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Capítulo 10 - Pluralismo Jurídico

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Capítulo 10
Pluralismo Jurídico
Principais ideias e desafios
Marcus Faro de Castro
10.1. Introdução
No famoso Livro XI de sua obra tornada clássica, De l’esprit des lois, Montesquieu observa que nenhuma palavra recebeu significados mais contrastantes do que a de “liberdade”. Como assinala o autor, alguns entenderam por essa palavra a facilidade de depor um governante tirânico. Outros, a facilidade de eleger a quem se deve obedecer. Outros, ainda, identificaram-na com o direito de portar armas e praticar a violência, ou com o privilégio de ser governado por um homem de sua própria nação, ou ainda com o uso de ostentar barbas longas. Segundo Montesquieu, houve quem vinculasse a palavra “liberdade” ao regime republicano, mas também quem a considerasse uma consequência da monarquia. Montesquieu conclui que, de um modo geral, cada um tende a chamar liberdade aquilo que é conforme a seus costumes e inclinações.
O comentário de Montesquieu ajuda a pôr em relevo o que está no cerne das discussões sobre “pluralismo jurídico”. As concepções sobre o que é valorizado moralmente, refletindo‐se no que se considera ser “justo” ou “bom” para a vida de cada um, sempre variaram ao longo da história e entre diferentes espaços, culturas e agrupamentos sociais. Diante disso, não parece fazer muito sentido que o ensino jurídico e seu objeto – a saber, as normas e instituições que incorporam as ideias sobre o direito, tais como contrato, propriedade, família, responsabilidade civil, tributo, crime etc. – espelhem um conjunto único e muito restrito de formas intelectualmente elaboradas por alguns juristas, quase todas convergentes no sentido de consagrar determinadas práticas sociais e um tipo de ordem compatível com elas. 
A observação do mundo, por mais ingênua que seja, revela, de fato, que a diversidade de concepções sobre o “bem”, o “correto”, o “desejável”, é enorme, e até mesmo potencialmente infinita. Por que, então, o direito ensinado nas universidades limita‐‐se a insistir sobre um repertório muito limitado de regras, práticas e princípios? Por que o julgamento de uma demanda judicial não pode se dar, em parte ao menos, com base em recitações de poemas, no lugar da leitura de petições? Por que lendas religiosas ou artigos de fé não podem ser, em alguns casos, a fonte de limitações jurídicas inderrogáveis da propriedade e de certos contratos? Por que gerações futuras, enquanto projeções de indivíduos vivos no presente, não podem ser consideradas sujeitos de direito? E por que a realidade, tal como determinada pelos processos estatais e seu “direito”, é difícil de ser mudada? Questionamentos como esses encontram‐se implícitos ou explícitos nos debates sobre o pluralismo jurídico.
O presente capítulo explorará o tema do pluralismo jurídico. No item 9.2, será discutido brevemente como o processo de unificação do direito ocorreu na Europa medieval, suscitando posteriormente o aparecimento de ambientes marcados pelo fenômeno do pluralismo jurídico e seus desdobramentos. No item 9.3, serão expostas algumas das principais ideias abarcadas no processo de formação de argumentos relevantes acerca do “pluralismo jurídico” e serão indicadas algumas dificuldades conceituais surgidas dos debates sobre o tema. Recentes discussões sobre a dimensão global do pluralismo jurídico e seu interesse para a cooperação econômica internacional serão abordados no item 9.4. O item 9.5 concluirá com algumas observações finais.
10.2. A ascensão do monismo no direito ocidental e o surgimento do pluralismo jurídico
A expressão “pluralismo jurídico” designa a existência simultânea e em um mesmo ambiente de mais de um conjunto articulado de regras, princípios e instituições com base nos quais a ordem social é construída e transformada. Porém, a expressão tornou‐se corrente e ativamente debatida em meios do ensino jurídico apenas na segunda metade do século XX, e constituiu, em grande parte, uma reação à predominância de uma visão “monista” (e não “pluralista”) do direito. Será conveniente, portanto, indicar como o monismo surgiu no direito ocidental. 
É um fato conhecido que os diferentes povos ao longo da história e em distintas regiões criaram e cultivaram diferentes línguas, religiões, visões de mundo, técnicas, modos de vida e tradições. Qualquer representação gráfica da geografia humana de alguma região, ou mesmo do mundo, em qualquer recorte sincrônico, demonstra a existência de realidades imensamente mais complexas do que as aparentes nos mapas mais convencionais, que registram apenas a existência de jurisdições de Estados territoriais soberanos. Estas últimas são denotativas unicamente do poder de comando e controle, exercido por Estados, sobre pessoas, espaços e processos existentes em territórios delimitados. Mas o que se cristaliza, na forma de tais territórios e da realidade objetiva presa a eles, tem o potencial de se modificar muito, com base no que a cartografia puramente político‐territorial não mostra. 
Ora, as formas e os conteúdos das relações humanas adquiriram uma configuração específica nas ideias elaboradas por juristas europeus ao longo da Idade Média e projetadas nas instituições daí resultantes. Após a queda do Império Romano do Ocidente em 476 d.C., diversos processos se puseram em marcha de modo a favorecer, especialmente a partir do século XII, o acentuado interesse de certos atores políticos no resgate do direito romano, no continente, e a confecção de um direito monárquico, na Inglaterra. 
No caso de Estados territoriais em formação, como a França e a Inglaterra, a elaboração do direito entremeou‐se com a própria formação do Estado. Mas, no início do segundo milênio da Era Cristã, diversas forças na Europa passaram a disputar entre si a possibilidade de afirmar sua hegemonia política: a Igreja, o Sacro Imperador, os príncipes territoriais, as cidades e ligas de cidades. Não se deve menosprezar a capacidade que cada um desses atores tinha de, em diferentes momentos e conjunturas, avançar em direção à concretização de suas ambições. A realização de alianças políticas, o fornecimento de víveres, a angariação e administração de lealdades com base em liturgias políticas e/ou religiosas, a realização de guerras e campanhas militares, a provisão de meios financeiros – tudo isto fazia parte dos recursos empregados por esses atores na busca da satisfação de suas aspirações. A esses recursos, acrescentou‐se a elaboração de formas intelectuais e instituições jurídicas.
Retrospectivamente, pode‐se perceber a ocorrência, nesse ambiente, de uma condição de pluralismo jurídico. Diversos grupos sociais submetiam‐se a regras locais que diferiam de uma comunidade a outra. Tratava‐se de leis, costumes e atos de autoridade, tais como conselhos municipais, príncipes, bispos, barões, cavaleiros andantes, que, embora quase sempre estivessem sujeitos ao peso da influência da visão de mundo articulada pelo cristianismo, eram essencialmente de caráter local e/ou pessoal. O trabalho dos pós‐‐glosadores na elaboração do chamado jus commune, no continente, distinguiu‐se pelo esforço de tentar conciliar diferenças jurídicas presentes entre diversas localidades, comunidades, tipos de autoridade e grupos sociais. 
Nesse contexto, a ação dos grupos mais poderosos – príncipes territoriais aliados com cidades (burgueses) – deu‐se no sentido de prestigiar a elaboração de um direito unificado e unificante, que, a partir dos séculos XVII e XVIII, suplantou na prática o pluralismo jurídico dos séculos anteriores. Com isso, o direito medieval romanístico e secular sobrepujou outros direitos no continente. E, na Inglaterra, o direito do rei, produzido por seus juízes em Westminster, sufocou completamente o prestígio das cortes senhoriais (mano‐rial courts), tornando‐se, assim, o direito comum do país (the common law of the land). Os dois pilares jurídicos sobre os quais o direito unificado e unificante floresceu na Europa ocidental foram: (i) a filosofia do direito natural moderno (ou jus‐racionalismo), de caráter universalista; e (ii) o princípio cujusregio, eius religio. 
De fato, o jusracionalismo tornou‐se, de longe, a principal doutrina da filosofia política nos séculos XVII e XVIII. Os princípios dessa doutrina pregavam a existência de direitos naturais, que são os mesmos para todos os indivíduos. Tais direitos, ademais, eram considerados inatos em todos os indivíduos. Ao contrário do que afirmavam filósofos da antiguidade clássica, para os quais apenas alguns indivíduos podiam ser virtuosos, os filósofos do direito natural moderno afirmavam a igualdade de todos os indivíduos, fazendo desaparecer, no plano da ideologia, e, portanto, no âmbito do discurso que justificava a existência das instituições, as diferenças entre eles.
O esforço intelectual aí se deu no sentido de criar uma ideia completamente abstrata de indivíduo, mas que se projetasse em certas instituições jurídicas, tais como a propriedade individual e a liberdade individual de contratar. As diferenças entre identidades culturais, etárias, sexuais, étnicas, de classe, casta, nacionalidade etc. e suas consequências práticas foram completamente “apagadas” na doutrina filosófica e no discurso técnico especializado dos juristas. Mas, ao mesmo tempo, grotescas e incongruentes reminiscências de “diferenças” entre pessoas tomaram as formas de noções jurídicas hierarquizantes, mas ideologicamente maquiadas, tais como: “nacional” versus “estrangeiro”; e civilmente “capaz” (o homem branco e proprietário) versus “incapaz” (todos os outros, especialmente as mulheres, os negros, as crianças, os silvícolas, os trabalhadores, os sujeitos a enfermidades ou condições especiais, físicas ou mentais). Todas essas elaborações representaram, na prática, a consagração da família patriarcal e da propriedade (tipicamente imóvel) administrada pelo patriarca, geradora de uma renda que fosse o mais segura possível. 
Por sua vez, o princípio cujus regio, eius religio, embora houvesse sido invocado na Paz de Augsburgo (1555), somente gerou um consenso político mais significativo quase um século mais tarde, quando foi inscrito na Paz de Vestfália (1648). A tradução da frase latina é “quem tem a região tem a religião”. Seu significado prático estava em que o princípio passava a coibir intervenções, por parte de forças externas (o Sacro Imperador), em territórios comandados por príncipes que escolhessem, como fundamento ideológico das normas vigentes sob sua autoridade, um credo religioso distinto daquele professado pelos católicos. O princípio tornou‐se, assim, a pedra angular da soberania territorial, a autonomia externa, que passou a caracterizar a configuração institucional dos Estados modernos em suas relações recíprocas.
A formação do “monismo jurídico” ganhou apoio, também, do influente trabalho de Savigny, no século XIX. Este autor se pôs a braços com o desafio de elaborar ideias que dessem sustentação à defesa e à institucionalização de um direito único, um direito “nacional”, para a Alemanha da virada do século XVIII para o XIX. Esta era uma Alemanha ainda legatária de uma grande multiplicidade de jurisdições existentes sob o Sacro Império Romano‐Germânico. Entre as ideias elaboradas por Savigny, estava a referência à “consciência comum do povo”, que, ao ver do autor, era formada espontaneamente ao longo da história. Esta “consciência comum” foi considerada por Savigny como a fonte do direito. 
Porém, ao mesmo tempo, Savigny distinguiu entre o que ele chamou de “elemento político” do direito (a ligação entre direito e a vida do povo) e o seu “elemento técnico” (a “ciência do direito”, elaborada por juristas). Portanto, para Savigny, o acesso intelectual consciente ao direito e à sua organização normativa estaria com os juristas, não com o povo, nem com os representantes do povo nos parlamentos, que confeccionam as leis. Com isso, Savigny abriu caminho para que o direito da Alemanha passasse a corresponder a certas noções abstratas e unificantes, que foram destiladas como “conceitos jurídicos” por seus seguidores, tais como Friedrich Puchta, Bernard Windscheid e outros. Dessa “jurisprudência dos conceitos” (Begriffs‐jurisprudenz) derivou, ainda, a elaboração de uma “teoria geral do direito”, que deu mais energias ao impulso unificante das ideias e instituições jurídicas elaboradas e construídas entre os séculos XVII e XIX na Europa ocidental. 
Portanto, um direito de origem europeia e base “monista” – também identificada como uma orientação “centralista” e “estatista”, por oposição a conjuntos de normas locais, “descentralizados” e “não estatais” – tornou‐se hegemônico na Europa e foi daí exportado para várias partes do mundo, entre os séculos XVIII e XX. No século XVIII, o direito do common law inglês foi exportado para a América, onde o tratado de William Blackstone (Commentaries on the laws of England) tornou‐se a referência básica inicial para a elaboração do direito nas colônias da Nova Inglaterra e até mesmo do direito da geração dos revolucionários. No século XIX, as guerras napoleônicas e, em seguida, a onda de colonização da África e da Ásia foram os processos de propagação do direito unificante de base romanística, e também do common law inglês, da era vitoriana, para diversas regiões do mundo.
A tendência monista foi reforçada, ainda, pela elaboração, desde o século XVII, de um direito “internacional”. O conjunto de ideias que formou o campo doutrinário do Direito Internacional Público tratava, sem competição significativa de outros discursos especializados, das relações entre Estados territoriais soberanos, deixando de lado inúmeras outras relações (entre pessoas, organizações, comunidades, famílias, grupos religiosos, associações, cidades etc.). No século XIX, a elaboração de formas intelectuais para esse direito unificante passou arrogantemente a se conceber como um empreendimento benevolente e “civilizador” e seguiu as pegadas da construção das formas jurídicas do direito civil de orientação monista. Assim, Estado/indivíduo (ou sujeito de direito), tratado/contrato, soberania territorial/propriedade designam isomorfismos dos dois campos do direito: o civil e o internacional clássico, ambos de base romanista. O chamado Direito Internacional Privado foi elaborado também a partir do século XVII e complementava convenientemente o Direito Internacional Público, na medida em que organizava regras e princípios destinados a resolver, sem alterações de estruturas institucionais já definidas pelos demais campos doutrinários do sistema monista, problemas de escolha de jurisdições territoriais a que deveriam se submeter questões derivadas das relações transfronteiriças entre entidades não estatais (empresas, associações, indivíduos).
O monismo jurídico, derivado dos processos acima descritos, obviamente se estabeleceu à custa de ações radicalmente opressoras de grupos que preferiam outros conjuntos de regras e instituições, existentes nas diversas regiões do mundo. Na Europa ocidental, os outros direitos (costumes locais), distintos do direito estatal, foram praticamente suprimidos, subsistindo apenas em versões fracas e subalternas, em certos enclaves culturais, em regiões como a Catalunha. 
Em outras partes do mundo, sujeitas à colonização europeia, houve menos necessidade e interesse de destruir os costumes e instituições locais. Conforme explicita tamanha, “na maioria dos casos, não era necessário para os interesses coloniais, nem viável na prática, nem economicamente eficiente, estender o domínio por meio do direito a populações locais”. O interesse dos colonizadores era sobretudo extrativo. Isto favoreceu a presença, em várias partes do mundo, de “direitos” diferentes, existindo lado a lado, frequentemente com superposições parciais e diversos tipos de interação, ora mais, ora menos, conflituosa. A partir daí, passou a ser possível contrastar claramente o direito “estatal” metropolitano, de formação e orientação monista e caráter centralizador, e outros direitos, mais ligados à vida e às tradições das sociedades locais, submetidas ao jugo dos colonizadores. 
Com variações, o reconhecimentode pluralidades de ordens normativas referentes a “outros” direitos de natureza local e descentralizada também ocorreu por parte de potências colonizadoras de fora da Europa Ocidental. Este foi o caso dos “antigos impérios multinacionais”, tais como os impérios Otomano, Austro-húngaro, Russo e Chinês.
Em resumo, na Europa Ocidental, ao longo do tempo, diversas identidades foram efetivamente destruídas ou marginalizadas, frequentemente mediante ações violentas (guerras), concomitantemente com a afirmação de um direito de feição monista. De qualquer modo, a despeito da afirmação dos movimentos protestantes, às vezes radicalmente opostos aos católicos, havia ali o fundo cultural e ideológico comum do cristianismo. Nas Américas, as populações autóctones foram mortas, restringidas, per‐seguidas, marginalizadas e submetidas a processos de catequização e confinamento a reservas. No Brasil, a importação de escravos negros, desvinculados à força de suas comunidades na África, segregou esta massa de trabalhadores nas senzalas e, após a abolição, nas favelas. Como se sabe, algumas comunidades rurais de ex ‐escravos se formaram em regiões isoladas e adquiriram identidades específicas. Tais comunidades ficaram conhecidas genericamente como “quilombos”.
Em tudo isso, é perceptível um movimento em que um direito estatal, burocrático e centralista cresce e se estabelece definitivamente na Europa ocidental, em detrimento de outras ordens normativas que lá existiam, desde as que compunham o chamado folklaw, até os direitos das cidades, principados, corporações e outros. Em seguida, esse direito monista, oficial e centralista entra em contato com outras normatividades fora da Europa, causando o surgimento de situações variadas de pluralismo jurídico, em que diversos direitos de comunidades locais e descentralizadas passam a coexistir em múltiplas regiões com o direito centralista, de origem europeia. E a capacidade desse direito oficial e monista de excluir e subjugar permaneceu, ao longo de todo o processo, como uma constante.
10.3. A evolução do debate acadêmico: principais ideias e dificuldades conceituais
Após oferecer o quadro genérico, descritivo da ascensão do monismo e da subsequente formação do “pluralismo jurídico”, especialmente resultante da experiência da colonização – sobretudo, mas não exclusivamente, a colonização europeia da América, da África e da Ásia –, será importante indicar os delineamentos gerais da evolução do debate acadêmico sobre o tema. Nos parágrafos a seguir, serão indicados os principais conteúdos do processo de formação de argumentos relevantes acerca do “pluralismo jurídico” e serão apontados os principais desafios que os trabalhos analíticos e debates conceituais têm suscitado.
A presença simultânea de “direitos” distintos num mesmo ambiente passou a chamar a atenção de acadêmicos, especialmente a partir da formação e da evolução das ciências sociais, sobretudo a sociologia e a antropologia, no final do século XIX e inícios do século XX. Com efeito, os antropólogos no início do século XX foram capazes de convincentemente argumentar que “outras” sociedades, distintas da europeia e de seus padrões culturais, também tinham seus “direitos”.
O estudo seminal de Bronislaw Malinowski sobre o “direito” dos trobriandeses, publicado originalmente em 1926, tornou‐se uma referência clássica na literatura sobre pluralismo jurídico. Malinowski refutou teses como a de que os padrões de conduta dos selvagens responderiam a impulsos caracterizáveis como “desejos animalescos do pagão”, ou ainda “emoção desenfreada [e] excessos irrestritos”. Malinowski demonstrou, em contrário a tais teses, que muitos comportamentos dos trobriandeses resultavam de “um direito firme e uma tradição rigorosa”. Além disso, Malinowski derrubou argumentos de que, nas sociedades primitivas, há uma necessária dominação do indivíduo pela coletividade e demonstrou que existem, em tais sociedades, motivações individuais – e não imposições grupais – para agir. Com efeito, Malinowski verificou que existia entre os trobriandeses algo como um “direito civil” que era “muitíssimo refinado” (extremely well developed), com regras relacionadas predominantemente a interesses dos indivíduos, não sendo apenas ou exclusivamente o assunto de um grupo.
A percepção, trazida pela antropologia e pela sociologia, de que existem “direitos” ou ordens normativas comparáveis, mas não iguais, ao direito, estatal, centralizante, típico da construção político‐institucional das sociedades da Europa ocidental, evoluiu para se tornar o caminho do desenvolvimento de argumentos críticos em relação às concepções jurídicas da tradição monista. Isto ocorreu, de início, em especial por meio de estudos do direito em situações coloniais e pós‐coloniais. Assim, até os anos 1970, a expressão “pluralismo jurídico” referia‐se essencialmente ao reconhecimento ou à incorporação de direitos locais descentralizados por direitos estatais e metropolitanos: por exemplo, a incorporação dos direitos hindu e muçulmano pelo direito britânico na Índia, ou as relações de reconhecimento, superposição ou absorção do direito dos Kapauku pelo direito holandês na Nova Guiné.
A partir dos anos 1970 e 1980, contudo, houve uma evolução nos argumentos. Primeiro, as análises passaram a questionar situações de subordinação dos direitos locais ao direito, “estatal” ou “oficial”. Isto significava valorizar a percepção de que direitos locais e descentralizados muitas vezes são semiautônomos, e por isso não são necessariamente absorvidos, ou de algum modo contidos ou limitados, pelo direito estatal. Em segundo lugar, autores passaram a argumentar que a interação entre ordens normativas pode ser bidirecional, cada uma influenciando e modificando a outra ou outras, em um processo de mútua influência. Assim, não se encarava mais com estranheza a possibilidade de que as regras, princípios e instituições do “direito” de uma comunidade local na África ou na Ásia poderiam eficazmente influenciar o desenvolvimento de um direito “oficial”, metropolitano. Em terceiro lugar, pesquisadores passaram também a caracterizar situações de pluralismo de modo a admitir uma variedade muito ampla de direitos não oficiais ou não estatais. Consequentemente, passou a ser concebível a ocorrência de situações de pluralismo jurídico em contextos não coloniais e não rurais, mas sim plenamente urbanos, metropolitanos e ocidentais. Com isto, vários autores acabaram rejeitando completamente a ideia de que apenas o direito “estatal” deve ser considerado “direito”. 
A evolução desses argumentos teve uma inflexão importante na defesa, realizada por John Griffith, em seu influente artigo de 1986, da noção de “campo social semiautônomo”, elaborada nos anos 1970 pela antropóloga Sally Fala Moore. A ideia era que essa noção (campo social semiautônomo) seria uma alternativa às concepções derivadas da abordagem de Malinowski, que Moore considerava inadequada por ser excessivamente ampla, dificultando a distinção entre o direito de povos como os trobriandeses e o aspecto obrigacional de todos os outros tipos de relações existentes na vida em sociedade.
As discussões sobre o pluralismo jurídico logo animaram professores de direito mundo afora a empregar as novas ideias e percepções como meio de criticar a noção de que o conceito de direito corresponde a normas postas pelo Estado. Em outras palavras, os professores passaram a valer‐se das pesquisas e ideias do pluralismo jurídico para criticar concepções formalistas e “positivistas” de direito. Nos países de tradição anglo‐saxã, formulações juspositivistas derivadas da chamada “jurisprudência analítica” de John Austin e H. L. A. Hart foram objeto de crítica. Nos ambientes acadêmicos mais ligados à tradição do direito europeu continental (romano‐germânico), o alvo principal das críticas foram sobretudo as ideias de Hans Kelsen. Barzilai caracterizou com propriedade este aspecto da formação das ideias acadêmicas sobre pluralismo jurídico:
“O surgimento do pluralismo jurídico constituiuuma revolta [...] contra tentativas ocidentais, que – ao contrário do que fizeram o judaísmo rabínico (fundamentalmente até o século XVIII), a Shari’a islâmica e o budismo – procurou separar direito, política e religião. Além disso, foi uma revolta contra tentativas liberais de ‘purificar’ o direito de conteúdos políticos e de constrangimentos derivados da existência das classes sociais. O pluralismo jurídico foi uma revolta contra um projeto que havia resultado [no direito da] jurisprudência analítica positivista”.
Para Barzilai, o pensamento jurídico positivista foi o resultado de influências de vários autores, incluindo, entre os mais conhecidos, Austin, Hart e Kelsen. Seguindo esta tendência de crítica ao positivismo jurídico, no Brasil, onde a justificação teórica do direito oficial se fundamentava muito frequentemente no pensamento de Kelsen, o tema do pluralismo jurídico foi impulsionado por duas principais contribuições. O primeiro impulso adveio da tese de doutorado do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, defendida em 1973 na Universidade de Yale. Nessa contribuição inicial, Santos apoiou‐se em teorias da argumentação jurídica e em pressupostos derivados da sociologia marxista para pesquisar o discurso jurídico praticado em uma favela carioca, que ele denominou de Passarada. Para o autor, o discurso jurídico praticado na favela constituía um direito não oficial, reconhecido e prezado pela comunidade. Tratar‐se‐ia de um direito aberto, pouco formal, organizado com significativa participação da sociedade local. Esse “direito de Pasárgada” representaria, na visão do autor, uma alternativa de organização jurídica emancipatória diante do direito fechado, burocrático e opressor do Estado.
Ainda no Brasil, a crítica ao positivismo jurídico, trazida com o trabalho “pluralista” de Santos, acabou atraindo (e confluindo com) uma crítica derivada diretamente do marxismo, consubstanciada na obra do jurista Roberto Lyra Filho. Este autor entendia que o direito positivo (estatal) “é entortado pelos interesses classísticos”. Mediante uma argumentação reminiscente de ideias gramscianas, adotou uma visão da sociedade e do direito segundo a qual diversos “grupos em conflito [...] torna[m] precário e de legitimidade muito discutível o bloco dominante de normas, sobretudo porque as ‘subculturas’ engendram contrainstituições”. Lyra Filho considerava ultrapassadas as discussões que aceitavam a validade da contraposição entre direito natural e positivismo. Para ele, “[s]omente uma nova teoria realmente dialética evita a queda numa das pontas da antítese”. Na prática, isto se relacionava à proposta de promover “um ‘uso alternativo’ do direito positivo e estatal [...] [para] explorar contradições [desse direito] em proveito não da classe e grupos dominantes, mas dos espoliados e oprimidos”. Nesse sentido, defendeu que o direito deve ser informado pela ideia um tanto genérica de “humanismo dialético”. Subsequentemente, diversos trabalhos que procuram explicitamente seguir a confluência dos argumentos de Santos e Lyra Filho, e daí derivar frutos, escolheram o nome “Direito Achado na Rua” para designar a sua orientação27.
O segundo principal impulso da crítica pluralista ao positivismo no Brasil originou-se do trabalho de Antonio Carlos Wolkmer, destacando‐se a sua tese de doutorado sobre o tema, defendida no início da década de 1990, na Universidade Federal de Santa Catarina. Wolkmer também adota argumentos de feição gramsciana, defendendo que a ideia de pluralismo jurídico deve ser usada “como estratégia contra hegemônica no redimensionamento da teoria jurídica”.
Para Wolkmer, o pluralismo jurídico alinha‐se com o esforço de “repensar politicamente a capacidade de resistência e de articulação da sociedade civil”. Nesse sentido, a ideia de pluralismo jurídico, segundo este autor, deve contribuir para promover “uma cultura jurídica contra‐‐hegemônica, marcada pelo pluralismo comunitário‐participativo e pela legitimidade construída [...] mediante as práticas internalizadas por uma extensa gama de novos atores sociais”.
Wolkmer considera o pluralismo jurídico uma ferramenta adequada a um projeto de emancipação de grupos oprimidos na América Latina. Em suas palavras,
“[A] razão de ser de uma forma teórica e prática de Direito mais comprometida com nossa sociedade latino‐americana está na transgressão ao convencional instituído e injusto, na possibilidade de se revelar como recurso estratégico de resistência a diversas modalidades de colonialismos (acadêmico, cultural e institucional) e de contribuir, responsavelmente, para a construção criativa e empírica de uma sociedade mais comprometida com valores nascidos de práticas sociais emancipadoras”.
Como se vê, as elaborações sobre o pluralismo jurídico no Brasil são acentuadamente convergentes entre si. Contudo, assim como ocorreu no âmbito da literatura sobre pluralismo jurídico como um todo, alguns dos principais argumentos sobre o tema suscitaram críticas, às vezes oriundas de simpatizantes do ideal de emancipação realizada por meio de uma crítica ao monismo e ao positivismo.
De fato, enquanto crítica ao juspositivismo e a argumentos de filosofia do direito que podem oferecer fundamentos para a existência de instituições jurídicas administradas sob a orientação monista, o pluralismo jurídico permanece sujeito, ele mesmo, a críticas que não podem ser desprezadas. Uma primeira crítica decorre do fato de que “pluralismo jurídico” pode se referir a uma situação de fato (é o que se designa por social fact legal pluralism), ou, alternativamente, ao caráter normativo de argumentos favoráveis ao pluralismo (normative legal pluralism). No primeiro caso, a investigação empírica constata o fato de uma pluralidade de ordens normativas; no segundo, o pesquisador parte do pressuposto normativo de que a ausência da pluralidade é em si um mal. Neste último caso, a pluralidade de ordens normativas é tratada como um desiderato. O problema é que quase nunca é muito clara a separação entre os argumentos sobre pluralismo enquanto fato social e os argumentos normativos sobre o pluralismo jurídico. Como observou Twining, “há uma tendência na literatura de se escorregar do descritivo para o prescritivo”.
Uma segunda crítica, que se imbrica com a primeira, refere‐se ao fato de que os autores favoráveis ao pluralismo não chegam a propor um conceito claro do que entendem por “direito”, quando descartam a visão monista. Não há, na literatura, uma definição clara de “direito”, aceita uniformemente pelos defensores do pluralismo. Como determinar se uma dada conduta ou procedimento constitui parte de um direito? Afinal, a sustentação radical do pluralismo implica em que algo diferente do que está sendo afirmado como norma não pode ser invalidado. E, se nenhuma norma pode ser invalidada, qualquer norma é válida, inclusive uma que prescreva o contrário de outra, inicialmente considerada. Consequentemente, nenhuma norma é realmente obrigatória, isto é, nenhuma pode existir enquanto tal. A confusão gerada em grande parte deriva da imprecisão conceitual. Nesse sentido, Tamanaha registra:
“Apesar de seu aparente sucesso, a noção de pluralismo jurídico tem sido marcada por uma profunda confusão conceitual e muitas vezes por desentendimentos acalorados. [...] A questão ‘o que é o direito?’ [...] jamais foi resolvida [no âmbito da literatura], apesar do esforço por parte de teóricos do direito e de cientistas sociais”.
Uma terceira crítica diz respeito ao fato de que, na literatura sobre pluralismo jurídico, não há discussão suficiente sobre relações de poder, que ocorrem em muitas situações, até mesmo entre “novos sujeitos de direito” e no interior de grupos da sociedade civil que se proponham a resistir ao direito “oficial”. É neste sentido que Barzilai alerta: “[a]s pesquisas sobre o pluralismo jurídico têm mostrado a tendência de não prestar atenção ao [uso do] poder político”.
Dois exemplos de uso do poder opressor por parte de grupos da sociedade civil, dados por Barzilai, são: (i) feministasafro‐‐americanas têm, em vários casos, impedido que mulheres de seu grupo, espancadas por maridos ou companheiros, adotem uma identidade feminina mais convencional e recorram à polícia (o “direito oficial”) para superar sua situação de maus‐tratos, perpetuando assim a opressão de várias delas; (ii) em Israel, elites de comunidades locais de muçulmanos, incluindo os anciãos (Hammula) e juízes comunitários (Kadi), têm impedido que casos de adesão à prática de “assassinato por motivo de honra” (Katal al‐Sharaf ala’ila) sejam denunciados à polícia, por medo que isto acabe minando sua estrutura comunitária de poder.
Críticas comparáveis foram dirigidas a argumentos pluralistas, no contexto do debate brasileiro sobre o tema. Uma dessas críticas derivou de uma pesquisa empírica realizada por Junqueira e Rodrigues no Morro da Coroa, no Rio de Janeiro. Esses pesquisadores verificaram que, no Morro, ao lado da “comunidade” (a associação de moradores), traficantes de droga desempenhavam um papel crucial na determinação de normas locais, impondo sua vontade arbitrária em casos que variavam desde a conciliação de partes em conflitos de vizinhança até a castração de estupradores e a morte sumária de assaltantes. Como destacado pelos autores, “[n]a imposição da ‘ordem’, a boca de fumo aplica um código penal próprio, cujas penalidades variam da prisão domiciliar, expulsão temporária, impedimento de circulação em determinada área, tiro na mão, até, para os casos mais graves, a pena de morte”. A crítica de que tende a ocorrer uma romanização do pluralismo jurídico tal como tem sido desenvolvido na literatura brasileira também foi articulada por outros autores, com base em outros pressupostos.
Além disso, ao lado da crítica à ausência de discussões sobre relações de poder, a crítica à imprecisão conceitual também se aplica à literatura brasileira sobre o pluralismo jurídico. Conforme reconheceram Albernaz e Wolkmer, as várias definições dos fenômenos jurídicos desenvolvidas por autores pluralistas “sugerem que ainda não se tem uma concordância sobre o conceito de juridicidade” nessa literatura. Em outras palavras, consoante os mesmos autores, “os conceitos de que se dispõe até o momento conferem uma delimitação pouco precisa de onde cessa o direito e de onde começa o âmbito da vida social”.
As dificuldades apontadas, portanto, permanecem no âmago dos debates e constituem um convite ao aprofundamento das pesquisas.
10.4. A dimensão global do pluralismo jurídico
Além do surgimento de condições que deram origem ao pluralismo jurídico associado à colonização e à descolonização, como indicado no item 9.2, e além das ideias sobre o pluralismo que, nos aspectos ressaltados no item 9.3, puseram em xeque as concepções genéricas sobre o direito ligadas ao monismo, é preciso focalizar, também, tendências recentes que têm estimulado autores a recorrer à ideia de pluralismo para tratar do declínio de construções jurídicas do direito internacional clássico. A isso têm se somado discussões que abrangem a emergência e a intensificação das relações “transnacionais”, ou seja, transfronteiriças, tanto sociais (organizações não governamentais, movimentos sociais, redes etc.) quanto econômicos. Estes tópicos serão abordados a seguir.
Como sugerido no item 9.2, o direito internacional que se desenvolveu desde o século XVII até recentemente pode ser entendido como um desdobramento coerente do monismo jurídico, aplicado às relações internacionais. As construções intelectuais mais importantes relativas a esse direito podem ser descritas nos termos postos por Berman:
“Tratava‐se de um universo jurídico com dois princípios orientadores. Primeiro, entendia‐se que o direito era estabelecido apenas por atos de entidades oficiais, sob a autoridade do Estado. Segundo, o direito era visto como uma função exclusiva da soberania estatal”
Ora, a intensificação do comércio de longa distância e diversos outros meios de comunicação, inclusive sistemas de satélite, telefonia etc., tornou insustentável esse foco exclusivo no Estado, que era a marca da orientação monista. No lado econômico, a desregulamentação das contas de capital em diversos países do Norte global, também a partir dos anos 1970, deu mais liberdade a certos grupos privados para comprar e vender divisas e movimentar o capital internacionalmente, aumentando assim a vulnerabilidade cambial de várias economias de países em desenvolvimento. Isso tudo levou autores da Teoria das Relações Internacionais a reconhecer, a partir dos anos 1970, que uma série de relações transfronteiriças – eles se referiram à imagem metafórica de uma “tapeçaria de diversas relações” – se intensificaram e mudaram a realidade. Por isso, Berman dirá, em relação aos princípios já indicados: “ambos esses princípios soberanistas [i.e., presos à ideia de soberania] foram erodidos com o tempo”.
É importante registrar que os fatos acima descritos transformaram e intensificaram as relações humanas transnacionais em uma escala global. Tais relações cresceram e passaram a mudar a realidade sem que o direito internacional ou interno, ambos de feição monista, pudessem, dadas as suas limitações, conferir à realidade emergente um adequado tratamento intelectual e analítico. Tanto assim que o conceito de “regime internacional”, designando “conjuntos de princípios, normas, regras, implícitos ou explícitos, e procedimentos de decisão”, emergiu no estudo das relações internacionais e, indo além das antigas categorias do direito internacional “soberanista”, passou a dar muito mais flexibilidade a formulações sobre as realidades locais, internacional e global em transformação.
Não obstante, as agências de cooperação internacional, a partir dos anos 1980, passaram a propagar um receituário de reformas econômicas que ficou conhecido como “Consenso de Washington”. Em consequência, a cooperação econômica internacional passou a insistir intensamente na adoção de tais reformas nos diversos países que procuravam assistência multilateral. Porém, tendo constatado dificuldades de implementar tais reformas em muitos países, as agências voltaram‐se, nos anos 1990, para as chamadas “condicionalidades relacionadas à governança”, que enfatizavam reformas institucionais, inclusive reformas das instituições jurídicas em muitos países do mundo. Estas condicionalidades relacionadas à governança, em especial, partiam do pressuposto de que as “boas” políticas econômicas somente seriam adequadamente implementadas se um conjunto de reformas (em áreas como as leis de falências, leis trabalhistas, direito dos contratos, direitos previdenciários, propriedade intelectual, direito concorrencial etc.) conformassem o arcabouço jurídico dos países destinatários de financiamentos internacionais ao modelo recomendado pelas agências. Tratava‐se do que o economista Ha‐Joon Chang chamou de “instituições de padrão global” (global standard institutions), que eram, em realidade, pretendidos transplantes de instituições e concepções jurídicas anglo‐americanas. Um rótulo genérico para a designação de tais reformas jurídicas, adotado especialmente pelo Banco Mundial, foi a expressão rule of law.
Todo esse processo de propagação, via cooperação econômica internacional, de instituições e ideias jurídicas, encaradas como uma “dotação jurídica” (legal endowment) modelar, necessária ao bom desempenho econômico de qualquer país no mundo, constituiu mais uma etapa de afirmação de concepções do monismo jurídico, em si mesmo inconciliável com a pluralidade de diferentes “direitos” mundo afora.
Mas a obsolescência das categorias do direito de orientação monista atingia as instituições desse direito como um todo. Faria, em seu livro sobre Direito e Conjuntura, procurou retratar aspectos dessa crise do direito. Por sua vez, Castro (2006) destacou três aspectos relevantes e recentes de tal crise. Um primeiro aspecto, referente à influência de entidades como a Organização Mundial do Comércio (OMC) e outras, é o da “generalização de sistemas constitucionais marcados por mecanismos diversificadose parcialmente internacionalizados [...] de ‘freios e contrapesos’, que articulam pluralidades variadas de centros de autoridades”. Um segundo aspecto refere‐se a um “processo de acentuado ‘esvaziamento’ de conteúdos estáveis (ou reconhecíveis por meio de referências ao passado tradicional ou histórico) para a ‘propriedade’ e para a categoria ‘direito’ subjetivo”. Finalmente, um terceiro aspecto destaca o papel da “propagação das tecnologias da informação como itens de consumo de massa” e seus efeitos sobre a formação de múltiplas coalizões transnacionalizadas de grupos de interesses “com orientações que disputam por meio da participação política, eleitoral e não eleitoral, a prevalência de estratégias de investimento e acumulação, de um lado, e de práticas de consumo com significado cultural, religioso, moral, de outro”.
Como apontado acima com relação ao terceiro aspecto da crise do direito, no novo contexto, acentuou‐se o papel político de “identidades” as mais diversas (abraçadas por movimentos ambientalistas, feministas, de direitos humanos, incluindo os “direitos” de indígenas, minorias étnicas, sexuais, religiosas), várias delas com articulações políticas transnacionais e até globais. Diante das novas realidades, vários juristas passaram a discutir o que chamaram de “fragmentação” do direito internacional. Outros, alarmados com a perda da unidade e coerência das categorias jurídicas diante dos novos fatos, passaram a promover um esforço de “constitucionalizar” o direito internacional. Finalmente, ainda outros juristas consideram que o “pluralismo jurídico” oferece um conjunto de debates útil para a construção de novas categorias jurídicas, que deem conta das novas realidades, em que as relações globais e locais se interpenetram.
Ao se referir à visão pluralista do direito internacional, Koskenniemi indica a possibilidade (que ele rejeita) de que regimes internacionais acabem substituindo Estados. Berman, a seu turno, defende uma visão pluralista com base em uma “teoria das normas sociais”. Esta possibilidade, segundo o autor, “tem o benefício de teorizar comunidades transnacionais mais amplas baseadas na persuasão retórica de longo prazo, no lugar das interações face a face”.
Mas a verdade é que o debate está em aberto. Evidentemente, é impossível saber se alguma das três principais propostas de reforma do direito internacional (fragmentação, constitucionalismo, pluralismo) prevalecerá, ou se surgirão ainda outras propostas. Igualmente, é impossível saber se alguma “principal” visão jurídica sobre o mundo das relações locais e globais em interação, que contemple preocupações de defensores do “pluralismo jurídico”, tornar‐se‐á preponderante em algum momento no futuro.
10.5. Observações finais
Em seu conhecido e instigante ensaio sobre a construção ou compreensão dos fatos da realidade local, o antropólogo Clifford Geertz explora o que ele chama de “sensibilidades jurídicas” de três culturas distintas: a islâmica (haqq); a índica (dhar‐ma); e a malaia (adat). Estas maneiras de perceber e organizar a consciência sobre o que aparece como local, conforme demonstra Geertz, são diferentes manifestações do que chamamos “direito”. E, para Geertz, o direito é em si mesmo “um modo característico de imaginar o real”, mas, ao mesmo tempo, remete a diferentes concepções sobre o que é considerado verdadeiro, obrigatório, válido, meritório, consensual, moral, e assim por diante.
O ensaio de Geertz, como tantos outros estudos que vêm sendo realizados por cientistas sociais e juristas há cerca de um século, parece indicar que não se pode ignorar o apelo que as ideias sobre o “pluralismo jurídico” lançam para os que se interessam pelo aprimoramento do direito e das instituições jurídicas. Hoje, a literatura sobre pluralismo jurídico é muito diversa e abarca, além das formulações apontadas, outras que pretendem combater a predominância de instituições forjadas sob o monismo. De fato, como sublinha Tamanaha, “[a] literatura que invoca a noção de pluralismo jurídico cobre um amplo espectro [de referenciais], desde o pós‐modernismo até os direitos humanos, as abordagens feministas ao direito costumeiro, o comércio internacional e muito mais”. Além disso, uma investigação filosófica sobre a diversidade no direito e nas instituições poderia ainda encontrar em Aristóteles certamente o primeiro pensador a defender uma visão pluralista da política.
De qualquer modo, no debate atual, não deixa de chamar atenção o fato de que, em sua onda mais recente, a insistência sobre o “monismo jurídico” gravitou em torno de normas, concepções e instituições que estruturam juridicamente economias e seus meios de governança. Talvez esse setor guarde uma dimensão estratégica especial no conjunto das muitas relações que hoje se entrecruzam e se misturam, ao redor do mundo, para resultar nas realidades locais que fazem as pessoas mais, ou menos, felizes. E talvez por isso, economistas e juristas, tais como Chang, Rodrik e Unger, venham insistindo na necessidade de se reinventar ideais e práticas (o que inclui a reinvenção da linguagem jurídica), na direção de um pluralismo institucional.
Sobre isso, vale a pena observar que discussões sobre “sistemas não estatais de justiça” e seu papel enquanto parte das engrenagens que formam os meios de governança da economia têm começado a interessar autores e organizações da área da cooperação internacional. Agora, declina a tendência de se considerar completamente anômalas, para fins de organização da governança de interesse da cooperação internacional, iniciativas como a adotada na Bolívia em 2009, em que um dispositivo constitucional assegurou às comunidades rurais tradicionais (naciones y pueblos indígena originario campesinos) o direito de organizar a sua própria justiça, para aplicar em seus territórios os preceitos emanados de sua cultura em matéria civil ou criminal. O mesmo pode ser dito sobre propostas como a discutida na África do Sul, de conferir um papel relevante a cortes de justiça tradicionais, o que potencialmente afetaria a maneira como os direitos tradicionais de cerca de 20 milhões de habitantes de regiões rurais naquele país organizam suas vidas e sua economia.
Sejam quais forem as reformas de ideias e instituições jurídicas que as diversas sociedades no mundo adotem, as discussões acadêmicas sobre o pluralismo jurídico, ao que parece, continuarão no futuro previsível, em sua ampla diversidade, a valer como uma fonte de inspiração para quem busca inovar sem destruir diferenças nos modos de se perceber o mundo e interagir com ele, preservando, ao mesmo tempo, a pluralidade de maneiras de se organizar e dar significado à vida em sociedade.

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