios incessantemente mutantes do entendimento do Direito, não é nem um pouco aparente que é a ficção deveria ser aceita. Por que a mera contiguidade de ações totalmente diferentes de indivíduos deveria ser experienciada como “a mesma”? Que arte a retórica deve adotar para fazer de “múltiplas quedas” (“numerous drops”) o “rio imutável” (Heráclito)? Essa questão não é só importante para entender como a restrição de vínculo é executada, mas também para compreender como o sistema de leis pode estabelecer si próprio e manter sua existência. Assim como a próxima e única sessão irá mostrar, a solução para esse problema é buscada no contexto que é descrito pela palavra-chave “autorreferência”. Como autorreferência parece ser a condiçãocentral da retórica legal, será lidada separadamente como a quarta condição do sistema de retórica legal. Gestaltzer all (Hannover: Duphar, 1990), 45- 53. 19 Nikas Luhmann, Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinen Theorie (Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1984), 62, 158. 20 Cf. Luhmann, ibid., at 157f. 21 Aristoteles, Nicomachean Ethics, V.7. 22 Cf. K. Sobota, “Stinmmigkeit als Rechtsstruktur”, Archiv fur Rechts- und Sozialphilosophie LXXVII/2 (1991), 243-256. 3. Limitação da Invenção A esfera em que o Direito existe como uma entidade é a linguagem. Com a ajuda da linguagem nós podemos construir uma “segunda” realidade – uma realidade em que parece não ser uma sequência de ações singulares e transitórias, mas um reino de entidades vivas. Ações passam; conceitos permanecem. Para convidar as pessoas para “viver a linguagem”, palavras não só precisam ser atraídas para os cérebros, mas também para os corações. A tarefa de atrair corações é realizada pelas figuras retóricas e alegorias. Um método empírico (“sismograma retórico”) que foi recentemente desenvolvido, mostra a alta intensidade de figuras retóricas em textos jurídicos. 4. Restrição de Autorreferência Apesar de uma linguagem conceitual poder reivindicar uma realidade eterna, e figuras retóricas poderem convidar pessoas a viverem em tal realidade, o direito precisa de instrumentos para reproduzir essa realidade em uma maneira suficientemente similar. Esses instrumentos são autorreferências. O fenômeno de autorreferência é baseado em uma pré-suposição artificial: da mesma maneira que alguém precisa de um espelho para uma autorreflexão, a autorreferência demanda um “segundo nível”, uma esfera de certo modo “acima” da dimensão de simples ações. Essa segunda esfera, a qual nós podemos também chamar “observador”, “memória”, ou “ordem de maior grau”, pode ser idêntica à primeira esfera enquanto seu “material” gerar interesse 23 ; é, porém, de uma qualidade diferente, já que “informação” é necessária 24 .Essa qualidade diferente é o resultado de uma coincidência paradoxal entre diferença e identidade: por um lado, a imagem refletida do objeto é diferente do objeto em si, por outro lado, ela é idêntica na medida em que o objeto em si se vê representado pela imagem. Existe outro aspecto constituinte além dos aspectos de diferença e identidade: essa representação autorreferencial não é descritiva, mas prescritiva. Não é sua tarefa “descrever”, “observar” ou “representar” passivamente, mas ela é usada para prescrever atos. Um exemplo de tal representação autorreferencial poderia ser o ritmo de uma dança: o ritmo representa a dança em uma dimensão acústica, não-melódica – ele gera um tipo de abstração da dança – e, ao mesmo tempo, ele nos move, os dançarinos, a continuar e repetir os passos que constituem a dança em si. Conforme aprendemos na recente biologia, qualquer forma de vida é dependente de tal duplicação paradoxal. A ação individual é singular e transitória; a representação autorreferencial sincronicamente em movimento produz os modelos que possibilitam reprodução e coordenação complexa. 25 A organização da vida social é, contanto que este ponto seja preocupante, similar aos mecanismos biológicos de construção: aqui, também, nós precisamos níveis “maiores” de sinais representando a ação simples pelo propósito da repetição, coordenação e integração. A dimensão a ser empregada para isso, junto ao sistema não verbal de sinais 26 , é a linguagem humana. Com a ajuda desta forma de autorreflexão muito especial (e aqui, enfim, o paralelo entre sistemas biológicos e sociais tem fim), nós obtivemos sucesso em inventar um “segundo” nível, antes do “primeiro”, no qual as interações sociais humanas podem ser representadas em uma maneira diferente e prescritiva 27 . O que é chocante sobre autorreferências jurídicas é que elas obviamente 23 Nesses casos, os materiais são cartas ou neurônios. 24 Os conceitos auxiliares “materiais” e “informação” devem expressar somente uma relação; não é preciso dizer que ambos os elementos são inseparáveis nos sistemas vivos. 25 E.g. Manfred Eigen, Peter Schuster, The Hypercycle. A Principle of Natural Self Organisation (Berlin: Springer, 1979); Hermann Haken, Information and Self-Organisation (Berlin: Springer, 1988); Humberto R. Maturana, Francisco J. Varela, Autopoiesis and Cognition (Boston: Reidel, 1979, Boston Studies in the Philosophy of Science); H.R. Maturana, “Autopoiesis”, in M. Zeleny (ed.), Autopoiesis: A Theory of Living Organisation (New York/Oxford: Elsevier Science Publisher B.V., 1981), 21ff., 25, 32; idem, Erkennen. Die Organisation und Verk~rperung yon Wirklichkeit, ausgew. Arbeiten zur biologischen Epistemologie, (Braunschweig/Wiesbaden Vieweg, 1982), 21, 39, 47ff., 73ff. 26 Por exemplo, dança, gestos, modelos, números. 27 Fundamentos por trás de Nietzsche: Immanuel Kant e seu conceito do "regulativen Prinzipien": Kritik der reinen Vernunfl (Stuttgart: Reclam, 1966), 599, 673ff; Hans Vaihinger, Die Philosophie des Als Ob. System der theoretischen, praktischen und religi~sen Fiktionen der Menschheit auf Grund eines idealistischen Positivismus (Leipzig: Felix Meiner, 1924, 2 Aufl.), 4, 14ff.; Ludwig Wittgenstein, Philosophische Untersuchungen, Nr. 114f., in Werkausgabe, Bd.1 (Frankfurt: a.M.: Suhrkamp, 1970), 343; idem, ~ber GewiJ~heit Werkausgabe, Bcl. 8 (Frankfurt a.M.: Suhrkamp, 1989), 10, 33f., 94f. (Nr.7, 94ff., 357ff.). Para a discussão atual: Peter L. Berger, Thomas Luckmann, The Social Construction of Reality (New York: Doubleday, 1966); Stephan Wolff, Der rhetorische Charakter sozialer Ordnung (Berlin: Dunker & Humblot, 1976), 77ff.; Niklas Luhmann, Soziale Systeme, supra n.19, at 25, 51, 61, 63f., 79, 227ff.; Hans Blumenberg, "Anthropologische Ann/iherung an die existem em duas versões: existem “autorreferências genuínas” e “pseudo-autorreferências”. As “autorreferências genuínas” são meios operativamente aptos para a contínua tradição do direito como um sistema. Elas são “o ritmo”. Entre elas, podem ser numerados os rituais forenses, as técnicas da retórica, os mecanismos de ensinamento extraoficiais por pessoas mais velhas e experientes, e a seleção de recrutas por meios de admissão restrita. É notável que este tipo de referência é – em termos de importância – comunicada apenas extraoficialmente. Portanto, elas poderiam também serem chamadas “cripto-referências”. Quão “top-secret” essas cripto-referências são se torna óbvio caso leva-se em conta que (pelo menos na Alemanha) até mesmo estudantes de direito raramente aprendem algo sobre elas. Desse modo, as técnicas que mantém o direito como uma unicidade têm de ser aprendidas através de imitações inconscientes. O segundo tipo de autorreferências, as pseudo-referências, descrevem as tomadas de decisões judiciais de uma maneira que é um pouco imprópria de um ponto de vista operacional. Elas descrevem a tomada de uma decisão judicial diferentemente de como ela foi realmente feita. Elas não descrevem a verdadeira origem, mas dão uma criativa, fictícia “apresentação da origem”. Essas apresentações não têm função operativa, somente retórica. Em cooperação com a invenção de conceitos e propostas, elas ajudam a produzir o fato que um texto jurídico lê como “prescritivo” por si só. Como eu mostrei em outra ocasião 28 , todos os juristas apoiam suas decisões com tais pseudo-referências à origem da decisão (etiologia). Enquanto figuras retóricas atraem o coração, essas pseudo-autorreferências atraem o cérebro, referindo-se às ideias dominantes de bem e justiça. Pseudo-referências ocorrem de várias formas: elas podem ser explícitas ou implícitas, relacionadasao passado ou ao presente. Ainda, elas diferem em sua forma interior, isto é, nos conteúdos da história com os quais eles descrevem a origem alegada. Nos textos jurídicos alemães, haveriam, a primeira vista, três tipos de histórias descritivas da origem: 1. Uma etiologia pré-racional, a qual reduz o texto a mágica ou outros contextos experimentais predominantemente emocionais (como uma dádiva divina). 2. Uma etiologia racional, a qual apresenta a decisão jurídica como uma percepção lógica de fatos objetivos (por exemplo, via “reconhecimento de fatos” ou “conhecimento da situação legal”). 3. Uma etiologia racional-reflexiva, a qual descreve todos os procedimentos legais como expressões da vontade humana (por exemplo, “contrato”, “consenso da maioria”). As apresentações pré-racionais (1) ativam algumas emoções que são, em termos evolucionários, velhas, e que organizaram a sociedade em uma época na qual não havia jurisprudência retoricamente elaborada. Textos jurídicos que preferem uma etiologia racional (2) parecem ser práticos. Eles apresentam suas propostas como se os conceitos usados representassem coisas reais e como se a organização dos conceitos correspondesse à ordem do mundo real. Usando categorias filosóficas: eles Aktualit/it der Rhetorik", in: Wirklichkeiten, in denen wir leben (Stuttgart: Reclam, 1981), 104ff., 132ff. 28 K. Sobota, Sachlichkeit, Rhetorische Kunst der Juristen (Frankfurt a.M.: Peter Lang, 1990) assumem que as propostas jurídicas são mantidas para ter o caráter de propostas ontológicas. As apresentações racionais-reflexivas (3) modificam essa afirmação de modo que leva em conta a ideologia moderna do individuo e de sua liberdade de desejo. Todas essas autorreferências estão aptas a produzir ideias as quais têm de ser consideradas lendas, mitos ou pseudo-problemas. Ninguém jamais pode produzir o fenômeno Direito ao executar “ditado divino”, ninguém jamais pode tecer a teia do Direito pela “aplicação de normas” ou “dedução lógica”. Até os conceitos de “justificação”, “interpretação” ou a “compulsão para estabelecer normas” não parecem ser restrições reais da construção do Direito 29 ; Eles são restrições apenas no sentido de que eles têm que ser parte de um estilo ocidental especial de apresentação de decisões legais. 5. Restrição da Reflexividade Os diferentes níveis de ação e autorreferência não funcionam separadamente, mas interagem. A representação autorreferencial do “segundo nível” é produzida pelas ações do “primeiro nível” de invenção, mas ao mesmo tempo elas reagem de acordo com esse nível prescritivamente. Assim os processos que levaram a elas estão alterados, também, de modo que imagem refletida e “realidade” são capazes de se ajustar uma à outra mais e mais produtivamente. Quando elas estão em seu melhor (quando especializações correspondentes tiverem sido formadas), as representações “se encaixam” nas ações, e as ações “se encaixam” nas representações, na medida em que ambas impressionam o ouvinte com uma intensidade suficiente para manter o sistema funcionando e aceito. Assim como a retórica do direito trabalha com autorreferências que são duplas 30 , a reflexividadeéduplatambém.Os feedbacks “genuínos”,extrao ficiais deixem de alcançaro ajuste a “realidade externa” (“poder normativo dos fatos” 31 ); os pseudo-oficiais ajudam a moldar as formas ideais da autoapresentação judicial. Se um juiz escolhe o estilo de racionalidade, por exemplo, o seguinte irá acontecer: como ele quer que suas ações sejam resguardadas como racionais, ele deve esconder suas emoções. O resultado é, frequentemente, ele se acalmar através da frieza de sua retórica e assim sua perspectiva do problema se torna mais imparcial. Não é apenas possível convencer o indivíduo a uma fúria, é também possível ser infectado pela própria calma e falta de emoção fingidas. É em seu ciclo de atitude e comportamento que Aristóteles vê a condição central de toda ética: “Portanto, tornamo-nos justos praticando atos justos” 32 . Onde essa reflexividade não toma mais lugar, os traços de produção e representação divergem. Ao invés de se tornar mais e mais universal, ao invés de tecer o mundo inteiro em uma rede,os dois níveis separados um do outro, a teia de invenções é 29 Vinte anos atrás, Ballweg formulou, além da “compulsão para decidir”, a “compulsão para justificar”, “para interpretar” e “para estabelecer normas”, Rechtswissenschaft und Jurisprudenz, supra n.11, at 108ff. 30 uma circunstância a qual é presumivelmente também o caso com moral e religião 31 Georf Jellinek, "Normative Kraft das Faktischen", Allgeneine Staatslehre, 3 Aufl. (Berlin: Häring, 1914), 337ff. 32 Aristóteles, Ética a Nicômaco, II.1. Correção da tradução: "Os feedbacks "genuínos" e não oficiais podem alcançar o ajuste à "realidade externa"" Correção: "[...] a reflexividade é dupla também." Correção da tradução "Assim os processos que levaram a elas são alterados, também[...]" levada pelo vento (Nietzsche) 33 . 6. Restrição da Latência Como já foi mencionado, a retórica do direito pressupõe o fato de que uma “segunda realidade” é criada por processos linguísticos. Nesse universo inventado de sinais um indivíduo deve fingir que: - existem respostas pré-fabricadas a todas as questões, - Os dogmas da ontologia são verdadeiros - Os dados que constroem o mundo jurídico são tijolos realmente úteis, - e finalmente a teia semiótica do direito é o “mundo real”. Se um indivíduo está inclinado a fazer isso - encarar essas artificialidades - ele deve considerar todo o sistema do direito uma ficção, ou até uma decepção permanente 34 . Ainda que o indivíduo levar em consideração a visão de que essa "decepção" é a base de todas as formas de viver agregado cultivadas, e assim forma a maior parte de nossa realidade humana, parece mais apropriado nomeá-la uma "conquista construtiva" 35 . Além disso, o termo "decepção" negligencia a circunstância de que a "teia do direito" é capaz, de uma maneira muito efetiva, de privar aqueles que são presos nela da liberdade e da vida. Ainda que nós devêssemos ter cuidado para não estabelecer um contraste agudo entre "realidade" e "ficção", não podemos evitar apontar a complexa dualidade sem a qual o fenômeno Direito não pode ser construído. Enquanto deveria funcionar em sua forma tradicional, ele é forçado aesconder os mecanismos de sua verdadeira produção. Qualquer um que argumente no contexto do verdadeiro decision-making judicial que não existem "coisas" no sentido ontológico, que é impossível converter algo infinito em algo finito, que Direito é um sistema semiótico inventado, vai ser primeiramente ridicularizado; contudo, a longo prazo, ele vai destruir a base do Direito. A esse respeito a arte da tecelagem demanda que os processos construtivos devem manter-se desconhecidos ao público. Muito contrário ao que quase todos os teóricos de Direito e argumentação demandam: latência é um pré-requisito do Direito em sua forma presente. Se nós queremos aceitar um sistema legal que segue esse pré-requisito é outra questão. 7. Restrição da Adequação Todas as restrições acima são de uma natureza formal. Elas requerem que certas formas retóricas sejam observadas; os conteúdos, os quais - em concordância com a restrição da invenção - têm de ser evocados, são arbitrários. A restrição da adequação, também, descreve uma condição formal: discurso judicial tem de ser 33 Nietzsche, supra n.2, em 882. 34 Nietzsche, ibid., passim; Vaihinger, supra n.28; Walter Strauch, Die Philosophie des "Als-Ob" und die hauptsächlichsten Probleme der Rechtswissenschaft (München: Rösl & Cie, 1923). 35Se não me engano, foi Peter Goodrich quem apontou esse aspecto na conferência da Associação Internacional para a Semiótica do Direito em Oñati em 1990. formado de uma maneira, para que possa ser aceito como apropriado pela audiência. Se esse não for o caso, o falante não conseguirá persuadir; persuasão, entretanto, é a abrangente condição básica da construção de sucesso retórico. Como sabemos de Aristóteles, convenções a respeito de conteúdo são introduzidas por meio do critério formal do que é apropriado (gr. prépon, lat.: decorum, aptum): o falante tem de encontrar aquelas palavras que o torna crível na perspectiva da audiência. Um indivíduo que afirma ser "fazendeiro" deve ter um vocabulário diferente de um "intelectual." 36 O mesmo se aplica ao juiz que - a fim de dar mais carga a sua decisão - se apresenta como independente 37 : ele tem de falar de um modo que a audiência crê que um juiz independente deveria falar. Segundo: seu modo de se expressar deve estar em uma relação apropriada com o problema em questão 38 . O que essa relação correta é deve ser descoberto considerando as avaliações da audiência. É a visão deles que o indivíduo deve considerar se quer saber o que é "o problema", como deve ser avaliado (e.g. insignificante ou trágico), e quais proposições, em que intensidade, parecem aptas? Dessa maneira, o falante deve levar em conta os humores e inclinações de sua verdadeira audiência, seu tempo, e sua cultura. Se ele quer ser bem-sucedido, nem o estilo e nem o conteúdo de seu discurso pode ser arbitrário. O tom no qual ele fala, o modo como organiza seus pensamentos, e ainda as alternativas, soluções einstalaçõesqueelepodeempregarcomotopoiestãotodoslimitadosàsituação.Aindaassim o teor final de seu discurso (culpado ou inocente?) não é restrito. Existem resultados, porém, que são excluídos dentro do quadro de um sistema continuamente em desenvolvimento (e.g. punição capital ou juízo de valor baseado em estética) 39 . Essa correlação entre restrições retóricas, estilo, e conteúdo do discurso leva a um resultado adequado à situação. Normalmente, a "vontade de persuadir" do falante não significa nada além de que seu discurso era justificável em face do respectivo corpo (juízes, júri, público) que tinha de tomar a decisão. Esses corpos, também, são postos juntos, pressupondo condições democráticas 40 , em procedimentos os quais são sujeitos às restrições aqui discutidas. Dessa maneira a integração reflexiva do sistema de leis dentro da teia de outros sistemas sociais torna-se efetiva: o sentimento de que o que é apropriado é influenciado não só pelo humor dos juízes, mas também pelas condições políticas e econômicas. Assim retórica, se for institucionalizada em uma democracia vivida, visa um equilíbrio interno numa cultura a qual é experienciada como justiça. Essa justiça não necessariamente precisa cumprir com o estado médio de opinião de todas as audiências participantes, e torna-se a variedade jurídica do conformismo social. Muito pelo contrário, existe a possibilidade de - como uma 36 Aristóteles, Ars Rhetorica III.7.7. 37 O "caráter" do falante é um dos três meios de persuasão: ibid., I.2.4. (39)Ibid.,III.7.1. 38 Jackson, supra n.1, em 28f. 39 Sobre a conexão entre retórica e democracia, veja O. Ballweg, "Rhetorik und Vertrauen", in Denninger et al. (eds.), Kritik und Vertrauen, Festschrift Peter Schneider(Frankfurt/M: Anton Hain, 1990), 34-44. 40 Sobre essa problemática: Jackson, supra n.1, em 189, 193. consequência da reflexividade de todas as apresentações bem-sucedidas - o sentimento por justiça da maioria seja influenciado pelo refinamento de uma retórica do direito especial. Retórica é não só a techne ensinando como persuadir por um mero momento, mas também a arte que ergue uma construção duradoura de teias na "água corrente" da existência humana - um segundo mundo de teias que é tanto "sensível o suficiente para ser carregado pelas ondas", quanto "firme o suficiente para não ser rompido pelo vento" 41 . i Essa redação é baseada em um trabalho apresentado na 7ª Conferência IASL, em Utreque, sob o título inspirador "A teia Semiótica do Direito"; o texto beneficiou-se muito da discussão final, e especialmente da resposta de Willem J. Witteveen. 41 Nietzsche, supra n.2 em 882.
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