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SAM H A R R I S Carta a uma nação cristã Tradução Isa Mara Lando Prefácio Richard Dawkins Is reimpressão COMPANHIA DAS LETRAS Para minha esposa Sumário Prefácio — Richard Dawkins, 9 Nota ao leitor, 13 Carta a uma nação cristã, 19 Dez livros que recomendo, 87 Notas, 89 Prefácio Richard Dawkins Sam Harris não é amigo de divagações sem rumo. Ele es- (rcve diretamente para o seu leitor cristão, chamando-o de "você", e lhe dá a honra de levar a sério as crenças que "você" defende:"[...] se um de nós está certo, o outro está errado [...] < ;<>m o decorrer do tempo, um dos dois lados vai realmente vencer essa discussão, e o outro lado realmente sairá derrotado". Mas você não precisa (como posso atestar pessoalmente) se encaixar no perfil desse "você" para desfrutar este maravilhoso livrinho. Cada palavra sai zunindo como uma elegante flecha, desferida de uma corda tensionada ao máximo, e voa veloz, traçando um gracioso arco e atingindo o alvo bem no centro, para grande satisfação do leitor. Se você faz parte do alvo, desafio-o a ler este livro. Será iim teste saudável para a sua fé. Se você conseguir sobreviver .1 barragem da argumentação de Sam Harris, poderá enfrentar o mundo inteiro com equanimidade. Mas perdoe-me se duvido: Harris nunca erra o alvo, nem em uma única frase, e é por isso que este livro tão breve tem um poder devastador tão desproporcional. Se você já compartilha das dúvidas de Harris, e minhas, acerca da fé religiosa e não faz parte desse alvo, este livro lhe dará armas poderosas para argumentar contra o outro lado. Ou talvez você seja cristão, mas não faça parte do alvo. Este livro reconhece que existem cristãos que adotam, segundo eles próprios crêem, uma visão mais nuan- çada:"[...] os cristãos liberais e moderados nem sempre vão reconhecer a si mesmos nesse cristão' a quem me dirijo. Mas com certeza reconhecerão muitos de seus vizinhos — e mais de 150 milhões de americanos". E este é o ponto principal. Foi a ameaça desses 150 milhões que motivou este livro. Se as crenças religiosas que você adota são tão vagas e nebulosas que até as flechadas mais certeiras ricocheteiam sem ser notadas, Harris não está escrevendo diretamente para você. Mesmo assim, você deveria se preocupar com essa situação de emergência que tanto preocupa a ele — e também a mim. Enquanto eu, como educador científico, fico desalentado ao constatar que 50% da população americana acredita que o mundo tem 6 mil anos de idade (o equivalente a acreditar que a distância entre Nova York e San Francisco é menor que um campo de crí- quete), Sam Harris se preocupa com outras crenças desses mesmos 50%: Portanto, não é exagero dizer que, se Londres, Sydney ou Nova York de repente virassem uma grande bola de fogo, uma porcentagem significativa da população americana veria um lado auspicioso na nuvem em forma de cogumelo que se seguiria. Para essas pessoas, seria o sinal de que a melhor coisa que jamais vai acontecer no mundo está prestes a acontecer: a volta de Jesus Cristo. Deveria ser óbvio e evidente que crenças desse tipo pouco ajudam a humanidade a criar para si mesma um futuro duradouro — seja na esfera social, económica, ambiental ou geopolítica. Imagine as consequências se algum componente significativo do governo americano realmente acreditasse que o mundo está prestes a acabar, e que o fim do mun- do será glorioso. O fato de que quase a metade da população americana acredita nisso, puramente com base em um dogma religioso, deve ser considerado uma emergência moral e intelectual. A nação cristã para quem o livro foi originalmente escrito é, naturalmente, os Estados Unidos. Mas seria descaso e loucura se descartássemos a questão como se fosse apenas um problema americano. Os Estados Unidos ao menos são protegidos por uma esclarecida separação, colocada por Jefferson, entre Igreja e Estado. Já na Grã-Bretanha a religião faz parte, historicamente, do nosso establishment oficial; neste momento a liderança política do nosso país, a mais piedosa desde Gladstone, está decidida a apoiar as "escolas religiosas". E não são apenas as escolas cristãs tradicionais, note-se, pois nosso governo, açulado por um herdeiro ao trono que deseja ser conhecido como "Defensor da Fé", tem simpatia ati- va pelas outras "comunidades de fé" que vão balindo "nós também", ansiosas para obter uma doutrinação religiosa para seus filhos subsidiada pelo Estado. Seria possível conceber uma fórmula educacional mais capaz de gerar dissensão e discórdia? E, o mais importante, a única superpotência mundial da atualidade está perto de ser dominada por eleitores que acreditam que o universo inteiro começou depois da domesticação do cão. Acreditam também que serão pessoalmente "ar- rebatados" para as alturas celestiais ainda durante seu tempo de vida, fato que será seguido por um Armagedom muito bem-vindo como arauto do Segundo Advento de Cristo. Mesmo aqui do outro lado do Atlântico, a expressão de Sam Harris, "emergência moral e intelectual", já começa a parecer até moderada. Comecei dizendo que Sam Harris não é amigo de divagações sem rumo. Um dos seus argumentos é que nenhum de nós pode se dar a esse luxo. Carta a uma nação cristã vai perturbar você. Seja para incentivá-lo a uma ação defensiva ou ofensiva, este livro com certeza vai exercer uma mudança em você, de alguma maneira. Leia, nem que seja a última coisa que vá fazer na vida. E com a esperança de que não seja a última. Nota ao leitor Desde a publicação do meu primeiro livro, The end of faith: Religion, terror, and the future of reason [O fim da fé: religião, terror e o futuro da razão], milhares de pessoas já me escreveram para dizer que estou errado em não acreditar em Deus. As mensagens mais hostis vêm de cristãos. É uma ironia, pois os cristãos em geral imaginam que nenhuma religião transmite tão bem como a sua as virtudes do amor e do perdão. A verdade é que muitos que afirmam ter sido transformados pelo amor de Cristo são intolerantes à crítica — de uma intolerância profunda, até assassina. Podemos atribuir isso à natureza humana, mas é claro que tal ódio recebe considerável apoio da Bíblia. E como eu sei disso? Entre os meus correspondentes, os mais mentalmente perturbados sempre citam capítulos e versículos bíblicos. Embora se destine a pessoas de todas as religiões, este livro foi escrito sob a forma de uma carta aos cristãos dos Estados Unidos. Nele, respondo a muitos dos argumentos que os cristãos conservadores apresentam em defesa de suas crenças religiosas. Assim, o "cristão" a quem me dirijo ao longo do texto é um cristão em um sentido limitado da palavra. Uma pessoa assim acredita, pelo menos, que a Bíblia é a palavra de Deus, escrita por inspiração divina, e que apenas os que acreditam na divindade de Jesus Cristo terão a salvação depois da morte. Dezenas de pesquisas de opinião, realizadas de maneira científica, sugerem que mais da metade da população americana acredita nesses postulados.1 É claro que essas crenças metafísicas não se limitam a nenhuma nacionalidade e a nenhuma denominação especial do cristianis- mo. Os cristãos conservadores de todos os países e de todas as seitas — católicos, protestantes de linhas majoritárias, evangélicos, batistas, pentecostais, testemunhas-de-jeová e assim por diante — estão todos igualmente implicados na minha argumentação. Embora nenhum outro país desenvolvido se iguale aos Estados Unidos em termos de religiosidade, hoje todos os países precisam conviver com as consequências de tudo em que meus compatriotas americanos acreditam. Como é bem sabido, atualmente as crenças dos cristãos conservadores exercem uma influência extraordinária sobre o discurso público neste país — em nossos tribunais, nossas escolas e em todas as esferas do governo. Se o propósito mais amplo do meu trabalho é dar munição aos secularistas de todas as sociedades contra seusopositores, cada vez mais fervorosos, em Carta a uma nação cristã me propus especificamente a demolir as pretensões intelectuais e morais do cristianismo em suas formas mais ardorosas. Assim, os cristãos liberais e moderados nem sempre vão reconhecer a si mesmos nesse "cristão" a quem me dirijo. Mas com certeza reconhecerão muitos de seus vizinhos — e mais de 150 milhões de americanos. Não tenho dúvida de que muitos cristãos que vivem fora dos Estados Unidos se sentirão tão perturbados como eu por essas bizarras convicções da direita cristã. É minha esperança, porém, que eles também comecem a perceber que o respeito que concedem às crenças religiosas em geral acaba por dar abrigo a extremistas de todas as religiões. Embora a maioria dos crentes não arremesse aviões contra edifícios, nem organize sua vida com base nas profecias apocalípticas, poucos questionam a legitimidade de criar e educar um filho de forma que ele acredite que é cristão, muçulmano ou judeu. Assim, até as religiões mais progressistas dão seu apoio táti- co para as divisões religiosas do nosso mundo. Contudo, em (larta a uma nação cristã me dirijo à cristandade em seu aspecto mais desagregador, destrutivo e retrógrado. Nesse aspec- to, tanto liberais e moderados como não-crentes podem reconhecer uma causa em comum. Segundo uma pesquisa recente da Gallup, apenas 12% dos americanos acreditam que a vida na Terra evoluiu através de um processo natural, sem a interferência de uma divindade. Para 31%, a evolução foi "guiada por Deus".2 Se a nossa visão do mundo fosse submetida a um plebiscito, os conceitos de "design inteligente" derrotariam a ciência da biologia por quase três votos a um. E isso é perturbador, pois a natureza não apresenta nenhuma prova convincente da existência de um "designer inteligente" e apresenta incontáveis exemplos de "design não-inteligente". Mas a atual polémica sobre o chamado "design inteligente" não deve nos impedir de perceber as verdadeiras dimensões da confusão e ignorância dos americanos religiosos no alvorecer do século xxi. A mesma pesquisa da Gallup revelou que 53% dos americanos são, na verdade, criacionistas. Isso significa que, apesar de um século inteiro de descobertas científicas que atestam como é antiga a vida na Terra, e mais antigo ainda o nosso planeta, mais da metade da população americana acredita que o cosmos inteiro foi criado há 6 mil anos. Diga-se de passagem que mil anos antes disso os sumérios já tinham inventado a cola. Os que têm o poder de eleger presidentes, deputados e senadores — e muitos dos que são eleitos — acreditam que os dinossauros sobreviveram aos pares na arca de Noé, que a luz de galáxias distantes foi criada a caminho da Terra e que os primeiros membros da nossa espécie foram modelados a partir do barro e do hálito divino, em um jardim com uma cobra falante, pela mão de um Deus invisível. Entre os países desenvolvidos, os Estados Unidos estão sozinhos ao adotar essas convicções. De fato, tenho a dolorosa consciência de que meu país hoje parece, como em nenhum outro momento da sua história, um gigante belicoso, desengonçado e mentalmente obtuso. Qualquer pessoa que se preocupe com o destino da civilização faria bem em reconhecer que a combinação de um grande poder com uma grande estupidez é simplesmente aterrorizante, até para os amigos. A verdade, porém, é que muitos de meus compatriotas talvez não se preocupem com o destino da civilização. Nada menos que 44% da população americana está convencida de que Jesus vai voltar para julgar os vivos e os mortos, em algum momento dos próximos cinquenta anos. E, segundo a interpretação mais comum da profecia bíblica, Jesus só vai voltar depois que as coisas derem errado — terrivelmente errado — aqui na Terra. Portanto, não é exagero dizer que se Londres, Sydney ou Nova York de repente virassem uma grande bola de fogo, uma porcentagem significativa da população americana veria um lado auspicioso na nuvem em forma de cogumelo que se seguiria. Para essas pessoas, seria o sinal de que a melhor coisa que jamais vai acontecer no mundo está prestes a acontecer: a volta de Jesus Cristo. Deveria ser óbvio e evidente que crenças desse tipo pouco ajudam a humanidade a criar para si mesma um futuro duradouro — seja na esfera social, económica, ambiental ou geopolítica. Imagine as consequências se algum componente significativo do governo americano realmente acreditasse que o mundo está prestes a acabar e que o fim do mundo será glorioso. O fato de que quase a metade da população americana acredita nisso, puramente com base em um dogma religioso, deve ser considerado uma emergência moral e intelectual. O livro que você agora vai ler é minha resposta a essa situação de emergência. Meu sincero desejo é que para você ele seja útil. Sam Harris 19 de novembro de 2006 Nova York Carta a uma nação cristã Você acredita que a Bíblia é a palavra de Deus, que Jesus é o filho de Deus e que apenas aqueles que têm fé em Jesus alcançarão a salvação após a morte. Como cristão, você acredita nessas afirmações não porque elas o fazem sentir-se bem, mas porque crê que são verdadeiras. Antes de apontar alguns problemas que essas crenças apresentam, eu gostaria de reconhecer que há muitos pontos em que concordo com você. Nós concordamos, por exemplo, que se um de nós es- tá certo, o outro está errado. Ou a Bíblia é a palavra de Deus, ou não é. Ou Jesus oferece à humanidade o único verdadeiro caminho para a salvação (João 14,6), ou não oferece. Concordamos que ser um bom cristão é acreditar que todas as ou- I i as religiões estão erradas, e profundamente erradas. Se o cris- i ianismo está correto, e eu persistir na minha descrença, devo esperar que um dia irei sofrer os tormentos do inferno. Pior .linda, já convenci outras pessoas, muitas delas próximas a mim, a rejeitar a própria idéia da existência de Deus. Elas também irão padecer no "fogo eterno" (Mateus 25,41). Se a doutrina básica do cristianismo está correta, então desperdicei a minha vida da pior maneira que se possa conceber. Eu reconheço isso, sem restrição alguma. O fato de que a minha rejeição do cristianismo, pública e contínua, não me preocupa nem um pouco já demonstra o quanto considero inadequadas as suas razões para ser cristão. É claro que há cristãos que não concordam nem comigo, nem com você. Há cristãos que vêem outras religiões como caminhos igualmente válidos para a salvação. Há cristãos que não têm medo do inferno e que não acreditam na ressurreição física de Jesus. Esses cristãos costumam se definir como "religiosos liberais" ou "religiosos moderados". Do ponto de vista deles, tanto você como eu não compreendemos corretamente o que significa ser uma pessoa de fé. Existe, pelo que eles nos garantem, um vasto e belo território entre o ateísmo e o fundamentalismo religioso que muitas gerações de cristãos ponderados já exploraram discretamente. Segundo os liberais e os moderados, a fé se baseia não só no mistério e no significado, mas também na comunidade e no amor. As pessoas elaboram a religião a partir de todo o tecido de suas vidas, e não apenas de suas crenças. Já escrevi em outros textos sobre os problemas que vejo no liberalismo religioso e na moderação religiosa. Aqui só precisamos observar que o problema é mais simples e, ao mesmo tempo, mais urgente do que os liberais e moderados costumam reconhecer. Ou a Bíblia é apenas um livro comum, escrito por mortais, ou não é. Ou Cristo era divino, ou não era. Se a Bíblia é um livro comum, e Cristo era um homem ionium, então a doutrina básica do cristianismo é falsa. Se a Uíblia é um livro comum, e Cristo era um homem comum, então a história da teologia cristã é a história de homens es- ludiosos dissecando uma ilusão coletiva. E se os princípios básicos do cristianismo são verdadeiros, então há surpresas extremamente desagradáveis à espera de descrentes como cu. Isso você compreende.Pelo menos a metade da popula- c,.io americana compreende. Assim, sejamos honestos: com 0 decorrer do tempo, um dos dois lados vai realmente venccr essa discussão, e o outro lado realmente sairá derrotado. Pense nisto: cada muçulmano devoto tem as mesmas razoes para ser muçulmano que você tem para ser cristão. E, no entanto, você não acha essas razões convincentes. O Corão declara repetidas vezes ser a palavra perfeita do criador do universo. Os muçulmanos acreditam nisso tão piamente quanto você acredita na definição da Bíblia sobre ela própria. I lá uma vasta literatura relatando a vida de Maomé que, do ponto de vista do islã, prova que ele foi o mais recente dos profetas de Deus. Maomé também garantiu aos seus seguidores que Jesus nãotra divino (Corão 5,71-75; 19,30-38), e <|uc qualquer pessoa que pense diferente passará a eternidade no inferno. Os muçulmanos estão certos de que a opinião < le Maomé a respeito desse assunto, assim como de todos os outros, é infalível. E por que você não perde o sono pensando se deve ou 11.io se converter ao islamismo? Você é capaz de provar que Alá não é o único e verdadeiro Deus? Você é capaz de provar que o arcanjo Gabriel não visitou Maomé em sua caverna? Claro que não. Mas você não precisa provar nada disso para rejeitar as crenças muçulmanas, considerando-as absurdas. Recai sobre os muçulmanos o ónus da prova de que suas crenças acerca de Deus e de Maomé são válidas. E até agora eles não fizeram isso. Eles não podem fazer isso. As afirmações feitas por eles acerca da realidade simplesmente são impossíveis de ser comprovadas. E isso é perfeitamente claro e óbvio para qualquer um que não tenha se anestesiado com o dogma do islã. A verdade é que você sabe exatamente como é ser ateu, em relação às crenças dos muçulmanos. Pois não é óbvio que os muçulmanos estão enganando a si mesmos? Não é óbvio que qualquer um que considere o Corão a palavra perfeita do criador do universo não leu o livro de maneira crítica? Não é óbvio que a doutrina do islã representa uma barreira praticamente perfeita para a investigação honesta? Sim, tudo isso é óbvio. Compreenda, então, que a maneira como você vê o islamismo é exatamente a mesma como os muçulmanos devotos vêem o cristianismo. E é dessa maneira que eu vejo todas as religiões. A SABEDORIA DA BÍBLIA Você acredita que o cristianismo é uma fonte inigualável de bondade humana. Você acredita que Jesus ensinou as virtudes do amor, da compaixão e do altruísmo melhor do que qualquer outro mestre que já viveu. Você acredita que a Bíblia é o livro mais profundo jamais escrito, e que seu conteúdo suportou tão bem o teste do tempo que só pode ter sido escrito por inspiração divina. Todas essas crenças são falsas. As questões morais são questões de felicidade e sofrimen- lo. É por isso que eu e você não temos obrigações morais em relação às pedras. Até onde nossas ações podem afetar a experiência de outras criaturas, de maneira positiva ou nega- i iva, as questões de moral se aplicam. A idéia de que a Bíblia é o guia perfeito para a moralidade é simplesmente espantosa, em vista do conteúdo do livro. Não há dúvida cie que o conselho de Deus para os pais é direto e claro: sempre que os filhos saem da linha, devemos bater neles com uma vara (Provérbios 13,24; 20,30; e 23,13-14). Se eles tiverem a pou- ca-vergonha de nos responder com insolência, devemos malá-los (Êxodo 21,15,Levítico 20,9, Deuteronômio 21,18-21, Marcos 7, 9-13, Mateus 15, 4-7). Também devemos apedrejar pessoas até a morte por heresia, adultério, homossexualismo, por trabalhar no sábado, adorar imagens, praticar fei- l içaria e mais uma ampla variedade de crimes imaginários, bis aqui apenas um exemplo da sabedoria eterna de Deus: Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do teu amor, ou teu amigo que amas como à tua própria alma te incitar em segredo, dizendo: "Vamos e sirvamos a outros deuses" [...] não concordarás com ele, nem o ouvirás; não o olharás com piedade, não o pouparás, nem o esconderás, mas, certamente, o matarás. A tua mão será a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo. Apedrejá-lo-á até que morra, pois te procurou apartar do SENHOR, teu Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão [...1. Quando em alguma das tuas cidades que o SENHOR, teu Deus, te dá, para ali habitares, ouvires dizer que homens malignos saíram do meio de ti e incitaram os moradores da sua cidade, dizendo: "Vamos e sirvamos a outros deuses", que não conheceste, então, inquirirás, investigarás e, com diligência, perguntarás; e eis que, se for verdade e certo que tal abominação se cometeu no meio de ti, então, certamente, ferirás a fio de espada os moradores daquela cidade, destruindo-a completamente e tudo o que nela houver, até os animais. Deuteronômio 13, 6, 8-15 Muitos cristãos acreditam que Jesus acabou com toda essa barbárie, nos termos mais claros imagináveis, e pregou uma doutrina de puro amor e tolerância. Mas não foi assim. Em vários pontos do Novo Testamento se pode ler que Jesus confirmou integralmente a lei do Velho Testamento. Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. Mateus 5,18-20 Os apóstolos repetiram várias vezes esse tema (por exemplo, veja 2 Timóteo 3,16-17). É verdade, claro, que Jesus disse coisas profundas sobre o amor, a caridade e o perdão. A Regra de Ouro1 é realmente um preceito moral maravilho- so. Mas numerosos mestres já deram essa mesma orientação séculos antes de Jesus (Zoroastro, Buda, Confúcio, Epicteto...), e incontáveis escrituras discutem a importância do amor que transcende o próprio eu de maneira mais articulada do que .1 Bíblia, sem serem maculadas pelas obscenas celebrações de violência que encontramos em abundância tanto no Velho como no Novo Testamento. Se você acha que o cristianismo é .1 expressão mais direta e pura de amor e compaixão que o mundo já viu, é porque não conhece bem as outras religiões. Veja, por exemplo, o jainismo. Essa religião prega a dou- l ri na da absoluta não-violência. É verdade que os jainistas acreditam em muitas coisas improváveis acerca do universo; mas nao do tipo de coisas que acenderam as fogueiras da Inquisição. Você provavelmente pensa que a Inquisição foi uma perverso do "verdadeiro" espírito do cristianismo. Talvez tenha si- (lo. O problema, porém, é que os ensinamentos da Bíblia são Ião confusos e contraditórios que foi possível para os cris- 1 Regra de Ouro: versículo do Sermão da Montanha (Mateus 7,12): "Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os Profetas". Ao mencionar a lei e os profetas, Jesus se refere ao preceito já citado no Velho Testamento: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico 19,18). (N. T.) l.ios queimar alegremente os heréticos nas fogueiras, duran- le cinco longos séculos. Inclusive foi possível para os mais venerados patriarcas da Igreja, como santo Agostinho e santo lómás de Aquino, concluir que os heréticos deviam ser tor- 111 rados (santo Agostinho)3 ou mortos logo de uma vez (santo lómás de Aquino).4 Martinho Lutero e João Calvino defendiam o assassinato em massa de heréticos, apóstatas, judeus i feiticeiras.5 Naturalmente, você é livre para interpretar a Bí- !>lia de outra maneira — mas não é espantoso que você tenha conseguido discernir os verdadeiros ensinamentos do cris- l ianismo, enquanto os mais influentes pensadoresna história «l.i religião cristã falharam nesse ponto? É claro que muitos < i islãos acreditam que uma pessoa inofensiva como Martin Luther King Jr. é o melhor exemplo da religião cristã. Mas isso apresenta um sério problema, pois a doutrina do jainis- mo é, objetivamente, uma orientação melhor do que a doutrina do cristianismo para quem deseja ser como Martin Luther King Jr. Não há dúvida de que King se considerava um cristão devoto, mas ele assumiu seu compromisso com a não- violência basicamente a partir dos escritos de Mohandas K. Gandhi. Em 1959, King até viajou para a índia a fim de aprender os princípios do protesto social não-violento diretamen- te com os discípulos de Gandhi. E com quem Gandhi, um hin- duísta, aprendeu a doutrina da não-violência? Com os jainistas. Se você acredita que Jesus ensinou apenas a Regra de Ouro e o amor ao próximo, deve reler o Novo Testamento. Preste atenção especial à moralidade que ficará em evidência quando Jesus voltar à terra, deixando um rastro de nuvens de glória: se, de fato, é justo para com Deus que ele dê em paga tribulação aos que vos atribulam [...] quando do céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do seu poder, em chama de fogo, tomando vingança contra os que não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, banidos da face do Senhor e da glória do seu poder. 2 Tessalonicenses 1,6-9 Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam. João 15, 6 Se levarmos em conta a metade das afirmações de Jesus, podemos facilmente justificar as ações de são Francisco de Assis ou Martin Luther King Jr. Levando em conta a outra metade, podemos justificar a Inquisição. Qualquer pessoa que acredite que a Bíblia oferece a melhor orientação possível em assuntos de moralidade tem idéias muito estranhas — ou sobre orientação, ou sobre moralidade. Ao avaliar a sabedoria moral da Bíblia, é útil considerar questões morais que já foram resolvidas para satisfação geral. Considere a questão da escravidão. Hoje, o mundo civilizado inteiro concorda que escravidão é uma abominação. (.Hie instrução moral recebemos do Deus de Abraão a esse respeito? Consulte a Bíblia e você descobrirá que o criador do universo espera, claramente, que nós tenhamos escravos: Quanto aos escravos ou escravas que tiverdes, virão das nações ao vosso derredor; delas comprareis escravos e escravas. Também os comprareis dos filhos dos forasteiros que peregrinam entre vós, deles e das suas famílias que estiverem convosco, que nasceram na vossa terra; e A'os serão por possessão. Deixá-los-eis por herança para vossos filhos depois de vós, para os haverem como possessão; perpetuamente os fareis servir, mas sobre vossos irmãos, os filhos de Israel, não vos assenhoreareis com tirania, um sobre os outros. Levítico 25,44-46 A Bíblia também deixa claro que todo homem tem liberdade de vender sua filha como escrava sexual — apesar de que nesse caso se aplicam certas restrições sutis: Se um homem vender sua filha para ser escrava, esta não lhe sairá como saem os escravos. Se ela não agradar ao seu senhor, que se comprometeu a desposá-la, ele terá de permitir-lhe o resgate; não poderá vendê-la a um povo estranho, pois será isso deslealdade para com ela. Mas, se a casar com seu filho, tratá-la-á como se tratam as filhas. Se ele der ao filho outra mulher, não diminuirá o mantimento da primeira, nem os seus vestidos, nem os seus direitos conjugais. Se não lhe fizer estas três coisas, ela sairá sem retribuição, nem pagamento em dinheiro. Êxodo 21,7-11 A única verdadeira restrição que Deus aconselha acerca da escravidão é que não devemos bater nos nossos escravos tão severamente a ponto de ferir seus olhos ou seus dentes (Êxodo 21, 26-27). Nem é preciso dizer que esse não é o tipo de orientação moral que conseguiu abolir a escravidão nos Estados Unidos. Em nenhum ponto do Novo Testamento Jesus faz obje- ção à prática da escravidão. São Paulo até exorta os escravos a servirem bem aos seus senhores — e especialmente bem aos seus senhores cristãos: Quanto a vós outros, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo [...] servindo de boa vontade, como ao Senhor, e não como a homens. Efésios 6, 5-7 Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda honra os próprios senhores, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemados. Também os que têm senhores fiéis não os tratem com desrespeito, porque são irmãos; pelo contrário, trabalhem ainda mais, pois eles, que partilham do seu bom serviço, são crentes e amados. Ensina e recomenda estas coisas. Se alguém ensina outra doutrina e não concorda com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com o ensino segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, difamações, suspeitas malignas [...) 1 Timóteo 6,1-4 Deve ficar bem claro a partir dessas passagens que, embora os abolicionistas do século xix estivessem moralmente <, cr tos, estavam do lado perdedor da discussão teológica. Como disse o reverendo Richard Fuller em 1845, "Aquilo que I )eus autorizou no Velho Testamento, e permitiu no Novo, não pode ser pecado".6 Aqui o bondoso reverendo pisava em lei rcno firme. Não há nada na teologia cristã que busque remediar as espantosas deficiências da Bíblia acerca dessa ques- i.io moral, talvez a maior — e a mais fácil— que nossa so- t iedade já teve de enfrentar. Em resposta, cristãos como você muitas vezes notam que também os abolicionistas obtiveram na Bíblia uma considerável inspiração. Claro que sim. Há milénios as pessoas escolhem a dedo determinadas passagens bíblicas para jus- I iíícar cada um de seus impulsos, sejam morais ou não. Isso não significa, porém, que aceitar a Bíblia como a palavra de I )eus seja a melhor maneira de descobrir que sequestrar e es- i lavizar milhões de homens, mulheres e crianças inocentes c moralmente errado. Com certeza não é a melhor maneira de chegar a essa conclusão, em vista do que a Bíblia realmen- le diz sobre esse assunto. O fato de que alguns abolicionistas usaram certos trechos bíblicos para repudiar outros trechos não indica que a Bíblia seja um bom guia para a moralidade. Tampouco sugere que os seres humanos precisam consultar um livro para resolver questões morais desse tipo. No momento em que uma pessoa reconhecer que escravos são seres humanos como ela própria, com a mesma capacidade de sentir o sofrimento e a felicidade, ela compreenderá que, obviamente, é crueldade possuí-los e tratá-los como se fossem equipamentos agrícolas. É notavelmente fácil para qualquer pessoa chegar a essa brilhante conclusão — e, contudo, ela teve de ser difundida a ponta de baioneta em todo o Sul dos Estados Unidos, entre os cristãos mais piedosos que este país já conheceu. Os Dez Mandamentos também merecem alguma reflexão nesse contexto, pois, ao que parece, a maioria dos americanos acredita que eles são indispensáveis, tanto do ponto de vista moral como do legal.7 É verdade que a Constituição americana não contém nem uma única menção a Deus e que foi amplamente condenada, na época de sua elaboração, por ser um documento não-religioso. Mesmo assim, muitos cristãos acreditam que nosso país foi fundado sobre "princípios judaico-cristãos". É estranho, mas os Dez Mandamentos muitas vezes são citados como prova incontestável desse fato. Se a relevância desses mandamentos para a história dos Estados Unidos é questionável, nossa reverência por eles não é acidental. Afinal, essa é a única passagem bíblica tão profunda que o criador do universo sentiu necessidade de escrever fisicamente, ele próprio, gravando os mandamentos na I" (Ira. Sendo assim,poderíamos esperar que estas fossem as 11 .ises mais grandiosas jamais escritas, sobre qualquer assunto, em qualquer idioma. Aqui estão eles. Prepare-se... 1 — Não terás outros deuses diante de mim. 2 — Não farás para ti imagens esculpidas. 3 — Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão. 4 — Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo. 5 — Honra teu pai e tua mãe. (-> — Não matarás. 7 — Não cometerás adultério. 8 — Não roubarás. 9 — Não apresentarás falso testemunho contra o teu próximo. 10 — Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a sua mulher, nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo. Desses preceitos (Êxodo 20, 2-17), os primeiros quatro ii.io têm nada a ver com a moral. Tal como são expressos, proí- I »oni a prática de qualquer religião que não seja a judaico-cris- l,i (como o hinduísmo), a maior parte da arte religiosa, o uso dt* expressões com a palavra "Deus" e a execução de todo e qualquer trabalho corriqueiro durante o sábado —tudo isso Job pena de morte. Podemos nos perguntar até que ponto esses preceitos são vitais para a manutenção da civilização. Os mandamentos de 5 a 9 de fato tratam da moral, embora não se saiba quantas pessoas já honraram seus pais ou se abstiveram de cometer assassinato, adultério, roubo ou perjúrio por causa desses preceitos. Admoestações desse tipo são encontradas em praticamente todas as culturas, em Ioda a história humana registrada. Não há nada de especial - mente incisivo na maneira como são apresentadas na Bíblia. Existem razões biológicas óbvias pelas quais as pessoas tendem a tratar bem seus pais, e a fazer mau juízo dos assassinos, adúlteros, ladrões e mentirosos. É um fato científico que emoções morais — tais como o senso de justiça ou o horror à crueldade — precedem qualquer contato com as escrituras. De fato, estudos sobre o comportamento dos primatas revelam que essas emoções (em alguma forma) precedem a existência cia própria humanidade. Todos os primatas, nossos primos, demonstram parcialidade para com sua própria família ou tribo, e de modo geral não toleram o assassinato e o roubo. Também não gostam, de modo geral, de trapaça nem de traição sexual. Os chimpanzés, em especial, demonstram muitas das complexas preocupações sociais que esperaríamos ver em nossos parentes mais próximos no mundo natural. Assim, parece bastante improvável que o americano médio receba a instrução moral necessária ao ver esses preceitos inscritos no mármore sempre que entra em um tribunal. E o que devemos pensar do fato de que, ao encerrar seu tratado, o criador do nosso universo não conseguiu pensar em nenhuma preocupação humana mais premente e duradoura do que cobiçar escravos e animais domésticos? Se formos levar a sério o Deus da Bíblia, devemos admitir que Ele nunca nos dá a liberdade para seguir os mandamentos dos quais gostamos e negligenciar os demais. Ele tampouco nos diz que podemos relaxar nas penalidades que Ele impôs por desrespeitá-los. Se você acha que seria impossível melhorar os Dez Mandamentos como afirmação de moralidade, você realmente deveria fazer um favor a si mesmo e ler as escrituras de algu- in.r. outras religiões. Mais uma vez, não precisamos ir mais lun^e do que os jainistas; Mahavira, o patriarca jainista, su- I" rou a moralidade da Bíblia como uma única frase: "Não N M I , abusar, oprimir, escravizar, insultar, atormentar, tortu- i .ii ou matar nenhuma criatura ou ser vivo". Imagine como " nosso mundo poderia ser diferente se a Bíblia contivesse • . ..I IVase como preceito central. Os cristãos abusaram, opri- I I H I .un, escravizaram, insultaram, atormentaram, tortura- i .mi e mataram pessoas em nome de Deus durante séculos, «< >111 base em uma leitura teologicamente defensável da Bíblia. I un possível se comportar dessa maneira aderindo aos prin- • Ipios do jainismo. Como, então, você pode argumentar que Bíblia oferece a expressão mais clara de moralidade que o inundo já viu? \\ VVII KDADEIRA MORALIDADE Você acredita que, se a Bíblia não for aceita como a pa- l.ivra de Deus, não pode haver um padrão universal de mo- i alidade. Mas podemos facilmente pensar em fontes objeti- as (le ordem moral que não requerem a existência de um Deus legislador. Para que haja verdades morais objetivas que valha I pena conhecer, é necessário que haja apenas maneiras melhores e piores de buscar a felicidade neste mundo. Se exis- lem leis psicológicas que governam o bem-estar humano, . onhecer essas leis nos proporcionaria uma base duradoura I »ara uma moralidade objetiva. É verdade que não temos nada que se assemelhe a uma compreensão final e científica da moralidade humana; mas parece seguro dizer que estuprar e matar nosso próximo não estão entre seus elementos básicos. Tudo na experiência humana sugere que o amor conduz à felicidade mais do que o ódio. Essa é uma afirmação obje- tiva acerca da mente humana, da dinâmica das relações sociais e da ordem moral do nosso mundo. Sem dúvida é possível dizer que alguém como Hitler estava errado em termos morais, sem ser preciso nos referirmos às escrituras. Se sentir amor pelos outros é, com certeza, uma das maiores fontes da nossa própria felicidade, também acarreta uma preocupação profunda pela felicidade e pelo sofrimento daqueles que amamos. Assim, nossa própria busca de felicidade nos dá um motivo fundamental para o auto-sacrifício e a abnegação. Não há dúvida de que existem ocasiões em que fazer enormes sacrifícios pelo bem dos outros é essencial para o nosso próprio bem-estar mais profundo. Não é necessário acreditar em nada, sem provas convincentes, para que as pessoas formem vínculos desse tipo. Em vários pontos dos evangelhos, Jesus nos diz claramente que o amor pode transformar a vida humana. Para assimilar esses ensinamentos em nosso coração, não precisamos acreditar que ele nasceu de uma virgem, ou que ele voltará para a terra como um super-herói. Um dos efeitos mais perniciosos da religião é que ela tende a divorciar a moral da realidade do sofrimento dos seres humanos e dos animais. A religião permite que as pessoas imaginem que suas preocupações são morais quando não são — isto é, quando elas não têm nada a ver com o sofrimento ou com o alívio do sofrimento. De fato, a religião permite que as pessoas imaginem que suas preocupações são morais <|ii.indo, na verdade, são altamente imorais — isto é, quando insistir nessas preocupações inflige um sofrimento atroz i desnecessário em seres humanos inocentes. Isso explica por i Hic cristãos como você gastam mais energia "moral" fazendo oposição ao aborto do que lutando contra o genocídio. I \plica por que você está mais preocupado com os embriões humanos do que com a possibilidade de salvar vidas, o fere - • ida pela pesquisa com células-tronco. E explica por que vo- < r é capaz de pregar contra o uso da camisinha na África sub- .1.11 iana, enquanto milhões de pessoas morrem de aids nessa n giao a cada ano. Você acredita que as suas preocupações religiosas a res- IM i lo de sexo, tão imensas e tão cansativas, têm algo a ver com i moralidade. E, contudo, seus esforços para reprimir o com- poi lamento sexual de adultos que agem por livre e espontâ- II II<<MM vontade — e até para desencorajar seus próprios filhos e Ilibas de fazerem sexo antes do casamento — quase nunca se > Ir-.li nam ao alívio do sofrimento humano. Ao que parece, ali- i.iio sofrimento está bem lá embaixo na sua lista de priori- • l.i*les. Felo visto, a sua principal preocupação é que o criador do universo ficará ofendido com algo que as pessoas fazem • |u,uido estão nuas. E essa sua mentalidade pudica contribui, di.ii ia mente, para o excesso de infelicidade humana. (Considere, por exemplo, o papilomavírus humano (HPV, II.I .ij;la em inglês). O HPV é hoje a doença sexualmente transmissível mais comum nos Estados Unidos. Esse vírus infec- i .1mais da metade da população americana, causando a mor- ii de quase 5 mil mulheres a cada ano, de câncer cervical. O 1 ri il ro para Controle de Doenças (Center for Desease Control < i X:) estima que mais de 200 mil mulheres morrem anualmente dessa doença no mundo inteiro. Hoje temos uma vacina para o HPV que parece ser segura e eficiente. A vacina produziu uma imunidade de 100% nas 6 mil mulheres que a receberam como parte de um teste clínico.8 Contudo, os conservadores cristãos no governo americano opõem resistência ao programa de vacinação, alegando que o HPV é um impedimento valioso contra o sexo antes do casamento. Esses homens e mulheres piedosos desejam preservar o câncer cervical como incentivo para a abstinência sexual, embora ele tire a vida de milhares de mulheres a cada ano. Não há nada de errado em incentivar os adolescentes a se abster de sexo. Mas nós já sabemos, fora de qualquer dúvida, que apenas ensinar a abstinência não é uma boa maneira de reduzir a gravidez na adolescência nem a disseminação de doenças sexualmente transmissíveis. Na verdade, os adolescentes que só recebem lições de abstinência têm menos probabilidades de usar métodos anticoncepcionais quando fazem sexo — como muitos deles vão fazer, inevitavelmente. Um estudo descobriu que as "promessas de virgindade" promovidas pelo governo americano adiam o ato sexual por dezoito meses, em média — e que, durante esse período, esses adolescentes virgens têm mais probabilidade do que os demais de fazer sexo oral e anal.9 Os adolescentes americanos fazem sexo tanto quanto os adolescentes do resto do mundo desenvolvido; mas as jovens americanas têm quatro a cinco vezes mais probabilidade de engravidar, dar à luz ou fazer aborto. Os jovens americanos também têm muito mais probabilidade de ser infectados pelo HIV e outras doenças se- xualmente transmissíveis. O índice de gonorréia entre adolescentes americanos é setenta vezes maior do que entre os adolescentes da Holanda e da França.10 O fato de que 30% de nossos programas de educação sexual ensinam apenas a abstinência (a um custo anual de mais de 200 milhões de dólares) com certeza tem algo a ver com isso. O problema é que cristãos como você não estão preocupados com a gravidez adolescente e a disseminação de doenças. Isto é, você não está preocupado com o sofrimento causado pelo sexo; você está preocupado com o sexo. E, como se este fato precisasse ainda mais de comprovação, o evangélico Reginald Finger, membro do Comité Consultor de Práticas d e i munização do CDC, anunciou recentemente que pensa em '.e opor a uma vacina contra o HIV — condenando, assim, milhões de homens e mulheres a morrer de aids a cada ano, des- necessariamente —, já que tal vacina incentivaria o sexo antes tio casamento, por torná-lo menos arriscado.11 Este é um • l< >s muitos aspectos em que suas crenças religiosas se tornam I'.enuinamente letais. Seus escrúpulos acerca da pesquisa com células-tronco ■ao igualmente obscenos. Aqui estão os fatos: a pesquisa com • elulas-tronco é um dos avanços mais promissores da mediu na no último século. Pode oferecer avanços revolucioná- i ios no tratamento de todas as doenças e processos perni- • iosos que atingem o ser humano — pela simples razão de que as células-tronco dos embriões podem se transformar un qualquer tecido do corpo humano. Essa pesquisa tam- ln in pode ser essencial para a nossa compreensão do cân- m i e de uma vasta gama de doenças do desenvolvimento. Em \ isla de tais fatos, é quase impossível exagerar as perspecti- ,i. promissoras dessa pesquisa. É verdade, claro, que a pesquisa com células-tronco embrionárias acarreta a destruição de embriões humanos de três dias de idade. É com isso que você se preocupa. Vejamos os detalhes. Um embrião humano é um agrupamento de 150 células chamado blastocisto. Existem, para efeito de comparação, mais de 100 mil células no cérebro de uma mosca. Os embriões humanos que são destruídos nas pesquisas com células-tronco não têm cérebro, nem sequer neurónios. Assim, não há razão para acreditar que eles possam sentir qualquer tipo de sofrimento com a sua destruição, de maneira alguma. Nesse contexto, vale lembrar que, quando ocorre a morte cerebral, atualmente julgamos aceitável extrair os órgãos da pessoa (desde que ela os tenha doado para esse fim) e enterrá-la. Se é aceitável tratar uma pessoa cujo cérebro morreu como algo menos que um ser humano, deveria ser aceitável tratar do mesmo modo um blastocisto. Se você está preocupado com o sofrimento que ocorre neste universo, matar uma mosca deveria lhe apresentar dificuldades morais maiores do que matar um blastocisto humano. Talvez você ache que a diferença crucial entre uma mosca e um blastocisto humano está no potencial deste último de tornar-se um ser humano plenamente desenvolvido. Mas, em vista dos nossos recentes avanços em engenharia genética, quase toda célula do corpo humano é um ser humano em potencial. Cada vez que você coça o nariz, já cometeu um holocausto de seres humanos em potencial. Isso é um fato. O argumento que fala do potencial das células não leva a absolutamente nada. Mas vamos admitir, por enquanto, que cada embrião humano de três dias de idade tenha uma alma merecedora da nossa preocupação moral. Os embriões nesse estágio por ve- /.es se dividem, tornando-se duas pessoas separadas (gémeos idênticos). Será que nesse caso uma só alma se dividiu em duas? Por outro lado, às vezes dois embriões se fundem em um único indivíduo, chamado "quimera". Talvez você, ou alguém que você conhece, tenha se desenvolvido dessa maneira. Não há dúvida de que em algum lugar, neste momento, há teólogos se esforçando para decidir o que acontece com a alma humana em um caso assim. Será que já não é hora de reconhecermos que essa aritmética de almas não faz nenhum sentido? A idéia ingénua de que existem almas em uma placa de Petri é intelectualmente impossível de defender. Ê também moralmente indefensável, considerando-se que ela está obstruindo pesquisas entre as mais promissoras da história da medicina. As suas cren- i,as a respeito da alma humana estão, neste exato momento, I >i <)longando o sofrimento atroz de dezenas de milhões de se- ies humanos. Você acredita que "a vida começa no momento da con- • epção". Você acredita que existem almas em cada um desses U.istocistos e que os interesses de uma alma — digamos, a .ilma de uma menininha com queimaduras em 75% do corpo não podem predominar sobre os interesses de outra alma, mesmo que essa alma viva dentro de um tubo de en- .iio. Considerando todas as concessões que já fizemos para a« omodar a irracionalidade baseada na fé no nosso discur- público, muitos afirmam — inclusive defensores da pes- qui.sa com células-tronco — que a posição que você adota nes- • assunto tem certo grau de legitimidade moral. Mas não tem. aia resistência à pesquisa com células-tronco embrionárias • na melhor das hipóteses, mal informada. Na verdade, não existe nenhuma razão moral para a má vontade do governo federal americano em financiar esse trabalho. Nós deveríamos investir recursos imensos em pesquisas com células- tronco, e deveríamos fazê-lo imediatamente. Mas, por causa das crenças de cristãos como você a respeito de almas, não estamos fazendo isso. Na verdade, vários estados americanos já tornaram essa pesquisa ilegal.12 Em Dakota do Sul, por exemplo, quem fizer experiências com blastocistos se arrisca a passar anos na prisão.13 A verdade moral aqui é óbvia: qualquer pessoa que creia que os interesses de um blastocisto podem prevalecer sobre os interesses de uma criança com uma lesão na espinha dorsal está com seu senso moral cegado pela metafísica religiosa. O vínculo entre a religião e a "moral" — tão proclamado e tão poucas vezes demonstrado — fica aqui totalmente desmascarado, tal como acontece sempre que o dogma religioso prevalece sobre o raciocínio moral e a compaixão genuína. FAZENDOO BEM EM NOME DE DEUS O que dizer de todas as coisas boas que são feitas em nome de Deus? É inegável que muitas pessoas de fé fazem sacrifícios heróicos para aliviar o sofrimento de outros seres humanos. Mas será que é necessário acreditar em qualquer coisa, sem ter provas suficientes, para agir dessa maneira? Se a compaixão realmente dependesse do dogmatismo religioso, como explicar o trabalho de médicos não-religiosos que atuam no mundo em desenvolvimento, nas regiões mais destroçadas pelas guerras? Há muitos médicos motivados sim- (desmente pelo desejo de aliviar o sofrimento humano, sem nenhum pensamento acerca de Deus. Não há dúvida de que missionários cristãos também são movidos pelo desejo de .ihviar o sofrimento humano; mas eles abordam essa tarefa • ,11 regando o pesado fardo de uma mitologia perigosa e cau- nidora de desavenças. Os missionários no mundo em desen- volvimento desperdiçam muito tempo e dinheiro (sem falar n.i boa vontade dos não-cristãos) fazendo proselitismo com i »•. necessitados; eles divulgam informações inexatas a respeito de métodos anticoncepcionais e doenças sexualmente 11 ansmissíveis, e se recusam a divulgar informações precisas. ' .e c verdade que os missionários fazem muitas coisas nobres, • om grandes riscos para si mesmos, o fato é que seu dogmatismo dissemina a ignorância e a morte. Em contraste, voluntários de organizações seculares, como a Médicos Sem I tonteiras, não desperdiçam tempo algum falando com as pessoas sobre o nascimento virginal de Jesus. Tampouco diem à população da África subsaariana — onde quase 4 milhões de pessoas morrem de aids a cada ano — que é pecado usar camisinha. Sabe-se de casos em que missionários ■ i islãos pregaram que usar preservativo é pecado, em localidades onde não há nenhuma outra informação acerca do assunto. Esse tipo de crença é genocida.* Também podemos I difícil acreditar, mas o Vaticano atualmente se opõe ao uso cia camisinha, até l mi ,i evitar a contaminação por HIV entre marido e mulher. Há rumores de que o I m|m está reconsiderando essa orientação. O cardeal Javier Lozano Barragán, pre- u li'iite do Pontifício Conselho para a Pastoral da Saúde, anunciou na Rádio Va- LL< .IMO que seu departamento está "realizando um estudo científico, técnico e mo- i il muito profundo" dessa questão (!). Nem é preciso dizer que, se a doutrina da l(»,i<'ja mudar em consequência dessas piedosas deliberações, isso não será sinal ilr 11tie a fé é sábia, e sim de que um de seus dogmas se tornou insustentável. nos perguntar, de passagem, o que é mais moral: ajudar as pessoas puramente pela preocupação com o sofrimento delas, ou ajudá-las porque você acha que o criador do universo vai recompensá-lo por isso? Madre Teresa de Calcutá é um exemplo perfeito da maneira como uma boa pessoa, impelida a ajudar os outros, pode ter sua intuição moral perturbada pela fé religiosa. Christopher Hitchens expressa isso com sua característica franqueza: [Madre Teresa] não era amiga dos pobres. Era amiga da pobreza. Ela afirmou que o sofrimento era um presente de Deus. Passou toda a sua vida se opondo à única cura conhecida para a pobreza, que é dar poder e emancipação às mulheres, para que elas saiam de uma situação de animais domésticos com reprodução compulsória.14 Embora em essência eu concorde com Hitchens nesse ponto, não se pode negar que madre Teresa foi uma grande força pela compaixão. Sem dúvida foi motivada pelo sofrimento humano, e fez muita coisa para despertar outras pessoas para a realidade desse sofrimento. O problema, porém, é que a sua compaixão foi canalizada para o seu estreito dogmatismo religioso. Em seu discurso ao aceitar o prémio Nobel, ela disse: O principal destruidor da paz é o aborto [...]. Muitas pessoas se preo- cupam muitíssimo com as crianças da índia, com as crianças da África, onde um grande número morre, talvez de desnutrição, de fome e assim por diante, mas milhões estão morrendo, deliberadamente, pela vontade de suas mães. E é esse o maior destruidor da paz hoje em dia. Pois, se uma mãe é capaz de matar o próprio filho, o que impede que eu mate você e você me mate? Não há nenhum impedimento.15 Como diagnóstico dos problemas do mundo, essas observações estão espantosamente equivocadas. Como afirmações de moral, não são melhores. A compaixão de madre Teresa estava muito mal calibrada, se matar um feto no primeiro trimestre a perturbava mais do que todo o sofrimento que ela testemunhou nesta Terra. É verdade que o aborto é uma feia realidade, e todos nós devemos ter esperança de que surjam avanços nos métodos anticoncepcionais, reduzindo a necessidade dessa prática; mesmo assim, é razoável duvidar de que a maioria dos fetos abortados sofra com sua destruição, em qualquer nível que seja. Contudo, essa dúvida não seria razoável quando se trata dos milhões de homens, mulheres e crianças que suportam os tormentos da guerra, da fome, da tortura política ou da doença menial. Neste exato momento, milhões de seres sensíveis à dor estão sofrendo aflições físicas e mentais inimagináveis, em * ircunstâncias em que não se vê em parte alguma a compaixão divina, e a compaixão humana é com bastante frequência prejudicada por idéias ridículas a respeito do pe- < ado e da salvação. Se você se preocupa com o sofrimento humano, o aborto deveria ficar bem no fim da sua lista de preocupações. Enquanto o aborto continua sendo uma questão ridicu- lamente polémica nos Estados Unidos, a posição "moral" da l)",i eja nesse assunto está hoje plenamente — e horrivelmente encarnada em El Salvador. Nesse país, o aborto é hoje ilegal sob quaisquer circunstâncias. Não há exceções para o estupro ou o incesto. No momento em que uma mulher chega a um hospital com o útero perfurado, indicando que fez um aborto caseiro em algum beco, ela é algemada à cama do hospital e seu corpo é tratado como uma cena de crime. Médicos forenses chegam para examinar seu útero. Há mulheres hoje cumprindo penas de trinta anos de prisão pelo crime de interromper sua gravidez.16 Imagine tal cenário em um país que também estigmatiza o uso de anticoncepcionais e os vê como um pecado contra Deus. E, contudo, é exatamente esse tipo de política que adotaríamos se concordássemos com madre Teresa em sua avaliação do sofrimento humano. De fato, o arcebispo de San Salvador fez uma campanha ati- va nesse sentido. Ele foi auxiliado em seus esforços pelo papa João Paulo li, que declarou, em uma visita à Cidade do México em 1999, que "a Igreja precisa proclamar o evangelho da vida, e falar com força profética contra a cultura da morte. Possa o continente da esperança ser também o continente da vida!". É claro que a posição da Igreja a respeito do aborto não leva em conta os detalhes da biologia, assim como não leva em conta a realidade do sofrimento humano. Já foi estimado que 50% de todas as concepções humanas terminam em aborto espontâneo, em geral sem que a mulher sequer perceba que estava grávida. Na verdade, 20% de todos os casos de gravidez reconhecidos terminam em aborto espontâneo.17 Existe aqui uma verdade óbvia e gritante: se Deus existe, ele é o mais prolífico de todos os praticantes de abortos. < R, ATEUS SÃO MAUS? Se você tem razão ao acreditar que a fé religiosa oferece .1 li nica base real para a moralidade, então os ateus deveriam '.cr menos morais do que as pessoas de fé. Na verdade, os ateus < leveriam ser totalmente imorais. Será que são mesmo? Será que os membros das organizações de ateus nos Estados Unidos «o metem crimes violentos em proporção maior que a média? Será que os membros da Academia Nacional de Ciências, dos quais 93% não aceitam a idéia de Deus, mentem, enga- n.un e roubam deslavadamente? Podemos estar razoavelmente seguros de que esses grupos se comportam pelo me- 11< >s tão bem quanto a população em geral. E, contudo, os ateus .10 a minoria mais vilipendiada dos Estados Unidos. As pesquisas de opiniãoindicam que ser ateu é um impedimento I KTfeito para se candidatar a qualquer alto posto no nosso país (enquanto ser negro, muçulmano ou homossexual não é). Uecentemente, multidões com milhares de pessoas se reuni iam em todo o mundo muçulmano — queimando embaixadas européias, fazendo ameaças, tomando reféns, até matando pessoas — em protesto contra doze caricaturas re- presentando o profeta Maomé, publicadas em um jornal dinamarquês. Quando será que ocorreu o último levante dos ateus? Será que existe algum jornal neste planeta que hesita- I ia em publicar car icaturas sobre o ateísmo, temendo que seus • <litores fossem sequestrados ou assassinados em represália? Cristãos como você invariavelmente declaram que mons- II os como Adolf Hitler, Josef Stálin, Mao Tse-tung, Pol Pot e I i 111 II Sung surgem do ventre do ateísmo. É verdade que tais homens por vezes são inimigos da religião organizada, mas nunca são muito racionais. 2 De fato, os pronunciamentos públicos desses homens muitas vezes são totalmente delirantes, nos assuntos mais variados: raça, economia, identidade nacional, a marcha da história, os perigos morais do intelectualismo. O problema desses tiranos não é que eles rejeitam o dogma da religião, e sim que adotam outros mitos destrui- dores da vida. A maioria se torna o centro de um culto da personalidade quase religioso, que exige o uso contínuo da propaganda para se manter. Há uma diferença entre a propaganda e a disseminação honesta de informações que nós (em geral) esperamos de uma democracia liberal. Tiranos que organizam genocídios, ou que reinam alegremente enquanto seu povo morre de fome, também costumam ser homens profundamente idiossincráticos, e não defensores da razão. Kim II Sung, por exemplo, exigia que suas camas, em suas diversas residências, fossem situadas exatamente a quinhentos metros acima do nível do mar. Seus acolchoados tinham de ser feitos com a penugem mais macia que se possa imaginar. E qual é a penugem mais macia que se possa imaginar? Segundo i onsta, ela vem do papo do pardal. Era necessário matar 700 mil pardais para encher um único acolchoado. Em vista da profundidade de suas preocupações esotéricas, podemos 2E parece que o ateísmo de Hitler foi seriamente exagerado: "Como cristão, meu sentimento me mostra meu Senhor e Salvador como um combatente. Mostra me aquele homem de outrora que, sozinho, rodeado por apenas alguns seguido res, reconheceu o que eram verdadeiramente aqueles judeus e conclamou os homens a lutar contra eles, e que, pela verdade de Deus!, foi maior não como sofredor, mas como lutador. Em amor ilimitado como cristão e como homem, leio a passagem que nos conta como o Senhor por fim se levantou em todo o Seu poder e tomou na mão um chicote para expulsar do templo a ninhada de víbo ras e serpentes. Como foi terrível a sua luta em prol do mundo, contra o veneno judaico [...] como cristão, também tenho um dever para com meu próprio povo". Hitler afirmou isso em um discurso pronunciado em 12 de abril de 1922 (Norman H. Baynes, ed. The speeches of Adolf Hitler, April 1922-August 1939. Vol. 1 de 2, pp. 19-20. Oxford University Press, 1942). nos perguntar até que ponto Kim II Sung era um homem movido pela razão. Veja o Holocausto: o anti-semitismo que construiu os campos de morte dos nazistas foi herança direta do cristianismo medieval. Durante séculos os europeus cristãos ti- 11 liam considerado os judeus a pior espécie de heréticos, e atribuído todos os males da sociedade à sua contínua presença entre os fiéis. Embora o ódio aos judeus na Alemanha se expressasse de maneira sobretudo secular, suas raízes eram religiosas, e a demonização explicitamente religiosa dos judeus da Europa foi contínua durante esse período. O próprio Vaticano perpetuou a calúnia de sangue em seus jornais até 1914.* E tanto a Igreja católica como a protestante têm um passado vergonhoso de cumplicidade com o genocídio nazista.18 Auschwitz, os gulags soviéticos e os campos de morte do (lumboja não são exemplos do que acontece quando as pessoas se tornam demasiado adeptas da razão. Ao contrário, esses horrores atestam os perigos do dogmatismo político e ra- eial. Já é hora de cristãos como você pararem de fingir que uma rejeição racional da sua fé acarreta a adoção cega do ateísmo como dogma. Não é necessário aceitar nada sem ter provas suficientes para concluir que o nascimento virginal de Jesus e uma idéia absurda. O problema da religião — assim como ' A "calúnia de sangue" (em relação aos judeus) consiste na falsa acusação de que us judeus matam não-judeus a fim de obter sangue para rituais religiosos. Essa i u nça continua muito difundida em todo o mundo muçulmano. do nazismo, do stalinismo ou de qualquer outra mitologia totalitária — é o problema do dogma em si. Não conheço nenhuma sociedade na história humana que jamais tenha sofrido porque seu povo passou a ansiar por provas concretas para suas crenças fundamentais. Embora você acredite que acabar com a religião é um ob- jetivo impossível, é importante perceber que ele já foi alcançado por boa parte do mundo desenvolvido. Noruega, Islândia, Austrália, Canadá, Suécia, Suíça, Bélgica, Japão, Holanda, Dinamarca e o Reino Unido estão entre as sociedades menos religiosas da Terra. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (2005), essas sociedades também são as mais saudáveis, segundo os indicadores de expectativa de vida, alfabetização, renda per capita, nível educacional, igualdade entre os sexos, taxa de homicídios e mortalidade infantil.19 Até onde há um problema de crime na Europa ocidental ele é, sobretudo, produto da imigração. Na França, por exemplo, 70% dos detentos nas prisões são muçulmanos. Os muçulmanos da Europa ocidental em geral não são ateus. Inversamente, os cinquenta países que ocupam os lugares mais baixos, segundo o índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas, são inabalavelmente religiosos. Outras análises pintam o mesmo quadro: os Estados Unidos são o único país, entre as democracias ricas, com alto nível de adesão à religião; e também o que mais sofre com altos índices de homicídio, aborto, gravidez adolescente, doenças sexualmente transmissíveis e mortalidade infantil. A mesma comparação é verdadeira dentro do próprio país: os estados do Sul e do Meio-Oeste, caracterizados pelos mais .iltos níveis de literalismo religioso, são especialmente atinados pelas disfunções sociais, segundo os indicadores acima, .10 passo que os estados relativamente seculares do Nordeste do país têm uma situação semelhante à européia.20 Embora nos Estados Unidos a filiação a um partido po- lilico não seja um indicador perfeito de religiosidade, não é segredo que os estados "vermelhos" [republicanos] são vermelhos sobretudo devido à influência política avassaladora «los cristãos conservadores.21 Se existisse uma forte correla- <,,10 entre o conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, I »< >deríamos ver algum sinal disso nesses estados. Mas não vemos. Das 25 cidades americanas com os mais baixos índices de crimes violentos, 62% ficam em estados "azuis" [demo- t ratas] e 38% em estados "vermelhos". Das 25 cidades mais I icrigosas, 76% ficam em estados vermelhos e 24% em estados azuis.22 Aliás, três das cinco cidades mais perigosas dos I st ados Unidos ficam no piedoso estado do Texas.23 Os doze estados com os mais altos índices de assaltos a residências ..io vermelhos. Dos 29 estados com os mais altos índices de loubo, 24 são vermelhos. Dos 22 estados com os mais altos índices de assassinatos, dezessete são vermelhos.24 É claro que correlações desse tipo não esclarecem questões de causalidade — a crença em Deus talvez leve à disfun- .,ao social; ou a disfunção social talvez estimule a crença em I >cus; cada um desses fatores pode estimular o outro; ou talvez ambos derivem de algum fator nocivo mais profundo.< on tudo, deixando de lado a questão de causa e efeito, essas < balísticas provam que o ateísmo é compatível com as aspi- i açoes básicas de uma sociedade civil; e também provam, de maneira conclusiva, que a crença generalizada em Deus não garante a saúde de uma sociedade. Os países com altos níveis de ateísmo também são os mais caridosos, em termos da porcentagem de sua riqueza que dedicam a programas internos de bem-estar social e ajuda aos países pobres.25 A duvidosa relação entre os valores cristãos e a crença literal na Bíblia cristã é desmentida por outros índices de igualdade social. Considere a proporção entre a remuneração dos executivos de mais alto escalão e o salário médio pago aos funcionários das mesmas empresas: na Grã-Breta- nha, é de 24:1; na França, 15:1; na Suécia, 13:1; e nos Estados Unidos, onde 80% da população espera ser chamada diante de Deus no Dia do Juízo Final, é de 475:1.26 Pelo visto, parece que muitos camelos esperam passar com facilidade pelo buraco de uma agulha. QUEM COLOCA A BONDADE NO BOM LIVRO?* Mesmo que a crença em Deus exercesse um efeito positivo confiável sobre o comportamento humano, isso não seria motivo para acreditar em Deus. Uma pessoa só pode crer em Deus se acreditar que Deus realmente existe. Mesmo que o ateísmo levasse diretamente ao caos moral, isso não indicaria que a doutrina do cristianismo é verdadeira. O islã poderia ser verdadeiro, nesse caso. Ou, talvez, todas as religiões poderiam agir como placebos. Como descrição do universo po deriam ser totalmente falsas, mas, mesmo assim, úteis. Con * Em inglês, costuma-se chamar a Bíblia de "the Good Book" ("o Bom Livro"). (N.T.) tudo, as provas indicam que as religiões são não apenas falsas como também perigosas. Quando você fala nas boas consequências que as suas crenças exercem sobre a moral humana, está seguindo o exemplo dos religiosos liberais e moderados. Em vez de dizer que acreditam em Deus porque determinadas profecias bíblicas se realizaram, ou porque os milagres narrados nos evangelhos são convincentes, os liberais e moderados costumam falar nas boas consequências de se acreditar, tal como eles acreditam. Esses crentes muitas vezes dizem que acreditam em Deus porque isso "dá sentido às suas vidas". Quando um tsunami matou centenas de milhares de pessoas no dia seguinte ao Natal de 2004, muitos cristãos conservadores viram nessa catástrofe uma prova da ira divina. Aparentemente, Deus estava enviando mais uma mensagem em código sobre os males do aborto, da idolatria e do homossexualismo. Embora eu con- ádere essa interpretação dos acontecimentos absolutamente lepugnante, ela tem, pelo menos, a virtude de ser razoável quando se assume um dado conjunto de hipóteses básicas. Os liberais e moderados, por outro lado, se recusam a tirar qualquer conclusão que seja a respeito de Deus a partir das obras dele. Deus permanece um mistério absoluto, uma mera fon- l< de consolo que é compatível com todos os males, até os mais devastadores. Logo após o tsunami na Ásia, liberais e mode- i ad( >s admoestaram uns aos outros para que procurassem Deus ii.lo no poder que moveu a onda, mas sim na resposta que i humanidade deu à onda".27 Creio que podemos concordar, I 'i i >vavelmente, que é a benevolência humana — e não a dilua — que fica à mostra a cada vez que os corpos inchados • I' r. mortos são trazidos do mar para serem enterrados. Se em um único dia mais de 100 mil crianças foram arrancadas dos braços de suas mães e afogadas com total displicência, a teologia liberal deve ser vista bem claramente, tal como ela é: a mais pura falsidade que um mortal possa conceber. A teologia da ira tem muito mais mérito intelectual. Se Deus existe e tem um interesse nos assuntos dos seres humanos, sua vontade não é inescrutável. Aqui a única coisa inescrutável é que tantos homens e mulheres, que em outros aspectos são racionais, conseguem negar o horror implacável desses acontecimentos e julgar que esse é o ápice da sabedoria moral. Assim como a maioria dos cristãos, você acredita que simples mortais como nós não podem rejeitar a moralidade da Bíblia. Não podemos dizer, por exemplo, que Deus estava errado quando afogou a maior parte da humanidade no dilúvio narrado no Génesis, pois isso é apenas a maneira como as coisas parecem ser, a partir do nosso limitado ponto de vista. E, contudo, você se acha com capacidade de julgar que Jesus é o Filho de Deus, que a Regra de Ouro é o ápice da sabedoria moral e que a Bíblia não está transbordando de mentiras. Você usa a sua própria intuição moral para autenticar a sabedoria da Bíblia — e no, entanto, no momento seguinte você afirma que nós, seres humanos, não podemos, de forma alguma, confiar na nossa própria intuição para nos guiar corretamente no mundo; em vez disso, temos de depender das prescrições da Bíblia. Ou seja, você usa a sua própria intuição moral para concluir que a Bíblia é a garantia apro- priada da sua intuição moral. Suas intuições continuam sendo primárias, e o seu raciocínio é circular. Nós decidimos o que é bom no "Bom Livro". Lemos a Regra de Ouro e achamos que ela destila, de maneira brilhante, muitos de nossos impulsos éticos. E, em seguida, encontramos mais um dos ensinamentos de Deus sobre a moral: se um homem descobrir, em sua noite de núpcias, que sua noiva não é virgem, ele deve levá-la até a soleira da porta do pai dela e apedrejá-la até a morte (Deuteronômio 22,13-21). Se somos civilizados, rejeitaremos isso como o ato mais lu- nático e mais vil que se possa imaginar. Mas para isso precisamos exercer nossa própria intuição moral. Acreditar que a Bíblia é a palavra de Deus não nos ajuda de maneira alguma. A escolha que temos pela frente é simples: podemos ter uma conversa do século xxi acerca da moral e do bem-estar humano — uma conversa na qual recorremos a todas as descobertas científicas e argumentos filosóficos acumulados nos últimos 2 mil anos de discurso humano — ou então podemos nos confinar a uma conversa do século i, tal como preservada na Bíblia. Por que alguém haveria de querer adotar a segunda opção? A BONDADE DIVINA Em algum lugar do mundo, um homem acaba de seques- l rar uma garotinha. Logo mais ele vai estuprá-la, torturá-la e matá-la. Se uma atrocidade desse tipo não está ocorrendo neste exato momento, vai ocorrer dentro de poucas horas, ou no máximo de alguns dias. É essa certeza que podemos obter a partir das leis estatísticas que governam a vida de 6 bilhões de seres humanos. Essas mesmas estatísticas também sugerem que os pais dessa garotinha acreditam — tal como você acredita — que um Deus todo-poderoso e cheio de amoi infinito está velando por eles e pela sua família. Eles estão certos ao acreditar nisso? É bom que eles acreditem nisso? Não. O ateísmo em sua totalidade está contido nessa resposta. O ateísmo não é uma filosofia; não é sequer uma visão do mundo; é simplesmente o reconhecimento do óbvio. Na verdade, ateísmo é um termo que nem deveria existir. Ninguém precisa se identificar como "não-astrólogo", ou "não-alqui- mista". Não temos palavras para definir pessoas que duvidam de que Elvis Presley continua vivo, ou de que alienígenas atravessaram a galáxia só para incomodar fazendeiros e seu gado. O ateísmo nada mais é do que os ruídos que pessoas razoáveis fazem diante de crenças religiosas não justificadas. Um ateu é simplesmente uma pessoa que acredita que os 260 milhões de americanos (87% da população) que afirmam "nunca duvidar da existência de Deus" deveriam ser obrigados a apresentar as provas da existência dele — e, aliás, também da benevolência desse Deus, em vista da implacável destruição de seres humanos inocentes que testemunhamos neste mundo todos os dias. Um ateu é uma pessoa que acredita que o assassinato de uma única menininha — mesmo que ocorra uma vez em 1 milhão de anos — lança dúvidas sobre a idéia da existência de um Deus benevolente. As provas de que Deusnão protege a humanidade estão por toda parte. A cidade de Nova Orleans, por exemplo, foi recentemente destruída por um furacão. Mais de mil pessoas morreram; dezenas de milhares perderam tudo o que tinham; e quase 1 milhão se tornaram refugiadas. Podemos di- zer com bastante segurança que quase todas as pessoas que moravam em Nova Orleans no momento em que o furacão Katrina as atingiu acreditavam, como você, em um Deus oni- potente, onisciente e misericordioso. Mas o que estava Deus fazendo enquanto o Katrina devastava a cidade? Com certeza Ele ouviu as orações daqueles homens e mulheres idosos que fugiram da enchente buscando segurança no sótão de suas casas, e ali lentamente se afogaram. Eram gente de fé. Eram boas pessoas, que tinham orado durante toda a vida. Será que você tem coragem de reconhecer o óbvio? Essa pobre gente morreu falando com um amigo imaginário. É claro que houve numerosos alertas de que uma tempestade "de proporções bíblicas" atingiria Nova Orleans, e a resposta humana ao desastre que se seguiu foi de uma ineficiência trágica. Mas foi ineficiente apenas à luz da ciência. A religião não ofereceu absolutamente nenhuma base para uma reação. Os alertas que foram dados previamente, traçando a Irajetória do Katrina, foram arrancados da muda Natureza por meio de cálculos meteorológicos e imagens de satélite. I )eus não contou seus planos para ninguém. Se os moradores de Nova Orleans se contentassem em confiar na benevolência divina, não ficariam sabendo que um furacão assassino viria atacá-los, até sentirem as primeiras rajadas de vento no rosto. E, contudo, como não deve ser surpresa para você, uma pesquisa feita pelo The Washington Post descobriu que 80% dos sobreviventes do Katrina afirmam que esse acontecimento só serviu para fortalecer sua fé em Deus. Enquanto o furacão Katrina devorava Nova Orleans, quase mil peregrinos xiitas foram pisoteados e mortos em uma ponte no Iraque. Esses peregrinos tinham uma fé poderosa no Deus do Corão. Suas vidas eram organizadas em torno do fato indiscutível da existência desse Deus; as mulheres usavam véus diante dele; os homens regularmente assassinavam uns aos outros devido a interpretações divergentes da palavra dele. Seria notável se um único sobrevivente dessa tragédia tivesse perdido a fé. O mais provável é que os sobreviventes imaginem que foram poupados pela graça divina. Já é hora de reconhecermos o ilimitado narcisismo e au- to-engano desses que foram salvos. Já é hora de reconhecermos que é uma verdadeira desgraça que os sobreviventes de uma catástrofe acreditem que foram poupados por um Deus amoroso, enquanto esse mesmo Deus afogava bebés em seus berços. Quando parar de revestir a realidade do sofrimento do mundo com fantasias religiosas, você sentirá até os ossos como a vida é preciosa — e que é uma grande infelicidade que milhões de seres humanos sofram tanto quando sua felicidade é abruptamente cortada, das maneiras mais horríveis, sem nenhum bom motivo. É de se pensar quão vasta e gratuita teria de ser uma catástrofe para abalar a fé das pessoas. O Holocausto não obteve esse efeito. Tampouco o genocídio em Ruanda — mesmo contando entre os assassinos padres católicos brandindo suas machadinhas. No século xx, nada menos que 500 milhões de pessoas morreram de varíola, em boa parte crianças. Os caminhos de Deus são, de fato, inescrutáveis. Parece que qualquer fato, por mais infeliz que seja, pode ser considerado compatível com a fé religiosa. É claro que pessoas de todas as religiões sempre garantem umas às outras que Deus não é responsável pelo sofrimento humano. Mas, então, como compreender a afirmação de que Deus é, ao mesmo tempo, onisciente e onipoten- te? Esse é o problema antiquíssimo da teodicéia,* é claro, e devemos considerá-lo solucionado. Se Deus existe, ou Ele não pode fazer nada para impedir as mais terríveis calamidades, ou então Ele não tem interesse nisso. Portanto, ou Deus é impotente, ou então é mau. Você pode agora ser tentado a executar a seguinte pirueta: Deus não pode ser julgado pelos critérios humanos de moral. Mas já vimos que os critérios humanos de moral são exatamente aqueles que você utiliza para afirmar a bondade de Deus. E qualquer Deus que se preocupe com coisas tão triviais como o casamento gay, ou o nome pelo qual Ele deve ser chamado nas orações, não é tão inescrutável assim. Existe outra possibilidade, claro, que é ao mesmo tempo a mais razoável e a menos odiosa: o Deus bíblico é uma ficção, tal como Zeus e milhares de outros deuses mortos que a maioria dos seres humanos mentalmente sãos hoje ignora. Você consegue provar que Zeus não existe? Claro que não. E, contudo, imagine se nós vivêssemos em uma sociedade em que as pessoas gastassem dezenas de bilhões de dólares de sua renda pessoal a cada ano a fim de propiciar os deuses no monte Olimpo, em que o governo gastasse outros bilhões tirados dos impostos dos cidadãos para sustentar instituições dedicadas a esses deuses, em que outros incontáveis bilhões em subsídios fiscais fossem doados para templos pagãos, em que as autoridades eleitas se esforçassem ao máximo para impe- ' Tcodicéia: justificativa da crença na onipotência e na bondade de Deus, diante da existência do mal no mundo. (N. T.) dir pesquisas médicas por respeito à Ilíada e à Odisséia, e em que cada debate sobre políticas públicas fosse subvertido para satisfazer os caprichos de antigos autores que até escreviam bem, mas não conheciam o suficiente sobre a realidade nem para separar seus excrementos de sua comida. Isso seria uma aplicação horrivelmente equivocada dos nossos recursos materiais, morais e intelectuais. E, contudo, é exatamente essa a sociedade em que estamos vivendo. É este o mundo tristemente irracional que você e seus companheiros cristãos trabalham incansavelmente para criar. É terrível pensar que todos nós morremos e perdemos tudo que amamos; é duplamente terrível que tantos seres humanos sofram desnecessariamente enquanto estão vivos. O fato de que uma parte tão grande desse sofrimento pode ser atribuída diretamente à religião — aos ódios religiosos, às guerras religiosas, aos tabus religiosos, aos desvios religiosos de recursos escassos — é o que torna a crítica honesta da fé religiosa uma necessidade moral e intelectual. Infelizmente, expressar essa crítica coloca o não-crente nas margens da sociedade. Só por estar em contato com a realidade, ele parece vergonhosamente fora de contato com a vida fantasiosa de seus vizinhos. O PODER DA PROFECIA Costuma-se dizer que é razoável acreditar que a Bíblia é a palavra de Deus porque muitos acontecimentos narrados no Novo Testamento confirmam profecias do Velho Testamento. Mas faça esta pergunta a você mesmo: que dificulda- 6o de teriam os autores dos evangelhos em narrar a vida de Jesus de modo a fazê-la conformar-se às profecias do Velho Testamento? Não estaria dentro do poder de qualquer mortal escrever um livro que confirmasse as previsões de um livro anterior? E, de fato, sabemos com base nas evidências tex- t uais que foi isso que fizeram os autores dos evangelhos.28 Os autores dos livros de Lucas e de Mateus, por exemplo, declaram que Maria concebeu virgem, adotando a versão grega de Isaías 7,14. Contudo, o texto hebraico de Isaías usa a palavra "almá", que significa simplesmente "uma jovem", sem nenhuma implicação de virgindade. Parece praticamente certo que o dogma do nascimento virginal, e boa parte da consequente ansiedade no mundo cristão a respeito do sexo, é produto de uma tradução errada do texto hebraico. Outro golpe contra a doutrina do nascimento virginal é que os ou- tros dois evangelistas não ouviram falar a respeito. Tanto Marcos como João parecem constrangidos com as acusações da ilegitimidade de Jesus, mas nunca mencionam sua origem milagrosa. São Paulo afirma que Jesus "nasceu da semente de I )avi, de acordo com a carne" e "foi nascido de mulher", sem
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