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Carta a Uma Nação Cristã

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SAM H A R R I S 
Carta a uma 
nação cristã 
 
Tradução 
Isa Mara Lando 
Prefácio 
Richard Dawkins 
Is reimpressão
COMPANHIA DAS 
LETRAS 
Para minha esposa
Sumário 
Prefácio — Richard Dawkins, 9 
Nota ao leitor, 13 Carta a uma 
nação cristã, 19 Dez livros que 
recomendo, 87 Notas, 89
Prefácio 
Richard Dawkins 
Sam Harris não é amigo de divagações sem rumo. Ele es- (rcve 
diretamente para o seu leitor cristão, chamando-o de "você", e lhe dá a 
honra de levar a sério as crenças que "você" defende:"[...] se um de nós 
está certo, o outro está errado [...] < ;<>m o decorrer do tempo, um 
dos dois lados vai realmente vencer essa discussão, e o outro lado 
realmente sairá derrotado". Mas você não precisa (como posso atestar 
pessoalmente) se encaixar no perfil desse "você" para desfrutar este 
maravilhoso livrinho. Cada palavra sai zunindo como uma elegante 
flecha, desferida de uma corda tensionada ao máximo, e voa veloz, 
traçando um gracioso arco e atingindo o alvo bem no centro, para 
grande satisfação do leitor. 
Se você faz parte do alvo, desafio-o a ler este livro. Será iim teste 
saudável para a sua fé. Se você conseguir sobreviver .1 barragem da 
argumentação de Sam Harris, poderá enfrentar o mundo inteiro com 
equanimidade. Mas perdoe-me se duvido: Harris nunca erra o alvo, nem 
em uma única frase, e é por isso que este livro tão breve tem um poder 
devastador tão desproporcional. Se você já compartilha das dúvidas de 
Harris, e minhas, acerca da fé religiosa e não faz parte desse alvo, este livro 
lhe dará armas poderosas para argumentar contra o outro lado. Ou talvez 
você seja cristão, mas não faça parte do alvo. Este livro reconhece que 
existem cristãos que adotam, segundo eles próprios crêem, uma visão mais 
nuan- çada:"[...] os cristãos liberais e moderados nem sempre vão 
reconhecer a si mesmos nesse cristão' a quem me dirijo. Mas com certeza 
reconhecerão muitos de seus vizinhos — e mais de 150 milhões de 
americanos". 
E este é o ponto principal. Foi a ameaça desses 150 milhões que 
motivou este livro. Se as crenças religiosas que você adota são tão vagas e 
nebulosas que até as flechadas mais certeiras ricocheteiam sem ser 
notadas, Harris não está escrevendo diretamente para você. Mesmo assim, 
você deveria se preocupar com essa situação de emergência que tanto 
preocupa a ele — e também a mim. Enquanto eu, como educador 
científico, fico desalentado ao constatar que 50% da população americana 
acredita que o mundo tem 6 mil anos de idade (o equivalente a acreditar 
que a distância entre Nova York e San Francisco é menor que um campo 
de crí- quete), Sam Harris se preocupa com outras crenças desses mesmos 
50%: 
Portanto, não é exagero dizer que, se Londres, Sydney ou Nova York de 
repente virassem uma grande bola de fogo, uma porcentagem significativa da 
população americana veria um lado auspicioso na nuvem em forma de 
cogumelo que se seguiria. Para essas pessoas, seria o sinal de que a melhor 
coisa que jamais vai acontecer no mundo está prestes a acontecer: a volta de 
Jesus Cristo. Deveria ser óbvio e evidente que crenças desse tipo pouco 
ajudam a humanidade a criar para si mesma um futuro duradouro — seja na 
esfera social, económica, ambiental ou geopolítica. Imagine as 
consequências se algum componente significativo do governo americano 
realmente acreditasse que o mundo está prestes a acabar, e que o fim do mun-
do será glorioso. O fato de que quase a metade da população americana 
acredita nisso, puramente com base em um dogma religioso, deve ser 
considerado uma emergência moral e intelectual. 
A nação cristã para quem o livro foi originalmente escrito é, 
naturalmente, os Estados Unidos. Mas seria descaso e loucura se 
descartássemos a questão como se fosse apenas um problema americano. 
Os Estados Unidos ao menos são protegidos por uma esclarecida 
separação, colocada por Jefferson, entre Igreja e Estado. Já na 
Grã-Bretanha a religião faz parte, historicamente, do nosso establishment 
oficial; neste momento a liderança política do nosso país, a mais piedosa 
desde Gladstone, está decidida a apoiar as "escolas religiosas". E não são 
apenas as escolas cristãs tradicionais, note-se, pois nosso governo, açulado 
por um herdeiro ao trono que deseja ser conhecido como "Defensor da Fé", 
tem simpatia ati- va pelas outras "comunidades de fé" que vão balindo "nós 
também", ansiosas para obter uma doutrinação religiosa para seus filhos 
subsidiada pelo Estado. Seria possível conceber uma fórmula educacional 
mais capaz de gerar dissensão e discórdia? E, o mais importante, a única 
superpotência mundial da atualidade está perto de ser dominada por 
eleitores que acreditam que o universo inteiro começou depois da 
domesticação do cão. Acreditam também que serão pessoalmente "ar- 
rebatados" para as alturas celestiais ainda durante seu tempo de vida, fato 
que será seguido por um Armagedom muito bem-vindo como arauto do 
Segundo Advento de Cristo. Mesmo aqui do outro lado do Atlântico, a 
expressão de Sam Harris, "emergência moral e intelectual", já começa a 
parecer até moderada. 
Comecei dizendo que Sam Harris não é amigo de divagações sem 
rumo. Um dos seus argumentos é que nenhum de nós pode se dar a esse 
luxo. Carta a uma nação cristã vai perturbar você. Seja para incentivá-lo a 
uma ação defensiva ou ofensiva, este livro com certeza vai exercer uma 
mudança em você, de alguma maneira. Leia, nem que seja a última coisa 
que vá fazer na vida. E com a esperança de que não seja a última. 
 
Nota ao leitor 
Desde a publicação do meu primeiro livro, The end of faith: 
Religion, terror, and the future of reason [O fim da fé: religião, terror e 
o futuro da razão], milhares de pessoas já me escreveram para dizer que 
estou errado em não acreditar em Deus. As mensagens mais hostis vêm 
de cristãos. É uma ironia, pois os cristãos em geral imaginam que 
nenhuma religião transmite tão bem como a sua as virtudes do amor e 
do perdão. A verdade é que muitos que afirmam ter sido transformados 
pelo amor de Cristo são intolerantes à crítica — de uma intolerância 
profunda, até assassina. Podemos atribuir isso à natureza humana, mas 
é claro que tal ódio recebe considerável apoio da Bíblia. E como eu sei 
disso? Entre os meus correspondentes, os mais mentalmente 
perturbados sempre citam capítulos e versículos bíblicos. 
Embora se destine a pessoas de todas as religiões, este livro foi 
escrito sob a forma de uma carta aos cristãos dos 
Estados Unidos. Nele, respondo a muitos dos argumentos que os cristãos 
conservadores apresentam em defesa de suas crenças religiosas. Assim, o 
"cristão" a quem me dirijo ao longo do texto é um cristão em um sentido 
limitado da palavra. Uma pessoa assim acredita, pelo menos, que a Bíblia é 
a palavra de Deus, escrita por inspiração divina, e que apenas os que 
acreditam na divindade de Jesus Cristo terão a salvação depois da morte. 
Dezenas de pesquisas de opinião, realizadas de maneira científica, 
sugerem que mais da metade da população americana acredita nesses 
postulados.1 É claro que essas crenças metafísicas não se limitam a 
nenhuma nacionalidade e a nenhuma denominação especial do cristianis-
mo. Os cristãos conservadores de todos os países e de todas as seitas — 
católicos, protestantes de linhas majoritárias, evangélicos, batistas, 
pentecostais, testemunhas-de-jeová e assim por diante — estão todos 
igualmente implicados na minha argumentação. 
Embora nenhum outro país desenvolvido se iguale aos Estados 
Unidos em termos de religiosidade, hoje todos os países precisam conviver 
com as consequências de tudo em que meus compatriotas americanos 
acreditam. Como é bem sabido, atualmente as crenças dos cristãos 
conservadores exercem uma influência extraordinária sobre o discurso 
público neste país — em nossos tribunais, nossas escolas e em todas as 
esferas do governo. Se o propósito mais amplo do meu trabalho é dar 
munição aos secularistas de todas as sociedades contra seusopositores, 
cada vez mais fervorosos, em Carta a uma nação cristã me propus 
especificamente a demolir as pretensões intelectuais e morais do 
cristianismo em suas formas mais ardorosas. Assim, os cristãos liberais e 
moderados nem sempre vão reconhecer a si mesmos nesse "cristão" a 
quem me dirijo. Mas com certeza reconhecerão muitos de seus vizinhos — 
e mais de 150 milhões de americanos. 
Não tenho dúvida de que muitos cristãos que vivem fora dos Estados 
Unidos se sentirão tão perturbados como eu por essas bizarras convicções 
da direita cristã. É minha esperança, porém, que eles também comecem a 
perceber que o respeito que concedem às crenças religiosas em geral acaba 
por dar abrigo a extremistas de todas as religiões. Embora a maioria dos 
crentes não arremesse aviões contra edifícios, nem organize sua vida com 
base nas profecias apocalípticas, poucos questionam a legitimidade de 
criar e educar um filho de forma que ele acredite que é cristão, muçulmano 
ou judeu. Assim, até as religiões mais progressistas dão seu apoio táti- co 
para as divisões religiosas do nosso mundo. Contudo, em (larta a uma 
nação cristã me dirijo à cristandade em seu aspecto mais desagregador, 
destrutivo e retrógrado. Nesse aspec- to, tanto liberais e moderados como 
não-crentes podem reconhecer uma causa em comum. 
Segundo uma pesquisa recente da Gallup, apenas 12% dos 
americanos acreditam que a vida na Terra evoluiu através de um processo 
natural, sem a interferência de uma divindade. Para 31%, a evolução foi 
"guiada por Deus".2 Se a nossa visão do mundo fosse submetida a um 
plebiscito, os conceitos de "design inteligente" derrotariam a ciência da 
biologia por quase três votos a um. E isso é perturbador, pois a natureza 
não apresenta nenhuma prova convincente da existência de um "designer 
inteligente" e apresenta incontáveis exemplos de "design não-inteligente". 
Mas a atual polémica sobre o chamado "design inteligente" não deve nos 
impedir de perceber as verdadeiras dimensões da confusão e ignorância 
dos americanos religiosos no alvorecer do século xxi. A mesma pesquisa 
da Gallup revelou que 53% dos americanos são, na verdade, criacionistas. 
Isso significa que, apesar de um século inteiro de descobertas científicas 
que atestam como é antiga a vida na Terra, e mais antigo ainda o nosso 
planeta, mais da metade da população americana acredita que o cosmos 
inteiro foi criado há 6 mil anos. Diga-se de passagem que mil anos antes 
disso os sumérios já tinham inventado a cola. Os que têm o poder de eleger 
presidentes, deputados e senadores — e muitos dos que são eleitos — 
acreditam que os dinossauros sobreviveram aos pares na arca de Noé, que 
a luz de galáxias distantes foi criada a caminho da Terra e que os primeiros 
membros da nossa espécie foram modelados a partir do barro e do hálito 
divino, em um jardim com uma cobra falante, pela mão de um Deus 
invisível. 
Entre os países desenvolvidos, os Estados Unidos estão sozinhos ao 
adotar essas convicções. De fato, tenho a dolorosa consciência de que meu 
país hoje parece, como em nenhum outro momento da sua história, um 
gigante belicoso, desengonçado e mentalmente obtuso. Qualquer pessoa 
que se preocupe com o destino da civilização faria bem em reconhecer que 
a combinação de um grande poder com uma grande estupidez é 
simplesmente aterrorizante, até para os amigos. 
A verdade, porém, é que muitos de meus compatriotas talvez não se 
preocupem com o destino da civilização. Nada menos que 44% da 
população americana está convencida de que Jesus vai voltar para julgar os 
vivos e os mortos, em algum momento dos próximos cinquenta anos. E, 
segundo a interpretação mais comum da profecia bíblica, Jesus só vai 
voltar depois que as coisas derem errado — terrivelmente errado — aqui 
na Terra. Portanto, não é exagero dizer que se Londres, Sydney ou Nova 
York de repente virassem uma grande bola de fogo, uma porcentagem 
significativa da população americana veria um lado auspicioso na nuvem 
em forma de cogumelo que se seguiria. Para essas pessoas, seria o sinal de 
que a melhor coisa que jamais vai acontecer no mundo está prestes a 
acontecer: a volta de Jesus Cristo. Deveria ser óbvio e evidente que 
crenças desse tipo pouco ajudam a humanidade a criar para si mesma um 
futuro duradouro — seja na esfera social, económica, ambiental ou 
geopolítica. Imagine as consequências se algum componente significativo 
do governo americano realmente acreditasse que o mundo está prestes a 
acabar e que o fim do mundo será glorioso. O fato de que quase a metade 
da população americana acredita nisso, puramente com base em um dogma 
religioso, deve ser considerado uma emergência moral e intelectual. O 
livro que você agora vai ler é minha resposta a essa situação de 
emergência. Meu sincero desejo é que para você ele seja útil. 
Sam Harris 19 de novembro de 
2006 Nova York
 
 
 
 
 
 
 
 
Carta a uma nação cristã 
 
Você acredita que a Bíblia é a palavra de Deus, que Jesus é o filho de 
Deus e que apenas aqueles que têm fé em Jesus alcançarão a salvação 
após a morte. Como cristão, você acredita nessas afirmações não 
porque elas o fazem sentir-se bem, mas porque crê que são verdadeiras. 
Antes de apontar alguns problemas que essas crenças apresentam, eu 
gostaria de reconhecer que há muitos pontos em que concordo com 
você. Nós concordamos, por exemplo, que se um de nós es- tá certo, o 
outro está errado. Ou a Bíblia é a palavra de Deus, ou não é. Ou Jesus 
oferece à humanidade o único verdadeiro caminho para a salvação 
(João 14,6), ou não oferece. Concordamos que ser um bom cristão é 
acreditar que todas as ou- I i as religiões estão erradas, e profundamente 
erradas. Se o cris- i ianismo está correto, e eu persistir na minha 
descrença, devo esperar que um dia irei sofrer os tormentos do inferno. 
Pior .linda, já convenci outras pessoas, muitas delas próximas a mim, a 
rejeitar a própria idéia da existência de Deus. Elas também irão padecer 
no "fogo eterno" (Mateus 25,41). Se a doutrina básica do cristianismo 
está correta, então desperdicei a minha vida da pior maneira que se 
possa conceber. Eu reconheço isso, sem restrição alguma. O fato de que 
a minha rejeição do cristianismo, pública e contínua, não me preocupa 
nem um pouco já demonstra o quanto considero inadequadas as suas 
razões para ser cristão. 
É claro que há cristãos que não concordam nem comigo, nem com 
você. Há cristãos que vêem outras religiões como caminhos igualmente 
válidos para a salvação. Há cristãos que não têm medo do inferno e que 
não acreditam na ressurreição física de Jesus. Esses cristãos costumam 
se definir como "religiosos liberais" ou "religiosos moderados". Do 
ponto de vista deles, tanto você como eu não compreendemos 
corretamente o que significa ser uma pessoa de fé. Existe, pelo que eles 
nos garantem, um vasto e belo território entre o ateísmo e o 
fundamentalismo religioso que muitas gerações de cristãos ponderados 
já exploraram discretamente. Segundo os liberais e os moderados, a fé 
se baseia não só no mistério e no significado, mas também na 
comunidade e no amor. As pessoas elaboram a religião a partir de todo 
o tecido de suas vidas, e não apenas de suas crenças. 
Já escrevi em outros textos sobre os problemas que vejo no 
liberalismo religioso e na moderação religiosa. Aqui só precisamos 
observar que o problema é mais simples e, ao mesmo tempo, mais 
urgente do que os liberais e moderados costumam reconhecer. Ou a 
Bíblia é apenas um livro comum, escrito por mortais, ou não é. Ou 
Cristo era divino, ou não era. Se a Bíblia é um livro comum, e Cristo era 
um homem ionium, então a doutrina básica do cristianismo é falsa. Se a 
Uíblia é um livro comum, e Cristo era um homem comum, então a 
história da teologia cristã é a história de homens es- ludiosos 
dissecando uma ilusão coletiva. E se os princípios básicos do 
cristianismo são verdadeiros, então há surpresas extremamente 
desagradáveis à espera de descrentes como cu. Isso você compreende.Pelo menos a metade da popula- c,.io americana compreende. Assim, 
sejamos honestos: com 
0 decorrer do tempo, um dos dois lados vai realmente venccr essa 
discussão, e o outro lado realmente sairá derrotado. 
Pense nisto: cada muçulmano devoto tem as mesmas razoes para 
ser muçulmano que você tem para ser cristão. E, no entanto, você não 
acha essas razões convincentes. O Corão declara repetidas vezes ser a 
palavra perfeita do criador do universo. Os muçulmanos acreditam 
nisso tão piamente quanto você acredita na definição da Bíblia sobre 
ela própria. I lá uma vasta literatura relatando a vida de Maomé que, do 
ponto de vista do islã, prova que ele foi o mais recente dos profetas de 
Deus. Maomé também garantiu aos seus seguidores que Jesus nãotra 
divino (Corão 5,71-75; 19,30-38), e <|uc qualquer pessoa que pense 
diferente passará a eternidade no inferno. Os muçulmanos estão certos 
de que a opinião < le Maomé a respeito desse assunto, assim como de 
todos os outros, é infalível. 
E por que você não perde o sono pensando se deve ou 11.io se 
converter ao islamismo? Você é capaz de provar que Alá não é o único 
e verdadeiro Deus? Você é capaz de provar que o arcanjo Gabriel não 
visitou Maomé em sua caverna? Claro que não. Mas você não precisa 
provar nada disso para rejeitar as crenças muçulmanas, 
considerando-as absurdas. Recai sobre os muçulmanos o ónus da prova 
de que suas crenças acerca de Deus e de Maomé são válidas. E até 
agora eles não fizeram isso. Eles não podem fazer isso. As afirmações 
feitas por eles acerca da realidade simplesmente são impossíveis de ser 
comprovadas. E isso é perfeitamente claro e óbvio para qualquer um 
que não tenha se anestesiado com o dogma do islã. 
A verdade é que você sabe exatamente como é ser ateu, em 
relação às crenças dos muçulmanos. Pois não é óbvio que os 
muçulmanos estão enganando a si mesmos? Não é óbvio que qualquer 
um que considere o Corão a palavra perfeita do criador do universo não 
leu o livro de maneira crítica? Não é óbvio que a doutrina do islã 
representa uma barreira praticamente perfeita para a investigação 
honesta? Sim, tudo isso é óbvio. Compreenda, então, que a maneira 
como você vê o islamismo é exatamente a mesma como os 
muçulmanos devotos vêem o cristianismo. E é dessa maneira que eu 
vejo todas as religiões. 
A SABEDORIA DA BÍBLIA 
Você acredita que o cristianismo é uma fonte inigualável de 
bondade humana. Você acredita que Jesus ensinou as virtudes do amor, 
da compaixão e do altruísmo melhor do que qualquer outro mestre que 
já viveu. Você acredita que a Bíblia é o livro mais profundo jamais 
escrito, e que seu conteúdo suportou tão bem o teste do tempo que só 
pode ter sido escrito por inspiração divina. Todas essas crenças são 
falsas. 
As questões morais são questões de felicidade e sofrimen- lo. É 
por isso que eu e você não temos obrigações morais em relação às 
pedras. Até onde nossas ações podem afetar a experiência de outras 
criaturas, de maneira positiva ou nega- i iva, as questões de moral se 
aplicam. A idéia de que a Bíblia é o guia perfeito para a moralidade é 
simplesmente espantosa, em vista do conteúdo do livro. Não há dúvida 
cie que o conselho de Deus para os pais é direto e claro: sempre que os 
filhos saem da linha, devemos bater neles com uma vara (Provérbios 
13,24; 20,30; e 23,13-14). Se eles tiverem a pou- ca-vergonha de nos 
responder com insolência, devemos malá-los (Êxodo 21,15,Levítico 
20,9, Deuteronômio 21,18-21, Marcos 7, 9-13, Mateus 15, 4-7). 
Também devemos apedrejar pessoas até a morte por heresia, adultério, 
homossexualismo, por trabalhar no sábado, adorar imagens, praticar 
fei- l içaria e mais uma ampla variedade de crimes imaginários, bis aqui 
apenas um exemplo da sabedoria eterna de Deus: 
Se teu irmão, filho de tua mãe, ou teu filho, ou tua filha, ou a mulher do 
teu amor, ou teu amigo que amas como à tua própria alma te incitar em 
segredo, dizendo: "Vamos e sirvamos a outros deuses" [...] não 
concordarás com ele, nem o ouvirás; não o olharás com piedade, não o 
pouparás, nem o esconderás, mas, certamente, o matarás. A tua mão será 
a primeira contra ele, para o matar, e depois a mão de todo o povo. 
Apedrejá-lo-á até que morra, pois te procurou apartar do SENHOR, teu 
Deus, que te tirou da terra do Egito, da casa da servidão [...1. Quando em 
alguma das tuas cidades que o SENHOR, teu Deus, te dá, para ali habitares, 
ouvires dizer que homens malignos saíram do meio de ti e incitaram os 
moradores da sua cidade, dizendo: "Vamos e sirvamos a outros deuses", 
que não conheceste, então, inquirirás, investigarás e, com diligência, 
perguntarás; 
e eis que, se for verdade e certo que tal abominação se cometeu no meio 
de ti, então, certamente, ferirás a fio de espada os moradores daquela 
cidade, destruindo-a completamente e tudo o que nela houver, até os 
animais. 
Deuteronômio 13, 6, 8-15 
Muitos cristãos acreditam que Jesus acabou com toda essa 
barbárie, nos termos mais claros imagináveis, e pregou uma doutrina de 
puro amor e tolerância. Mas não foi assim. Em vários pontos do Novo 
Testamento se pode ler que Jesus confirmou integralmente a lei do 
Velho Testamento. 
Porque em verdade vos digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou 
um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que 
violar um destes mandamentos, posto que dos menores, e assim ensinar 
aos homens, será considerado mínimo no reino dos céus; aquele, porém, 
que os observar e ensinar, esse será considerado grande no reino dos 
céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder em muito a dos 
escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus. 
Mateus 5,18-20 
Os apóstolos repetiram várias vezes esse tema (por exemplo, veja 
2 Timóteo 3,16-17). É verdade, claro, que Jesus disse coisas profundas 
sobre o amor, a caridade e o perdão. A Regra de Ouro1 é realmente um 
preceito moral maravilho- so. Mas numerosos mestres já deram essa 
mesma orientação séculos antes de Jesus (Zoroastro, Buda, Confúcio, 
Epicteto...), e incontáveis escrituras discutem a importância do amor 
que transcende o próprio eu de maneira mais articulada do que .1 
Bíblia, sem serem maculadas pelas obscenas celebrações de violência 
que encontramos em abundância tanto no Velho como no Novo 
Testamento. Se você acha que o cristianismo é .1 expressão mais direta 
e pura de amor e compaixão que o mundo já viu, é porque não conhece 
bem as outras religiões. 
Veja, por exemplo, o jainismo. Essa religião prega a dou- l ri na da 
absoluta não-violência. É verdade que os jainistas acreditam em muitas 
coisas improváveis acerca do universo; mas nao do tipo de coisas que 
acenderam as fogueiras da Inquisição. Você provavelmente pensa que 
a Inquisição foi uma perverso do "verdadeiro" espírito do cristianismo. 
Talvez tenha si- (lo. O problema, porém, é que os ensinamentos da 
Bíblia são Ião confusos e contraditórios que foi possível para os cris- 
 
1 Regra de Ouro: versículo do Sermão da Montanha (Mateus 7,12): "Tudo aquilo, 
portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei e os 
Profetas". Ao mencionar a lei e os profetas, Jesus se refere ao preceito já citado no Velho 
Testamento: "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Levítico 19,18). (N. T.) 
l.ios queimar alegremente os heréticos nas fogueiras, duran- le cinco 
longos séculos. Inclusive foi possível para os mais venerados patriarcas 
da Igreja, como santo Agostinho e santo lómás de Aquino, concluir que 
os heréticos deviam ser tor- 111 rados (santo Agostinho)3 ou mortos 
logo de uma vez (santo lómás de Aquino).4 Martinho Lutero e João 
Calvino defendiam o assassinato em massa de heréticos, apóstatas, 
judeus i feiticeiras.5 Naturalmente, você é livre para interpretar a Bí- 
!>lia de outra maneira — mas não é espantoso que você tenha 
conseguido discernir os verdadeiros ensinamentos do cris- l ianismo, 
enquanto os mais influentes pensadoresna história «l.i religião cristã 
falharam nesse ponto? É claro que muitos < i islãos acreditam que uma 
pessoa inofensiva como Martin 
Luther King Jr. é o melhor exemplo da religião cristã. Mas isso 
apresenta um sério problema, pois a doutrina do jainis- mo é, 
objetivamente, uma orientação melhor do que a doutrina do 
cristianismo para quem deseja ser como Martin Luther King Jr. Não há 
dúvida de que King se considerava um cristão devoto, mas ele assumiu 
seu compromisso com a não- violência basicamente a partir dos 
escritos de Mohandas K. Gandhi. Em 1959, King até viajou para a índia 
a fim de aprender os princípios do protesto social não-violento 
diretamen- te com os discípulos de Gandhi. E com quem Gandhi, um 
hin- duísta, aprendeu a doutrina da não-violência? Com os jainistas. 
Se você acredita que Jesus ensinou apenas a Regra de Ouro e o 
amor ao próximo, deve reler o Novo Testamento. Preste atenção 
especial à moralidade que ficará em evidência quando Jesus voltar à 
terra, deixando um rastro de nuvens de glória: 
se, de fato, é justo para com Deus que ele dê em paga tribulação aos que 
vos atribulam [...] quando do céu se manifestar o Senhor Jesus com os 
anjos do seu poder, em chama de fogo, tomando vingança contra os que 
não conhecem a Deus e contra os que não obedecem ao evangelho de 
nosso Senhor Jesus. Estes sofrerão penalidade de eterna destruição, 
banidos da face do Senhor e da glória do seu poder. 
2 Tessalonicenses 1,6-9 
Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do 
ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam. 
João 15, 6 
Se levarmos em conta a metade das afirmações de Jesus, podemos 
facilmente justificar as ações de são Francisco de Assis ou Martin 
Luther King Jr. Levando em conta a outra metade, podemos justificar a 
Inquisição. Qualquer pessoa que acredite que a Bíblia oferece a melhor 
orientação possível em assuntos de moralidade tem idéias muito 
estranhas — ou sobre orientação, ou sobre moralidade. 
Ao avaliar a sabedoria moral da Bíblia, é útil considerar questões 
morais que já foram resolvidas para satisfação geral. Considere a 
questão da escravidão. Hoje, o mundo civilizado inteiro concorda que 
escravidão é uma abominação. (.Hie instrução moral recebemos do 
Deus de Abraão a esse respeito? Consulte a Bíblia e você descobrirá 
que o criador do universo espera, claramente, que nós tenhamos 
escravos: 
Quanto aos escravos ou escravas que tiverdes, virão das nações ao vosso 
derredor; delas comprareis escravos e escravas. Também os comprareis 
dos filhos dos forasteiros que peregrinam entre vós, deles e das suas 
famílias que estiverem convosco, que nasceram na vossa terra; e A'os 
serão por possessão. Deixá-los-eis por herança para vossos filhos depois 
de vós, para os haverem como possessão; perpetuamente os fareis servir, 
mas sobre vossos irmãos, os filhos de Israel, não vos assenhoreareis com 
tirania, um sobre os outros. 
Levítico 25,44-46 
A Bíblia também deixa claro que todo homem tem liberdade de 
vender sua filha como escrava sexual — apesar de que nesse caso se 
aplicam certas restrições sutis: 
Se um homem vender sua filha para ser escrava, esta não lhe sairá como 
saem os escravos. Se ela não agradar ao seu senhor, que se comprometeu 
a desposá-la, ele terá de permitir-lhe o resgate; não poderá vendê-la a um 
povo estranho, pois será isso deslealdade para com ela. Mas, se a casar 
com seu filho, tratá-la-á como se tratam as filhas. Se ele der ao filho outra 
mulher, não diminuirá o mantimento da primeira, nem os seus vestidos, 
nem os seus direitos conjugais. Se não lhe fizer estas três coisas, ela sairá 
sem retribuição, nem pagamento em dinheiro. 
Êxodo 21,7-11 
A única verdadeira restrição que Deus aconselha acerca da 
escravidão é que não devemos bater nos nossos escravos tão 
severamente a ponto de ferir seus olhos ou seus dentes (Êxodo 21, 
26-27). Nem é preciso dizer que esse não é o tipo de orientação moral 
que conseguiu abolir a escravidão nos Estados Unidos. 
Em nenhum ponto do Novo Testamento Jesus faz obje- ção à 
prática da escravidão. São Paulo até exorta os escravos a servirem bem 
aos seus senhores — e especialmente bem aos seus senhores cristãos: 
Quanto a vós outros, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne 
com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo [...] 
servindo de boa vontade, como ao Senhor, e não como a homens. 
Efésios 6, 5-7 
Todos os servos que estão debaixo de jugo considerem dignos de toda 
honra os próprios senhores, para que o nome de Deus e a doutrina não 
sejam blasfemados. Também os que têm senhores fiéis não os tratem com 
desrespeito, porque são irmãos; pelo contrário, trabalhem ainda mais, 
pois eles, que partilham do seu bom serviço, são crentes e amados. Ensina 
e recomenda estas coisas. Se alguém ensina outra doutrina e não concorda 
com as sãs palavras de nosso Senhor Jesus Cristo, e com o ensino 
segundo a piedade, é enfatuado, nada entende, mas tem mania por 
questões e contendas de palavras, de que nascem inveja, provocação, 
difamações, suspeitas malignas [...) 
1 Timóteo 6,1-4 
Deve ficar bem claro a partir dessas passagens que, embora os 
abolicionistas do século xix estivessem moralmente <, cr tos, estavam 
do lado perdedor da discussão teológica. Como disse o reverendo 
Richard Fuller em 1845, "Aquilo que I )eus autorizou no Velho 
Testamento, e permitiu no Novo, não pode ser pecado".6 Aqui o 
bondoso reverendo pisava em lei rcno firme. Não há nada na teologia 
cristã que busque remediar as espantosas deficiências da Bíblia acerca 
dessa ques- i.io moral, talvez a maior — e a mais fácil— que nossa so- 
t iedade já teve de enfrentar. 
Em resposta, cristãos como você muitas vezes notam que também 
os abolicionistas obtiveram na Bíblia uma considerável inspiração. 
Claro que sim. Há milénios as pessoas escolhem a dedo determinadas 
passagens bíblicas para jus- I iíícar cada um de seus impulsos, sejam 
morais ou não. Isso não significa, porém, que aceitar a Bíblia como a 
palavra de I )eus seja a melhor maneira de descobrir que sequestrar e 
es- i lavizar milhões de homens, mulheres e crianças inocentes c 
moralmente errado. Com certeza não é a melhor maneira de chegar a 
essa conclusão, em vista do que a Bíblia realmen- le diz sobre esse 
assunto. O fato de que alguns abolicionistas usaram certos trechos 
bíblicos para repudiar outros trechos não indica que a Bíblia seja um 
bom guia para a moralidade. Tampouco sugere que os seres humanos 
precisam consultar um livro para resolver questões morais desse tipo. 
No momento em que uma pessoa reconhecer que escravos são seres 
humanos como ela própria, com a mesma capacidade de sentir o 
sofrimento e a felicidade, ela compreenderá que, obviamente, é 
crueldade possuí-los e tratá-los como se fossem equipamentos 
agrícolas. É notavelmente fácil para qualquer pessoa chegar a essa 
brilhante conclusão — e, contudo, ela teve de ser difundida a ponta de 
baioneta em todo o Sul dos Estados Unidos, entre os cristãos mais 
piedosos que este país já conheceu. 
Os Dez Mandamentos também merecem alguma reflexão nesse 
contexto, pois, ao que parece, a maioria dos americanos acredita que 
eles são indispensáveis, tanto do ponto de vista moral como do legal.7 É 
verdade que a Constituição americana não contém nem uma única 
menção a Deus e que foi amplamente condenada, na época de sua 
elaboração, por ser um documento não-religioso. Mesmo assim, muitos 
cristãos acreditam que nosso país foi fundado sobre "princípios 
judaico-cristãos". É estranho, mas os Dez Mandamentos muitas vezes 
são citados como prova incontestável desse fato. Se a relevância desses 
mandamentos para a história dos Estados Unidos é questionável, nossa 
reverência por eles não é acidental. Afinal, essa é a única passagem 
bíblica tão profunda que o criador do universo sentiu necessidade de 
escrever fisicamente, ele próprio, gravando os mandamentos na 
I" (Ira. Sendo assim,poderíamos esperar que estas fossem as 11 .ises 
mais grandiosas jamais escritas, sobre qualquer assunto, em qualquer 
idioma. Aqui estão eles. Prepare-se... 
1 — Não terás outros deuses diante de mim. 
2 — Não farás para ti imagens esculpidas. 
3 — Não tomarás o nome do SENHOR, teu Deus, em vão. 
4 — Lembra-te do dia de sábado para santificá-lo. 
5 — Honra teu pai e tua mãe. 
(-> — Não matarás. 
7 — Não cometerás adultério. 
8 — Não roubarás. 
9 — Não apresentarás falso testemunho contra o teu próximo. 
10 — Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a sua mulher, 
nem o seu escravo, nem a sua escrava, nem o seu boi, nem o 
seu jumento, nem coisa alguma que pertença a teu próximo. 
Desses preceitos (Êxodo 20, 2-17), os primeiros quatro ii.io têm 
nada a ver com a moral. Tal como são expressos, proí- I »oni a prática 
de qualquer religião que não seja a judaico-cris- l,i (como o 
hinduísmo), a maior parte da arte religiosa, o uso dt* expressões com a 
palavra "Deus" e a execução de todo e qualquer trabalho corriqueiro 
durante o sábado —tudo isso Job pena de morte. Podemos nos 
perguntar até que ponto esses preceitos são vitais para a manutenção da 
civilização. 
Os mandamentos de 5 a 9 de fato tratam da moral, embora não se 
saiba quantas pessoas já honraram seus pais ou se abstiveram de 
cometer assassinato, adultério, roubo ou perjúrio por causa desses 
preceitos. Admoestações desse tipo são encontradas em praticamente 
todas as culturas, em Ioda a história humana registrada. Não há nada de 
especial - mente incisivo na maneira como são apresentadas na Bíblia. 
Existem razões biológicas óbvias pelas quais as pessoas tendem a tratar 
bem seus pais, e a fazer mau juízo dos assassinos, adúlteros, ladrões e 
mentirosos. É um fato científico que emoções morais — tais como o 
senso de justiça ou o horror à crueldade — precedem qualquer contato 
com as escrituras. De fato, estudos sobre o comportamento dos 
primatas revelam que essas emoções (em alguma forma) precedem a 
existência cia própria humanidade. Todos os primatas, nossos primos, 
demonstram parcialidade para com sua própria família ou tribo, e de 
modo geral não toleram o assassinato e o roubo. Também não gostam, 
de modo geral, de trapaça nem de traição sexual. Os chimpanzés, em 
especial, demonstram muitas das complexas preocupações sociais que 
esperaríamos ver em nossos parentes mais próximos no mundo natural. 
Assim, parece bastante improvável que o americano médio receba a 
instrução moral necessária ao ver esses preceitos inscritos no mármore 
sempre que entra em um tribunal. E o que devemos pensar do fato de 
que, ao encerrar seu tratado, o criador do nosso universo não conseguiu 
pensar em nenhuma preocupação humana mais premente e duradoura 
do que cobiçar escravos e animais domésticos? 
Se formos levar a sério o Deus da Bíblia, devemos admitir que Ele 
nunca nos dá a liberdade para seguir os mandamentos dos quais 
gostamos e negligenciar os demais. Ele tampouco nos diz que podemos 
relaxar nas penalidades que Ele impôs por desrespeitá-los. 
Se você acha que seria impossível melhorar os Dez Mandamentos 
como afirmação de moralidade, você realmente deveria fazer um favor 
a si mesmo e ler as escrituras de algu- in.r. outras religiões. Mais uma 
vez, não precisamos ir mais lun^e do que os jainistas; Mahavira, o 
patriarca jainista, su- I" rou a moralidade da Bíblia como uma única 
frase: "Não N M I , abusar, oprimir, escravizar, insultar, atormentar, 
tortu- i .ii ou matar nenhuma criatura ou ser vivo". Imagine como " 
nosso mundo poderia ser diferente se a Bíblia contivesse 
• . ..I IVase como preceito central. Os cristãos abusaram, opri- 
I I H I .un, escravizaram, insultaram, atormentaram, tortura- i .mi e 
mataram pessoas em nome de Deus durante séculos, «< >111 base em 
uma leitura teologicamente defensável da Bíblia. I un possível se 
comportar dessa maneira aderindo aos prin- 
• Ipios do jainismo. Como, então, você pode argumentar que Bíblia 
oferece a expressão mais clara de moralidade que o 
inundo já viu? 
\\ VVII KDADEIRA MORALIDADE 
Você acredita que, se a Bíblia não for aceita como a pa- l.ivra de 
Deus, não pode haver um padrão universal de mo- i alidade. Mas 
podemos facilmente pensar em fontes objeti- as (le ordem moral que 
não requerem a existência de um Deus legislador. Para que haja 
verdades morais objetivas que valha I pena conhecer, é necessário que 
haja apenas maneiras melhores e piores de buscar a felicidade neste 
mundo. Se exis- lem leis psicológicas que governam o bem-estar 
humano, . onhecer essas leis nos proporcionaria uma base duradoura I 
»ara uma moralidade objetiva. É verdade que não temos nada que se 
assemelhe a uma compreensão final e científica da moralidade humana; 
mas parece seguro dizer que estuprar e matar nosso próximo não estão 
entre seus elementos básicos. Tudo na experiência humana sugere que 
o amor conduz à felicidade mais do que o ódio. Essa é uma afirmação 
obje- tiva acerca da mente humana, da dinâmica das relações sociais e 
da ordem moral do nosso mundo. Sem dúvida é possível dizer que 
alguém como Hitler estava errado em termos morais, sem ser preciso 
nos referirmos às escrituras. 
Se sentir amor pelos outros é, com certeza, uma das maiores 
fontes da nossa própria felicidade, também acarreta uma preocupação 
profunda pela felicidade e pelo sofrimento daqueles que amamos. 
Assim, nossa própria busca de felicidade nos dá um motivo 
fundamental para o auto-sacrifício e a abnegação. Não há dúvida de 
que existem ocasiões em que fazer enormes sacrifícios pelo bem dos 
outros é essencial para o nosso próprio bem-estar mais profundo. Não é 
necessário acreditar em nada, sem provas convincentes, para que as 
pessoas formem vínculos desse tipo. Em vários pontos dos evangelhos, 
Jesus nos diz claramente que o amor pode transformar a vida humana. 
Para assimilar esses ensinamentos em nosso coração, não precisamos 
acreditar que ele nasceu de uma virgem, ou que ele voltará para a terra 
como um super-herói. 
Um dos efeitos mais perniciosos da religião é que ela tende a 
divorciar a moral da realidade do sofrimento dos seres humanos e dos 
animais. A religião permite que as pessoas imaginem que suas 
preocupações são morais quando não são — isto é, quando elas não têm 
nada a ver com o sofrimento ou com o alívio do sofrimento. De fato, a 
religião permite que as pessoas imaginem que suas preocupações são 
morais <|ii.indo, na verdade, são altamente imorais — isto é, quando 
insistir nessas preocupações inflige um sofrimento atroz i 
desnecessário em seres humanos inocentes. Isso explica por i Hic 
cristãos como você gastam mais energia "moral" fazendo oposição ao 
aborto do que lutando contra o genocídio. I \plica por que você está 
mais preocupado com os embriões humanos do que com a 
possibilidade de salvar vidas, o fere - 
• ida pela pesquisa com células-tronco. E explica por que vo- < r é 
capaz de pregar contra o uso da camisinha na África sub- 
.1.11 iana, enquanto milhões de pessoas morrem de aids nessa n giao a 
cada ano. 
Você acredita que as suas preocupações religiosas a res- IM i lo de 
sexo, tão imensas e tão cansativas, têm algo a ver com i moralidade. E, 
contudo, seus esforços para reprimir o com- poi lamento sexual de 
adultos que agem por livre e espontâ- II II<<MM vontade — e até para 
desencorajar seus próprios filhos e Ilibas de fazerem sexo antes do 
casamento — quase nunca se > Ir-.li nam ao alívio do sofrimento 
humano. Ao que parece, ali- i.iio sofrimento está bem lá embaixo na 
sua lista de priori- 
• l.i*les. Felo visto, a sua principal preocupação é que o criador 
do universo ficará ofendido com algo que as pessoas fazem 
• |u,uido estão nuas. E essa sua mentalidade pudica contribui, 
di.ii ia mente, para o excesso de infelicidade humana. 
(Considere, por exemplo, o papilomavírus humano (HPV, II.I .ij;la 
em inglês). O HPV é hoje a doença sexualmente transmissível mais 
comum nos Estados Unidos. Esse vírus infec- 
i .1mais da metade da população americana, causando a mor- 
ii de quase 5 mil mulheres a cada ano, de câncer cervical. O 1 ri il ro 
para Controle de Doenças (Center for Desease Control 
< i X:) estima que mais de 200 mil mulheres morrem anualmente 
dessa doença no mundo inteiro. Hoje temos uma vacina para o HPV que 
parece ser segura e eficiente. A vacina produziu uma imunidade de 
100% nas 6 mil mulheres que a receberam como parte de um teste 
clínico.8 Contudo, os conservadores cristãos no governo americano 
opõem resistência ao programa de vacinação, alegando que o HPV é um 
impedimento valioso contra o sexo antes do casamento. Esses homens e 
mulheres piedosos desejam preservar o câncer cervical como incentivo 
para a abstinência sexual, embora ele tire a vida de milhares de 
mulheres a cada ano. 
Não há nada de errado em incentivar os adolescentes a se abster 
de sexo. Mas nós já sabemos, fora de qualquer dúvida, que apenas 
ensinar a abstinência não é uma boa maneira de reduzir a gravidez na 
adolescência nem a disseminação de doenças sexualmente 
transmissíveis. Na verdade, os adolescentes que só recebem lições de 
abstinência têm menos probabilidades de usar métodos 
anticoncepcionais quando fazem sexo — como muitos deles vão fazer, 
inevitavelmente. Um estudo descobriu que as "promessas de 
virgindade" promovidas pelo governo americano adiam o ato sexual 
por dezoito meses, em média — e que, durante esse período, esses 
adolescentes virgens têm mais probabilidade do que os demais de fazer 
sexo oral e anal.9 Os adolescentes americanos fazem sexo tanto quanto 
os adolescentes do resto do mundo desenvolvido; mas as jovens 
americanas têm quatro a cinco vezes mais probabilidade de engravidar, 
dar à luz ou fazer aborto. Os jovens americanos também têm muito 
mais probabilidade de ser infectados pelo HIV e outras doenças se-
xualmente transmissíveis. O índice de gonorréia entre adolescentes 
americanos é setenta vezes maior do que entre os adolescentes da 
Holanda e da França.10 O fato de que 30% de nossos programas de 
educação sexual ensinam apenas a abstinência (a um custo anual de 
mais de 200 milhões de dólares) com certeza tem algo a ver com isso. 
O problema é que cristãos como você não estão preocupados com 
a gravidez adolescente e a disseminação de doenças. Isto é, você não 
está preocupado com o sofrimento causado pelo sexo; você está 
preocupado com o sexo. E, como se este fato precisasse ainda mais de 
comprovação, o evangélico Reginald Finger, membro do Comité 
Consultor de Práticas d e i munização do CDC, anunciou recentemente 
que pensa em '.e opor a uma vacina contra o HIV — condenando, assim, 
milhões de homens e mulheres a morrer de aids a cada ano, des-
necessariamente —, já que tal vacina incentivaria o sexo antes tio 
casamento, por torná-lo menos arriscado.11 Este é um 
• l< >s muitos aspectos em que suas crenças religiosas se tornam 
I'.enuinamente letais. 
Seus escrúpulos acerca da pesquisa com células-tronco ■ao 
igualmente obscenos. Aqui estão os fatos: a pesquisa com 
• elulas-tronco é um dos avanços mais promissores da mediu na no 
último século. Pode oferecer avanços revolucioná- i ios no tratamento 
de todas as doenças e processos perni- 
• iosos que atingem o ser humano — pela simples razão de que as 
células-tronco dos embriões podem se transformar un qualquer tecido 
do corpo humano. Essa pesquisa tam- ln in pode ser essencial para a 
nossa compreensão do cân- m i e de uma vasta gama de doenças do 
desenvolvimento. Em \ isla de tais fatos, é quase impossível exagerar as 
perspecti- 
,i. promissoras dessa pesquisa. É verdade, claro, que a pesquisa com 
células-tronco embrionárias acarreta a destruição de embriões humanos 
de três dias de idade. É com isso que você se preocupa. 
Vejamos os detalhes. Um embrião humano é um agrupamento de 
150 células chamado blastocisto. Existem, para efeito de comparação, 
mais de 100 mil células no cérebro de uma mosca. Os embriões 
humanos que são destruídos nas pesquisas com células-tronco não têm 
cérebro, nem sequer neurónios. Assim, não há razão para acreditar que 
eles possam sentir qualquer tipo de sofrimento com a sua destruição, de 
maneira alguma. Nesse contexto, vale lembrar que, quando ocorre a 
morte cerebral, atualmente julgamos aceitável extrair os órgãos da 
pessoa (desde que ela os tenha doado para esse fim) e enterrá-la. Se é 
aceitável tratar uma pessoa cujo cérebro morreu como algo menos que 
um ser humano, deveria ser aceitável tratar do mesmo modo um 
blastocisto. Se você está preocupado com o sofrimento que ocorre neste 
universo, matar uma mosca deveria lhe apresentar dificuldades morais 
maiores do que matar um blastocisto humano. 
Talvez você ache que a diferença crucial entre uma mosca e um 
blastocisto humano está no potencial deste último de tornar-se um ser 
humano plenamente desenvolvido. Mas, em vista dos nossos recentes 
avanços em engenharia genética, quase toda célula do corpo humano é 
um ser humano em potencial. Cada vez que você coça o nariz, já 
cometeu um holocausto de seres humanos em potencial. Isso é um fato. 
O argumento que fala do potencial das células não leva a absolutamente 
nada. 
Mas vamos admitir, por enquanto, que cada embrião humano de 
três dias de idade tenha uma alma merecedora da nossa preocupação 
moral. Os embriões nesse estágio por ve- /.es se dividem, tornando-se 
duas pessoas separadas (gémeos idênticos). Será que nesse caso uma só 
alma se dividiu em duas? Por outro lado, às vezes dois embriões se 
fundem em um único indivíduo, chamado "quimera". Talvez você, ou 
alguém que você conhece, tenha se desenvolvido dessa maneira. Não 
há dúvida de que em algum lugar, neste momento, há teólogos se 
esforçando para decidir o que acontece com a alma humana em um 
caso assim. 
Será que já não é hora de reconhecermos que essa aritmética de 
almas não faz nenhum sentido? A idéia ingénua de que existem almas 
em uma placa de Petri é intelectualmente impossível de defender. Ê 
também moralmente indefensável, considerando-se que ela está 
obstruindo pesquisas entre as mais promissoras da história da 
medicina. As suas cren- i,as a respeito da alma humana estão, neste 
exato momento, I >i <)longando o sofrimento atroz de dezenas de 
milhões de se- ies humanos. 
Você acredita que "a vida começa no momento da con- • epção". 
Você acredita que existem almas em cada um desses U.istocistos e que 
os interesses de uma alma — digamos, a .ilma de uma menininha com 
queimaduras em 75% do corpo não podem predominar sobre os 
interesses de outra alma, mesmo que essa alma viva dentro de um tubo 
de en- .iio. Considerando todas as concessões que já fizemos para a« 
omodar a irracionalidade baseada na fé no nosso discur- público, 
muitos afirmam — inclusive defensores da pes- qui.sa com 
células-tronco — que a posição que você adota nes- 
• assunto tem certo grau de legitimidade moral. Mas não tem. aia 
resistência à pesquisa com células-tronco embrionárias 
• na melhor das hipóteses, mal informada. Na verdade, não existe 
nenhuma razão moral para a má vontade do governo federal americano 
em financiar esse trabalho. Nós deveríamos investir recursos imensos 
em pesquisas com células- tronco, e deveríamos fazê-lo imediatamente. 
Mas, por causa das crenças de cristãos como você a respeito de almas, 
não estamos fazendo isso. Na verdade, vários estados americanos já 
tornaram essa pesquisa ilegal.12 Em Dakota do Sul, por exemplo, quem 
fizer experiências com blastocistos se arrisca a passar anos na prisão.13 
A verdade moral aqui é óbvia: qualquer pessoa que creia que os 
interesses de um blastocisto podem prevalecer sobre os interesses de 
uma criança com uma lesão na espinha dorsal está com seu senso moral 
cegado pela metafísica religiosa. O vínculo entre a religião e a "moral" 
— tão proclamado e tão poucas vezes demonstrado — fica aqui 
totalmente desmascarado, tal como acontece sempre que o dogma 
religioso prevalece sobre o raciocínio moral e a compaixão genuína. 
FAZENDOO BEM EM NOME DE DEUS 
O que dizer de todas as coisas boas que são feitas em nome de 
Deus? É inegável que muitas pessoas de fé fazem sacrifícios heróicos 
para aliviar o sofrimento de outros seres humanos. Mas será que é 
necessário acreditar em qualquer coisa, sem ter provas suficientes, para 
agir dessa maneira? Se a compaixão realmente dependesse do 
dogmatismo religioso, como explicar o trabalho de médicos 
não-religiosos que atuam no mundo em desenvolvimento, nas regiões 
mais destroçadas pelas guerras? Há muitos médicos motivados sim- 
(desmente pelo desejo de aliviar o sofrimento humano, sem nenhum 
pensamento acerca de Deus. Não há dúvida de que missionários 
cristãos também são movidos pelo desejo de .ihviar o sofrimento 
humano; mas eles abordam essa tarefa 
• ,11 regando o pesado fardo de uma mitologia perigosa e cau- nidora 
de desavenças. Os missionários no mundo em desen- volvimento 
desperdiçam muito tempo e dinheiro (sem falar n.i boa vontade dos 
não-cristãos) fazendo proselitismo com i »•. necessitados; eles 
divulgam informações inexatas a respeito de métodos 
anticoncepcionais e doenças sexualmente 11 ansmissíveis, e se 
recusam a divulgar informações precisas. ' .e c verdade que os 
missionários fazem muitas coisas nobres, 
• om grandes riscos para si mesmos, o fato é que seu dogmatismo 
dissemina a ignorância e a morte. Em contraste, voluntários de 
organizações seculares, como a Médicos Sem I tonteiras, não 
desperdiçam tempo algum falando com as pessoas sobre o nascimento 
virginal de Jesus. Tampouco diem à população da África subsaariana 
— onde quase 4 milhões de pessoas morrem de aids a cada ano — que 
é pecado usar camisinha. Sabe-se de casos em que missionários ■ i 
islãos pregaram que usar preservativo é pecado, em localidades onde 
não há nenhuma outra informação acerca do assunto. Esse tipo de 
crença é genocida.* Também podemos 
I difícil acreditar, mas o Vaticano atualmente se opõe ao uso cia camisinha, até l mi ,i 
evitar a contaminação por HIV entre marido e mulher. Há rumores de que o I m|m está 
reconsiderando essa orientação. O cardeal Javier Lozano Barragán, pre- u li'iite do 
Pontifício Conselho para a Pastoral da Saúde, anunciou na Rádio Va- LL< .IMO que 
seu departamento está "realizando um estudo científico, técnico e mo- i il muito 
profundo" dessa questão (!). Nem é preciso dizer que, se a doutrina da l(»,i<'ja mudar em 
consequência dessas piedosas deliberações, isso não será sinal ilr 11tie a fé é sábia, e sim 
de que um de seus dogmas se tornou insustentável. 
nos perguntar, de passagem, o que é mais moral: ajudar as pessoas 
puramente pela preocupação com o sofrimento delas, ou ajudá-las 
porque você acha que o criador do universo vai recompensá-lo por 
isso? 
Madre Teresa de Calcutá é um exemplo perfeito da maneira como 
uma boa pessoa, impelida a ajudar os outros, pode ter sua intuição 
moral perturbada pela fé religiosa. Christopher Hitchens expressa isso 
com sua característica franqueza: 
[Madre Teresa] não era amiga dos pobres. Era amiga da pobreza. Ela 
afirmou que o sofrimento era um presente de Deus. Passou toda a sua 
vida se opondo à única cura conhecida para a pobreza, que é dar poder e 
emancipação às mulheres, para que elas saiam de uma situação de 
animais domésticos com reprodução compulsória.14 
Embora em essência eu concorde com Hitchens nesse ponto, não 
se pode negar que madre Teresa foi uma grande força pela compaixão. 
Sem dúvida foi motivada pelo sofrimento humano, e fez muita coisa 
para despertar outras pessoas para a realidade desse sofrimento. O 
problema, porém, é que a sua compaixão foi canalizada para o seu 
estreito dogmatismo religioso. Em seu discurso ao aceitar o prémio 
Nobel, ela disse: 
O principal destruidor da paz é o aborto [...]. Muitas pessoas se preo-
cupam muitíssimo com as crianças da índia, com as crianças da África, 
onde um grande número morre, talvez de desnutrição, de fome e assim 
por diante, mas milhões estão morrendo, deliberadamente, pela vontade 
de suas mães. E é esse o maior destruidor da paz hoje em dia. Pois, se uma 
mãe é capaz de matar o próprio filho, o que impede que eu mate você e 
você me mate? Não há nenhum impedimento.15 
Como diagnóstico dos problemas do mundo, essas observações 
estão espantosamente equivocadas. Como afirmações de moral, não 
são melhores. A compaixão de madre Teresa estava muito mal 
calibrada, se matar um feto no primeiro trimestre a perturbava mais do 
que todo o sofrimento que ela testemunhou nesta Terra. É verdade que 
o aborto é uma feia realidade, e todos nós devemos ter esperança de que 
surjam avanços nos métodos anticoncepcionais, reduzindo a 
necessidade dessa prática; mesmo assim, é razoável duvidar de que a 
maioria dos fetos abortados sofra com sua destruição, em qualquer 
nível que seja. Contudo, essa dúvida não seria razoável quando se trata 
dos milhões de homens, mulheres e crianças que suportam os 
tormentos da guerra, da fome, da tortura política ou da doença menial. 
Neste exato momento, milhões de seres sensíveis à dor estão sofrendo 
aflições físicas e mentais inimagináveis, em * ircunstâncias em que não 
se vê em parte alguma a compaixão divina, e a compaixão humana é 
com bastante frequência prejudicada por idéias ridículas a respeito do 
pe- < ado e da salvação. Se você se preocupa com o sofrimento 
humano, o aborto deveria ficar bem no fim da sua lista de 
preocupações. 
Enquanto o aborto continua sendo uma questão ridicu- lamente 
polémica nos Estados Unidos, a posição "moral" da l)",i eja nesse 
assunto está hoje plenamente — e horrivelmente encarnada em El 
Salvador. Nesse país, o aborto é hoje ilegal sob quaisquer 
circunstâncias. Não há exceções para o estupro ou o incesto. No 
momento em que uma mulher chega a um hospital com o útero 
perfurado, indicando que fez um aborto caseiro em algum beco, ela é 
algemada à cama do hospital e seu corpo é tratado como uma cena de 
crime. Médicos forenses chegam para examinar seu útero. Há mulheres 
hoje cumprindo penas de trinta anos de prisão pelo crime de 
interromper sua gravidez.16 Imagine tal cenário em um país que 
também estigmatiza o uso de anticoncepcionais e os vê como um 
pecado contra Deus. E, contudo, é exatamente esse tipo de política que 
adotaríamos se concordássemos com madre Teresa em sua avaliação 
do sofrimento humano. De fato, o arcebispo de San Salvador fez uma 
campanha ati- va nesse sentido. Ele foi auxiliado em seus esforços pelo 
papa João Paulo li, que declarou, em uma visita à Cidade do México em 
1999, que "a Igreja precisa proclamar o evangelho da vida, e falar com 
força profética contra a cultura da morte. Possa o continente da 
esperança ser também o continente da vida!". 
É claro que a posição da Igreja a respeito do aborto não leva em 
conta os detalhes da biologia, assim como não leva em conta a 
realidade do sofrimento humano. Já foi estimado que 50% de todas as 
concepções humanas terminam em aborto espontâneo, em geral sem 
que a mulher sequer perceba que estava grávida. Na verdade, 20% de 
todos os casos de gravidez reconhecidos terminam em aborto 
espontâneo.17 Existe aqui uma verdade óbvia e gritante: se Deus existe, 
ele é o mais prolífico de todos os praticantes de abortos. 
< R, ATEUS SÃO MAUS? 
Se você tem razão ao acreditar que a fé religiosa oferece .1 li nica 
base real para a moralidade, então os ateus deveriam '.cr menos morais 
do que as pessoas de fé. Na verdade, os ateus 
< leveriam ser totalmente imorais. Será que são mesmo? Será 
que os membros das organizações de ateus nos Estados Unidos «o 
metem crimes violentos em proporção maior que a média? Será que os 
membros da Academia Nacional de Ciências, dos quais 93% não 
aceitam a idéia de Deus, mentem, enga- n.un e roubam 
deslavadamente? Podemos estar razoavelmente seguros de que esses 
grupos se comportam pelo me- 11< >s tão bem quanto a população em 
geral. E, contudo, os ateus 
.10 a minoria mais vilipendiada dos Estados Unidos. As pesquisas de 
opiniãoindicam que ser ateu é um impedimento I KTfeito para se 
candidatar a qualquer alto posto no nosso país (enquanto ser negro, 
muçulmano ou homossexual não é). Uecentemente, multidões com 
milhares de pessoas se reuni iam em todo o mundo muçulmano — 
queimando embaixadas européias, fazendo ameaças, tomando reféns, 
até matando pessoas — em protesto contra doze caricaturas re-
presentando o profeta Maomé, publicadas em um jornal dinamarquês. 
Quando será que ocorreu o último levante dos ateus? Será que existe 
algum jornal neste planeta que hesita- 
I ia em publicar car icaturas sobre o ateísmo, temendo que seus • 
<litores fossem sequestrados ou assassinados em represália? 
Cristãos como você invariavelmente declaram que mons- 
II os como Adolf Hitler, Josef Stálin, Mao Tse-tung, Pol Pot e I i 111 II 
Sung surgem do ventre do ateísmo. É verdade que tais homens por 
vezes são inimigos da religião organizada, mas nunca são muito 
racionais. 2 De fato, os pronunciamentos públicos desses homens 
muitas vezes são totalmente delirantes, nos assuntos mais variados: 
raça, economia, identidade nacional, a marcha da história, os perigos 
morais do intelectualismo. O problema desses tiranos não é que eles 
rejeitam o dogma da religião, e sim que adotam outros mitos destrui-
dores da vida. A maioria se torna o centro de um culto da personalidade 
quase religioso, que exige o uso contínuo da propaganda para se 
manter. Há uma diferença entre a propaganda e a disseminação honesta 
de informações que nós (em geral) esperamos de uma democracia 
liberal. Tiranos que organizam genocídios, ou que reinam alegremente 
enquanto seu povo morre de fome, também costumam ser homens 
profundamente idiossincráticos, e não defensores da razão. Kim II 
Sung, por exemplo, exigia que suas camas, em suas diversas 
residências, fossem situadas exatamente a quinhentos metros acima do 
nível do mar. Seus acolchoados tinham de ser feitos com a penugem 
mais macia que se possa imaginar. E qual é a penugem mais macia que 
se possa imaginar? Segundo i onsta, ela vem do papo do pardal. Era 
necessário matar 700 mil pardais para encher um único acolchoado. 
Em vista da profundidade de suas preocupações esotéricas, podemos 
 
2E parece que o ateísmo de Hitler foi seriamente exagerado: "Como cristão, meu 
sentimento me mostra meu Senhor e Salvador como um combatente. Mostra me aquele 
homem de outrora que, sozinho, rodeado por apenas alguns seguido res, reconheceu o 
que eram verdadeiramente aqueles judeus e conclamou os homens a lutar contra eles, e 
que, pela verdade de Deus!, foi maior não como sofredor, mas como lutador. Em amor 
ilimitado como cristão e como homem, leio a passagem que nos conta como o Senhor por 
fim se levantou em todo o Seu poder e tomou na mão um chicote para expulsar do templo 
a ninhada de víbo ras e serpentes. Como foi terrível a sua luta em prol do mundo, contra o 
veneno judaico [...] como cristão, também tenho um dever para com meu próprio povo". 
Hitler afirmou isso em um discurso pronunciado em 12 de abril de 1922 (Norman H. 
Baynes, ed. The speeches of Adolf Hitler, April 1922-August 1939. Vol. 1 de 2, pp. 19-20. 
Oxford University Press, 1942). 
nos perguntar até que ponto Kim II Sung era um homem movido pela 
razão. 
Veja o Holocausto: o anti-semitismo que construiu os campos de 
morte dos nazistas foi herança direta do cristianismo medieval. Durante 
séculos os europeus cristãos ti- 11 liam considerado os judeus a pior 
espécie de heréticos, e atribuído todos os males da sociedade à sua 
contínua presença entre os fiéis. Embora o ódio aos judeus na 
Alemanha se expressasse de maneira sobretudo secular, suas raízes 
eram religiosas, e a demonização explicitamente religiosa dos judeus 
da Europa foi contínua durante esse período. O próprio Vaticano 
perpetuou a calúnia de sangue em seus jornais até 1914.* E tanto a 
Igreja católica como a protestante têm um passado vergonhoso de 
cumplicidade com o genocídio nazista.18 
Auschwitz, os gulags soviéticos e os campos de morte do 
(lumboja não são exemplos do que acontece quando as pessoas se 
tornam demasiado adeptas da razão. Ao contrário, esses horrores 
atestam os perigos do dogmatismo político e ra- eial. Já é hora de 
cristãos como você pararem de fingir que uma rejeição racional da sua 
fé acarreta a adoção cega do ateísmo como dogma. Não é necessário 
aceitar nada sem ter provas suficientes para concluir que o nascimento 
virginal de Jesus e uma idéia absurda. O problema da religião — assim 
como 
' A "calúnia de sangue" (em relação aos judeus) consiste na falsa acusação de que us 
judeus matam não-judeus a fim de obter sangue para rituais religiosos. Essa i u nça 
continua muito difundida em todo o mundo muçulmano. 
do nazismo, do stalinismo ou de qualquer outra mitologia totalitária — 
é o problema do dogma em si. Não conheço nenhuma sociedade na 
história humana que jamais tenha sofrido porque seu povo passou a 
ansiar por provas concretas para suas crenças fundamentais. 
Embora você acredite que acabar com a religião é um ob- jetivo 
impossível, é importante perceber que ele já foi alcançado por boa parte 
do mundo desenvolvido. Noruega, Islândia, Austrália, Canadá, Suécia, 
Suíça, Bélgica, Japão, Holanda, Dinamarca e o Reino Unido estão entre 
as sociedades menos religiosas da Terra. De acordo com o Relatório do 
Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (2005), essas 
sociedades também são as mais saudáveis, segundo os indicadores de 
expectativa de vida, alfabetização, renda per capita, nível educacional, 
igualdade entre os sexos, taxa de homicídios e mortalidade infantil.19 
Até onde há um problema de crime na Europa ocidental ele é, 
sobretudo, produto da imigração. Na França, por exemplo, 70% dos 
detentos nas prisões são muçulmanos. Os muçulmanos da Europa 
ocidental em geral não são ateus. Inversamente, os cinquenta países 
que ocupam os lugares mais baixos, segundo o índice de 
desenvolvimento humano das Nações Unidas, são inabalavelmente 
religiosos. 
Outras análises pintam o mesmo quadro: os Estados Unidos são o 
único país, entre as democracias ricas, com alto nível de adesão à 
religião; e também o que mais sofre com altos índices de homicídio, 
aborto, gravidez adolescente, doenças sexualmente transmissíveis e 
mortalidade infantil. A mesma comparação é verdadeira dentro do 
próprio país: os estados do Sul e do Meio-Oeste, caracterizados pelos 
mais .iltos níveis de literalismo religioso, são especialmente atinados 
pelas disfunções sociais, segundo os indicadores acima, .10 passo que 
os estados relativamente seculares do Nordeste do país têm uma 
situação semelhante à européia.20 
Embora nos Estados Unidos a filiação a um partido po- lilico não 
seja um indicador perfeito de religiosidade, não é segredo que os 
estados "vermelhos" [republicanos] são vermelhos sobretudo devido à 
influência política avassaladora «los cristãos conservadores.21 Se 
existisse uma forte correla- <,,10 entre o conservadorismo cristão e a 
saúde da sociedade, I »< >deríamos ver algum sinal disso nesses 
estados. Mas não vemos. Das 25 cidades americanas com os mais 
baixos índices de crimes violentos, 62% ficam em estados "azuis" 
[demo- t ratas] e 38% em estados "vermelhos". Das 25 cidades mais I 
icrigosas, 76% ficam em estados vermelhos e 24% em estados azuis.22 
Aliás, três das cinco cidades mais perigosas dos I st ados Unidos ficam 
no piedoso estado do Texas.23 Os doze estados com os mais altos 
índices de assaltos a residências ..io vermelhos. Dos 29 estados com os 
mais altos índices de loubo, 24 são vermelhos. Dos 22 estados com os 
mais altos índices de assassinatos, dezessete são vermelhos.24 
É claro que correlações desse tipo não esclarecem questões de 
causalidade — a crença em Deus talvez leve à disfun- .,ao social; ou a 
disfunção social talvez estimule a crença em I >cus; cada um desses 
fatores pode estimular o outro; ou talvez ambos derivem de algum fator 
nocivo mais profundo.< on tudo, deixando de lado a questão de causa e efeito, essas 
< balísticas provam que o ateísmo é compatível com as aspi- i açoes 
básicas de uma sociedade civil; e também provam, de maneira 
conclusiva, que a crença generalizada em Deus não garante a saúde de 
uma sociedade. 
Os países com altos níveis de ateísmo também são os mais 
caridosos, em termos da porcentagem de sua riqueza que dedicam a 
programas internos de bem-estar social e ajuda aos países pobres.25 A 
duvidosa relação entre os valores cristãos e a crença literal na Bíblia 
cristã é desmentida por outros índices de igualdade social. Considere a 
proporção entre a remuneração dos executivos de mais alto escalão e o 
salário médio pago aos funcionários das mesmas empresas: na 
Grã-Breta- nha, é de 24:1; na França, 15:1; na Suécia, 13:1; e nos 
Estados Unidos, onde 80% da população espera ser chamada diante de 
Deus no Dia do Juízo Final, é de 475:1.26 Pelo visto, parece que muitos 
camelos esperam passar com facilidade pelo buraco de uma agulha. 
QUEM COLOCA A BONDADE NO BOM LIVRO?* 
Mesmo que a crença em Deus exercesse um efeito positivo 
confiável sobre o comportamento humano, isso não seria motivo para 
acreditar em Deus. Uma pessoa só pode crer em Deus se acreditar que 
Deus realmente existe. Mesmo que o ateísmo levasse diretamente ao 
caos moral, isso não indicaria que a doutrina do cristianismo é 
verdadeira. O islã poderia ser verdadeiro, nesse caso. Ou, talvez, todas 
as religiões poderiam agir como placebos. Como descrição do universo 
po deriam ser totalmente falsas, mas, mesmo assim, úteis. Con 
* Em inglês, costuma-se chamar a Bíblia de "the Good Book" ("o Bom Livro"). (N.T.) 
tudo, as provas indicam que as religiões são não apenas falsas como 
também perigosas. 
Quando você fala nas boas consequências que as suas crenças 
exercem sobre a moral humana, está seguindo o exemplo dos religiosos 
liberais e moderados. Em vez de dizer que acreditam em Deus porque 
determinadas profecias bíblicas se realizaram, ou porque os milagres 
narrados nos evangelhos são convincentes, os liberais e moderados 
costumam falar nas boas consequências de se acreditar, tal como eles 
acreditam. Esses crentes muitas vezes dizem que acreditam em Deus 
porque isso "dá sentido às suas vidas". Quando um tsunami matou 
centenas de milhares de pessoas no dia seguinte ao Natal de 2004, 
muitos cristãos conservadores viram nessa catástrofe uma prova da ira 
divina. Aparentemente, Deus estava enviando mais uma mensagem em 
código sobre os males do aborto, da idolatria e do homossexualismo. 
Embora eu con- ádere essa interpretação dos acontecimentos 
absolutamente lepugnante, ela tem, pelo menos, a virtude de ser 
razoável quando se assume um dado conjunto de hipóteses básicas. Os 
liberais e moderados, por outro lado, se recusam a tirar qualquer 
conclusão que seja a respeito de Deus a partir das obras dele. Deus 
permanece um mistério absoluto, uma mera fon- l< de consolo que é 
compatível com todos os males, até os mais devastadores. Logo após o 
tsunami na Ásia, liberais e mode- i ad( >s admoestaram uns aos outros 
para que procurassem Deus ii.lo no poder que moveu a onda, mas sim 
na resposta que i humanidade deu à onda".27 Creio que podemos 
concordar, I 'i i >vavelmente, que é a benevolência humana — e não a 
dilua — que fica à mostra a cada vez que os corpos inchados • I' r. 
mortos são trazidos do mar para serem enterrados. Se em um único dia 
mais de 100 mil crianças foram arrancadas dos braços de suas mães e 
afogadas com total displicência, a teologia liberal deve ser vista bem 
claramente, tal como ela é: a mais pura falsidade que um mortal possa 
conceber. A teologia da ira tem muito mais mérito intelectual. Se Deus 
existe e tem um interesse nos assuntos dos seres humanos, sua vontade 
não é inescrutável. Aqui a única coisa inescrutável é que tantos homens 
e mulheres, que em outros aspectos são racionais, conseguem negar o 
horror implacável desses acontecimentos e julgar que esse é o ápice da 
sabedoria moral. 
Assim como a maioria dos cristãos, você acredita que simples 
mortais como nós não podem rejeitar a moralidade da Bíblia. Não 
podemos dizer, por exemplo, que Deus estava errado quando afogou a 
maior parte da humanidade no dilúvio narrado no Génesis, pois isso é 
apenas a maneira como as coisas parecem ser, a partir do nosso 
limitado ponto de vista. E, contudo, você se acha com capacidade de 
julgar que Jesus é o Filho de Deus, que a Regra de Ouro é o ápice da 
sabedoria moral e que a Bíblia não está transbordando de mentiras. 
Você usa a sua própria intuição moral para autenticar a sabedoria da 
Bíblia — e no, entanto, no momento seguinte você afirma que nós, 
seres humanos, não podemos, de forma alguma, confiar na nossa 
própria intuição para nos guiar corretamente no mundo; em vez disso, 
temos de depender das prescrições da Bíblia. Ou seja, você usa a sua 
própria intuição moral para concluir que a Bíblia é a garantia apro-
priada da sua intuição moral. Suas intuições continuam sendo 
primárias, e o seu raciocínio é circular. 
Nós decidimos o que é bom no "Bom Livro". Lemos a Regra de 
Ouro e achamos que ela destila, de maneira brilhante, muitos de nossos 
impulsos éticos. E, em seguida, encontramos mais um dos 
ensinamentos de Deus sobre a moral: se um homem descobrir, em sua 
noite de núpcias, que sua noiva não é virgem, ele deve levá-la até a 
soleira da porta do pai dela e apedrejá-la até a morte (Deuteronômio 
22,13-21). Se somos civilizados, rejeitaremos isso como o ato mais lu-
nático e mais vil que se possa imaginar. Mas para isso precisamos 
exercer nossa própria intuição moral. Acreditar que a Bíblia é a palavra 
de Deus não nos ajuda de maneira alguma. 
A escolha que temos pela frente é simples: podemos ter uma 
conversa do século xxi acerca da moral e do bem-estar humano — uma 
conversa na qual recorremos a todas as descobertas científicas e 
argumentos filosóficos acumulados nos últimos 2 mil anos de discurso 
humano — ou então podemos nos confinar a uma conversa do século i, 
tal como preservada na Bíblia. Por que alguém haveria de querer adotar 
a segunda opção? 
A BONDADE DIVINA 
Em algum lugar do mundo, um homem acaba de seques- l rar uma 
garotinha. Logo mais ele vai estuprá-la, torturá-la e matá-la. Se uma 
atrocidade desse tipo não está ocorrendo neste exato momento, vai 
ocorrer dentro de poucas horas, ou no máximo de alguns dias. É essa 
certeza que podemos obter a partir das leis estatísticas que governam a 
vida de 6 bilhões de seres humanos. Essas mesmas estatísticas também 
sugerem que os pais dessa garotinha acreditam — tal como você 
acredita — que um Deus todo-poderoso e cheio de amoi infinito está 
velando por eles e pela sua família. Eles estão certos ao acreditar nisso? 
É bom que eles acreditem nisso? 
Não. 
O ateísmo em sua totalidade está contido nessa resposta. O 
ateísmo não é uma filosofia; não é sequer uma visão do mundo; é 
simplesmente o reconhecimento do óbvio. Na verdade, ateísmo é um 
termo que nem deveria existir. Ninguém precisa se identificar como 
"não-astrólogo", ou "não-alqui- mista". Não temos palavras para definir 
pessoas que duvidam de que Elvis Presley continua vivo, ou de que 
alienígenas atravessaram a galáxia só para incomodar fazendeiros e seu 
gado. O ateísmo nada mais é do que os ruídos que pessoas razoáveis 
fazem diante de crenças religiosas não justificadas. Um ateu é 
simplesmente uma pessoa que acredita que os 260 milhões de 
americanos (87% da população) que afirmam "nunca duvidar da 
existência de Deus" deveriam ser obrigados a apresentar as provas da 
existência dele — e, aliás, também da benevolência desse Deus, em 
vista da implacável destruição de seres humanos inocentes que 
testemunhamos neste mundo todos os dias. Um ateu é uma pessoa que 
acredita que o assassinato de uma única menininha — mesmo que 
ocorra uma vez em 1 milhão de anos — lança dúvidas sobre a idéia da 
existência de um Deus benevolente. 
As provas de que Deusnão protege a humanidade estão por toda 
parte. A cidade de Nova Orleans, por exemplo, foi recentemente 
destruída por um furacão. Mais de mil pessoas morreram; dezenas de 
milhares perderam tudo o que tinham; e quase 1 milhão se tornaram 
refugiadas. Podemos di- zer com bastante segurança que quase todas as 
pessoas que moravam em Nova Orleans no momento em que o furacão 
Katrina as atingiu acreditavam, como você, em um Deus oni- potente, 
onisciente e misericordioso. Mas o que estava Deus fazendo enquanto o 
Katrina devastava a cidade? Com certeza Ele ouviu as orações daqueles 
homens e mulheres idosos que fugiram da enchente buscando 
segurança no sótão de suas casas, e ali lentamente se afogaram. Eram 
gente de fé. Eram boas pessoas, que tinham orado durante toda a vida. 
Será que você tem coragem de reconhecer o óbvio? Essa pobre gente 
morreu falando com um amigo imaginário. 
É claro que houve numerosos alertas de que uma tempestade "de 
proporções bíblicas" atingiria Nova Orleans, e a resposta humana ao 
desastre que se seguiu foi de uma ineficiência trágica. Mas foi 
ineficiente apenas à luz da ciência. A religião não ofereceu 
absolutamente nenhuma base para uma reação. Os alertas que foram 
dados previamente, traçando a Irajetória do Katrina, foram arrancados 
da muda Natureza por meio de cálculos meteorológicos e imagens de 
satélite. I )eus não contou seus planos para ninguém. Se os moradores 
de Nova Orleans se contentassem em confiar na benevolência divina, 
não ficariam sabendo que um furacão assassino viria atacá-los, até 
sentirem as primeiras rajadas de vento no rosto. E, contudo, como não 
deve ser surpresa para você, uma pesquisa feita pelo The Washington 
Post descobriu que 80% dos sobreviventes do Katrina afirmam que 
esse acontecimento só serviu para fortalecer sua fé em Deus. 
Enquanto o furacão Katrina devorava Nova Orleans, quase mil 
peregrinos xiitas foram pisoteados e mortos em uma ponte no Iraque. 
Esses peregrinos tinham uma fé poderosa no Deus do Corão. Suas 
vidas eram organizadas em torno do fato indiscutível da existência 
desse Deus; as mulheres usavam véus diante dele; os homens 
regularmente assassinavam uns aos outros devido a interpretações 
divergentes da palavra dele. Seria notável se um único sobrevivente 
dessa tragédia tivesse perdido a fé. O mais provável é que os 
sobreviventes imaginem que foram poupados pela graça divina. 
Já é hora de reconhecermos o ilimitado narcisismo e au- 
to-engano desses que foram salvos. Já é hora de reconhecermos que é 
uma verdadeira desgraça que os sobreviventes de uma catástrofe 
acreditem que foram poupados por um Deus amoroso, enquanto esse 
mesmo Deus afogava bebés em seus berços. Quando parar de revestir a 
realidade do sofrimento do mundo com fantasias religiosas, você 
sentirá até os ossos como a vida é preciosa — e que é uma grande 
infelicidade que milhões de seres humanos sofram tanto quando sua 
felicidade é abruptamente cortada, das maneiras mais horríveis, sem 
nenhum bom motivo. 
É de se pensar quão vasta e gratuita teria de ser uma catástrofe 
para abalar a fé das pessoas. O Holocausto não obteve esse efeito. 
Tampouco o genocídio em Ruanda — mesmo contando entre os 
assassinos padres católicos brandindo suas machadinhas. No século xx, 
nada menos que 500 milhões de pessoas morreram de varíola, em boa 
parte crianças. Os caminhos de Deus são, de fato, inescrutáveis. Parece 
que qualquer fato, por mais infeliz que seja, pode ser considerado 
compatível com a fé religiosa. 
É claro que pessoas de todas as religiões sempre garantem umas às 
outras que Deus não é responsável pelo sofrimento humano. Mas, 
então, como compreender a afirmação de que Deus é, ao mesmo tempo, 
onisciente e onipoten- te? Esse é o problema antiquíssimo da 
teodicéia,* é claro, e devemos considerá-lo solucionado. Se Deus 
existe, ou Ele não pode fazer nada para impedir as mais terríveis 
calamidades, ou então Ele não tem interesse nisso. Portanto, ou Deus é 
impotente, ou então é mau. Você pode agora ser tentado a executar a 
seguinte pirueta: Deus não pode ser julgado pelos critérios humanos de 
moral. Mas já vimos que os critérios humanos de moral são exatamente 
aqueles que você utiliza para afirmar a bondade de Deus. E qualquer 
Deus que se preocupe com coisas tão triviais como o casamento gay, ou 
o nome pelo qual Ele deve ser chamado nas orações, não é tão 
inescrutável assim. 
Existe outra possibilidade, claro, que é ao mesmo tempo a mais 
razoável e a menos odiosa: o Deus bíblico é uma ficção, tal como Zeus 
e milhares de outros deuses mortos que a maioria dos seres humanos 
mentalmente sãos hoje ignora. Você consegue provar que Zeus não 
existe? Claro que não. E, contudo, imagine se nós vivêssemos em uma 
sociedade em que as pessoas gastassem dezenas de bilhões de dólares 
de sua renda pessoal a cada ano a fim de propiciar os deuses no monte 
Olimpo, em que o governo gastasse outros bilhões tirados dos impostos 
dos cidadãos para sustentar instituições dedicadas a esses deuses, em 
que outros incontáveis bilhões em subsídios fiscais fossem doados para 
templos pagãos, em que as autoridades eleitas se esforçassem ao 
máximo para impe- 
' Tcodicéia: justificativa da crença na onipotência e na bondade de Deus, diante da 
existência do mal no mundo. (N. T.) dir pesquisas médicas por respeito à 
Ilíada e à Odisséia, e em que cada debate sobre políticas públicas fosse 
subvertido para satisfazer os caprichos de antigos autores que até 
escreviam bem, mas não conheciam o suficiente sobre a realidade nem 
para separar seus excrementos de sua comida. Isso seria uma aplicação 
horrivelmente equivocada dos nossos recursos materiais, morais e 
intelectuais. E, contudo, é exatamente essa a sociedade em que estamos 
vivendo. É este o mundo tristemente irracional que você e seus 
companheiros cristãos trabalham incansavelmente para criar. 
É terrível pensar que todos nós morremos e perdemos tudo que 
amamos; é duplamente terrível que tantos seres humanos sofram 
desnecessariamente enquanto estão vivos. O fato de que uma parte tão 
grande desse sofrimento pode ser atribuída diretamente à religião — 
aos ódios religiosos, às guerras religiosas, aos tabus religiosos, aos 
desvios religiosos de recursos escassos — é o que torna a crítica 
honesta da fé religiosa uma necessidade moral e intelectual. 
Infelizmente, expressar essa crítica coloca o não-crente nas margens da 
sociedade. Só por estar em contato com a realidade, ele parece 
vergonhosamente fora de contato com a vida fantasiosa de seus 
vizinhos. 
O PODER DA PROFECIA 
Costuma-se dizer que é razoável acreditar que a Bíblia é a palavra 
de Deus porque muitos acontecimentos narrados no Novo Testamento 
confirmam profecias do Velho Testamento. Mas faça esta pergunta a 
você mesmo: que dificulda- 
6o de teriam os autores dos evangelhos em narrar a vida de Jesus 
de modo a fazê-la conformar-se às profecias do Velho Testamento? 
Não estaria dentro do poder de qualquer mortal escrever um livro que 
confirmasse as previsões de um livro anterior? E, de fato, sabemos com 
base nas evidências tex- t uais que foi isso que fizeram os autores dos 
evangelhos.28 
Os autores dos livros de Lucas e de Mateus, por exemplo, 
declaram que Maria concebeu virgem, adotando a versão grega de 
Isaías 7,14. Contudo, o texto hebraico de Isaías usa a palavra "almá", 
que significa simplesmente "uma jovem", sem nenhuma implicação de 
virgindade. Parece praticamente certo que o dogma do nascimento 
virginal, e boa parte da consequente ansiedade no mundo cristão a 
respeito do sexo, é produto de uma tradução errada do texto hebraico. 
Outro golpe contra a doutrina do nascimento virginal é que os ou- tros 
dois evangelistas não ouviram falar a respeito. Tanto Marcos como 
João parecem constrangidos com as acusações da ilegitimidade de 
Jesus, mas nunca mencionam sua origem milagrosa. São Paulo afirma 
que Jesus "nasceu da semente de I )avi, de acordo com a carne" e "foi 
nascido de mulher", sem

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