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p. 72
e se todos 
trabalhassem 
em casa? 
p. 60
a volta dos 
jogos de 
tabuleiro.
p. 8
a fragilidade 
dos sistemas 
de saúde.
p. 54
dilúvio: o 
mais universal 
dos mitos.
r$ 18,00 
a cidade 
do google 
Ruas de LED, robôs lixeiros, 
prédios de madeira – e a sua 
vida 100% vigiada. p. 34
p o r b r u n o v a i a n o , g u i l h e r m e e l e r e b r u n o c a r b i n a t t o
O coronavírus é apenas o herdeiro de uma tradição: 
do herpes à Covid-19, entenda como os vírus moldaram 
a vida na Terra e a história da civilização. p. 20
Este é o 
bacteriófago.
O parasita mais 
numeroso do 
planeta. p. 22
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vida e obra 
do mais intrigante 
dos seres
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C a p a
vírus
Vida e obra do mais
intrigante dos seres
O coronavírus é apenas o herdeiro de uma 
tradição: do herpes à Covid-19, entenda como 
os vírus moldaram a vida na Terra e a 
história da civilização.
20 super abril 2020 
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Texto
Bruno Vaiano
Reportagem
Bruno Carbinatto
Guilherme Eler
Ilustração
Otávio Silveira 
Design
Carlos Eduardo Hara 
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Tierra é um programa de compu-
tador com 80 linhas de código-fonte. É 
pouco: um app de celular pode alcançar 
500 mil; a versão mais recente do Pho-
toshop tem 4,5 milhões. Esse software 
minúsculo foi criado em 1990, no PC do 
biólogo Thomas Ray da Universidade de 
Delaware, nos EUA. A única função de 
Tierra é criar cópias de si mesmo. Essas 
cópias vão fazendo mais cópias, até a 
memória do computador ficar lotada. 
Às vezes, durante a clonagem, um 
dos “filhotes” tem uma linha de código 
duplicada, alterada ou deletada aleatoria-
mente. A maior parte dessas mutações 
impede o Tierra afetado de continuar a 
se reproduzir. Mas algumas melhoram 
o desempenho, e ele passa a preencher
o HD mais rápido. Isso é seleção natural.
Nesse experimento distópico, os Tierras 
são uma vida artificial que evolui, no 
sentido darwiniano da coisa.
Alguns Tierras se tornam mais com-
plexos e eficazes após algumas gerações. 
Outros, porém, ficam mais simples. Vão 
abandonando linhas de código, até não 
conseguirem mais se copiar sozinhos: 
as linhas que restam, por si só, não con-
têm todas as instruções necessárias para 
gerar um conjunto igual de linhas. A 
solução para esses Tierras preguiçosos 
é parasitar Tierras inocentes, pegando 
linhas emprestadas para se reproduzir. 
Assim, às custas dos outros, eles se 
multiplicam. O nome disso é vírus. De 
computador, nesse caso. 
Há uns 3,5 bilhões de anos, algo pa-
recido aconteceu na Terra. Nessa épo-
ca, os primeiros seres vivos, bactérias 
rudimentares, se multiplicavam nos oce-
anos. Algumas se tornavam mais com-
plexas: graças a uma mexidinha no DNA 
aqui, outra ali, ganhavam genes novos e, 
com eles, habilidades bioquímicas iné-
ditas. Outras foram abandonando genes, 
até ficarem tão simples que começaram 
a sequestrar o maquinário de bactérias 
normais para se reproduzir. Essa é uma 
de várias hipóteses para a origem dos 
vírus: eles seriam ex-bactérias que se 
tornaram cada vez mais rudimentares.
O vírus que está desenhado na ca-
pa desta edição parece vindo da ficção 
científica, mas é das antigas. Se chama 
bacteriófago, ou seja: é um especialista 
em atacar bactérias (fagós é “comer” em 
grego). Não existe outro parasita tão letal 
na Terra, porque suas vítimas, até hoje, 
são as mais numerosas. O número de 
bactérias no oceano tem 28 zeros. Isso 
significa que, para cada estrela do Uni-
verso visível, há 10 milhões de bactérias 
na água. O número de vírus que ganham 
a vida se aproveitando dessas bactérias 
tem 31 zeros, de modo que o número de 
infecções virais que ocorrem no ocea-
no por segundo tem 23 zeros. 40% do 
total de bactérias dos oceanos morrem 
por causa de vírus a cada 24 horas. Para 
uma bactéria, todo dia é dia de pandemia. 
A vida, é claro, se tornou mais com-
plexa que um duelo entre bactérias e 
vírus (ainda que eles continuem rei-
nando absolutos sobre os ecossistemas 
da Terra). Ao longo de bilhões de anos 
de história, as bactérias uniram forças 
para formar seres multicelulares, como 
Herpes e 
Darwin
O herpes é tão antigo que já 
estava em nossa linhagem 
há 8 milhões de anos – 
quando o ramo que daria 
origem à nossa espécie se 
separou dos chimpanzés. 
Fontes: The Red Queen, livro de Matt Ridley; “Microbiology by numbers”, editorial da Nature; “The Origins of Viruses”, artigo de David Wessner; livro Biologia de Campbell, 10a edição.22 super abril 2020
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plantas, fungos e animais. Os vírus fo-
ram atrás, sempre evoluindo para se 
aproveitar da complexidade crescente. 
O que nos leva ao maior problema de 
saúde pública do século 21: o corona-
vírus Sars-CoV-2, causador da doença 
Covid-19, que, até o fechamento desta 
edição, havia causado 8,7 mil mortes. 
Nos próximos parágrafos, você lerá um 
dossiê sobre os vírus: o que eles são, do 
que são feitos, como invadem nossas cé-
lulas e como mudam nossas vidas desde 
que nossa espécie se entende por gente. 
Começando pelo básico:
Como funciona um vírus
Um ser humano é construído por, no 
mínimo, 20 mil proteínas diferentes (há 
quem fale em 92 mil). Existe a queratina 
dos seus cabelos; a actina e miosina, 
que contraem seus músculos; a amilase, 
que começa a digestão do açúcar ainda 
na sua boca; a insulina, que controla o 
acesso desse açúcar às suas células... A 
lista é longa. Do mesmo jeito que as 400 
mil palavras do português são feitas 
com um alfabeto de apenas 26 letras, 
nossas 92 mil proteínas são combina-
ções diferentes de 20 pequenas molé-
culas chamadas aminoácidos. 
Durante a digestão, na acidez do estô-
mago, as proteínas de outros animais e 
plantas são quebradas em aminoácidos. 
Como palavras desmontadas em uma so-
pa de letrinhas. Depois, células do corpo 
todo usam esses aminoácidos como ma-
téria-prima para montar suas próprias 
proteínas. Mas elas precisam saber as 
sequências certas. Para tanto, usam um 
dicionário de proteínas. O nome desse 
dicionário é DNA. Quando uma célula 
precisa de uma proteína, uma molécu-
la chamada RNA mensageiro vai até o 
núcleo, abre o DNA, anota a receita e 
leva a anotação a uma estrutura chamada 
ribossomo, que monta a proteína. 
Todo vírus é feito essencialmente das 
mesmas coisas que você: uma cápsula 
oca de proteínas e gorduras no interior 
da qual há um pedaço curtinho de ma-
terial genético – que contém as receitas. 
(Quando você usa álcool gel ou sabão, 
destrói a cápsula do mesmo jeito que 
desmancha gordura de hambúrguer nas 
suas mãos). 
O problema é que, ao contrário de 
qualquer animal, planta ou bactéria, os 
vírus não fabricam suas proteínas por 
conta própria. Eles não têm a linha de 
montagem, o tal do ribossomo. O jei-
to é invadir um organismo – seja uma 
bactéria, seja um Homo sapiens – e se-
questrar os ribossomos, fazendo com 
que eles fabriquem novas cápsulas virais 
em vez de algo útil para um humano, 
como queratina ou amilase. É por isso 
que os vírus só se reproduzem dentro 
de algum hospedeiro. 
Para sequestrar ribossomos, primeiro 
é preciso penetrar em uma célula, que →
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é protegida por uma membrana. Cada 
vírus dá um jeito diferente de atravessar 
a membrana, então vamos usar como 
exemplo a praga da vez: os coronavírus – 
que atendem pela sigla CoV. A pandemia 
de Covid-19 é só a obra mais recente 
dessa família. Além de outras epidemias 
respiratórias, como a Sars, de 2002, e a 
Mers, de 2012, os coronavírus foram (e 
são) responsáveis por resfriados comuns 
também – junto com 200 e tantos ví-
rus de outros tipos. Das sete linhagens 
conhecidas de CoV, quatro são quase 
inofensivas. Só causam alguns espirros. 
Corona, você já leu por aí, significa 
“coroa” em latim, porque o vírus tem a 
aparência de uma bola com uma coroa 
de espinhos. Esses espinhos, na verda-
de, não espetam. São só proteínas, que 
evoluíram para se encaixarcomo chaves 
nas fechaduras que ficam na membrana. 
Feito o encaixe, é só entrar. 
Uma célula humana é algo realmente 
pequeno: você tem 37,2 trilhões delas, 
em geral tão minúsculas que no espaço 
de um milímetro cabem dez enfileiradas. 
Para entrar em uma célula, portanto, os 
vírus precisam ser cerca de cem vezes 
menores. Se um coronavírus particular-
mente gordo, com 160 nanômetros, fosse 
do tamanho de uma pessoa, a pessoa 
seria do tamanho da distância entre o 
Brasil e o Japão – 17 mil km. 
A Covid-19 (sigla para coronavirus 
disease 2019) começa quando o novo 
vírus acessa o nariz, a boca ou os olhos 
– pegando carona nas suas mãos ou sus-
penso no ar em gotículas de saliva após 
um espirro bem dado. Ele se aloja em 
um cantinho estratégico, a parede por 
onde o muco escorre garganta abaixo. 
Os espinhos dele são ótimos em invadir 
as células dessa região. É na garganta 
que a maior parte dos casos de Covid-19 
começa – e termina, com o vírus eli-
minado pelo sistema imunológico. Os 
sintomas, nesses casos, são leves: tosse 
seca para expulsar o invasor; febre baixa 
para matá-lo de calor (às vezes, nesses 
casos de eliminação rápida, rola uma 
dorzinha na cabeça ou na garganta). 
Uma vez dentro da célula, o vírus 
começa a passar suas próprias fitas de 
RNA mensageiro pelos ribossomos. As 
organelas não percebem que a receita do 
invasor é uma cilada, e acabam gerando 
milhões de cópias das proteínas usadas 
para montar cápsulas de coronavírus. 
As células se tornam fábricas a serviço 
do inimigo. No final, basta ao vírus co-
locar uma cópia do genoma dentro de 
cada uma dessas cápsulas e voilà: um 
novo exército está pronto. O vírus da 
Covid-19 não explode a célula para sair 
– como faz o ebola, por exemplo. Ele
vence pela exaustão: a célula se dedica 
tanto a produzir as proteínas do corona 
que morre por não conseguir fabricar 
suas próprias proteínas. 
20% dos casos de Covid-19 evoluem 
para um quadro mais severo, em que 
o vírus desce para os pulmões. É que
o sistema imunológico não gosta nada
disso. “Assim como em outras doenças 
causadas por vírus, os sintomas vêm 
mais da resposta do corpo a ele que da 
atuação do vírus em si”, explica Jean Pier-
re Peron, imunologista do Instituto de 
Ciências Biomédicas (ICB) da USP. 
E a resposta vem pesada. Os vasos 
sanguíneos do pulmão se dilatam para 
que os glóbulos brancos cheguem mais 
rápido ao local da infecção. Isso causa dor 
e inchaço. O campo de batalha fica con-
gestionado de destroços: células mortas 
no fogo cruzado se misturam às que já 
foram assassinadas pelo vírus. Mesmo 
se o sistema imunológico der conta de 
exterminar logo o exército de coronas, 
a gosma de células mortas que ficaram 
pode deixar lesões permanentes. Já se 
os seus anticorpos não derem conta, e 
o corona seguir sua série de assassina-
tos, os alvéolos acabam entupidos. Aí 
complica de vez. Isso impede a troca de 
gases com o ambiente. Se não houver 
ventilação artificial, o paciente morre 
de insuficiência respiratória.
A classificação dos vírus 
O vírus não faz isso porque é mau. 
Na verdade, ele não pode ser mau ou 
bom, pois sequer é considerado vivo 
pela maioria dos biólogos. Vírus não 
têm metabolismo, não comem, respi-
ram ou excretam. Não se reproduzem 
sozinhos – precisam dos hospedeiros 
–, e não se locomovem por conta pró-
pria. A única razão da existência de um 
vírus é fazer mais de si mesmo. Ele é 
dos casos de 
Covid-19 são 
leves, e não 
causam pro-
blemas nos 
pulmões.80 %
Álbum de
família
Os vírus se dividem em sete 
tipos. Alguns armazenam 
seu genoma em DNA, como 
nós. Outros usam RNA – 
uma molécula que costuma 
ter outra função. Alguns, 
ainda, usam DNA de uma 
fita só ou RNA de duas 
fitas – algo inexistente em 
organismos vivos. 
Fontes: artigos “A pneumonia outbreak associated with a new coronavirus of probable bat origin”; “Cryo-EM structure of the 2019-nCoV spike in the prefusion conformation”. 
→
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Toda célula, seja humana, seja uma bactéria, funciona 
do mesmo jeito. Veja como ela opera normalmente, para 
depois entender o que o vírus apronta lá dentro. 
1. O DNA
é como a 
memória 
de um PC: 
guarda as 
instruções 
para 
fabricar 
proteínas.
2. O RNA 
mensageiro 
abre o DNA 
e coleta as 
receitas de 
proteína, 
como se 
fosse um 
pen drive.
3. Esse pen 
drive leva as 
receitas ao 
ribossomo, 
que lê e en-
tão fabrica 
as proteínas 
baseado 
nelas.
Como é a rotina 
da célula saudável
O vírus põe seu próprio RNA mensageiro para rodar no ribosso-
mo, obrigando a célula a fabricar as proteínas que ele precisa 
para se multiplicar. Veja como diferentes vírus fazem isso.
O que acontece
em uma infecção 
RNA
meNsAgeiRo
TiPo 7
Retrovírus de DNA
Os retrovírus mais compli-
cados: apesar de já serem 
DNA, geram um RNA e 
então o utilizam para gerar 
um DNA de novo – que só 
então é infiltrado na célula. 
TiPo 6
Retrovírus de RNA
Os retrovírus usam o
RNA para fabricar um 
DNA. Esse DNA aliení-
gena é camuflado no 
meio do DNA humano
e lido pela célula.
Ex.: Ex.:
TiPo 2
DNA fita única
Alguns vírus usam uma fita 
de DNA simples – e não 
duas fitas complementares 
entrelaçadas em forma de 
escada. Este grupo não tem 
representantes famosos.
RV
Retrovírus
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TiPo 5
RNA de fita única negativa (-)
Seguindo na metáfora da foto: se a fita já 
é negativa, ela pode ser revelada direto, 
produzindo o RNA mensageiro que sabota 
a célula. Ela não precisa ser invertida como 
no tipo 4. Os do tipo 3, que têm fita dupla, 
possuem uma positiva e uma negativa. 
Ex.:
Ex.:TiPo 3
RNA de fita dupla 
Estes vírus salvam seu geno-
ma em RNA, em vez de DNA. 
Mas a fita é duplicada para 
reforçar a estrutura, já que 
o RNA é frágil. Isso o deixa
com aparência de DNA. Rotavírus
Raiva EbolaInfluenza (gripe)
HIV Hepatite B
Ex.:TiPo 4
RNA de fita única positiva (+)
O genoma do vírus é como 
um negativo de foto, que é 
“revelado” para gerar o RNA 
mensageiro. Se o vírus tem 
uma fita única e ela é positiva, 
ela precisa ser negativada.
+
Coronavírus
TiPo 1
DNA de fita dupla
Alguns vírus guardam seu 
genoma em DNA. Eles preci-
sam primeiro montar o RNA 
mensageiro correspondente 
– e só depois colocá-lo para
rodar no ribossomo.
Ex.:
Vírus de
DNA
Bacteriófago Herpes
RNA
meNsAgeiRo
DNA PRoTeíNA
Vírus de
RNA
-
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um pedacinho de informação genética 
que se replica. A razão de sua existência, 
diga-se, é a replicação. Os vírus se repli-
cam simplesmente porque os que não 
se replicavam bem deixaram de existir. 
É difícil traçar o parentesco entre os 
mais de 5 mil vírus conhecidos – sequer 
sabemos se eles têm todos a mesma ori-
gem. Embora alguns possam ter regre-
dido de bactérias, como mencionado no 
início do texto, outros talvez descendam 
de pedacinhos de DNA que circulavam 
livremente entre bactérias há bilhões de 
anos. O biólogo David Baltimore criou o 
sistema de classificação mais aceito, que 
divide os vírus em sete tipos de acordo 
com as moléculas que cada um usa para 
armazenar sua informação genética [veja 
o gráfico da página 25].
Os vírus, ao contrário de nós, não de-
pendem necessariamente do DNA para 
guardar seu genoma. Eles podem usar o 
próprio RNA, que normalmente é só um 
burro de carga, para aquela missão mais 
nobre de guardar as receitas de proteína. 
Isso até facilita as coisas, pois permite 
sabotar o ribossomo direto, sem ter que 
transcrever DNA em RNA antes. 
O RNA é uma molécula bem frágil 
(a seleção natural não optou pelo DNA 
à toa: se você vai salvar todas as infor-
mações sobre você mesmo em um pen 
drive, é melhor usar um bom pen dri-
ve). “Frágil”, nesse caso, significa sofrer 
mutações com mais frequência. Esse 
defeito, porém, também é um trunfo: 
mutações frequentes ajudam o vírus a 
se adaptar muito mais rápido, e supe-
rar as novidades que as nossas células 
criam na corrida armamentista contra 
invasores. Não é figura de linguagem: 
todos os anos lançamosuma nova vacina 
contra a gripe, e todos os anos uma nova 
linhagem do vírus da gripe aprende a 
superá-la. E essa Guerra Fria biológica 
nos acompanha há muito, muito tempo.
Os vírus de estimação
Humano bom não é humano morto. 
Pelo menos, não na opinião do vírus do 
herpes – talvez o mais comum e dis-
creto dos que parasitam nossa espécie. 
Ele vem em duas versões. A primeira, 
denominada HSV-1, é encontrada em 
67% da população mundial e se mani-
festa de forma branda: durante as crises, 
que duram no máximo dez dias, cachos 
de bolinhas com líquido brotam nos 
lábios do infectado. Não há cura; mas 
também não há preocupação: elas vão 
embora sozinhas, para talvez voltar 
meses ou anos depois. O HSV-2, por 
sua vez, geralmente ataca os genitais, 
atinge uma em cada seis pessoas, e tem 
sintomas mais incômodos. 
Ninguém morre de herpes, e essa é 
a estratégia do vírus. Nas palavras de 
James Lovelock, “Um vírus ineficaz mata 
seu hospedeiro, um vírus eficiente fica 
com ele”. O HSV, com suas discretas pe-
rebas, pega carona em beijos e ousadias 
por aí, garantindo o contágio. Ele quer 
seu hospedeiro feliz e transante, e não 
internado no hospital. A explicação do 
comportamento moderado do herpes 
encontra-se em sua história: esse é um 
vírus antigo, de uma época em que não 
havia uma enorme população de Homo 
sapiens – só alguns grupos de nômades 
caçadores aqui e ali. Era essencial cuidar 
de seu humano de estimação, pois ele 
dificilmente encontraria outro. 
É importante especificar o quão an-
tigo é o HSV-1: o ancestral comum a 
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humanos e chimpanzés – isto é, o pri-
mata que deu origem às duas espécies 
– já tinha herpes há 8 milhões de anos.
Quando os descendentes desse ancestral 
comum se dividiram entre humanos e 
chimpanzés, dois ramos do herpes se 
formaram: um especialista em nós, 
outro, claro, em chimpanzés. Uma vez 
estabelecida a linhagem humana, houve 
uma segunda diferenciação: conforme 
os hominídeos começaram a caminhar 
eretos, apoiados em só duas patas, seus 
genitais pararam de entrar em contato 
com a boca dos outros o tempo todo (às 
vezes entram, claro, mas não andamos 
por aí de quatro averiguando o traseiro 
alheio no escritório). Isso criou uma bar-
reira geográfica entre a boca e a genitália, 
e assim surgiram mais duas ramificações 
do vírus de herpes: os tipos 1 e 2 de hoje. 
Os biólogos têm os genomas desses 
vírus sequenciados, e sabem aproxima-
damente a que taxa eles sofrem muta-
ções. Dessa forma, é possível calcular há 
quanto tempo nós nos separamos dos 
chimpanzés e nos tornamos bípedes. 
Basta contar quantas diferenças (mu-
tações) há entre os genomas dos dois 
herpes: quanto maior a divergência, mais 
tempo se passou. Esse cálculo dá 8 mi-
lhões de anos. O incrível é que, quando a 
mesmíssima conta é feita usando direta-
mente o DNA de humanos e chimpanzés, 
o resultado é idêntico.
A nossa história é a história de nossos 
parasitas. Mais que isso: às vezes, nossa 
história se mistura com a deles. Os retro-
vírus, como o HIV, que você vê no gráfico 
da pág. 25, usam um método especial-
mente engenhoso para controlar a célula 
invadida: em vez de passar fitas de RNA 
nos ribossomos, eles instalam pedaços 
de DNA no genoma do hospedeiro. Sim: 
o bichinho faz com que as receitas de
proteína se tornem parte de você.
Se um retrovírus infecta as células 
germinativas de um ser humano – isto 
é, as células que dão origem a óvulos e 
espermatozoides –, então ele tem uma 
chance razoável de alterar para sempre 
o DNA dos filhos desse humano. Afinal, 
se o óvulo fecundado que dará origem 
ao feto estiver carregando um gene do 
vírus, todas as células do bebê terão esse 
gene ao final da gestação. 
Parece uma possibilidade remota, 
mas é comum: algo entre 5% e 8% do 
genoma humano consiste em pedaços 
de retrovírus que se fundiram com nos-
sos antepassados ao longo da evolução. 
Colonização
biológica
Povos que adquirem 
vírus letais de seus animais 
domésticos podem usá-los 
para infectar inimigos. Foi o 
que aconteceu na América 
em 1500 – quando os nati-
vos foram massacrados pelo 
sarampo dos europeus.
Fontes: A História da Humanidade Contada pelos Vírus, livro de Stefan Cunha Ujvari.
→
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úmidos”) vendem a carne de animais sil-
vestres exóticos que são mantidos em 
jaulas apertadas e então mortos no bal-
cão. As condições sanitárias fazem um 
boteco brasileiro parecer piso de hos-
pital. Já está confirmado que o primeiro 
foco de disseminação do coronavírus 
foi o mercado de Huanan, em Wuhan.
Muitos animais vendidos nesses mer-
cados, antes da captura, contraíram doen-
ças em seu habitat, geralmente após serem 
mordidos por morcegos ou entrarem em 
contato com o cocô desses mamíferos (só 
a minoria dos morcegos, três espécies 
de mil, bebe sangue). Os pequenos Drá-
culas são vetores exemplares: carregam 
no mínimo 200 vírus, 60 dos quais têm 
potencial para contaminar humanos. 
No ambiente estressante do mercado, 
com o facão no pescoço, a imunidade 
dos animais capturados cai e as doenças 
que eles pegaram de morcegos se ma-
nifestam. Daí até um açougueiro com 
as mãos sujas de sangue coçar o olho, é 
um pulinho. Diante de uma oferta tão 
pujante de vírus, frequentemente um 
deles tem as mutações necessárias para 
infectar a nossa espécie também. 
Quando a população doente é grande, 
o vírus se beneficia da violência com que
ataca humanos. Vômito, diarreia e espir-
ros são um Uber para os patógenos: fer-
ramentas por meio das quais eles pulam 
de uma pessoa para outra. É por isso que 
eles se especializaram nesses sintomas. 
O acesso prioritário a vírus e bactérias 
Alguns desses “genes virais”, inclusive, 
foram reaproveitados em funções úteis: 
uma proteína que servia de cola para 
um vírus desconhecido aderir à parede 
das células é usada, atualmente, para au-
mentar a aderência entre as células que 
formam a placenta. Ou seja: ela torna a 
gestação de bebês mais eficiente.
Os vírus e a história
Há cerca de 12 mil anos, o Homo sapiens 
passou a praticar a agricultura e a pecuá-
ria. Essa produção de alimento em larga 
escala permitiu a formação de grandes 
grupamentos sedentários – os primei-
ros vilarejos densamente povoados. E 
isso, por sua vez, permitiu a evolução 
de vírus extraletais: com uma ampla 
oferta de humanos, dá para matar o seu 
e pular direto para o próximo. 
Outro problema é a disseminação de 
zoonoses: doenças que originalmente 
atacavam animais, mas depois sofreram 
mutações que as permitem infectar o 
sapiens. De 1.415 patógenos conhecidos, 
61% têm origem em outras espécies. Tais 
micróbios deixam 2,5 bilhões de pessoas 
doentes e matam 2,7 milhões todos os 
anos. Estima-se que uma nova doença 
animal capaz de infectar pessoas é des-
coberta a cada quatro meses.
O novo coronavírus é uma des-
sas doenças. No Sudeste Asiático, os 
wet markets (ao pé da letra, “mercados 
Breve 
história 
das pragas
No gráfico ao lado, veja as epidemias mais 
famosas da história em ordem cronológica 
– e quanto cada uma matou. A Covid-19, 
no pior dos cenários, pode ser tão grave 
quanto a gripe espanhola. Mas nada que se 
compare à destruição causada pela varíola. 
dos 1.415 
micróbios 
humanos 
conhecidos 
vêm de 
outros 
animais. 
Eles matam 
2,7 milhões 
de pessoas 
por ano.61%
Fontes: Armas, Germes e Aço, livro de Jared Diamond; Report of the WHO-China Joint Mission on Coronavirus Disease 2019 (Covid-19). 
Praga de Justiniano
(541 a 542)
Peste negra
(1347 a 1351)
Varíola
(1520)
terceira Praga
(1855)
griPe esPanhola
(1918 a 1919)
Varíola
(século 20) 
griPe de hong Kong
(1968)
aids
(1981 até hoJe)
sars
(2002 a 2003)
griPe suína
(2009 a 2010)
ebola
(2014 a 2016) 
 25.000.000
200.000.000
 8.000.000
 12.000.000
 50.000.000
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letais, de início, foi péssimopara quem 
deixou os hábitos nômades e passou a 
viver em vilarejos. A qualidade de vida 
nas primeiras comunidades sedentárias 
era inferior à dos caçadores-coletores. Os 
fazendeiros ficavam doentes com mais 
frequência e tinham a alimentação res-
trita aos pouquíssimos vegetais e bichos 
que já haviam sido domesticados. Em 
longo prazo, porém, tais populações se 
tornaram imunes aos germes barra pesa-
da que adquiriam – e passaram a usá-los 
como armas involuntárias (ou, às vezes, 
deliberadas) para dizimar oponentes.
Foi o que aconteceu durante a co-
lonização da América Latina pelos es-
panhóis: as civilizações Asteca e Inca 
foram dizimadas pela varíola trazida da 
Europa – e seus sistemas políticos foram 
desestabilizados por disputas de poder 
quando os governantes morreram. Com 
o tempo, esses povos desenvolveram
imunidade. Os corpos dos sobreviven-
tes, depois de uma primeira infecção, 
aprenderam a matar o vírus do sarampo. 
Mas era tarde: já estavam completamente 
dominados pelos europeus. 
É claro que, para alguns vírus, um 
round de imunização não basta. Vírus 
como o da gripe, por serem feitos de 
RNA, passam por mutações tão rápido 
que aprendem a burlar nosso sistema 
imunológico, como já dissemos aqui. E, 
se essa mutação aumentar a letalidade 
de uma gripe, a coisa vira uma bomba 
atômica. A gripe mais cruel da história 
se deu em 1918, no final da 1a Guerra 
Mundial, quando uma estirpe bombada 
do influenza H1N1 (sim, o mesmo que 
causou a epidemia de 2011) matou algo 
entre 20 e 50 milhões de pessoas. E ela 
tem algumas lições para nos ensinar. 
Como as epidemias se espalham 
Dois números são especialmente im-
portantes para entender epidemias 
violentas. Um é a letalidade, isto é: a 
porcentagem de pessoas infectadas que 
Rédea CuRta
O gráfico abaixo resume o objetivo das quaren-
tenas: se as pessoas não ficarem doentes todas 
ao mesmo tempo, os hospitais talvez deem 
conta de atender todo mundo. 
número de
casos diários
tempo desde o primeiro caso
Casos com
medidas de
prevenção
Capacidade do 
sistema de saúde
Casos sem
medidas de
prevenção
Atraso no
pico de surto
Redução no
pico de surto
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Presente 
de grego
Animais domésticos, como 
os porcos, transmitem 
novos vírus da gripe, 
enquanto morcegos são 
bombas: carregam mais de 
200 tipos de vírus, 60 dos 
quais podem infectar hu-
manos. Eles chegam a nós 
por intermédio de bichos 
exóticos, como pangolins. 
morrem. Outro é o R0 (pronuncia-se 
“érre zero”), que representa a facilidade 
com que o vírus se espalha. Por exem-
plo: se o R0 de uma doença é 2, cada 
doente passa o vírus para, em média, 
outras duas pessoas. 
O influenza da gripe espanhola não 
era tão letal assim: em média, “só” 2,5% 
dos doentes morriam. O problema é que 
ele infectou 500 milhões de pessoas 
(27% da população mundial da época, 
de 1,8 bilhão de pessoas). No fim, no 
mínimo 20 milhões morreram. 
O valor R0 da gripe espanhola ficava 
entre 1,2 e 3 em ambientes abertos e 2,1 e 
7,5 em ambientes confinados. A margem 
de erro é grande porque é impossível 
determinar, só com documentação de 
papel, as características de uma epidemia 
que ocorreu um século atrás. 
Mas o dado é claro: na pior das hi-
póteses, um infectado trancado em um 
navio ou hospital era capaz de deixar 
outras sete pessoas doentes. E era fá-
cil cumprir tais condições. O fim da 1a 
Guerra gerou um grau inédito de cir-
culação e confinamento de pessoas. Os 
militares sobreviventes, desnutridos e 
fumantes, voltavam para casa em navios 
e trens lotados, com o sistema imu-
nológico enfraquecido. A mortalidade 
masculina foi tão alta que a força de 
trabalho feminina na indústria america-
na aumentou 25% por simples falta de 
braço – dando um gás aos movimentos 
pelos direitos das mulheres. 
Conforme uma doença avança, mais 
pessoas se tornam imunes a ela. Chega 
uma hora em que um infectado não con-
segue passar seu vírus para frente, por-
que todas as pessoas com que ela entra 
em contato já foram expostas à doença 
e estão imunes. Isso impede que o ví-
rus pule de corpo em corpo até alcançar 
locais onde a infecção ainda não havia 
chegado. Ele para de colonizar novos 
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territórios. E deixa de existir.
Essa é a progressão natural de toda 
epidemia, e o motivo pelo qual elas sem-
pre terminam. Essa é também a lógica 
por trás da chamada “imunização de 
rebanho”, propiciada pelas vacinas: o 
sarampo, que possui R0 entre 12 e 18, 
se espalha em um ritmo assustador. Para 
que a vacinação seja eficaz, é importante 
derrubar o R0 para 3,5, o que significa 
manter no mínimo oito em cada dez ci-
dadãos imunizados. Quem não vacina os 
filhos põe os filhos dos outros em risco. 
Agora, vamos ao vírus da vez. A mor-
talidade da Covid-19, segundo a última 
atualização divulgada pela OMS antes do 
fechamento desta edição, é de 3,7% (com 
variações etárias, é claro: 0,2% para quem 
tem de 10 a 39 anos, 15% para quem tem 
mais de 80). Já seu R0 é 2,2. Mas há um 
problema: esses números consideram 
apenas os pacientes que foram ao hos-
pital com sintomas preocupantes. Como 
80% dos casos de Covid-19 apresentam 
sintomas leves (ou inexistentes), e não há 
testes para todo mundo, a maioria dos 
infectados fica de fora da contagem. E 
aí o dado da OMS fica exagerado. 
Um jeito eficaz de aumentar a preci-
são dessas cifras é testar absolutamente 
todas as pessoas de um local em que todo 
mundo tenha sido exposto ao vírus. É 
uma exigência exótica para um expe-
rimento – nenhum cientista trancaria 
milhares de cobaias humanas num gal-
pão para depois infectá-las de propósito. 
Mas, por azar, algo parecido aconte-
ceu: o corona se espalhou no navio de 
cruzeiro Diamond Princess, com 3.711 
ocupantes entre passageiros e tripulan-
tes, que encontra-se ancorado no porto 
de Yokohama, no Japão, em quarentena. 
A embarcação virou um laboratório in-
voluntário com cobaias humanas. Até a 
data de fechamento desta edição, eram 
707 infectados e 7 vítimas fatais, o que dá 
uma mortalidade de aproximadamente 
1%. Não por coincidência, é o mesmo 
número fornecido pela Coreia do Sul, 
onde testes estão sendo realizados em 
massa. O vírus, portanto, talvez seja me-
nos letal do que se pensava. 
Mas isso não é consolo caso ele se 
espalhe demais: o infectologista chinês 
Gabriel Leung, especialista em saúde pú-
blica da Universidade de Hong Kong, 
liderou os esforços de combate às Sars 
em 2003 (que teve um desfecho com-
parativamente leve, com 8 mil infecta-
dos e 800 mortos). Ele conhece bem os 
coronavírus, e calcula que até 60% da 
população mundial pode acabar conta-
minada. Se isso acontecer e o índice de 
fatalidades for mesmo de 1%, o vírus 
ainda matará 45 milhões de pessoas. Um 
número bem próximo dos 50 milhões 
da gripe espanhola.
Por isso mesmo é importante ficar em 
casa. O principal objetivo do isolamento 
é fazer com que as pessoas não peguem a 
Covid-19 todas ao mesmo tempo, sobre-
carregando os sistemas de saúde – uma 
ideia representada no gráfico da página 
29 e, felizmente, reproduzida em todos 
os lugares nas últimas semanas. Caso 
tal sobrecarga aconteça, a taxa pode ser 
bem maior que 1%. E o total de mortos 
deixaria a gripe espanhola para trás. 
Pessoas em estado crítico podem ser 
salvas por máquinas de ventilação me-
cânica, que compensam a insuficiência 
respiratória e dão tempo extra para que 
o sistema imunológico lute contra o
vírus – até vencê-lo. Porém, se não há 
equipamento para todos, é preciso es-
colher quem vive. Esse é o problema na 
Itália. Como as quarentenas demoraram 
para começar, a Covid-19 se espalhou 
rápido e a mortalidade bateu avassala-
dores 8,3% em meados de março. No 
dia 16 de março, o país anunciou que 
pessoas acima de 80 anos não terãomais direito a respiradores em caso de 
superlotação – o propósito é guardá-los 
para os que tenham mais chances de 
sobreviver à infecção. 
Para piorar, um estudo coordenado 
Fontes: “Readiness for Responding to a Severe Pandemic 100 Years After 1918”, artigo de Barbara Jester et al. abril 2020 super 31 
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pela Universidade Columbia, em Nova 
York, e publicado no periódico Science 
em 16 de março, estimou que dois terços 
das infecções de coronavírus são culpa 
de assintomáticos: pessoas que contra-
íram o vírus, mas não foram afetadas, 
saem para trabalhar ou estudar normal-
mente e acabam espalhando ele por aí. 
Esse, aliás, é um argumento a favor das 
máscaras: como nem todo mundo fará 
um teste para saber se está ou não in-
fectado, posto que testes são um recurso 
caro e escasso, é melhor proteger de uma 
vez os outros do perigo que você mesmo 
pode representar. 
As vacinas
Além das quarentenas generalizadas, 
a melhor maneira de combater uma 
pandemia viral é vacinar a população. 
Na ausência de bolas de cristal, porém, 
demora produzir uma vacina para uma 
doença até então desconhecida.
Pelo menos oito vacinas contra o 
novo coronavírus estão saindo a toque 
0 1 2 3 151413121110987654
taxa de 
mortalidade 
média de pessoas infectadas 
por cada doente 
0%
5%
10%
20%
30%
15%
25%
35%
40%
45%
50%
55%
60%
65%
70%
75%
80%
85%
90%
95%
100%
Quem pega, 
Quem morre
Neste gráfico, o eixo vertical marca a porcentagem 
de infectados por uma doença que morrem, em 
média. O número também está entre parênteses ao 
lado do nome da doença. Já o eixo horizontal mostra 
o valor R0 (“érre zero”), isto é: o número de pessoas
que são infectadas, em média, por cada indivíduo 
que tem o vírus.
Os dados do coronavírus 
ainda são incertos: a mortali-
dade com certeza é próxima 
de 1%, e o R0 provavelmente 
é maior que 2,2, que é o valor 
oficial atual. 
 gripe aviária* (60%) 
 mers (35%) 
 varíola (30%) 
 sarampo (0,2%) 
 sars (9,6%) 
 gripe espanhola (2,5%) 
 catapora (0,5%) 
 ebola (50%) 
 gripe (0,1%) 
 poliomielite (2%) 
m
at
a 
m
ai
s
se espalha mais
 novo coronavírus (1%) 
O eterno 
retorno
Fontes: Organização Mundial da Saúde (OMS), Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA. 
*A gripe aviária tem R0 = 0 porque é transmitida apenas de aves para humanos, e não entre pessoas.
Os vírus sempre estarão um 
passo à frente do sistema 
imunológico. A nós, resta 
lidar com as epidemias – que 
sempre vão voltar. 
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de caixa, a maioria em empresas priva-
das. Vacinas, assim como remédios, são 
submetidas a um processo regulatório 
severo que garante sua segurança e efi-
cácia. Antes de chegar ao público, elas 
passam por testes pré-clínicos com ani-
mais e três fases de testes clínicos com 
voluntários humanos – se qualquer coisa 
der errado, o trabalho recomeça do zero. 
Assim, há o risco de que nenhum dos 
concorrentes complete o trabalho a tem-
po (ainda que essa seja uma precaução 
importantíssima para evitar epidemias 
futuras). “Pode acontecer algo parecido 
com o caso do ebola”, diz Helder Nakaya, 
da Faculdade de Ciências Farmacêuticas 
da USP. “As pessoas correram para criar 
uma vacina, mas, quando os ensaios clí-
nicos estavam na fase 3 [o teste final, com 
milhares de voluntários], já não havia mais 
uma epidemia para combater.”
Sabe-se que a Johnson & Johnson está 
estudando uma vacina que consiste em 
injetar o vírus inteiro em uma versão 
inativa, e a Clover Biopharmaceuticals, 
em parceria com a Universidade de Que-
ensland, na Austrália, aposta em uma 
técnica que envolve exibir uma proteína 
do vírus ao sistema imunológico, de ma-
neira que os glóbulos brancos salvem a 
impressão digital da ameaça. Essas são 
duas abordagens clássicas, usadas em 
vacinas desde o século 18. 
Uma outra empresa, chamada Moder-
na Therapeutics, aposta em uma técnica 
mais inovadora (e já até pulou os testes 
preliminares em animais para vencer 
a concorrência, uma infração ética que 
incomodou os profissionais da saúde). A 
ideia deles é injetar pedacinhos de RNA 
mensageiro do vírus nas pessoas, simu-
lando aquele momento do sequestro dos 
ribossomos. As células do vacinado, en-
tão, passariam a fabricar uma amostra de 
proteína viral inofensiva, que então seria 
identificada e devidamente arquivada pe-
lo sistema imunológico. Quando o vírus 
real entrasse no corpo, encontraria todo 
um batalhão de linfócitos prontos para 
massacrá-lo.
Como é impossível prever quando a 
vacina estará disponível, a melhor arma 
contra o coronavírus ainda somos nós 
mesmos. “O que as autoridades brasi-
leiras podem fazer aparentemente está 
sendo feito”, diz Eliseu Alves Waldman, 
epidemiologista da USP. “A Itália con-
seguiu uma boa adesão, mas só quando 
chegou a um estado de crise absoluta. 
Precisamos da ajuda da população.” 
Essa não foi a primeira nem será a 
última epidemia com que a civilização 
terá de lidar. Faz mais de 3 bilhões de 
anos que a vida na Terra é essencial-
mente microscópica – e apenas 300 mil 
anos que estamos por aqui. Eles habi-
tam este planeta há 10 mil vezes mais 
tempo que nós. Somos descendentes 
de mamíferos que já eram infectados 
por vírus, que por sua vez descendem 
de répteis que já eram infectados por 
vírus, que em última instância des-
cendem de bactérias que, até hoje, são 
massacradas por vírus. Não podemos 
vencê-los – apenas lidar com eles. Co-
mo já dizia o Levítico (13:46): “Enquan-
to sofrer de uma doença contagiosa, a 
pessoa precisará morar sozinha, fora 
do acampamento.” É isso. A receita tem 
funcionado bem nesses últimos 3 mil 
anos. E o pessoal da Bíblia nem tinha 
Netflix para afastar o tédio. S
do mundo 
pode pegar 
a doença, re-
sultando em 
45 milhões 
de mortos.60 %
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