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TEOLOGIA HERMENÊUTICA Sebastião Donizeti Bazon unar.info/ead2 APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA Prezado (a) aluno (a) Na filosofia quando falamos dos problemas da interpretação e compreensão, estamos falando de um problema fundamental no pensamento filosófico. Tanto no campo bíblico-teológico, como no campo histórico ou no das ciências do espírito, remonta essencialmente a pressupostos, cuja investigação e esclarecimento são a tarefa da filosofia. A hermenêutica se torna então uma área da filosofia exclusiva para tratar de problemas que viram em torno da questão da interpretação, fazendo perguntas como: o que significa compreender? Qual é o melhor método para chegar à verdade? Devo interpretar o texto ao pé da risca, ou devo considerar os aspectos histórico-sociais da época? Essas questões foram o motor para que a hermenêutica se desenvolvesse, sendo a todo o momento, a filosofia se volta para essas questões para poder progredir em seus estudos. O primeiro emprego e formação da palavra hermenêutica foram de domínio teológico, surgindo, porém, apenas na era moderna - como titulo de livro, encontra-se desde os séculos XVII e XVIII – no sentido de uma "arte da compreensão" ou de uma "doutrina da boa interpretação", a saber, no sentido bíblico de uma interpretação correta e objetiva da Escritura. Todavia, o problema é muito mais antigo e mais amplo, pois esse problema se apresenta muito antes da Sagrada Escritura e seus problemas de interpretação. Nos textos profanos já tinham a questão do modo correto de interpretar os textos, obras literárias, testemunhos históricos, velhos textos legislativos, etc., devem ser compreendidos corretamente e interpretados num sentido que será talvez, portanto, encarado neste contexto mais amplo. Com a hermenêutica bíblica, a compreensão histórico-filológica teve sua primeira aparição, dado que cumprem, em primeiro lugar, compreender os textos Sagrados, como testemunhos literário-históricos, iguais a outros textos escritos do mesmo gênero. Porém, a hermenêutica bíblica não era capaz de resolver os principais problemas da compreensão, por causa de sua base teológica que muitas vezes limitava o exercício da racionalidade e da interpretação. Somente com a influência da filosofia e da ciência do espírito, a hermenêutica pode caminhar para frente, superando suas limitações, experimentando novos horizontes e novos problemas, como: a ideia de verdade transforma no decorrer da história? A história possui a exigência da verdade absoluta? Qual é a relação entre verdade e história? Essas perguntas indicam já a problemática filosófica contida na palavra hermenêutica, como entendemos hoje. Não se trata apenas do problema da interpretação teológica da Escritura, nem se trata somente das questões mais amplas da compreensão e interpretação históricas do espírito, mas sim do problema fundamental de ordem filosófica a respeito da compreensão em sua essência e em suas estruturas, sua condições e limites. Sebastião Donizeti Bazon PROGRAMA DA DISCIPLINA Ementa: Relação entre hermenêutica e filosofia. Investigação das perspectivas da hermenêutica no contexto mais amplo da discussão entre a Modernidade e a Pós- modernidade. Objetivo: Explicar a origem do termo Hermenêutica e seus primeiros estudos. Estudar a arte da interpretação e as formas para que a pessoa consiga uma interpretação profunda e verdadeira. Conteúdo Programático: Origem e conceito da Hermenêutica; A Hermenêutica de Schleiermacher; Dilthey e o historicismo alemão; Gadamer e o método hermenêutico; O método geral da interpretação de Emílio Betti; Paul Ricoeur e o conflito de interpretações; Luís Pareyson e a pessoa como “órgão da verdade; Gianni Vattimo e a Hermenêutica do pensamento débil. Metodologia: Disciplina oferecida na modalidade a distância (EAD). Incentiva-se a formação de grupos de estudo autônomos, orientados pelo professor. Avaliação: No sistema EAD, a legislação determina que haja avaliação presencial, sem, entretanto, se caracterizar como única forma possível e recomendada. Na avaliação presencial, todos os alunos estão na mesma condição, em horário e espaço pré– determinados, diferentemente, a avaliação a distancia permite que o aluno realize as atividades avaliativas no seu tempo, respeitando-se, obviamente, a necessidade de estabelecimento de prazos. A avaliação terá caráter processual e, portanto contínuo, sendo os seguintes instrumentos utilizados para a verificação da aprendizagem: 1) Trabalhos individuais ou a partir da interatividade com seus pares; 2) Provas bimestrais realizadas presencialmente; 3) Trabalhos de pesquisa bibliográfica. As estratégias de recuperação incluirão: 1) Retomada eventual dos conteúdos abordados nos módulos, quando não satisfatoriamente dominados pelo aluno; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: Bibliografia Básica: FALCÃO, R. B. Hermenêutica, São Paulo: Malheiros 1997. ROHDEN, L. Hermenêutica Filosófica. Unisinos, 2002. COELHO, I. M. Da Hermenêutica Filosófica à Hermenêutica Jurídica. Saraiva, 2010. Bibliografia Complementar: HABERMAS, J. Discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins Fontes, 2000. FIORIN, J. L.; SAVIOLI, F. P. Para entender o texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1997. INFANTE, U. Do texto ao texto: curso prático de leitura e redação. São Paulo: Scipione, 1998. TESTA, E. Hermenêutica Filosófica e História. UPF Editora, 2004. REIS, R. R. Filosofia hermenêutica. UFSM, 2000. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA ......................................................................................................... 1 PROGRAMA DA DISCIPLINA ................................................................................................................. 3 UNIDADE 01 - A ORIGEM DO TERMO HERMENÊUTICA .................................................................... 6 UNIDADE 02 - HERMENÊUTICA FILOSÓFICA ................................................................................... 10 UNIDADE 03 - A COMPREENSÃO HERMENÊUTICA ........................................................................ 14 UNIDADE 04 - NOVOS MÉTODOS EXEGÉTICOS .............................................................................. 18 UNIDADE 05 - A HERMENÊUTICA DE SCHLEIERMACHER............................................................... 22 UNIDADE 06 - A NOVA FORMA DE HERMENÊUTICA ..................................................................... 26 UNIDADE 07 - DILTHEY E O HISTORICISMO ALEMÃO .................................................................... 31 UNIDADE 08 - A PSICOLOGIA DO ESPÍRITO .................................................................................... 36 UNIDADE 09 - A POESIA E A LITERATURA NA HERMENÊUTICA DE DILTHEY .............................. 41 UNIDADE 10 - GADAMER E O MÉTODO HERMENÊUTICO ............................................................. 44 UNIDADE 11 - GADAMER E O CONCEITO DE PRECONCEITO......................................................... 48 UNIDADE 12 - O MÉTODO HERMENÊUTICO DE EMILIO BETTI. ..................................................... 53 UNIDADE 13 - OS CANONES HERMENÊUTICOS DE BETTI. ............................................................. 57 UNIDADE 14 - O MÉTODO INTERPRETATIVO DE BETTI .................................................................. 61 UNIDADE 15 - A HERMENEUTICA PAUL RICOUER ........................................................................... 65 UNIDADE 16 - OS MESTRES DA SUSPEITA ........................................................................................ 69 UNIDADE 17 - A QUESTÃO DO SUJEITO NA FILOSOFIA DE RICOUER. ......................................... 73 UNIDADE 18 - LUIS PAREYSON E A HERMENÊUTICA ......................................................................77 UNIDADE 19 - A PESSOA COMO O ORGÃO DA VERDADE ............................................................ 81 UNIDADE 20 - GIANNI VATTIMO E A HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA ................................ 85 6 UNIDADE 01 - A ORIGEM DO TERMO HERMENÊUTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: explicar a origem do termo Hermenêutica e seus primeiros estudos. ESTUDANDO E REFLETINDO A palavra Hermenêutica vem do grego "hermēneuein" e significa "declarar", "anunciar", "interpretar", "esclarecer" e, por último, "traduzir". Significa que alguma coisa é "tornada compreensível" ou "levada à compreensão". Esse estudo é um ramo da filosofia que pretende estudar a arte da interpretação e as formas para que a pessoa consiga uma interpretação profunda e verdadeira. A disciplina da hermenêutica dividiu-se em dois períodos: a hermenêutica tradicional – que inclui hermenêutica bíblica – referindo-se aos estudos da interpretação de textos escritos, especialmente nas áreas da religião, literatura e direito. E a hermenêutica moderna, que engloba não somente os textos escritos, mas tudo que envolve o processo interpretativo, incluindo formas verbais e não verbais de comunicação, assim como aspectos que afetam a comunicação, como preposições, pressupostos, o significado e a filosofia da linguagem, além da semiótica. Vários pesquisadores defendem que o termo deriva do nome do deus da mitologia grega Hermes, o mensageiro dos deuses, a quem os gregos atribuíam à origem da linguagem e da escrita e considerado o patrono da comunicação e do entendimento humano. O exercício da hermenêutica se deu muito no âmbito teológico, com objetivo de interpretar as sagradas escrituras; para melhor compreender esse processo, é necessário recorrer à história do problema bíblico-teológico. Essa tarefa de interpretação já aparece no antigo testamento, através dos escribas que tinham uma fundamental importância e influência na época. Nesta época, existiam várias escolas e correntes de exegese bíblica no judaísmo, mas sua contraposição surge com o novo testamento, com uma autêntica forma de 7 interpretação da Escritura. O novo princípio hermenêutico, não fundamentado em um novo conhecimento histórico: o acontecimento salvador em Jesus Cristo, em que o antigo testamento encontra o seu acabamento. É nesse acabamento em Cristo que se deve compreender todo o Antigo testamento: somente nele que se desvenda todo o “sentido das Escrituras”. Mas, somente com a teologia patrística do século II e III, surge realmente o problema hermenêutico, antes de tudo na oposição entre a escola Antioquia, que se baseava no sentido literal e histórico da narração da bíblica, e a escola Alexandrina, que procurava atingir um “sentido espiritual” mais elevado, em uma exposição simbólico- alegórica. A dualidade de tendências na exegese bíblica continua entre os padres latinos, com Jerônimo de um lado e Ambrósio do outro, ao passo que Santo Agostinho procura aliar esse dois métodos de interpretar. A compreensão patrística da escritura repercute, sob várias formas, na teologia medieval, embora, sobretudo desde a alta escolástica, os textos da Sagrada mantêm uma conexão com a teologia especulativa e sistemática, que se aplicam a eles, mas, por isso mesmo, sendo desprezado propriamente o aspecto hermenêutico-exegético. O pensamento Patrístico trouxe para discussão os problemas da interpretação. (Fonte: http://desconstruindoateologia.blogspot.com.br/p/apologia.html) A partir do começo da era moderna, o problema se agrava. A Reforma anuncia a exigência da volta à pura palavra da Escritura. Conforme Lutero, a bíblia não deve ser exposta segundo o ensino tradicional da igreja, mas apenas compreendida por si mesma; ela é “sui ipsius interpres” (“interprete a si mesma”). Esse princípio representa http://desconstruindoateologia.blogspot.com.br/p/apologia.html 8 um novo tipo de princípio hermenêutico, contra o qual a igreja católica declara expressamente no concílio de Trento que cabe à igreja a interpretação da escritura: “Compete-lhe o julgamento acerca do verdadeiro sentido e da explicação da sagrada Escritura”, outro princípio hermenêutico, que exige ser a Escritura compreendida a partir de todo o contexto da vida e da doutrina da igreja. Com o protestantismo, a hermenêutica caminhou em um viés mais “ortodoxo”, pois a doutrina da “inspiração verbal” separa ainda mais a Escritura do seu original contexto histórico, fechando-se a uma compreensão histórica e exigindo que se entendessem cada palavra imediatamente como a palavra de Deus. O problema da hermenêutica protestante começou a tornar-se mais agudo, a partir do movimento iluminista que começou a se expandir e penetrou no campo protestante. John Locke e outros pensadores britânicos do século XVIII mostravam claramente a tendência de reduzir o cristianismo como uma religião natural e, portanto, excluir totalmente qualquer alusão de revelação divina ou que se remete ao plano do sobrenatural. Com isso, a Sagrada escritura deve ser entendida apenas no sentido de uma pura religião racional, excluindo-se tudo o que ultrapassa essa ideia. Torna-se então princípio hermenêutico o que se aprende e se esclarece racionalmente. Em 1835, com o livro A Vida de Jesus do filósofo David Friedrich Strauss, a hermenêutica teológica passou a sofrer fortes críticas sobre sua legitimidade e método analítico, o radicalismo proposto por Strauss – supõe que quase tudo o que está nas Escrituras pertence ao mito e deve ser superado – desencadeia em seu tempo uma violenta discussão, mas conduz a introdução do “método histórico-científico” no campo da exegese bíblica. BUSCANDO O CONHECIMENTO A mudança no foco da interpretação ocorre com o aparecimento de um novo método no campo hermenêutico, a interpretação teológica perdeu a sua força e ficou de lado nos debates acadêmicos, o princípio histórico-científico trouxe novas visões para a interpretação e também houve uma revalorização de alguns pressupostos 9 básicos da hermenêutica, como a noção de compreensão, razão e intelecto, mas antes de nós estudarmos essas novas concepções, é necessário que tenhamos conhecimento de como esses princípios se desenvolveram ao longo da história. A palavra compreensão vem do verbo “compreender”, que significa “tomar junto”, “abranger com”, entendido aqui no sentido teórico e não material. O verbo “compreender” e o substantivo “compreensão” aludem à clássica dualidade entre ratio (razão) e intellectus (intelecto), mas a distinção desapareceu na língua alemã, pois o substantivo “compreensão” (Verstand) correspondia mais a ratio, o verbo “compreender” (Verstehen) significa antes uma intuição (Vernunft), ou seja, o intellectus. É neste ultimo sentido que se toma a palavra alemã (como Verstehen e não Verstand) nas ciências históricas e do espírito, bem como a hermenêutica geral. Na língua latina, as duas palavras mantêm a sua distinção natural, distinção essa que já aparecia nos escritos de Platão e Aristóteles e que foi depois traduzida no latim medieval por ratio e intellectus. Em Tomás de Aquino, ratio passa a significar a capacidade do pensamento conceitualmente discursivo, ou seja, do pensamento racional no sentido mais estrito de mediações e conclusões, enquanto intellectus é a capacidade mais elementar de percepção espiritual imediata, a capacidade de intuir o ser, as leis do ser e os conteúdos da essência. Esse dois elementos não se opõem, pois pertencem ao todo e relacionam-se mutuamente, já que o imediatismo do intelecto, pela mediação da razão, deve chegar à expressividade conceitual articulada e diferenciadora. Assim, de acordo com Tomás de Aquino, a ratio se refere à multiplicidade e daí procura chegar sinteticamente à unidade do conhecimento. O intellectus, ao contrário, apreende imediatamentea unidade e a totalidade, na qual a multiplicidade está contida e a partir da qual deve ser desdobrada analiticamente. 10 UNIDADE 02 - HERMENÊUTICA FILOSÓFICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: Compreender a hermenêutica filosófica. ESTUDANDO E REFLETINDO A hermenêutica filosófica inicia-se com os estudos do filósofo francês René Descartes (1596 – 1650), onde afirma que o conhecimento racional se restringe à simples ratio no sentido do pensamento conceitual lógico-matemático, suprimindo-se, portanto, a diferença entre razão e intelecto, reduzindo ambos à razão. O puramente racional é posto de modo absoluto: perde assim o seu fundamento na percepção do ser pelo intelecto. Em oposição a Descartes, o filósofo Blaise Pascal (1623 – 1662), vai contra a ideia restrita dos racionalistas; em seu argumento, o filósofo alega que o nível da pura razão (ratio) é vencido por aquilo que Pascal denomina inteligência (intellectus) ou coração, em sua célebre frase: “O coração tem razões que a própria razão desconhece.”, isso significa que a oposição ao pensamento lógico-matemático, não apenas em um sentido irracional, mas uma faculdade mais elevada e mais fina de sensação intuitiva e de empatia compreensiva, somente a ela se abre a plenitude do sentido da realidade em sua riqueza e profundidade. Um novo significado de compreensão predomina nas filosofias de Kant e Hegel. Embora o entendimento (Verstand, que seria propriamente a razão) e a razão (Vernunft, que devia ser o intelecto) sejam às vezes definidos diferentemente, quase sempre são tomados no sentido de Verstand (entendimento) é a faculdade inferior do conhecimento objetivo e pensamento categorial, sendo, por conseguinte, destinados às coisas finitas, conceitualmente apreensíveis e limitáveis, enquanto que a Vernunft (razão significa uma faculdade superior que capta uma unidade não objetiva) em Kant a razão torna-se o lugar das ideias transcendentais, isto é, a capacidade de pensar fora do domínio da experiência. Para o filósofo Hegel, ergue-se sobre o “abstrato Verstand” que limita e separa por oposições os conteúdos individuais finitos, a “Vernunft especulativa”, 11 que alcança a unidade dialética de todas as oposições, na qual o próprio absoluto se manifesta e se abre pela primeira vez a inteira verdade das coisas. Este retrospecto histórico é importante para entender o processo de compreensão e seu problema. Essa dualidade faz com que a compreensão permaneça dependente e mutuamente relacionada com noções de razão e intelecto, apoiando-se em Hegel a dualidade de razão e intelecto como sendo “mediação” e “imediatismo”, também separa as noções de “compreender” e “interpretar”, muito usado na hermenêutica mais recente, mas muitas vezes mal entendido. Compreender significa aqui o imediatismo da visão da inteligência que apreende um sentido. Interpretar, ao contrário, quer dizer a mediação do conhecimento racional, que pressupõe o imediatismo da compreensão prévia, mediando-a, porém, racionalmente por decomposição, fundamentação e explicação, e elevando-a assim ao imediatismo mediato de uma compreensão aprofundada e expressamente desenvolvida. Desse processo surge uma nova pergunta: que pensamos ao dizer “compreender”? Quando afirmamos que compreendo o que ouço ou leio, que compreendo este enunciado, esta instituição - esse termo significa apreensão do que chamamos “sentido”, podendo tratar-se de um conteúdo de sentido, de uma relação de sentido, de uma estrutura significativa ou de um acontecimento de sentido. Compreender significa apreensão de sentido. Com isso, chegamos à pergunta: o que entendemos por “sentido”? A pergunta sobre o “sentido do sentido” constitui, principalmente na filosofia analítica, um problema fundamental, se bem que quase sempre uma concepção estreita, não fazendo jus ao fenômeno total. O sentido de um enunciado encontra-se sempre num determinado contexto de sentido, pode-se definir por um correspondente critério de sentido que, no seu respectivo contexto, deve ser tido como “significativo”. O referido contexto de sentido tanto pode ser determinado materialmente pelo âmbito do objeto, como também formalmente pela consideração metódica do conhecimento. O critério de sentido não é 12 aplicável a si mesmo, mostrando assim que o “sentido” definido se funda sobre uma significação mais originária da linguagem e uma compreensão mais geral do sentido da compreensão linguística. O sentido determinado e limitado pela definição somente é possível graças ao fundo de todo o contexto significativo da linguagem e compreensão humanas, onde o “sentido” se abre de muitas maneiras. Se compreensão significa “apreensão dos sentidos”, põe-se de novo a pergunta sobre o que concretamente se pensa com isso, de que maneira e em que âmbitos se abrem os conteúdos de sentido. Relacionamo-nos “compreensivelmente” a coisas bem diversas, compreendemos um homem com quem falamos, compreendemos uma palavra falada ou escrita, compreendemos coisas práticas e organizações, compreendemos obras de artes em seu conteúdo de sentido e de valor e, também compreendemos a nos mesmos no mundo, no qual vivemos, agimos e falamos. Todavia, o que realmente a hermenêutica histórico-científica procura é o significado dessas manifestações de compreensão. A forma primária da compreensão é a compreensão humana, antes de tudo no dialogo: compreendo o que dizes; compreendemo-nos. Apreendo o que é pensando na palavra, o sentido que me é falado. A compreensão linguística tem por essência uma estrutura dialogal, o que é preciso, portanto, é penetrar no outro, a fim de alcançar o que ele pensou. Compreenderei tanto mais correta e plenamente sua afirmação quanto melhor o “conheça”, quanto mais esteja familiarizado com a sua personalidade, seu modo de pensar e de falar. BUSCANDO CONHECIMENTO A compreensão, não é um acontecimento bipolar, mas mostra essencialmente uma estrutura triangular, na medida em que falar e compreender se referem à coisa. Mesmo que eu conheça o outro com a sua maneira de pensar e de falar, só o compreenderei se olhar juntamente com ele o objeto, deixando que ele mostre e abra, ajustando contas com sua visão e interpretação da coisa – olhada por mim mesmo. 13 Através da coisa, chego à compreensão do enunciado, mas, ao mesmo tempo, é através da compreensão do enunciado que se chega à compreensão da coisa. A compreensão linguística só é possível no meio envolvente do mundo da experiência e da compreensão, no qual a coisa se mostra para mim, contudo, a coisa não dada imediatamente sem medição linguística. Pelo enunciado linguístico em que a mediação se mostra, retorna acessível à compreensão e aberta em seu sentido. O olhar para a coisa não significa, portanto, que se pula a mediação linguística, mas é a fala que indica transcendendo a si mesma, a coisa. Compreensão linguística exige olhar para a coisa; esta, porém, em si mesma será aberta pela linguagem. A compreensão da coisa e a linguagem condicionam-se e determinam-se mutuamente; uma coisa apresenta-se como mediada pela outra. Do outro lado, surge a compreensão objetiva, que se mostra com o tempo, embora de maneira diferente, como derivada da compreensão humana. A linguagem em sua essência não será adequadamente concebida quando compreendida apenas como um sistema de sinais, a saber, na função de designar posteriormente o que antes foi conhecido e compreendido. Neste caso, a linguagem perde a função de começar e mediar o sentido, mesmo com essa restrição, cabe à linguagem uma função de sinal. A palavra escrita ou falada aponta para além de si mesma e resulta em um estado de coisas ou conteúdo de sentido. Logo, compete a escritura o caráter de sinal, pois que reproduz palavras ou sentenças por meio de sinais escritos. No sinal há um “sentido” estabelecido pelos homens,dirigindo-se à compreensão de outros homens. O mesmo se dirá de sinais sem palavras ou sem linguagem, como, digamos, sinais de trânsito, símbolos, matemáticos, emblemas, armas e bandeiras. Com eles, se “quer dizer” alguma coisa. Como se trata de um “sentido” instituído e estabelecido pelos homens, numa determinada intenção, somente compreendo o sinal apreendendo seu “sentido”. É por isso que a compreensão do sinal constitui uma forma modificada e materializada da compreensão humana. 14 UNIDADE 03 - A COMPREENSÃO HERMENÊUTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: Entender o processo da compreensão na hermenêutica. ESTUDANDO E REFLETINDO A compreensão não se restringe a uma atitude teórica: há também uma compreensão prática. Não dizemos apenas “compreensão alguma coisa”, mas também “entendo alguma coisa”. Isso quer dizer que a coisa é familiar, que eu sei lidar com ela e usá-la muito bem, que, portanto, no trato com ela, se abriram a mim contextos de sentido e de finalidade. Assim é a compreensão de uma coisa de uso prático, de um instrumento, de um dispositivo técnico. Porém, a interação humana nunca é puramente prática, ou seja, nunca é, com a exclusão de qualquer elemento teórico, um acontecimento cego ou mecânico. Pelo contrário, “compreendemos”, ainda que o próprio trato prático, o instrumento, sua finalidade e seu manuseio. A compreensão deste modo resulta em um ato de conhecimento, embora não ordenado a uma verdade teórica, mas ao uso prático. Neste sentido, é um conhecimento prático, e, como tal, uma verdadeira compreensão, na qual se abre uma relação ou uma estrutura de sentido. Neste caso, porém, trata-se da compreensão de um sentido humanamente estabelecido, ao modo de, por exemplo, a compreensão do sinal. A compreensão não consiste, aqui, somente na reprodução daquilo que o produtor pensou ou quis, mas – com uma relativa independência disso – na compreensão da coisa em si mesma; preciso conhecer sua característica, sua finalidade e a maneira de seu manuseio para poder se utilizar corretamente dela. Todavia, mesmo nessa espécie de compreensão, crescemos dentro de um mundo humano comum. Participamos dos conhecimentos dos outros, empregamos concepções e empreendimentos dos outros, estamos – muito mais no moderno mundo técnico – sempre mais intimamente ligados uns aos outros e dependentes uns aos outros. Essa comunidade, contudo, pressupõe a compreensão do indivíduo, pela qual 15 se lhe abre um mundo de conteúdos e contextos significativos na comunidade humana da linguagem e de ação. Todas essas formas de compreensão humana irão resultar em uma compreensão hermeneuticamente primordial; a compreensão histórica. Aqui se trata de “compreender” homens do passado, suas ações e obras, seus destinos e decisões em seu contexto histórico. Nesse ponto, ficamos ligados a testemunhos objetivos da história. Estes são tanto as coisas produzidas imediatamente pelo homem como os instrumentos, os edifícios e as obras de arte, para cuja compreensão se aplica, em princípio, o mesmo que se diz das obras imediatas do homem: é, pois, uma compreensão humana, embora mediada pelas coisas. Existem também, textos escritos no passado, que servem para interpretar compreensivamente a história. Embora aqui também se levante uma multidão de problemas de hermenêutica histórica, cumpre antes refletir-se que a compreensão histórica apresenta essencialmente as mesmas estruturas de toda compreensão humana no diálogo do “imediato”. Com efeito, também esse imediatismo é mediano: nunca posso colocar-me dentro do outro, mas estou limitando as suas palavras, seus gestos, seu comportamento, pelos quais se faz entender. A compreensão histórica em certas ocasiões há de transpor amplas distâncias temporais, espirituais e culturais, mas figuras de um distante passado podem estar-nos humanamente mais perto e ser mais compreensíveis em seu pensamento e atitude do que as pessoas com que nos deparamos imediatamente. O problema essencial está na compreensão da linguagem falada no diálogo e da compreensão da palavra escrita num dado texto. No primeiro caso, vem-me ao encontro um homem vivo, que me fala, capaz de compreender minhas perguntas e responder a elas, esclarecendo também seu pensamento, compreensão mútua que se desenvolve no diálogo. No segundo caso, pelo contrário, estamos diante de um texto formulado e fixo, não havendo possibilidade de compreensão num diálogo. Quanto maior a razão para que se compreenda o texto pelo contexto, tanto mais se precisa 16 perguntar sobre o fundo espiritual e cultural, sobre o modo de falar e pensar do autor, se é que se deseja compreender corretamente suas palavras. De importância fundamental, contudo, é que, no conhecimento da história, se trata de uma “compreensão”, superior a uma simples “explicação” causal. Uma obra ou um evento histórico nunca pode ter uma explicação causal adequada; devem, antes, ser compreendidos em seu sentido e por seu contexto de sentido. E, por último, o questionamento sobre a existência de uma compreensão da natureza, que se difere das outras compreensões mediatas ou imediatas da compreensão humana, isto é, de um sentido estabelecido pelos homens. Ao contrário disso, encontramos o fenômeno de que “compreendemos” também conteúdos e relações de sentido, anteriores à ação humana criadora do sentido, perceptíveis a nós nas coisas e sucessos da natureza. Já nas coisas mortas da natureza, como na estrutura de um cristal, mas principalmente em todo ser vivo, como numa flor, num escaravelho, ou numa corça da floresta, apreendemos uma incomparável “configuração de sentido” da natureza. O importante é verificar que também na natureza há alguma coisa a “compreender”. Esse estado de coisas se torna obscuro, se a oposição entre “explicar” e “compreender” for posta em termos absolutos, isto é, se a explicação científica não for estabelecida como um modo de consideração metodicamente limitado, mas como única maneira de conhecimento adequada ao âmbito de tal objeto. Mas é preciso que elas tenham consciência de que, com isso, não alcançam tudo, nem sequer, plenamente, seu objeto específico, o qual se lhe abre apenas sob o aspecto metodicamente limitado. Afora isso, manifesta-se uma significação múltipla da natureza, inapreensível por um modo de explicação causal – quantitativa, mas acessível não só a uma compreensão pré-científica da natureza, como também filosoficamente a uma consideração fenomenológico-morfológica. Pelo fato de se ter fixado num sentido estreito o conceito de “explicação”, chegou-se à formação do sentido oposto, “compreensão”, mas num sentido 17 igualmente restrito, ou seja, apenas no significado psicológico e histórico da compreensão e finalmente como conceito metódico daquilo que desde Dilthey se chama de “ciência do espírito” por oposição à ciência da natureza. Foi por isso que se deixou de ver que o fenômeno da compreensão é mais amplo e original que o conceito científico. A própria natureza precisa ser compreendida, sendo que a pesquisa científica da natureza pressupõe uma compreensão do significado da natureza, a qual cumpre então explicar. Não há explicação sem compreensão, como igualmente não há compreensão sem explicação. BUSCANDO CONHECIMENTO Compreensão é um acontecimento tão fundamental quanto universal. Todo o conhecimento, inclusive o científico, baseia-se numa compreensão. A compreensão é à base da hermenêutica, por isso o estudo dessa disciplina torna-se algo fundamental para toda a ciência que busca se desenvolver. A hermenêutica sofreu uma reinterpretação de seus pressupostos mais básicos como as noções de razão, interpretação, intelecto e se sistematizou para melhor aprofundamento dos seus estudos, dividindo-se em compreensão pessoal, objetiva, prática, entre outras. Resultando em uma hermenêutica historicista,que predominou nos meios acadêmicos por um bom tempo, tornando-se uma corrente hegemônica. 18 UNIDADE 04 - NOVOS MÉTODOS EXEGÉTICOS CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: Compreender os novos métodos usados para interpretar textos. ESTUDANDO E REFLETINDO O pesquisador da hermenêutica deve buscar novos métodos para que ele possa aperfeiçoar os seus métodos e melhorar a interpretação dos textos filosóficos, científicos e religiosos. Para refletir sobre esse assunto, trago um excerto do mestre em ciências da religião Anderson de Oliveira Lima1. 1. Procedimentos Introdutórios: Escolha e Preparação do Texto Antes De qualquer análise, obviamente precisamos decidir o que vamos analisar. Isso pode não ser tão simples quando estamos falando de escolher alguns versículos dentre uma verdadeira biblioteca de milhares de páginas como é a Bíblia. Por isso, minha proposta começa antes da exegese, falando da aproximação para com o texto, das primeiras leituras, da escolha por um objeto de estudo de tamanho limitado e acessível, das primeiras impressões que teremos deste objeto, e de todos os procedimentos que precedem a análise em si. Não vou me deter nestes procedimentos introdutórios, pois basta uma consulta aos mais tradicionais manuais de exegese para que o leitor tenha contato com eles. Por isso, me limitarei à enumeração destes tais procedimentos que, em minha opinião, precedem a exegese: 1) Aproximação e escolha do texto; 2) Delimitação de perícope; 3) Tradução ou comparação de traduções; 4) Crítica Textual (opcional). 2. Análise das Formas Esta primeira parte da análise é também tradicional, mas já sofre algumas correções em meu roteiro exegético. Notei que grande parte dos exegetas não sabe aplicar qualquer análise de formas ao texto, e muitas vezes a análise das formas limita- se à avaliação dos gêneros literários. Fora isso, apenas estruturas estilísticas muito comuns como paralelismos são notadas. Mas há muito mais para dizer em relação às formas de um texto, e por isso, resolvi tratar desse tema em quatro diferentes seções, que estão divididas por um critério mais didático do que científico. 1 Disponível: <http://www.revistatheos.com.br/Artigos/01%20Anderson.pdf>, acesso em: 02/08/2014. 19 Eu lido primeiro com as “formas inconscientes”, aquelas que estão em qualquer texto ou qualquer fala, mesmo quando o texto é prosaico e suas formas parecem aleatórias. Estas formas estão lá por convenções culturais não explícitas, por leis gramaticais, e até por razões biológicas; estas “forças” nos fazem naturalmente subdividir nossos atos de comunicação em frases, parágrafos, capítulos, e cabe ao exegeta identificar a forma natural de cada texto. Aqui, sem dúvida nenhuma, as propostas nada recentes de autores consagrados como Tzvetan Todorov, Roland Barthes ou Algirdas J. Greimas, que podem nos ajudar bastante. Há no Brasil uma publicação que reúne artigos destes e outros autores que poderia ser consultada; trata- se de Análise Estrutural da Narrativa (Barthes, 2011), e em especial, o artigo de Greimas sobre a interpretação das narrativas míticas (p. 63-113). Depois dessa primeira análise, daremos um passo a mais e trataremos de formas mais evidentes, mais conscientes, mas que nem sempre nos permitem caracterizar gêneros. Por exemplo, eu posso falar usando algumas rimas, e tenho que pensar nelas para ter sucesso, contudo, isso não quer dizer que estou compondo um soneto ou um poema concreto. Temos então rimas a analisar, mas não necessariamente um poema ou um repente. Na prática, é hora de averiguar os paralelismos, quiasmos, repetições e todos os recursos estilísticos típicos da literatura bíblica. Depois, sugiro a abordagem dos gêneros, que para serem devidamente seguidos, um autor tem que conhecer e tomar a decisão de empregá-los. Aí sim poderíamos dizer que não há apenas uma rima proposital, mas todo o texto ou fala está seguindo regras em busca de se encaixar num molde já existente. Isso exige maior conhecimento, esforço e habilidade por parte do autor, e consequentemente, mais dedicação à pesquisa por parte do exegeta. Em resumo, primeiro vamos aos casos em que nenhuma estrutura é propositalmente planejada, e chamamos esse momento de “Análise das Estruturas Inconscientes”. Depois, vamos àqueles textos em que já há certas estruturas, mas que funcionam mais como recursos estilísticos, e que não são suficientes para caracterizar um gênero. Chamamos esse segundo tipo de “Análise dos Recursos Estilísticos Formais”. E por fim, vamos às formas fixas, aos gêneros, aos textos que acima de tudo pretendem encaixar-se nos moldes de alguma estrutura já consagrada. Esta é a “Análise dos Gêneros ou Formas Fixas”, para a qual o livro As Formas Literárias do Novo Testamento de Klaus Berger (1998) continua sendo um auxílio indispensável (para a análise dos textos do Novo Testamento, é claro). Talvez isso não seja novidade, mas na mesma seção em que trabalho as estruturas internas do texto, eu também dedico atenção à “Análise das Estruturas Externas”, ou em outras palavras, ao “Contexto Literário”. Junto essa análise à anterior simplesmente porque ambas se ocupam com as formas, com o arranjo que foi dado ao 20 texto, seja intencionalmente ou não. Aqui, como sugestão bibliográfica, não poderia deixar de mencionar o trabalho de Robert Alter, que dedicou um capítulo do excelente A Arte da Narrativa Bíblica à questão do modo como os autores bíblicos construíam seus contextos literários encadeando perícopes (2007, p. 197-230). 3. Análise de Conteúdo Agora é importante dizer que não sigo a “análise de conteúdo” conforme as definições dos manuais de exegese Histórico-Crítica. O que chamo de análise de conteúdo aqui é uma coleção de sugestões interpretativas herdadas principalmente da Narratologia e da Análise do Discurso, métodos que não nasceram do trabalho dos biblistas, mas que são cada vez mais empregados na exegese bíblica. Geralmente o acesso a essas “escolas” de interpretação é limitada por conta de dificuldades terminológicas; cada tipo de análise adota termos próprios e por vezes de alta complexidade, o que se torna uma barreira para que os exegetas assimilem tais propostas à suas exegeses. Na medida do possível, tentaremos amenizar esta dificuldade. Da Análise do Discurso adotaremos a maneira de distinguir nos textos seus dois níveis de linguagem que reservam cada qual uma parcela do conteúdo a ser analisado. Trata-se da distinção entre “figuras e “temas”. Os autores concordam, ao definir o que são “temas” e “figuras”, que basicamente estes termos diferenciam as idéias abstratas das coisas concretas. Vejamos as palavras de José Luiz Fiorin, primeiro sobre as figuras: BUSCANDO CONHECIMENTO 4. Análise Extra-Textual Neste último momento da análise exegética proponho que o exegeta finalmente se dedique à análise diacrônica, ou seja, de fora para dentro do texto. Aqui é o “mundo do texto” que está em questão, e primeiro nos perguntamos, caso isso seja necessário, pela “teoria literária” mais conveniente. Para cada texto bíblico há teorias que procuram explicar sua origem, sua data, sua nacionalidade, seu propósito... Em alguns casos, é necessário adotar uma teoria para explicar o texto, e este é o momento para fazer isso. Como os textos bíblicos em geral não possuem referências claras para responder a qualquer uma dessas perguntas, o que temos são teorias, hipóteses, e não certezas. Todavia, teorias não são meros palpites; são explicações baseadas nas análises dos dados disponíveis que oferecem respostas ao menos provisórias, e com certeza para uma exegese é melhor ter uma teoria do que ficar sem nenhuma. Por isso, quando lidamos com a Bíblia podemos estudar as teorias existentes e adotar uma, e só se pode dizer que alguma teoria é falsa e rejeitá-la quando temosoutra teoria que a supere. Entretanto, deixe-me dizer que na maioria dos casos não temos que adotar um local ou 21 data exatos. Geralmente os textos bíblicos são melhor compreendidos quando entendemos algo sobre seu contexto político, social, religioso, econômico, mas para isso nem sempre é preciso definir se um texto é de Jerusalém ou da Galiléia, se é da Síria ou de Éfeso. A insistência em fazer escolhas redutoras desse tipo torna nossa exegese frágil, pois nos apoiamos em hipóteses cuja aceitação não é plena. Se possível trabalhamos com alguma margem de erro, dizendo, por exemplo, que o texto nasceu nalgum momento entre o final do século I e início do II, e que deve ter surgido e circulado entre Galiléia e Síria. A falta de exatidão expressa nossas incertezas, mas evita erros decisivos. 22 UNIDADE 05 - A HERMENÊUTICA DE SCHLEIERMACHER CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: Compreender o contexto do desenvolvimento da hermenêutica romântica de Schleiermacher. ESTUDANDO E REFLETINDO O filósofo Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768 – 1834) foi um precursor da hermenêutica filosófica contemporânea, pois, a partir da teoria do filósofo, a hermenêutica saiu de uma simples técnica de compreensão e interpretação dos vários tipos de escritos para começar a se tornar compreensão da estrutura interpretativa que caracteriza o conhecer. Através de Schleiermacher, a religião também passa por uma nova interpretação de aspecto romântico. A religião passa a ser interpretada como uma relação do homem com sua totalidade, aspirando ao fato de o homem ver em todas as coisas finitas o infinito, sendo a ação do infinito sobre o homem a intuição que guia o sujeito e o torna dependente total do infinito. A interpretação da religião está em romper com a superficialidade da multiplicidade de crenças religiosas, alcançando o verdadeiro e único sentido de toda a crença. E, por último, Schleiermacher trouxe a volta do pensamento platônico na Alemanha, com o intuito de fortalecer o movimento romântico e contribuir para o fortalecimento da sua teoria da interpretação, trazendo novos pontos de referenciais indispensáveis para a cultura alemã. Antes de adentramos o pensamento do filósofo Schleiermacher sobre as questões da interpretação, é necessário termos em mente o contexto cultural no qual o filósofo estava inserido. A cultura romântica foi de grande importância para o desenvolvimento intelectual do autor, resultando nas suas principais ideias em torno da interpretação e da religião. 23 O adjetivo “romântico” aparece pela primeira vez na Inglaterra, por volta dos meados do século XVII pelo escritor A.C. Baugh, que indicava o fabuloso, a fantasia, o extravagante e o irreal. Essa noção foi resgatada de uma visão negativista que ganhou no decorrer dos séculos, transformando-se em uma visão agradável, do tipo que apareceria na narrativa e na poesia “romântica”. Gradativamente, o termo “romantismo” passou a indicar o renascimento do instinto e da emoção, fatores que o racionalismo predominante do século XVIII não conseguiu suprimir inteiramente. O romantismo representa um movimento espiritual que envolveu não somente a poesia e a filosofia, mas também as artes figurativas e a música, que se desenvolveram na Europa entre os fins do século XVIII e a primeira metade do século XIX. O movimento se expandiu por toda a Europa: na França, na Itália, na Espanha e na Inglaterra, mas o verdadeiro motor do romantismo foi na Alemanha com os seus poetas, artistas e filósofos que se aprofundaram no estudo dessa nova visão de mundo. O homem romântico é aquele que busca para si a inquietação e o anseio pelo infinito, que é o sentido e a raiz do finito; esse desejo jamais pode se concretizar, porque não conhece ou não quer conhecer o seu fim, esse desejo se satisfaz por somente desejar, ele encontra o sentido no inextinguível e em si próprio. O termo que se tornou mais técnico e preciso para designar esse estado de espírito é “senhsucht”, que pode se expressar melhor como “ansiedade”, desejar o desejar, desejo que é sentido como inextinguível e que, precisamente por isso, encontra em si mesmo a plena saciedade. O romantismo apresenta outras características, como: a sede do infinito, o novo sentido da natureza e o anseio pela liberdade. A sede pelo infinito é o desejo irrealizável, essa tendência pelo infinito nunca cessa, porque as experiências humanas pertencem ao âmbito do finito, ao passo que seu objeto é sempre o infinito e, como tal, são sempre transcendidas. O sujeito perante a esse infinito, fica em um estado de pânico, ou seja, um sentimento de ser naquele momento parte da totalidade. O infinito se reflete de alguma forma no homem, assim como, ao contrário, o homem se reflete no infinito. 24 A natureza passa por uma nova valorização e mantém uma importante relação com os pensadores românticos, a visão mecanicista adotada pelos iluministas dá lugar a uma visão mais orgânica, que se cria eternamente. A natureza é um grande organismo que é inteiramente a fim com o organismo humano; um jogo de forças móveis que, operando intrinsecamente, gera todos os fenômenos e, portanto, também o homem: a força da natureza, portanto, é a própria força do divino. Para muitos pensadores românticos, a natureza é a vida que dorme, a inteligência petrificada e o espírito que se faz visível. No quadro, “um homem e uma mulher diante da lua” (Berlim, Staatliche Museen), o artista Caspar David Friedrich retrata a noção de infinito e natureza estudados pelos pensadores românticos. (fonte: http://pt.wahooart.com/@@/7YXQKS-Caspar-David-Friedrich-Homem-e-mulher-Contemplando-a-Lua) E, por último, o anseio pela liberdade marca uma das principais características do romantismo, que para muitos adeptos é o próprio fundamento operativo de todo o ser, que constrói a consciência e a essência das pessoas. A religião passa também a ter um grau de significância para os românticos: ao sofrer uma reavaliação, os adeptos praticam na religião o elo entre o homem e a noção de infinito e eterno. BUSCANDO CONHECIMENTO Nesse contexto é que se desenvolveu o pensamento de Schleiermacher. A busca do sentido das coisas é o objetivo do filósofo, que só se encontra através da compreensão da totalidade; a partir disso, Schleiermacher se diferencia dos demais hermenêuticos, pois o seu método busca a compreensão do objeto através de um http://pt.wahooart.com/@@/7YXQKS-Caspar-David-Friedrich-Homem-e-mulher-Contemplando-a-Lua 25 complexo procedimento, por meio do qual a interioridade do pensamento de um indivíduo chega a manifestar-se na língua. A hermenêutica, segundo o filósofo, tem como tarefa a manifestação do saber que consiste em um trabalho infinito em que todo o indivíduo, procurando compreender o sentido da realidade, decide o seu próprio destino. 26 UNIDADE 06 - A NOVA FORMA DE HERMENÊUTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: Entender a hermenêutica desenvolvida por Schleiermacher. ESTUDANDO E REFLETINDO Considerado o precursor dessa nova forma de interpretação, o filósofo Schleiermacher é acatado como pai da hermenêutica moderna. As diretrizes lançadas pelo filósofo buscam a compreensão da estrutura de interpretação que caracteriza o conhecimento enquanto tal, pois é preciso compreender o todo para poder compreender a parte e o elemento e, ainda mais geralmente, é preciso que o texto e o objeto interpretados e o sujeito interpretante pertençam ao mesmo horizonte de modo, por assim dizer, circular. Esse método criado pelo filósofo se tornou o principal método utilizado pelos filósofos que formava o circulo hermenêutico, onde o principal problema debatido era a questão da totalidade doobjeto, sendo o maior interesse filosófico da época. Schleiermacher definiu esse círculo de interpretação em duas dimensões fundamentais: o pré-conhecimento necessário à totalidade da obra a se interpretar, e a conexão necessária da obra com o intérprete, sendo a primeira dimensão a que mais manteve a atenção do filósofo. O filósofo se debruça na questão da compreensão, apoiando-se no romantismo germânico e na crítica de inspiração kantiana. Com o romantismo, Schleiermacher compreende a noção de infinito, de algo maior que abrange tudo e também na noção romântica de espírito que existe em tudo e que guia o desenvolvimento do homem na sociedade; a pessoa que se relaciona com esse espírito relaciona-se também com o processo de criação, tornando-se uma relação mútua que se dirige à verdade absoluta. Com a crítica kantiana, o filósofo vê a possibilidade de uma compreensão cognitiva e subjetiva do sujeito. Com essa compreensão kantiana, Schleiermacher funda uma hermenêutica de âmbito universal; aqui a hermenêutica caminha junto com a epistemologia (teoria do conhecimento), pois da mesma maneira que Kant fez uma 27 análise das condições de possibilidade do conhecimento realizadas no sujeito, resultando em uma teoria objetiva do conhecimento, Schleiermacher procede do mesmo modo analisando o sujeito para ocasionar uma teoria de interpretação universal. A interpretação gramatical e psicológica torna-se uma característica bastante singular na hermenêutica de Schleiermacher. Segundo o filósofo, é impossível um isolamento total desses dois elementos, pois ambos se encontram no campo interpretativo da hermenêutica, sendo essencial, para que ocorra uma verdadeira interpretação, a existência nos textos ou discursos. O texto é o objeto a ser interpretado e, através dele, o autor, a partir da linguagem, infere a possibilidade de alcançar uma compreensão mais aproximada possível do texto, ou seja, do que o autor tinha a intenção de comunicar. Mesmo não existindo o isolamento desses dois elementos, é possível analisar basicamente um elemento e depois o outro, e é isso que Schleiermacher propõe primeiramente sobre a linguagem e, então, sobre a subjetividade do autor como uma individualidade genial. A interpretação gramatical tem como objeto a linguagem sobre a qual uma obra é construída. Todo discurso a ser produzido por um sujeito é compreendida pela dimensão da linguagem utilizada para se expressar. Na busca da compreensão pelo viés da linguagem, é reconhecida no sujeito a função de alguém que utiliza a linguagem, como um órgão da linguagem. A interpretação psicológica tem como objeto central a subjetividade, tornando- se um órgão em função do pensamento, de algo que se quer dizer. Com a interpretação psicológica, procura-se descobrir a unidade da vida do autor, a partir da conexão das particularidades e do todo da sua vida (circularidade hermenêutica), para, então, compreender o que esse autor diz em suas obras. Assim, a compreensão do dizer pressupõe a compreensão do autor enquanto sujeito. Todavia, isso é impossível sem a linguagem, pois a compreensão de um autor se justifica no objetivo de 28 especificar a forma como ele é, enquanto um ser que opera com a linguagem, de modo que possibilite se aproximar ao máximo possível do que o mesmo quis afirmar. O objetivo de Schleiermacher com essa divisão é um procedimento metodológico e não o que a compreensão do texto dá, através da separação de sujeito e linguagem; essa separação é simplesmente um modo de analisar metodicamente a raiz da interpretação, pois esses dois elementos caminham juntos no processo hermenêutico do texto. O filósofo utiliza-se de seu método para fazer uma análise da religião de sua época, em que tinha forte influência do romantismo. A ideia de que a religião é a relação do homem com a totalidade, relacionando a totalidade com conceitos de metafísica e moral, fez com que Schleiermacher denunciasse o grande equívoco da introdução de ideias filosóficas na religião. Quando falamos de metafísica, estamos refletindo sobre o pensamento que se vincula com a totalidade, ao passo que os assuntos de moral e ética dizem a respeito ao agir em relação à totalidade, mas a religião não é pensamento e nem atividade moral, é uma intuição e sentimento ao infinito e tal possui uma expressão bem precisa que se distingue da metafísica e da ética. A religião não busca conhecer ou explicar o universo, nem almeja continuar o seu desenvolvimento e aperfeiçoá-lo através da liberdade ou vontade divina do homem; a sua essência não está no pensamento e nem na ação e, sim, na intuição e no sentimento. A religião ambiciona intuir o universo; quer ficar admirando as suas manifestações e ações originais, colocando o homem no centro de toda a relação, vendo-o não menor que todas as outras coisas particulares e finitas, o infinito, a imagem, a marca, a expressão do infinito. A intuição é a forma mais elevada da religião e da universalidade e, por seu meio, podem-se descobrir todas as suas partes, determinando sua essência e seus limites mais exatos; toda a intuição deriva da influência do objeto sobre o sujeito que intui da ação procedente e independente do primeiro, que é amparada, concebida e 29 compreendida pelo segundo, em consenso com a natureza. Essa ação do infinito sobre o homem é a intuição; o sentimento é a resposta do sujeito: é o estado de espírito, ou seja, a reação da consciência. O sentimento que acompanha a intuição do infinito é o sentimento de total dependência do sujeito em relação ao infinito, o sentimento religioso é, portanto, o sentimento de total dependência do homem (finito) em relação à totalidade (infinito). Essa ideia é válida para todas as religiões, mas, com o passar do tempo, Schleiermacher acabou por privilegiar o cristianismo, pois viu em Cristo a mediação e a redenção necessária para o homem. Schleiermacher teve grande importância também no relançamento dos livros e ideias de Platão na Alemanha do século XIX. Schleiermacher projetou inicialmente com seu parceiro filósofo Schlegel, mas depois finalizou sozinho, por causa da pouca habilidade de Schlegel em tradução e interpretação. Essa volta da filosofia de Platão tem como causa o lançamento do livro Doutrina da ciência, do filósofo Fichte, em que os românticos sentiram a necessidade de voltar aos estudos da filosofia platônica. O pensamento platônico serviu como mediação entre as velhas e novas concepções da filosofia. Essa mediação, principalmente a dialética, funciona como equilíbrio ao racionalismo radical da filosofia iluminista. Mas os efeitos esperados por Schleiermacher não se cumpriram, sendo a única coisa realmente significativa nas traduções do filósofo à precisão das traduções, que até serve de referencial nos estudos de Platão. BUSCANDO O CONHECIMENTO As novas diretrizes lançadas no campo hermenêutico por Schleiermacher mostrou uma nova forma de exercer a interpretação e a compreensão do texto. O método circular de interpretação analisa o todo primeiro e depois as particularidades, indo além de qualquer interpretação clássica teológica. Schleiermacher, ao postular as 30 bases da hermenêutica moderna, coloca no campo da investigação o objeto e o sujeito a serem analisados. Ao definir os pressupostos necessários para uma profunda compreensão do texto, Schleiermacher introduz uma noção de compreensão psicológica na hermenêutica, analisando não só o texto, mas também o autor do texto a ser analisado, fazendo uma ligação entre a vida do autor com a sua obra. Essa ideia de análise psicológica do autor tornou-se um dos principais conceitos utilizados na hermenêutica moderna até hoje. 31 UNIDADE 07 - DILTHEY E O HISTORICISMO ALEMÃO CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: Compreendera hermenêutica desenvolvida por Dilthey. ESTUDANDO E REFLETINDO O filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833 – 1911) em toda a sua vida de estudioso teve uma preocupação constante: a da fundamentação da autonomia e da validade das ciências do espírito. Em sua obra Introdução às ciências do espírito (1883), o filósofo distingue as ciências da natureza das ciências do espírito, sendo essa última, apresenta- se no interior da consciência do homem. Ao propor uma psicologia analítica que se fundamenta nas ciências do espírito, Dilthey estudam as uniformidades como os fatos individuais que têm a função de ligar as duas realidades opostas do mundo humano. O tema da compreensão tem um papel fundamental nas ciências do espírito, pois as relações de expressão (Erleben) e entendimento (Verstehen) não se dão no âmbito das ciências da natureza, tornando-se necessário uma análise para captar o seu lado interno, isto é, o espírito do fenômeno que se apresenta. A contribuição de Dilthey nos estudos hermenêuticos foi à reflexão sobre a ideia de entender que, segundo o filósofo, é a compreensão de obras e instituições de homens históricos, que produzem valores e realizam objetivos e cujas obras são, portanto, espíritos objetivos, fruto da razão absoluta. A filosofia de Dilthey representa uma articulada e persistente tentativa de construir uma “crítica da razão histórica”, seguindo passos semelhantes do filósofo também alemão, Immanuel Kant que fez um “tribunal” da razão, colocando-a réu e juiz de si próprio. O seu caráter historiador contribuiu muito para o desenvolvimento das ciências do espírito, que pode ser visto em seus trabalhos Vida de Schleiermacher (1867 – 1870), A intuição da vida na Renascença e na Reforma (1891 – 1900), A história do 32 jovem Hegel (1905 – 1906), Experiência vivida e poesia (1905) e As três épocas da estética moderna (1892). A razão histórica de Dilthey contesta o pressuposto que todos os homens, independente do tempo e espaço, têm uma base imutável (razão pura), uniforme, desarticulada das demais atividades psíquicas. Razão histórica é concebida como a plenitude de funções intelectivas e afetivas relativas às épocas. A história, segundo o filósofo, é um pensamento sobre o pensamento, a reflexão da reflexão, sendo que a realidade empírica, por meio da cultura, oferece para o historiador condições de compreensão da vida do espírito em sua mais extensa evolução histórica. A base do pensamento filosófico de Dilthey está na distinção das ciências da natureza e das ciências do espírito, que se diferenciam, antes de tudo, por seu objeto. O objeto das ciências da natureza é constituído por fenômenos externos ao homem, ao passo que as ciências do espírito estudam o todo das relações entre os indivíduos e o mundo, do qual o homem tem a sua consciência imediata. A observação externa nos dá os dados das ciências naturais, mas só a observação interna, isto é, a experiência vivida, é que nos dá os dados da ciência do espírito. Existem diferentes conceitos ou categorias de que se serve para as ciências do espírito: as categorias de significado, objetivo, valor e assim por diante que não pertencem às ciências da natureza, mas ao mundo humano, que tem o indivíduo no centro e se configura – através das relações entre os indivíduos – em conjuntos de cultura e organizações sociais que possuem existência histórica, tornando-se, assim, a estrutura do mundo, uma estrutura histórica. Porém, para nós adentramos mais nos estudos de Dilthey, é preciso entender a raiz da ciência do espírito, que é anterior a Dilthey e o influenciou em toda a sua obra. O século XIX alemão, também chamado de “século da história”, foi o século de grandes historiadores alemães, tais como: Barthold Niebuhr (1776 – 1831), Leopold Ranke (1795 – 1886), Gustav Droysen (1808 – 1884), Eduard Zeller (1814 – 1908), entre outros. O século XIX também foi palco de um grande movimento da linguística histórica 33 e da linguística comparada. Neste período, o interesse pela história tem influências do romantismo com os seus pensamentos ligados mais propriamente a uma “filosofia dos valores”, o historicismo surge nos últimos dois decênios do século XIX e se desenvolve até a vigília da Segunda Guerra mundial. O primeiro princípio do historicismo consiste em substituir a caracterização generalizante e abstrata das forças histórico-humanas pela consideração de seu caráter individual. A história não é vista como uma realização de um princípio espiritual infinito, como o filósofo Hegel e os românticos queriam, mas como uma obra do próprio homem, ou seja, de suas relações recíprocas, condicionadas pela sua atribuição a um processo temporal. Outro pensamento que os historicistas rejeitam sãos os ideais positivistas de Comte, que tenta reduzir as ciências históricas ao modelo das ciências naturais, mesmo quando os historicistas concordarem com a exigência positivista de pesquisa concreta dos fatos empíricos. Os historicistas tiveram bastante influência da corrente filosófica do neocriticismo, onde encontram uma filosofia crítica e voltada para as determinações das condições de possibilidade do conhecimento e das atividades humanas. O historicismo estende-se ao âmbito da crítica kantiana a todo o conjunto de ciências que Kant não considera, ou seja, as ciências histórico-sociais, por isso filósofos como Windelband e Rickert propôs o problema das ciências histórico-sociais. Um dos problemas centrais no historicismo alemão é o de encontrar as razões para a distinção das ciências histórico-sociais em relação às ciências naturais, e investigar as ciências histórico-sociais como um conjunto válido, isto é, objetivos. O objeto de estudos dos historicistas habita na individualidade dos produtos da cultura humana (mitos, valores, costumes, obra de artes, filosofias...), essa individualidade se apresenta de uma forma diferente das ciências naturais, pois se o instrumento de análise das ciências da natureza é a explicação causal, o das ciências do espírito é a compreensão. 34 As ações humanas são ações que tendem a determinados fins e os acontecimentos humanos são sempre vistos e julgados nas perspectivas de valores, por isso há sempre uma teoria dos valores no pensamento dos historicistas. Lembrando que o problema fundamental dos historicistas tem a mesma natureza kantiana, todavia o sujeito estudado pelos historicistas não é de característica transcendental, mas de caráter concreto e histórico, sem ter uma classificação a priori, os homens históricos trazem uma capacidade de aprender condicionada ao horizonte factual e seu contexto em que vivem e atuam. BUSCANDO CONHECIMENTO Depois dessa análise sobre o contexto que viveu o filósofo Dilthey, podemos examinar melhor os outros conceitos do pensador. Um dos seus principais conceitos foi, sem dúvida, a ideia da psicologia analítica como fundamentação da ciência do espírito. Dilthey elabora uma psicologia que difere da psicologia explicativa de tipo positivista; essa nova psicologia, segundo o filósofo, permite compreender o homem como entidade histórica e não como uma substância: é neste sentido que essa psicologia passa a ter grande importância nas ciências do espírito, como uma sistemática composta de material histórico. A psicologia e a história estão profundamente articuladas no pensamento de Dilthey. Para ele, a vida psíquica apresenta limites que são estabelecidas pelos fatores históricos, sendo só possível a sua descrição, a partir que conhece a vida vivida. Para que ocorra esse conhecimento, o espírito precisa ser representativo no contexto de produção cultural, como, por exemplo, as artes, a literatura, a religião... Esta psicologia decorre da ideia de que o psíquico é dado imediatamente na consciência pelas condições históricas de possibilidade, determinadas pelo passado e presente.Essa consciência registra o caráter mutável, alternado e variante das vivências, tornando possível descobrir as formas estruturais, típicas e objetivas misturadas empiricamente nos homens ao longo do tempo. Para que possamos descrever o 35 homem, precisamos abstrair conceitos relacionados às vivências que são a base, o material de análise; nela, e somente nela, é possível alcançar as representações e as funções da vida em sua totalidade que servem de fundamento ao conhecimento. 36 UNIDADE 08 - A PSICOLOGIA DO ESPÍRITO CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: Entender a psicologia do espírito desenvolvida por Dilthey. ESTUDANDO E REFLETINDO Segundo Heidegger, Dilthey tinha como meta “elevar a vida” a uma compreensão filosófica e assegurar um fundamento hermenêutico a esta compreensão, porém, a princípio, o filósofo investe primeiramente na elaboração da psicologia descritiva para depois elaborar uma hermenêutica que daria suporte metodológico e a explicação das conexões da vida e do conceito de espírito e sua evolução; nisto Dilthey enuncia uma nova ideia: a do espírito do tempo. Esse conceito expressa que o espírito manifesta em objetos culturais, sendo o trabalho de o historiador reconhecer essas manifestações do espírito em diferentes épocas da história humana. Todas as criações culturais estão adentradas do espírito da época e participam de forma crucial da história humana, sendo que, para conhecer um indivíduo ou interpretar uma época histórica, é necessário recorrer a esse espírito que caracteriza a história humana. Essa relação entre tempo e cultura é que nos possibilita conhecer a realidade e entender a história, a vida espiritual, torna-se matéria-prima da história, que manifesta no Direito, na religião, no Estado e regula a vida prática, trazendo consciência às variações diversas do homem. O primeiro problema que aparece dessa nova formulação de psicologia é o problema da relação entre a uniformidade e a identificação histórica: as ciências do espírito estudam tanto as leis e a uniformidade dos fenômenos como os acontecimentos em sua singularidade, sendo necessário existir algo que ligue essas duas partes opostas. A resposta para esse problema de fundamentação encontra-se na obra intitulada A construção do mundo histórico nas ciências do espírito (1910), que sustenta a ideia de que a conexão necessária entre os opostos nas ciências do espírito é resultado do conceito de expressão com o conceito de entender. 37 Os estados de consciência se expressam em sons, em palavras, em gestos, e têm objetividade em instituições, como igrejas, Estados e institutos científicos, sendo necessariamente essas conexões que movimentam a história. Essa conexão não pode ser encontrada na natureza e nem nas ciências sociais; a vida, aquilo que se expressa, torna-se espírito objetivo, objetivando instituições como os Estados, igrejas e movimentos religiosos e sociais, e o entender, na referência retrospectiva, dá origem às ciências do espírito, que têm como objetivo a realidade histórico-social do homem. A realidade tem um lado externo investigado pelas ciências da natureza, mas tem também um lado interno – o significado ou essência – só pode ser alcançado pelas ciências do espírito, o seu alcance se deve através do entender (Verstehen) – que é um encontro do eu com o tu -, o homem pode compreender as obras e as instituições dos homens. O entender é possível porque a alma anda pelos caminhos habituais nos quais outros homens passaram por situações semelhantes, mostrando que, ocorrendo uma transferência interior e uma penetração simpática, o homem pode reviver várias outras existências. A partir da realidade histórica proposta por Dilthey, a objetivação da vida, que é a estrutura dessa realidade, difere da objetivação proposta por Hegel, que, segundo ele, é uma manifestação da razão absoluta. Para Dilthey, a objetivação da vida nada mais é do que um produto da atividade de homens históricos, que saiu da atividade espiritual dos homens; deste modo, tudo para o filósofo é histórico. Outra característica do mundo humano é a conexão dinâmica, que o distingue da conexão causal da natureza, enquanto produz valores e realiza objetivos. O indivíduo, as instituições, as épocas históricas, entre outros, são produtos dessas conexões dinâmicas. O indivíduo, como o sistema cultural, e toda a sua comunidade têm o seu próprio centro em si; essa centralidade em si faz com que essas unidades históricas (sistemas de cultura, sistemas de organização social...) se caracterizem por serem horizontes fechados, tornando-as singularmente compreensíveis, pois, nesse processo, a história se fecha e fica indomável, sendo incapaz de o ser humano controlá-la como 38 ele faz com as ciências da natureza. Apenas nos resta a condição de compreender os valores e objetivos particulares que as tornaram sistemas fechados. Depois de definir a psicologia do espírito, Dilthey foca-se na hermenêutica como fundadora da ciência do espírito. O estudioso do espírito deve partir de expressões sensíveis da vida e viver o processo de criação do mundo espiritual em seu processo histórico. A compreensão se adquire através de um processo de que conhecemos o psíquico, por meio de signos sensíveis, o que nos permite interpretar as expressões, assegurando a validade geral dos resultados. A função hermenêutica, segundo Dilthey, constitui-se na tentativa de compreender a vivência por meio da classificação das expressões manifestas em conceitos, juízos, racionalização, artes, tudo o que pode ser expresso pelo espírito objetivo. Através da hermenêutica, o indivíduo descobre, para cada grupo de expressões, a correspondente espécie de compreensão, analisa suas formas elementares e determina as suas categorias fundamentais. A psicologia está para as vivências, assim como a hermenêutica está para as categorias objetivadas das vivências. O trabalho em conjunto entre a história que possibilita a sistematização da cultura e a mediação da psicologia e da hermenêutica mostra à relatividade de toda a construção do pensar humano e a relação inerente entre o tempo e o espírito. Esse modelo traçado pelo filósofo encontra as ideias, os valores e os princípios supremos que conduzem a vida, sendo a vida aqui considerada o último posto de referência da filosofia. A filosofia passa a fundamentar e a sistematizar o pensamento, originado nos domínios particulares da cultura, de modo a tornar-nos conscientes das experiências de vida do passado e, assim, podermos exercer a crítica no presente. A reflexão do espírito sobre si mesmo faz a filosofia elevar à consciência os modos mesmos de atitude em sua relação com os conteúdos, investigando a experiência que surge neles e sua legitimidade, pois a experiência da vida é a consciência e reflexão crescente sobre a vida. 39 Desse modo, pensa Dilthey, a filosofia alcança a natureza do mundo e a própria vida que surgem, na verdade, da relação entre a cultura humana e seus complexos que buscam a finalidade. A cultura se organiza segundo as relações intrínsecas entre o conhecimento do mundo, a vida e as experiências do espírito, e as ordens práticas em que se realizam os ideais de conduta. Por isso, na relação entre a filosofia, com os distintos domínios da vida humana, processa-se o direito da filosofia fundamentar e sistematizar não só o saber e as ciências particulares, mas também elaborar esses mesmos domínios em disciplinas especiais, como: Filosofia do Direito, Filosofia da Religião, Filosofia da Arte. BUSCANDO O CONHECIMENTO Dilthey foi um dos grandes nomes da filosofia histórica do século XIX, sendo um referencial para todos os filósofos que quisessem seguir essa linha de pensamento. O historicismo de Dilthey via uma relatividadehistórica que se contrapunha ao absolutismo enxergado por Hegel, para quem estes conteúdos eram verdadeiras manifestações do espírito absoluto. A interpretação de espírito para Dilthey não era de algo absoluto, mas objetivo, porque não tem, assegura ele, ao alcance da consciência humana, nenhum espírito absoluto: todo o espírito é relativo a uma época. Ao desenvolver a sua ideia de filosofia do espírito, o filósofo combate a crítica da razão pura de Kant que colocou, no lugar da metafísica dogmática, uma metafísica crítica. Dilthey procura uma ciência que ofereça bases seguras para a formação das ciências sistemáticas do espírito no estudo da vida histórica, por isso, o filósofo elabora uma psicologia analítica que fundamenta as ciências do espírito, buscando uma conexão com a real vida psíquica, que se encontra carregada de sentimentos, interesses e vontades. Sua teoria busca nas concepções de mundo uma questão nada natural e que garante a conexão lógica que circunda a consciência em sua possibilidade histórica. O mundo, segundo Dilthey, se dá totalmente como enigma, e é esse enigma que desafia 40 o homem por séculos e séculos; é ele o mistério da vida e está contido no intimo do homem, que está além da mera análise empírica das ciências naturais, só estando acessível para a análise das ciências do espírito. 41 UNIDADE 09 - A POESIA E A LITERATURA NA HERMENÊUTICA DE DILTHEY CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivo: Compreender a análise de Dilthey sobre a poesia e a literatura em sua obra. ESTUDANDO E REFLETINDO Além dos tratados filosóficos e científicos, o pensamento de Dilthey investiga a importância da poesia e da literatura na interpretação da vida. Para refletir sobre esse assunto, trago um trecho do artigo da pesquisadora Sônia Maria da Silva Araújo2. Poesia e Literatura: a história da vida Segundo Amaral (1987), Dilthey é reconhecido como "o arguto historiador do espírito", em face da destacada atuação no campo da Literatura e da Arte. É considerado, pelos filósofos alemães contemporâneos, diz, como "o verdadeiro fundador da hermenêutica filosófica", uma vez que foi capaz de oferecer, às ciências do espírito e à Filosofia, independência do domínio dos métodos das ciências da natureza, domínio este proposto por defensores do positivismo e do cientificismo. Para Amaral, além de "arguto historiador do espírito", Dilthey foi um filósofo que tentou, por meio do conhecimento objetivo, apreender intuitivamente a verdade da vida e do mundo. Seu objetivo, afirma ela, era "descrever a vida" e penetrar no subterrâneo da estrutura histórica gigantesca para tentar enxergar "a vida como ela é" ou de “compreender a vida por si mesma". Para Dilthey, o poeta é um vidente da humanidade, portanto, sua produção constitui-se em matéria prima fundamental para a compreensão dos conflitos, sentimentos e necessidades manifestas nas relações entre homens e grupos de homens. Por acreditar veementemente no poder da Arte em traduzir a realidade, Dilthey, ávido por desvelar a trama do homem moderno, analisou, em duas obras, artistas que considerava exemplários da vida em seu tempo histórico: "Literatura e Fantasia" e "Vida e Poesia". Na primeira, analisou Shakespeare, Molière, Voltaire, Vittorio Alfieri, G. A. Bürger, Balzac, George Sand e Charles Dickens. Na segunda, Lessing, Goethe, Schiller, Jean Paul, Novalis, Federico Hölderlin. Os seus ensaios sobre a obra destes conduziram-no a um particular processamento do método comparativo e a trazer à tona os sentimentos humanos dados à vida. Os estilos eram importantes para 2 Disponível: <http://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/caduc/article/viewFile/1802/1682>, acesso em: 01/08/2014. 42 Dilthey, as formas literárias também, mas mais importante era o que conseguia descobrir acerca do ideal de vida dos poetas que se entrelaçavam à totalidade moral de seu mundo e tempo a ponto de desmontar toda a construção imaginativa (Einbildungskraft) de uma época. Profundo estudioso da poética, Dilthey desenvolveu, com propriedade singular, o método comparativo. Mas, para levar a cabo esta tentativa de comparação, é preciso, adverte ele, partir de uma visão histórico-universal da Literatura para apreender os limites e o caráter de cada uma das épocas poéticas. Seus conhecimentos, alerta, devem abarcar a cultura, as ciências, as artes e as filosofias da época de cujos poetas se ocupem. Tem também de saber servir-se do instrumento da Psicologia e da Estética que a ele está vinculada. Para ele, os poetas e literatos ocupam um lugar de destaque na história do espírito. Por via deles, acreditava ser possível apreender a História e conhecer, por meio da consciência, o que pensavam, queriam e sentiam os homens em tempos e espaços diversos. Para isso, estudou tipos representativos na Literatura e na Poesia, abstraindo o enigma do mundo e da vida que a partir deles era possível depreender. Historiador que via na Literatura, na Poesia e na Arte condições fecundas de apreensão dos limites e propriedades das épocas, Dilthey tentou explicitar as inquietações do homem moderno. Considerados por ele como verdadeiros etnógrafos, os poetas e literatos foram seus cúmplices na descrição das vivências possibilitadas pela História. Mas a historicidade — objeto de conhecimento de Dilthey — está na vida psíquica que, para ele, se manifesta em todo sistema cultural produzido pela humanidade. Os espíritos aos quais recorreu eram-lhe a fonte de historiografia, a força catalisadora dos enigmas da vida. Para ele, o Renascimento ignorou o poder da Poesia e da Literatura em revelar a verdadeira natureza da vida. Na prática, comprova que a Literatura e a Poesia têm um lugar importante na consciência e, portanto, muito a dizer sobre o mundo e seus personagens. As imagens poéticas são, para Dilthey, verdadeiras expressões do mundo e da vida anímica, portanto, material legítimo de compreensão da realidade. Pelas imagens poéticas, interroga o mundo e crê que elas são sua primeira representação histórica, e exclama: “quão pobre seria nosso conhecimento psicológico sobre os sentimentos sem os grandes poetas que têm expressado toda a diversidade de afetos e com frequência têm feito ressaltar de maneira surpreendente as relações estruturais no universo dos sentimentos!” (DILTHEY, 1944, p. 57). Para ele, a imaginação do poeta é um conhecimento abundantemente psicológico porque se refere à vida sentimental, à vivência e à conexão psíquica entre o mundo e a pessoa. 43 Para Dilthey, todas as criações humanas surgem da vida psíquica e de suas relações com o mundo exterior. No caso da Poesia e da Literatura, a criação torna-se mais próxima do mundo volitivo e das representações mais primárias dos sentimentos humanos. Para ele, a Poesia é elemento, por excelência, de compreensão da vida; nela reinam livremente os domínios da realidade e das idéias, pois tem na linguagem (no discurso) o instrumento expressivo para tudo quanto pode presentear-se a alma do homem — objetos exteriores, estados íntimos, valores e determinações da vontade. E, o que é mais importante, a versão particular do espírito do poeta que, para Dilthey (Ibidem, p. 175), “é um homem verdadeiro que se abandona livremente ao influxo da vida”. BUSCANDO CONHECIMENTO Como o religioso, o filósofo e o artista, o poeta, diz Dilthey, distingue-se do homem corrente e até mesmo de gênios de outro gênero porque guarda semelhantes momentos da vida na lembrança, eleva seu conteúdo à consciência e liga as experiências singulares a uma experiência geral de vida. Com isso, cumpre uma função importante não só para si, mas também para a sociedade, pois retira do homem o enigma do mundo e da vida e a ele o devolve. O poeta é o verdadeiro homem porque se abandona à ação livre da vida.
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