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1 EPIDEMIOLOGIA SOCIAL* Rosa Maria Godoy Serpa da Fonseca Emiko Yoshikawa Egry INTRODUÇÃO No processo de construção da vida social os seres humanos estabelecem relações entre si e com a natureza. Ao mesmo tempo em que vão estabelecendo as relações de produção, criam e recriam a estrutura social constituída fundamentalmente de relações de poder. Nas sociedades classistas, estas relações são determinadas pela detenção dos meios de produção por certos conjuntos de indivíduos que, na verdade, acabam determinando a forma como se dá o próprio existir. Nessas sociedades é frequente a diferenciação de poder entre homens e mulheres, num processo em que a importância e a valorização social da mulher é sempre menor que a do homem. Da mesma forma, se configuram as relações de geração, raça e etnia, além de outras. Para legitimar esta forma de existir e o poder que dela redunda, são elaboradas representações mentais das relações sociais que interagindo, fazem expandir e crescer a consciência num processo dialético de compreensão da realidade objetiva. Nesse processo, a consciência vai se desenvolvendo e ampliando o seu alcance, buscando cada vez mais otimizar as respostas às exigências imediatas da ação humana e propiciar a explicação dos elementos da vida. Assim ocorre originalmente o processo de conhecer, que é o desenvolvimento de uma força explicativa, capaz de estabelecer os nexos entre objetos e situações da realidade e que gera um sentido na consciência subjetiva, como uma força compreensiva (Severino, 1994)1. Disto pode ser inferido o próprio conceito de conhecimento que é “o esforço do ‘espírito’ para compreender a realidade objetiva dando-lhe um sentido, uma significação, mediante o estabelecimento de nexos aptos a satisfazerem as exigências intrínsecas de sua subjetividade. Mas são várias as formas de conhecimento, culturalmente já caracterizadas, em função das peculiaridades de seu processo de elaboração: assim, o senso comum, o mito, a religião, a arte, a ciência são, de suas * Bibliografia: Fonseca RMGS; Egry EY. Epidemiologia Social. In: Epidemiologia social. In: Garcia TR; Egry EY. (Org.) Integralidade da atenção no SUS e sistematização da assistência de enfermagem. Porto Alegre: Artmed, 2010 2 perspectivas específicas, esforços de compreensão dos vários aspectos do real” (Severino, 1994)1. Cercado pelas coisas do mundo e convivendo com seus semelhantes, o ser humano, diferentemente dos demais seres, problematiza o mundo que o rodeia, não se contentando apenas em transitar entre as coisas, mas procurando estabelecer nexos que esclareçam o seu significado, o seu porquê e seu como. (Hryniewicz, 2008)2 Assim, a reflexão sobre o processo de conhecer passa necessariamente pela maneira como é reconhecido, delimitado e abordado o objeto de estudo. Desde a antiguidade, através da observação empírica, até a utilização dos procedimentos metodológicos oriundos dos conhecimentos científicos, na atualidade, este recorte se faz dependendo da maneira como o investigador interpreta o mundo que o cerca, articulando-o a determinada teoria explicativa da realidade. Assim, “todo conhecimento científico pressupõe uma especulação filosófica sobre a problemática dos seus determinantes, porque existe um hiato entre o objeto da investigação e as possíveis representações dele (...) para que a realidade se torne inteligível e seja conhecida deve ser estruturada e ordenada pelo ser humano segundo sua visão de mundo” (Costa, 1992). 3 Há várias formas de interpretação racional da realidade na produção de conhecimentos que norteiam a ação humana. Ocorre que estes conhecimentos sempre acompanham a organização social vigente, havendo, para cada modo de produção, ao mesmo tempo, uma forma predominante de interpretar a realidade. No tocante à interpretação da saúde e da doença, observa-se o mesmo movimento, conforme explicitado a seguir. 1. A HISTÓRIA DA EPIDEMIOLOGIA A compreensão do desenvolvimento histórico da epidemiologia, enquanto conjunto de conhecimentos que tem a finalidade de explicar o aparecimento das doenças na sociedade, passa pelo entendimento das transformações ocorridas no conceito de causalidade dos agravos à saúde, vista como uma das vertentes mais importantes na história da epidemiologia. 3 “Enquanto conceito, a causalidade é determinada, de um lado, pelas condições concretas de existência e de outro, pela capacidade intelectiva do ser humano, em cada conceito histórico; vale dizer, enquanto conceito, categoria explicativa, a questão da causa é revestida de historicidade” (Barata, 1990) 4. A causalidade adquire formas diferenciadas no decorrer dos tempos, dependendo da maneira pela qual o ser humano entra em contato com o mundo que o cerca. Até o final do século XIX, a construção do conhecimento sobre a determinação da doença e suas concepções oscilam, segundo Canguilhem (1995)5, entre duas formas de representação da enfermidade: a. concepção ontológica que corresponde às concepções vigentes na antiguidade entre os assírios, egípcios, caldeus, hebreus e outros povos, que atribuem à enfermidade um estatuto de causa única e de entidade sempre externa ao ser humano e com existência própria – um mal. O doente é visto como um ser humano ao qual essa entidade – malefício – se agrega. O corpo humano é visto como receptáculo de um elemento natural ou espírito sobrenatural que ao invadi-lo, produz doença, sem que nenhuma participação ou controle desse organismo interfira no processo de causação. A ontologia refere-se às especulações filosóficas que tratam da realidade em abstração, do conhecimento do ser, independentemente do modo pelo qual se manifesta. O conhecimento é reduzido à instituição de um ser soberano como origem e fundamento de realidade (Severino, 1994)1. Essa vertente ontológica da teoria unicausal foi dominante nas épocas primitiva e escravista e tem suas origens na dominação do ser humano pela Natureza. Apesar das oscilações interpretativas que sofreu ainda predomina no pensamento contemporâneo. b. concepção dinâmica – opõe-se à primeira na medida em que é naturalista. A natureza (physis), tanto interna como externamente ao ser humano, é harmônica e apresenta equilíbrio de forças. O ser humano desempenha um papel ativo no processo e as causas, também externas nessa concepção, são naturalizadas, perdendo assim seu caráter prático e religioso. 4 A concepção dinâmica corresponde inicialmente às concepções vigentes na medicina hindu e chinesa. A doença é tida como produto do desequilíbrio entre os elementos orgânicos do corpo humano – os humores. Os elementos que compõem a natureza – a madeira, o metal, a terra, a água e o fogo, recebem um complexo sistema de correspondência com os planetas e com os órgãos do corpo humano, como por exemplo: fogo/calor/vermelho/morte/coração. A doença é o produto do equilíbrio dos princípios básicos/forças primárias da vida, como por exemplo, na filosofia chinesa a crença na existência de duas forças complementares antagônicas: o “yang”, centrípeta e o “yin”, centrífuga. Assim, a doença enquanto perturbação desse equilíbrio e busca de um novo ponto de harmonia não se localiza num determinado local do corpo do ser humano ou fora dele, mas em todo o ser humano (Fachini, 1994)6. No primeiro caso, a cura é obtida através dos recursos naturais ou dos procedimentos religiosos. Já, no segundo, o restabelecimento da saúde é feito através de medidas terapêuticas que procuram restabelecer o equilíbrio da energia interna. Ao contrário da vertente anterior, nesta, o ser humano desempenha papelativo no processo saúde-doença e as causas das doenças reportam-se ao natural, perdendo o caráter mágico e religioso. Para os gregos, a teoria explicativa da saúde-doença também parte da noção de equilíbrio tendo a natureza como substrato. A diferença entre essa concepção e a dos chineses e hindus é que aqui a saúde é um estado de isonomia, ou seja, de perfeita harmonia entre os quatro elementos que compõem o corpo humano, ou seja, a terra, o ar, a água e o fogo enquanto a doença, que é o desequilíbrio ou disnomia aparece como conseqüência da ação de fatores externos sobre a isonomia. Esta concepção é claramente explicitada por Platão: “O corpo é composto da mistura de quatro elementos: terra, fogo, água e ar. A abundância ou falta desses elementos, fora do natural; a mudança de lugar, fazendo com que eles saiam de sua posição natural para outra que não lhe seja bem adaptada; ou o fato que um deles é forçado a receber uma quantidade que não é própria para ele, mas conveniente para outra espécie; todos esses fatores e outros similares são as causas que produzem distúrbios e moléstias” (Platão apud Barata, 1990) 4. Ainda na Grécia antiga, Hipócrates enriquece estas concepções por meio de cuidadosas observações da natureza e da prática clínica. A importância atribuída por ele 5 ao ambiente físico se verifica quando incorpora uma perspectiva comunitária na compreensão das enfermidades. Alguns autores referem que este filósofo foi quem utilizou pela primeira vez, as palavras gregas que deram origem ao termo “epidemiologia”. Estas palavras são “epidemeion” e “endemeion” e, na época diferenciam as enfermidades que visitam a comunidade (epidemeion) daquelas que nela residem (endemeion) (Najera, 1991)7. Numa outra perspectiva conceitual, há quem refute esta origem semântica a partir do significado da palavra epidemia. “O significado do termo ‘epidemia’ já se encontrava nos textos hipocráticos, formado pela junção do prefixo epi-(em cima de, sobre...) com o radical demos, significando ‘povo’ (...). O sufixo –logos também vem do grego ‘palavra, discurso, estudo’, por sua vez derivado de legein (falar, reunir, organizar) (...) Em síntese, a palavra Epidemiologia significa etimologicamente ‘ciência do que ocorre (se abate) sobre o povo” (Almeida Filho; Rouquayrol, 2002)8. Enquanto precursor da visão epidemiológica, Hipócrates em seu estudo “Ares, Águas e Lugares” refere-se à epidemiologia enquanto estudo da distribuição das doenças em termos da qualidade dos elementos naturais disponíveis (águas e ares); do espaço ocupado; e do clima (estação do ano). “Quem quiser prosseguir no estudo da ciência da medicina deve proceder assim. Primeiro, deve considerar que efeitos cada estação do ano pode produzir, porque todas as estações não são iguais, mas diferem muito entre si mesmas e nas suas modificações. Tem que considerar em outro ponto os ventos quentes e os frios, em particular aqueles que são universais, mostrando bem as particularidades de cada região. Deve também considerar as propriedades das águas, pois estas diferem em gosto e peso, de modo que a propriedade de um difere muito de qualquer outra. Usando esta prova, deve examinar os problemas que surgem. Porque, se um médico conhece essas coisas bem, de preferência todas elas de qualquer modo a maior parte, ele, ao chegar a uma cidade que não lhe é familiar, não ignorará as doenças locais ou a natureza daquelas que comumente dominam” (Hipócrates, 1991)9. Outros povos antigos conseguiram elaborar hipóteses sobre o contágio das doenças, como os romanos, por exemplo, ampliando a concepção sobre a causalidade e os conceitos de saúde-doença. Durante a Idade Média, sob o modo de produção feudal e sob o poder exercido predominantemente pela Igreja Católica, como ocorreu em todas 6 as áreas do conhecimento humano, há referências de que poucos avanços são conseguidos na área da epidemiologia. A prática clínica é abandonada e as explicações causais são novamente relacionadas à religião. Um grande número de epidemias assola a Europa motivo pelo qual no centro das preocupações estão as doenças infecciosas constituindo-se esta, a gênese da teoria miasmática que viria surgir mais tarde, no Renascimento e que permaneceria hegemônica até o século XIX. (Barata, 1990) 4 A citação de um monge franciscano sobre uma epidemia de peste durante o ano de 1374 na Itália evidencia essa preocupação: “Devido a uma infecção do hálito que se espalhou em torno deles enquanto falavam um infectava o outro... e não só faziam morrer quem quer que falasse com eles como também quem quer que comprasse, tocasse ou tirasse alguma coisa que lhes pertencesse” (Michele Piazza apud Barata; 1990) 4 Na Idade Média firma-se a Teoria Miasmática, facilmente demonstrada nas citações de vários autores, sobre as doenças de um modo geral: “As doenças originam-se, parcialmente, das partículas da atmosfera e parcialmente de diferentes fermentações e putrefações dos humores. As primeiras insinuam-se entre os sucos do corpo, desagregando-os, misturam-se ao sangue e finalmente contaminam todo o organismo” (Boyle apud Barata, 1990) 4. Ou sobre a peste: “A peste é um complexo sintomático que a Natureza usa para demonstrar a eliminação natural, pela qual um abcesso ou outra forma de erupção pode expelir do corpo aquelas partículas miasmáticas que nós adquirimos com o ar e respiramos” (Sydeham apud Barata, 1990) 4. A origem das epidemias atribuídas aos miasmas pode ser compreendida na concepção de constituição epidêmica: “Há diferentes constituições em diferentes épocas. Elas não se originam nem do calor, nem do frio, nem da unidade, nem da secura, elas dependem de certas misteriosas e inexplicáveis alterações nas entranhas da Terra. Pelos seus eflúvios, a atmosfera torna-se contaminada e os organismos dos homens são predispostos e determinados” (Sydeham apud Barata, 1990) 4. 7 Esta noção de contágio, como as demais existentes na época, pressupõe que um ser humano doente é capaz de provocar doença nos demais, coexistindo com as outras formas de interpretação do processo saúde-doença anteriormente apontadas. “As causas variavam da conjugação dos planetas, até o envenenamento dos povos pelos leprosos e judeus ou pelas bruxarias dos endemoniados” (Barata, 1990) 4. No âmbito político, o século XVII testemunha o aparecimento do Estado Moderno, especificando-se os conceitos de Estado, Governo, Nação e povo. “A idéia de que a riqueza principal de uma nação era o seu povo, aliado ao dado objetivo de que o poder político era o poder dos exércitos fez com que fosse necessário contar o povo e o exército, ou seja, o Estado. A medida do Estado era então a estatística. O povo como elemento produtivo e o exército como elemento beligerante precisavam não apenas do número, mas também da disciplina e da saúde”. (Almeida Filho, 1989)10. Estas constituem as bases da aritmética política e da estatística que vão, mais tarde, constituir os pilares da epidemiologia. No Renascimento, são retomadas as observações empíricas. A dissecação dos cadáveres, até então proibida por motivos religiosos, passa a permitir a geração de conhecimento das ciências básicas como a anatomia e a fisiologia, entre outras. No entanto, prossegue a noção da transmissibilidade das doenças a partir de partículas invisíveis, por contágio direto, fómites ou outros veículos. Uma destas teorias é atribuída a Fracastoro, no século XVI, que explica a ação dos seminaria: “os seminaria (princípio de contágio) se disseminam escolhendo os humores pelos quais têm afinidade, sendo lançados nos vasos por atração. Podem ser absorvidos pela respiração e aderir aos humores que os levam ao coração (Fracastoro apud Barata, 1990) 4. A despeito do conceito de epidemia já ser utilizado à época, a palavra Epidemiologia surge pela primeira vez na Espanha,no final do século XVIII por Angelerio, um médico que desenvolveu um estudo sobre a peste. Entretanto, somente em 1802, Juan de Villalba torna o conceito oficial, utilizando-o para descrever a história das epidemias naquele país (Najera, 1991) 7. No século XVIII, ao lado do predomínio da Teoria Miasmática, vários estudos mostram a distribuição das doenças na população, encontrando-se alguns trabalhos sobre epidemias, que buscam relacionar alguns fatores ao aparecimento de 8 algumas delas como, por exemplo, a presença de malária em regiões arrozeiras. Nestas zonas úmidas era constatada a presença de um mosquito cujo ciclo se interrompia quando a terra secava ou reiniciava quando se tornava novamente úmida (Najera, 1991) 7. Ora, essas conclusões podem ser tidas como muito avançadas para a época e são reputadas como as primeiras interpretações epidemiológicas. A despeito disto, pode-se ressaltar que predomina ainda uma visão individualizada da doença cujo locus é o indivíduo e não o coletivo. Segundo Foucault, a primeira medicina verdadeiramente do coletivo é a veterinária. A Academia de Medicina de Paris, fundadora da Clínica Moderna no século XVII, organiza-se a partir da ordem real para que os médicos estudem uma epidemia que periodicamente dizima o rebanho ovino, com graves perdas para a nascente indústria têxtil francesa. Pela primeira vez, são mensuradas quantitativamente as doenças especificamente buscando o seu controle. Contrapondo-se a isto, a clínica nasce considerando o individual e estudando o unitário, o caso. O método clínico, por seu caráter intensivo e singular, não propicia a abordagem das questões relativas às causas das doenças no coletivo (Foucault, 1977)11. Durante o século XVIII, consolida-se o poder político da burguesia e com isto recrudescem os estudos que buscam associar as questões sociais ao processo saúde- doença. Exemplo disto é o estudo de Casal, na Espanha, que estabelece a relação entre o tipo de alimentação das pessoas pobres que viviam quase exclusivamente à base de milho, sem carne, ovos ou outros alimentos protéicos e que desenvolvem um tipo de doença que chamam “mal da rosa” devido à dermatite que produz. Mais tarde a doença passa a ser conhecida por pelagra (Najera, 1991) 7. O século XIX assiste o debate entre os defensores do paradigma da Teoria Miasmática que é dominante e, portanto, defendida pelos conservadores, versus os que as atribuem à pobreza ou a outras condições sociais adversas. Neste momento, como conseqüência da Revolução Industrial, as cidades crescem desordenadamente e as condições de vida se agravam. Os movimentos sociais e revolucionários buscam soluções para a crise, propiciando o desenvolvimento de estudos sobre as condições de vida da população. Por esta razão, delineiam-se as correntes que irão subsistir na 9 epidemiologia mais tarde, ou seja, a miasmática, a microbiana e a social. A segunda, apesar de incipiente, já pode ser identificada, embora ainda não amplamente aceita. Cabe citar que, em 1854, John Snow, considerado o pai da epidemiologia, publica seu célebre estudo sobre a epidemia de cólera, intitulado “Sobre a maneira de transmissão do Cólera”. Pela primeira vez é realizada uma pesquisa epidemiológica com o fito de determinar a causa de um surto epidêmico e, através dela, o autor refuta a teoria miasmática, afirmando a origem hídrica da doença e relacionando-a a “alguma substância que passa do enfermo ao sadio e que tem a propriedade de crescer e se multiplicar no organismo da pessoa” (Snow, 1990)12. Além disso, discute a noção de transmissibilidade e vulnerabilidade dos pobres às doenças deste tipo, relacionando-as às suas condições de vida, pelo confinamento nas habitações, pela precariedade dos ambientes de trabalho e por outros traços culturais. É interessante uma citação sobre a relação entre determinadas práticas da época e o aparecimento da doença: “O manejo do cadáver (amontoá-lo e acomodá-lo) quando era efetuado por mulheres da classe trabalhadora que têm o costume de comer e beber em tais ocasiões, em seguida, eram atacadas pelo cólera; pessoas que somente assistiam ao funeral e não tiveram nenhum contato com o cadáver, com frequência também contraíam a enfermidade; levando-se em consideração estes pontos é evidente a participação dos alimentos preparados ou manipulados por pessoas que atenderam o paciente ou que manusearam suas roupas pessoais ou de cama” (Snow, 1990) 12. Ainda relaciona a doença ao consumo de água: “As evacuações dos doentes de cólera se misturam com a água que se usa para beber e para o consumo doméstico, seja infiltrando-se no terreno que rodeia poços ou cisternas, seja correndo por canais que deságuam em rios de onde algumas vezes populações inteiras se abastecem de água” (Snow, 1990) 12. O final do século XIX constitui um período crítico para a epidemiologia. Vários estudos são realizados evidenciando o aporte teórico da epidemiologia para explicar a saúde-doença. Essa é a época em que a “patologia social”, enquanto corrente de pensamento, fundamenta na França, em 1848, o projeto de intervenção denominado por Guérin, “Medicina Social”, designando uma dada concepção de prática médica 10 fundamentada na análise dos problemas sociais e da sua relação com as doenças. Essa corrente é também designada genericamente como “modos de tomar coletivamente a questão da saúde” (Almeida-Filho; Rouquayrol, 2002) 8. Essa prática focaliza principalmente as medidas para a promoção da saúde e a prevenção das patologias sociais. Outro inspirador desse movimento é Villermé que escreve acerca das condições existentes nas fábricas de produtos têxteis e demonstra com clareza a relação entre a situação econômica e mortalidade. Em 1826, aparece sua obra acerca da mortalidade nos diferentes setores de Paris na qual vincula a pobreza às doenças. Estes trabalhos fundamentam-se nas condições criadas pela Revolução Francesa, que incorpora pela primeira vez os interesses da coletividade na organização social do Estado. Mais que pesquisar as causas das doenças, os estudiosos realizam uma verdadeira tarefa de saúde pública, trazendo para toda a coletividade, algumas medidas antes privilégio da nobreza (Terris, 1991)13 (Villermé, 1988)14 Por outro lado, na Inglaterra, o higienismo sanitário, enquanto corrente de pensamento, imprime processos de intervenção conformados pela saúde pública cujas práticas tornam o social como mais um fator na rede de causalidade. Exemplos disso são os estudos de Farr descrevendo a mortalidade em diferentes classes sociais. Cabe ressaltar que naquele país a Revolução Industrial trazia em sua economia política a noção de “força de trabalho”. Necessitando aumentá-la para a sua consolidação através do aumento da industrialização, propicia a emergência de várias medidas sociais para a sua consecução. Há, por exemplo, um ambiente muito especial para a promulgação da “Nova Lei dos Pobres”, que preconiza que os trabalhadores recebam assistência médica no local de trabalho e não mais nas paróquias, como era feito até então. Esta iniciativa tenta proteger a força de trabalho engajada no setor produtivo e o exercício de reserva em formação (Najera, 1991) 7. Ao lado disto, este clima político determina também o aparecimento de estudos que relacionam as condições de saúde das classes trabalhadoras às condições sociais vigentes. “A formação de um proletariado urbano submetido a intensos níveis de exploração, expressava-se como luta política sob a forma de diferentes socialismos, ditos utópicos porque iniciais. O desgaste da classe trabalhadora deteriorava profundamente as suas condições de saúde, conforme mostra Engels em seu “As 11 condições da classe trabalhadora na Inglaterra”, escrito em 1844 e constituindo talvez o primeiro texto analítico da epidemiologia críticajá que os demais eram predominantemente descritivos, apesar de relacionar a doença ao contexto social mais amplo (Almeida-Filho, 1989).∗ O pensamento dos revolucionários do final do século VXIII e do início do século XIX ligados a diversos movimentos políticos também aponta para o objeto da chamada ciência médica como sendo o coletivo e não o individual, ainda que o coletivo seja concebido sob o recorte da penúria. Este pensamento pode ser exemplificado nessa citação: “A ciência médica é intrínseca e essencialmente uma ciência social; enquanto isto não for reconhecido na prática, não seremos capazes de desfrutar de seus benefícios e teremos que nos satisfazer com um vazio e uma mistificação” (Neumann apud Barata, 1990) 4. Mesmo a explicação das epidemias adquire, na época, uma dimensão social ligada às condições de vida da população: “se a doença é uma expressão da vida individual sob condições desfavoráveis, a epidemia deve ser indicativa de distúrbios, em maior escala, da vida das massas... As epidemias não apontarão para as deficiências da sociedade? Pode-se apontar como causas as condições atmosféricas, as mudanças cósmicas gerais e coisas parecidas, mas, em si e por si, estes problemas nunca causam epidemias. Só podem produzi-las onde, devido às condições sociais de pobreza, o povo viveu durante muito tempo em uma situação anormal” (Virchow apud Barata, 1990) 4. As condições precárias de vida resultantes da urbanização, ao determinarem o aumento das doenças transmissíveis, tornam-se uma ameaça concreta de redução do contingente ainda insuficiente de mão-de-obra industrial. Simultaneamente ao desenvolvimento tecnológico, criam-se as condições favoráveis para a descoberta dos microorganismos passando a ser, concretamente conhecidas, as causas destas doenças. Os seminaria de Fracastoro tornam-se então visíveis e são chamados de “bactérias”. Este fato redefine todo o arsenal teórico da epidemiologia. Com a descoberta de que as doenças são causadas por agentes etiológicos específicos, os conhecimentos até ali ∗ Para ler mais a respeito ver Engels F. The condition of the working class in England. 3ed. Progress: Moscow, 1977. 12 acumulados sobre os fatores relacionados à ocorrência de doenças e à sua determinação social sofrem um grande retrocesso (Terris, 1991)13. Nesta fase, acompanhando o processo de reorganização das sociedades sob a égide do capitalismo, todo o conhecimento científico passa a ser construído sobre as bases do Positivismo. Pelo fato dessa visão preconizar que o critério de verdade se assenta sobre as bases da investigação experimental, diminui a importância das disciplinas observacionais como a Epidemiologia. Como consequência disto e de modo geral é negada qualquer outra explicação para o surgimento da doença. Firma-se então a teoria da unicausalidade, baseada na teoria bacteriológica nascente. Ao lado disto, constata-se um incremento no campo da estatística que, iniciado em 1839 com o trabalho de William Farr, através da criação de um registro anual de mortalidade e morbidade para a Inglaterra e o País de Gales, progride até a formulação das Teorias das Probabilidades de Major Greenwood, no início deste século. Isso faz com que seja rejeitado o caráter fundamentalmente descritivo da epidemiologia das epidemias que eram controladas numericamente desde o século anterior (Terris, 1991) 13. É importante ressaltar a contribuição de Florence Nightingale para o redirecionamento da enfermagem com base no conhecimento epidemiológico da época. Isso é evidenciado quando concebe a doença como um esforço da natureza para restaurar a saúde e a ação da enfermagem como sendo a de favorecer esse processo reparativo, mediante o uso do ar puro, da luz e do calor, da limpeza, do repouso e da dieta, com um mínimo dispêndio das energias vitais do paciente, de modo a mantê-lo nas melhores condições para que a natureza nele pudesse agir. (Castro, 1989)15 Assim, Florence construiu a enfermagem visando à manutenção de condições ótimas para a recuperação da saúde, enfatizando a atenção individual, embora desde o início do seu trabalho na Guerra da Criméia tenha baseado suas ações na observação do coletivo, ao estudar as condições em que viviam os soldados feridos que, segundo ela, matavam muito mais que os próprios ferimentos de combate. Na Criméia, 13 73% de 8 regimentos morreram em 6 meses, em conseqüência de doenças (Woodham- Smith, 1951) 16 ∗ Na verdade, sua visão de saúde-doença e de enfermagem, embasava-se numa mescla de várias teorias. Essa foi a razão pela qual algumas das suas Notas foram consideradas ultrapassadas, como pode ser verificado nos comentários feitos em Notas do Editor na edição de 1861 de seu livro “Notas sobre a enfermagem: o que é e o que não é” que revelam o embate vigente na epidemiologia: “Notas sobre a enfermagem (...) foi imediatamente reconhecido pelos líderes da ciência médico sanitária como um trabalho de importância capital, um desses raros livros aos quais, em sua categoria, o termo fazer época pode justificadamente ser aplicado (...) Aqui e ali um obter dictum de miss Naghtingale foi deixado à margem pela ciência moderna. Devemos ter cuidado e não inferir sobre a crença na geração espontânea da doença ou no seu aparecimento em virtude da ‘sujeita’ (...) passagens antiquadas como essas não afetam em absoluto o valor dos seus ensinamentos em seu próprio campo (...) O que continua verdadeiro e atual é a essência do livro – a visão da autora sobre as necessidades de limpeza no ar, na água, nas pessoas, roupas e nos ambientes; de iluminação, silêncio e ordem no quarto do doente (L.H.S.N apud Nightingale, 1989).17 A epidemiologia das doenças infecciosas é sustentada pela teoria da unicausalidade até que controladas aquelas (pelo menos no plano técnico científico), as doenças não transmissíveis começam a ameaçar o contingente humano produtivo em virtude das novas formas de trabalho e de vida. Mesmo no plano das doenças transmissíveis, o modelo unicausal em pouco tempo se mostra insuficiente para explicar a gama de questões que emergem da ampliação do arsenal de conhecimentos da biologia e da ecologia. Desenvolve-se, então, a teoria da interação do agente com o hospedeiro em um ambiente composto por elementos de diversas ordens, sejam elas físicas, biológicas ou sociais. ∗ A respeito das contribuições de Florence Nightingale para a Epidemiologia ler: Fonseca RMGS da. Uma leitura generificada da (re)inauguração de um fazer para mulheres: da Inglaterra ao Brasil. Rev Bras Enferm 2002 55(1): p.75-84 14 Dentro desse novo sistema teórico, ocorrem avanços importantes no tocante às doenças infecciosas como, por exemplo, a identificação dos vetores de uma série de doenças parasitárias tais como a febre amarela, a doença de Chagas, a esquistossomose. Com a certeza de um agente causal e de variáveis relacionadas à transmissão do agente, os modelos matemáticos têm o seu desenvolvimento estimulado. Neste sentido, alguns autores falam de uma “epidemiologia antiga” que evolui até o esclarecimento das doenças infecciosas e de uma “nova epidemiologia” que, necessitando buscar novos paradigmas para explicar problemas como as doenças não transmissíveis ou ocupacionais e para cuja explicação a teoria da unicausalidade não é suficiente, determina o aparecimento da teoria da multicausalidade,na primeira metade do século XX (Najera, 1991)7. No plano político, o capitalismo em expansão necessita da saúde como mecanismo de controle social. O avanço tecnológico da prática médica determina uma redução do seu alcance social dado que a fragmentação do cuidado à saúde leva à especialização, à ênfase em procedimentos complementares e à elevação dos custos da assistência. Isto faz com que a assistência seja acessível a um número reduzido de pessoas não se elevando no coletivo, o nível de saúde das populações. Esse fenômeno determina que a prática em saúde, especialmente as médicas, se volte para a recuperação dos corpos individuais utilizando o hospital como meio. (Foucault, 1977) 11 Em outras palavras, a crise das sociedades capitalistas monopolistas ocidentais revela a incapacidade do sistema econômico em prover condições mínimas de vida e saúde para a totalidade das populações. Há uma incongruência entre os avanços tecnológicos e os sociais, a despeito da necessidade cada vez maior da higidez do trabalhador para a consolidação do sistema econômico. A teoria da multicausalidade surge, então, para recolocar na causalidade o social como um fator no qual é possível “resolver” a questão da incapacidade de se obter níveis satisfatórios de saúde para as populações, culpando a pobreza e o subdesenvolvimento pela ocorrência das doenças numa relação linear e unívoca. A primeira das formulações do conceito de multicausalidade aparece no modelo da balança de Gordon, durante a década de 1920. Nesse, a doença é resultante de um estado de desequilíbrio dentre múltiplos fatores. O fulcro da balança é representado pelos fatores do meio ambiente e os seus pratos pelo agente e pelo 15 hospedeiro. “Este modelo representa uma simplificação exagerada do complexo de causação, além de ser extremamente mecanicista. Nesta concepção os fatores são tomados isoladamente como se não houvesse interação entre eles e, na prática, como se apenas um tipo de fator, aquele de maior peso, atuasse na produção da doença. Desta forma, a multicausalidade vê-se reduzida à unicausalidade, com a única diferença de serem admitidas outras causas que não apenas a presença do agente etiológico” (Barata, 1990) 4. A expressão “doença de massa” ou doença enquanto fenômeno de massa, destacando o caráter coletivo do objeto epidemiológico encontra-se incorporada nas definições da Epidemiologia adotadas pelos primeiros cientistas desse campo de saber. Isso pode ser encontrado na afirmativa de Greenwood, em 1932, onde a epidemiologia aborda “os aspectos de massa da doença, onde o grupo, o coletivo e não o indivíduo doente é a unidade de observação” (Almeida-Filho; Rouquayrol, 1992) 8. Evidentemente que essa noção de coletivo refere-se apenas à somatória de indivíduos, deixando valadas as intermediações do social na relação entre pessoas. É importante destacar que nem por isso há alguma dúvida sobre o estatuto científico da epidemiologia. Wade Hampton Frost, primeiro professor de Epidemiologia da universidade de Johns Hopkins define a disciplina como “uma ciência indutiva preocupada não meramente em descrever a distribuição das doenças, porém, sobretudo em compreendê-la a partir de uma filosofia consistente” (Fee, 1987)18. Na década de 40, o movimento de Medicina Integral, surgido nos Estados Unidos, busca definir o ser humano como ser biopsicossocial, concebendo este social como atributo humano e não como categoria básica da organização da sociedade. Data dessa época a sistematização da História Natural da Doença, elaborada por John Ryle em 1936 (Almeida Filho; Rouquayrol, 1992) 8. Mesmo a Teoria de Leavell e Clark, da segunda metade do século XX, apesar de representar uma variante mais dinâmica e desenvolvida do modelo multicausal, não propõe uma interpretação diferente do social. Na década de 1930, a crise das sociedades capitalistas ocidentais revelou a incapacidade do sistema econômico em prover condições mínimas de vida e de saúde para a totalidade da população. Assim, mesmo que ressaltemos que “o social surge como mais um fator a ser julgado no conjunto de outros tantos que colaborarão no processo de produção da doença”, nesse cenário é que foi redescoberto o caráter social e 16 cultural da enfermidade e da medicina, bem como suas articulações com a estrutura e a superestrutura da sociedade. Na realidade, “buscava-se a consolidação de um discurso sobre a sociedade capaz de dar conta dos processos culturais, econômicos e políticos que pareciam levar resistências à competência técnica da medicina” (Almeida Filho; Rouquayrol, 1992) 8. Desta forma, “o retorno ao social fez pelo recurso à Epidemiologia, supostamente despojada da politização assumida pelo movimento da medicina social. O desenvolvimento da disciplina atraiu para o padrão positivista das ciências do ser humano, espelhando-se no modelo da biologia. A fisiopatologia, que aborda os processos patológicos do organismo, corresponde à Epidemiologia que trataria dos processos mórbidos no organismo social” (Almeida Filho; Rouquayrol, 1992) 8 Por isto, as medidas corretivas propostas nesse contexto não contemplam mudanças estruturais, mas se restringem a fornecer soluções paliativas para os problemas de saúde. A despeito disso, passa a influenciar toda a epidemiologia hegemônica daí para adiante, baseando-se em justificativas como esta, a seguir: “Sob o ponto de vista do bem público, uma das implicações práticas da epidemiologia é que o estudo das influências externas torna a prevenção possível, mesmo quando a patogênese da doença concernente não é ainda compreendida. Mas isto não quer dizer que a epidemiologia seja, de alguma maneira, oposta ao estudo de mecanismos ou, reciprocamente que o conhecimento do mecanismo não seja, às vezes, crucial para a prevenção” (Acheson, 1979)19. O autor, embora sem se referir explicitamente, opina que a prevenção se faz com base no conhecimento da história Natural da Doença, que passa a ser investigada cada vez mais até nossos dias. O que se deduz é que, apesar de se voltar para o social, a Epidemiologia passa a se fundamentar nos mesmos paradigmas estabelecidos para as ciências biológicas, baseando-se na naturalização dos fenômenos sociais. Neste período inicia-se também o que mais tarde se define como Demografia, cujo enfoque está centrado na compreensão da chamada “fisiologia social” por estudar os processos normais das populações. Diferencia-se da Epidemiologia, tida como o estudo da patologia social. A organização dos exércitos para a Segunda Guerra Mundial levanta a questão da saúde física e mental dos combatentes, representando uma demanda concreta 17 para o desenvolvimento de métodos mais eficientes para medi-la e cujo aperfeiçoamento resulta na possibilidade de sua aplicação para o estudo das doenças nas populações civis. A intensa expansão do sistema capitalista no pós-guerra que propicia o acelerado desenvolvimento das tecnologias em saúde e do aperfeiçoamento dos métodos de estudo, permite a realização de grandes inquéritos-epidemiológicos especialmente a respeito das doenças não infecciosas que se revelam como problema de saúde pública durante o processo de seleção de recrutas para os exércitos. A perspectiva populacional ainda está marcadamente presente na abordagem de Morris de 1957 que propõe noções abstratas como “saúde” e “doença” para tema básico da ciência epidemiológica com um certo privilégio do coletivo. A perspectiva populacional é substituída por abordagens mais imprecisas baseadas em noções idealistas como “humanidade” conforme se pode verificar na conceituação de Mac Mahon, Pugh & Ipsen, em 1960. Os autores referem- se ao objeto epidemiológico como prevalência de doenças no ser humano. Nessa mesma linha, a própria Associação Internacional de Epidemiologia a define como a ciência que estuda osfatores que determinam a frequência e a distribuição das doenças nas coletividades humanas (Almeida-Filho; Rouquayrol, 1992) 8. A publicação da primeira edição do livro de Mac Mahon et al tem um significado de síntese na medida em que apresenta os conteúdos básicos constituintes da forma que assumirá a disciplina, denominada por muitos, “Epidemiologia clássica” (Barreto, 2002)20. Nesta época aperfeiçoam-se ou são descobertos e testados novos desenhos de pesquisas. A partir daí, se estabelecem regras básicas da análise epidemiológica, sobretudo pela fixação dos indicadores típicos de área, como incidência e prevalência e pela delimitação do conceito de risco. Com a introdução da computação eletrônica no início dos anos 60, a pesquisa epidemiológica tendeu cada vez mais a evidenciar a forte matematização da área. Por conta disso, neste período, observa-se um aprofundamento na explicação da causa das doenças nos estudos observacionais e descritivos. Por outro lado, evidencia-se a exigência de procedimentos terapêuticos e diagnósticos altamente sofisticados, principalmente nos países desenvolvidos, redundantes das conquistas quanto aos direitos de cidadania, que refletem nos padrões de ética médica. Tais procedimentos são desenvolvidos em laboratórios e produzidos pelo diversificado 18 complexo industrial, possibilitando a sua utilização posterior em serem humanos. Isto passa a impulsionar os estudos experimentais, principalmente os do tipo ensaio clínico- epidemiológico. Mais ainda, com o avanço e a adesão das teorias da administração para a organização dos serviços de saúde, os conceitos sobre Epidemiologia a colocam como “a ciência que estuda o processo saúde-doença na sociedade, analisando a distribuição populacional e os fatores determinantes das enfermidades, danos à saúde e eventos associados à saúde coletiva, propondo medidas específicas de prevenção, controle ou erradicação da doença e fornecendo indicadores que sirvam de suporte ao planejamento, administração e avaliação das ações de saúde” (Almeida Filho; Rouquayrol, 1992) 8. Dos anos 70 em diante, além da massificação do uso dos computadores inicia-se um debate acirrado em torno da questão da causalidade e o objeto da epidemiologia. Assim, têm lugar dois importantes movimentos. O primeiro ocorre nos países desenvolvidos e irradia-se para os subdesenvolvidos, fazendo ressurgir o interesse pela epidemiologia clínica que busca recuperar a credibilidade científica da prática clínica. Esta redefine suas bases, de modo a colocá-la no mesmo patamar de outras disciplinas biomédicas referenciadas no modelo experimental. Isto ocorre no momento em que a biologia, em sua vertente molecular, estimula um retorno às atividades experimentais, na tentativa de descobrir o entendimento dos mecanismos biológico-moleculares para a compreensão do processo saúde-doença, comparando os fatores ambientais na ocorrência de doenças, quase sob uma abordagem miasmática modernizada. As demais buscam fundamentos que justifiquem e desenvolvam a racionalidade das práticas médicas dominantes (Barreto, 2002) 20. Ao lado desse debate, prospera a formulação de Lilienfeld de que a epidemiologia é o estudo da distribuição de uma doença ou condição fisiológica em populações humanas e dos fatores que influenciam tal distribuição. Nessa definição “o sujeito da doença não é mais definido de forma abstrata, passando-se a considerar como delimitador do objeto o seu coletivo menos comprometido como ‘populações humanas’”. (Lilienfeld apud Almeida Filho; Rouquayrol, 1992) 8 O segundo movimento surge nos países subdesenvolvidos, mais especificamente na América Latina, em um momento de profunda crise econômica e social na qual se evidencia uma intensa repressão política e ideológica. Renasce o 19 interesse pela determinação social do processo saúde-doença, num movimento denominado “epidemiologia social”, por pretender explicar com elementos científicos as verdadeiras causas das condições de vida e de saúde da grande maioria das populações dessa região que, neste momento, são comparáveis ou talvez piores que aquelas existentes em países europeus no século XIX (Arouca, 1975) 21. Tal movimento ressurge como uma crítica ao modelo ecológico, visando à reformulação do entendimento do processo saúde-doença de tal forma que os conhecimentos epidemiológicos possam orientar novas práticas de intervenção em saúde, mais voltadas ou respondendo às necessidades e aos interesses das classes sociais subalternas. Na atualidade evidencia-se o debate em torno destas diferentes concepções e práticas epidemiológicas. Desta recuperação histórica deduz-se que a epidemiologia nasce como uma confluência de uma série de correntes de pensamento que, possuidoras de paradigmas próprios e autônomos, explicam os movimentos no seu interior. Nisto, o que importa assinalar é que podem ser identificadas basicamente duas correntes de pensamento, uma que mantém aproximação com uma visão idealista de mundo e outra que se aproxima da visão realista de mundo, representados atualmente pela Teoria da Multicausalidade e pela Teoria da Determinação do Processo Saúde-Doença. 2. A TEORIA DA MULTICAUSALIDADE A teoria da multicausalidade embasa a epidemiologia clássica hegemônica atual e o seu fundamento básico procura definir e relacionar fatores associados às causas das doenças. Partindo do método positivista, esta visão interpreta a sociedade como um agregado de elementos tidos como homogêneos, de caráter basicamente natural, na qual um sistema ecológico equilibrado passa a ser o sinônimo de normalidade ou de bom funcionamento e onde significa anormalidade desequilíbrio. A compreensão positivista da sociedade é dada pelos fundamentos do funcionalismo sociológico que são os seguintes: a) “as sociedades são totalidades. A totalidade social se expressa no conceito de sistema social, o qual se define como um conjunto de elementos inter- relacionados, interdependentes, que contribuem para a integração do sistema. A 20 definição de sistema social não considera a causalidade como um dos determinantes sociais. b) ‘a integração de todas as partes – ou subsistemas, embora nunca perfeita, produz sem dúvida, um estado de equilíbrio. A tendência geral é para a estabilidade e inércia, produzindo-se ajustes relativos, tanto para as influências internas como externas e, por conseguinte, os mecanismos de controle social desempenham um papel crucial. c) ‘desvio e tensão existem como elementos ‘disfuncionais’ que tendem a ser institucionalizados ou resolvidos, de modo que a integração é a tendência dominante do sistema social. d) ‘a mudança social não é revolucionária, mas adaptável e gradual; se ocorre uma mudança rápida, esta se dá ao nível da superestrutura da sociedade, deixando sem mudança a estrutura básica institucional. As mudanças procedem fundamentalmente de fatores externos, através da diferenciação estrutural e funcional mediante inovações e invenções de indivíduos e de grupos. e) ‘a integração social se obtém através de um consenso valorativo, de orientações cognoscitivas compartilhadas, ou seja, uma série de princípios amplamente difundidos que legitimam a estrutura política, social e econômica existente” (Swingewood apud Garcia, 1989)22. Ainda para facilitar a compreensão da aderência desta corrente de pensamento ao positivismo, descrevemos, a seguir, alguns pontos que caracterizam o método positivista com algumas aproximações em relação à forma como é visualizado o processo saúde-doença e a assistência à saúde: • para a ciência positivista, somente tem sentido o que é observável e experimentalmente comprovável, portanto as causas das doenças têm que ser comprovadas empiricamente, assim como os seus métodos de prevenção; • o todo é a somatória das partes isoladas. Assim, a saúde é parte do funcionamentoequilibrado do organismo que por sua vez também pode ser dividido em partes para ser tratado. A realidade social é decomposta em variáveis sócio-econômicas. Assim, a análise se reduz à verificação de associações estatísticas entre aspectos arbitrariamente destacados do todo social; • é possível uma manipulação objetiva de um objeto (ele se impõe ao sujeito que tem apenas que o retratar e a sua manipulação não deixa no objeto 21 a marca do sujeito e nem da sociedade). A assistência à saúde pode ser feita “de fora para dentro”, com algum sujeito agindo externamente sobre o objeto; • o mesmo método se aplica a todas as formas de disciplinas científicas (absorção dos métodos das ciências naturais para as ciências sociais), portanto a saúde-doença pode ser interpretada por princípios mecanicistas que, por sua vez, podem também nortear a assistência; • trata-se de um método dedutivo que preconiza que para atender a realidade é preciso deduzi-la ou seja, dissecá-la em partes. A análise da situação de saúde é igualmente dedutiva, parte do todo para entender a parte; • valoriza a objetividade: a pesquisa é vista como pura, desligada dos interesses do pesquisador e da sociedade, assim como toda a assistência à saúde, onde não é desejável um envolvimento do sujeito com o objeto (clientela); • almeja alcançar um padrão pré-concebido, baseando-se na idéia de utopia. Existem padrões de saúde-doença que devem ser buscados alcançar, padrões estes dados por um nível de normalidade ótima, existente apenas no nível das idéias. O mesmo se considera para a assistência; • pressupõe um determinismo das leis causais: todo fenômeno tem causa e efeito. Assim, hipoteticamente, se podem relacionar dois fatores, pelo menos, no nível de um condicionamento mútuo. Há variáveis intervenientes que são estranhas ao fenômeno e que têm que necessariamente ser controladas. A saúde-doença é produto de fatores isolados; • não considera a historicidade dos fatos sociais. Pressupõe a existência de padrões universais de saúde-doença, derivados da visão de um ser humano universal, de essência única; • considera o social equivalente a estrato social, camuflando as contradições entre as classes sociais (Demo, 1985)23. Além disso, introduz a noção de risco definido como o equivalente epidemiológico do conceito matemático de probabilidade, ou seja, considera o risco como a probabilidade dos membros de uma determinada população desenvolver uma dada doença ou evento relacionado à saúde em um dado período de tempo. Na verdade, o conceito de risco foi essencial para o desenvolvimento da epidemiologia das doenças não infecciosas (Almeida Filho; Rouquayrol, 1992) 8. 22 Ainda é importante salientar que a noção de risco, acoplada ao termo fator, implica necessariamente, segundo Miettinen (1985)24 em uma relação causal, de produção de alteração, dado que fator deriva do latim factor que significa “aquilo que faz, o que produz”. Nestes pressupostos está assentada toda a visão epidemiológica hegemônica atual que segundo seus seguidores, pretende ter o “propósito prático de descobrir as relações que oferecem possibilidade para prevenção das doenças”, mesmo reconhecendo que nem sempre é possível relacionar diretamente os fatores causais: “não fomos capazes muitas vezes de descobrir algum poder ou conexão necessária, alguma qualidade que ligue o efeito à causa e faça com que seja consequência infalível da outra” (Mac Mahon; Pugh, 1975)25. Mesmo a Teoria de Leavell e Clark que representa uma variante mais dinâmica e desenvolvida do modelo multicausal, se baseia nos pressupostos positivistas, não buscando as reais causas dos problemas sociais na organização da sociedade. As medidas corretivas que propõem não contemplam mudanças estruturais, antes sistematizam as ações segundo os atributos do agente causador da doença, meio ambiente e hospedeiro, limitando-se a fornecer soluções paliativas para os problemas. Para esta teoria, a prevenção se faz com base no conhecimento da História Natural da Doença que pode ser definida como um conjunto de processos interativos compreendendo “as inter-relações do agente, do suscetível e do ambiente que afetam o processo global e o seu desenvolvimento, desde as primeiras forças que criam o estímulo patológico no meio ambiente ou, em qualquer outro lugar, passando pela resposta do ser humano ao estímulo, até as alterações que levam a um defeito, invalidez, recuperação ou morte” (Leavell; Clark, 1976)26. A história natural da doença tem o seu desenvolvimento assentado em duas vertentes seqüenciadas: a vertente epidemiológica e a vertente patológica. Na primeira, o enfoque é a relação agente-hospedeiro suscetível-ambiente; na segunda, interessam as modificações que se passam no organismo vivo. Abrange, portanto, dois domínios interagentes consecutivos e mutuamente exclusivos que se completam: o meio ambiente onde ocorrem os agentes e o meio interno onde se desenvolve a doença (Almeida Filho; Rouquayrol, 1992)8. 23 Intrinsecamente essa teoria traz em si a idéia de despolitização, profundamente útil ao capitalismo, por esconder as desigualdades que resultam da organização do sistema social. A este respeito, comenta Barata (1990) 4: “a distribuição triangular dos elementos introduz no modelo uma racionalidade coerente com a ideologia capitalista na medida em que: - reduz o elemento homem à sua condição animal, biológica, transferindo para o ‘meio ambiente’ sua condição de produtor, expressa pelos padrões de consumo de que desfruta, como conseqüência de sua inserção na produção. Dessa forma, o ser humano, reduzido a ser de categoria natural, pode ser classificado segundo critérios naturais, tais como idade, sexo e raça; -produz uma ruptura entre o sujeito social e seus produtos, obscurecendo a origem social da produção cultural, ou seja, os fatores do meio ambiente também como naturais; - reduz os agentes etiológicos a sua condição biológica, negando a ela a historicidade e atribuindo-lhe apenas o caráter ecológico” (Barata, 1990) 4. O modelo da História Natural da Doença é um esquema geral necessariamente arbitrário, que tem a pretensão de fazer uma descrição aproximada da realidade. Trata-se de um quadro descritivo para visualizar as múltiplas e diferentes enfermidades, sendo sua maior utilidade dar sentido aos diferentes métodos de prevenção e controle (Almeida Filho; Rouquayrol, 1992)8 Ademais, “a crítica ao modelo desenvolvido a partir da História Natural da Doença, centrada em conceitos da clínica médica e da demografia privilegiando o uso de métodos estatístico-descritivos, explicitou a insuficiência dessa proposta mais generalizada em relação à capacidade explicativa e articulação, com uma prática de pesquisa consistente, levando à identificação da epidemiologia apenas como um método, sem campo conceitual próprio” (Sabroza, 2002)27. Nessa perspectiva, a epidemiologia opera através da naturalização da doença, reduzindo-a a uma idéia biologicista individualizada. Esse “ardil reducionista leva a legitimação da intervenção normativa, à ruptura das conexões entre o fenômeno concreto e seu contexto histórico-social, ao mesmo tempo em que submete a jurisdição do saber médico todos os fenômenos que caracterizam o transcorrer da vida, atomizados agora em um sem-número de fatores isolados” (Costa, 2002)28. Não é por acaso que “o pecado original das concepções do empirismo e de suas variantes que tanto influenciam a Saúde Pública, radica essencialmente na idéia de 24 um mundo que teria as seguintes características: a de ser fragmentado (processos físicos, biológicos e sociais constituem realidades à parte e só se tocam exteriormente – exemplo: o conceito de cadeia de transmissão das infecções); a de ser regular ou periódico (processos se reduzem a sistemas dinâmicos tendentes ao equilíbrioe harmonia – exemplo: tríade ecológica e história natural); a de ser regido por um determinismo mecanicista (por estar determinado pelas relações externas e reduzido a conexões causais – exemplo: a noção de fatores causais) e por fim a de constituir um mundo hierárquico (onde as coisas se resolvem pelo reducionismo de que tudo obedece às mesmas leis ‘fundamentais’ da natureza – exemplo: o submetimento de toda análise epidemiológica às leis probabilísticas dos sistemas regulares)” (Breilh, 1995) 29. HISTÓRIA NATURAL DE QUALQUER PROCESSO MÓRBIDO DO HOMEM Essa teoria tem constituído as bases da formação de profissionais de saúde, especialmente de enfermagem. No âmbito da prestação dos serviços de saúde tem balizado as ações de prevenção, tratamento e reabilitação, enquanto compartimentos independentes e que não guardam articulação entre si. HISTÓRIA NATURAL DE QUALQUER PROCESSO MÓRBIDO NO HOMEM Período de pré-‐patogênese Período de patogênese Antes do homem adoecer Interação de: Patogênese precoce Doença avançada Morte Estado crônico Invalidez Recuperação Períodos de pré-‐patogênese da história natural Fonte: LEAVELL; CLARK, 1976. Agente da doença Hospedeiro Humano Fatores ambientais que produzem ESTÍMULO à doença O curso da doença no homem HORIZONTE CLÍNICO Interação HOSPEDEIRO-‐ ESTÍMULO Doença precoce discernível Convalescença 25 3. TEORIA DA DETERMINAÇÃO SOCIAL DO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA A Teoria da Determinação Social do Processo Saúde-Doença se contrapõe à da multicausalidade porque procura relacionar a forma como a sociedade está organizada ao aparecimento de riscos ou de potencialidades que determinam os processos de adoecer e morrer. Pode-se dizer que essa teoria tem sua gênese no século XVIII no movimento da “patologia social” e “da medicina social” e tem a sua importância recrudescida na América Latina, por força da crise social e política que tem lugar na região, na medida em que propõe a articulação entre os processos sociais e políticos com o perfil de morbimortalidade, dando conta de explicar as intermediações existentes entre o desenvolvimento econômico e social da região com os perfis epidemiológicos. Baseada numa visão realista, o conhecimento epidemiológico se desenvolve em torno do esforço para explicar os problemas de saúde-doença em sua dimensão social, tornando o objeto de estudo da epidemiologia fenômeno saúde-doença como processo particular da sociedade. Recorre a uma metodologia de caráter extensivo para estudar grandes grupos sociais, explicando as determinações mais profundas que operam sobre eles e trazem como consequência o aparecimento de perfis ou padrões típicos de saúde e de doença peculiares segundo a forma de inserção na sociedade de diferentes grupos sociais. A explicação dos determinantes e da distribuição das doenças ou do processo saúde- doença se refere a um dos produtos mais diretos do processo de reprodução social (Breilh, 1991)30. A epidemiologia social, portanto, aborda os processos reais de um nível de maior integridade e, em sua busca científica das determinações que operam sobre a vida social, deve recorrer necessariamente ao estudo sistemático de: • processos estruturais da sociedade que por se acharem na base do desenvolvimento da coletividade, permitem explicar o aparecimento de condições de vida particulares. Estes processos configuram as leis da dimensão estrutural da realidade objetiva social; • perfis de reprodução social (produção e consumo) dos diferentes grupos sócio- econômicos (classes sociais) com as correspondentes potencialidades (bens ou valores de uso) de saúde e sobrevivência, assim como os riscos (contravalores) de 26 adoecer e morrer. Estes processos configuram as leis que regem a dimensão particular da realidade objetiva social; • fenômenos biopsíquicos que configuram os padrões típicos de saúde-doença dos grupos e dos indivíduos que os compõem, que configuram as leis e processos da dimensão singular da realidade social (Breilh, 1991) 30. À luz da Teoria da Determinação Social, o processo saúde-doença da coletividade é entendido como sendo: “o modo específico pelo qual ocorre nos grupos, o processo biológico de desgaste e reprodução, destacando como momentos particulares a presença de um funcionamento biológico diferente, com conseqüências para o desenvolvimento regular das atividades quotidianas, isto é, o surgimento da doença” (Laurell, 1983)31. Assim, para a compreensão deste conceito, é indispensável o entendimento da categoria processo que, contrapondo-se à visão estática do positivismo, expressa o caráter dinâmico dos fatos vinculados à saúde-doença em todas as dimensões. Se a realidade objetiva acha-se em permanente processo de modificação, tanto a investigação como as práticas de assistência devem ter em conta tal perspectiva. Particularizado para o processo saúde-doença, a categoria processo apresenta as seguintes características: • a realidade processual tem sempre historicidade. Assim o processo saúde-doença da sociedade é histórico, dependendo da sucessão dos modos de produção; • na realidade processual a sociedade é conflitiva e está em constante mutação. O processo saúde-doença resulta de contradições sociais e está em constante transformação; • é processo o que está sempre e apenas em formação. A realidade processual é inacabada, fragmentária não como defeito, mas como condição de existência; • há também uma relativa persistência temporal nas fases históricas da realidade processual, ocorrendo o mesmo com o processo saúde-doença; • há uma relação dialética entre o perene e o efêmero; • a realidade processual está sempre se fazendo ela “vem a ser”. Desta forma não há verdade absoluta sobre a realidade processual. Disto decorre que não há padrões ideais de saúde-doença que devem ser perseguidos, senão níveis que podem ser alcançados dentro de uma determinada realidade; 27 • a realidade processual admite superação, mutação e crítica; • processo não significa progresso. Pode incluir também o regresso ou o retrocesso. O movimento é sempre o ponto de partida e de chegada e inclui momentos de evolução onde as transformações são apenas quantitativas e momentos de revolução cuja característica principal são as grandes modificações denominadas “salto qualitativo” (Demo, 1985)23. Esquematicamente, para entender a Teoria da Determinação Social do Processo Saúde-Doença deve-se proceder ao estudo de processos específicos que se dão nos níveis da realidade objetiva da sociedade, como mostra o quadro a seguir. Para exemplificar a abordagem multicausal, Breilh (1991)30 relaciona a alta ocorrência de abortamentos provocados no Equador a diversos fatores que produzem, como efeito, os indicadores de mortalidade por aborto. Assim, esquematicamente, os resultados deste tipo de investigação podem ser assim exemplificados: PROCESSOS QUE CONSTITUEM OS OBJETOS DE ESTUDO DA EPIDEMIOLOGIA SOCIAL SUPERESTRUTURAIS formas político jurídicas formas de ideologia instituições e leis cultura ciência educação instituições e práticas de saúde formas de conhecimento e transmissão a respeito de saúde doença propriedad e controle distribuiçã o relações sociais de produção forças produtivas meios de produção força de trabalho ESTRUTURAIS Classes sociais com formas diferenciadas de vida (perfis de produção e consumo) Diferentes probabilidades de RISCOS - doença - morte POTENCIALIDADES - saúde - vida Fonte: BREILH; GRANDA, 1991 28 Contrapondo-se a isto, uma abordagem que utilize o referencial teóricoda epidemiologia social relaciona a ocorrência de aborto às condições peculiares de produção e reprodução social da sociedade equatoriana, com os diferenciais típicos das classes sociais que a conformam, situando-se neste âmbito a determinação do fenômeno. Isto pode ser visualizado esquematicamente no quadro a seguir ELEMENTOS PARA A ABORDAGEM SOCIAL DO PROBLEMA DO ABORTO Características Dimensões da Realidade processos essenciais processos aparentes Processos gerais (estruturais) − acumulação e concentração econômica − exclusão de amplos setores dos bens e riquezas produzidos (empobrecimento) − desenvolvimento produtivo e modernização da força de trabalho − decomposição de formas agrícolas tradicionais − mudanças na − distribuição desigual da renda − transculturação − migração e urbanização − mudanças no padrão de vida EFEITO ABORTO FATORES - poucos recursos econômicos - más condições higiênicas - deficiências morais - deficiências culturais - conflitos familiares - alta paridade - deficiências nutricionais 29 divisão social do trabalho e assalariamento − transformações ideológicas Processos particulares (classe social) − transformações das formas de trabalho da mulher − transformação do valor econômico e social dos filhos − trabalho infantil − mudanças nas formas de consumo simples e ampliado − excesso relativo de produção (certos grupos) − limitação da renda − alimentação deficitária − crise educacional e moral Processos individuais (família) − decomposição da família extensa e tradicional − repercussão do problema produtivo (trabalho) na fertilidade da mulher − conflitos conjugais − manutenção do status social − estado nutricional deficitário e outros efeitos da crise − estado civil − retaliação moral − transformação de valores − idade, paridade, raça, etc Fonte: Breilh, 1995 29 Outro exemplo desse enfoque pode ser o estudo do perfil reprodutivo biológico de mulheres atendidas em Unidades Básicas de Saúde de um município da Região Metropolitana de São Paulo. (Fonseca, 1990)32. Tratou-se de um estudo de enfoque analítico-social que compreendeu: 1. O estudo da dimensão geral ou estrutural do problema para estabelecer as classes sociais que compunham a formação social onde foi realizado o estudo (Taboão da Serra – SP, município situado na Região Metropolitana de São Paulo, predominantemente industrial, pertencente ao sistema capitalista periférico). 2. A definição das modalidades de trabalho da mulher (doméstico e não doméstico) e do chefe da família para compreender o valor social dos filhos. 30 3. O estudo do perfil de consumo de cada classe social incluindo assistência à saúde da mulher. 4. O estudo de algumas formas ideológicas relacionadas à constituição familiar e à compreensão da identidade social da mulher. 5. O estudo das manifestações individuais e de classe em relação ao controle do tamanho da família – práticas e aspirações. 6. A análise dos dados para compreender o nexo coesivo entre o social e o biológico, situando nas três dimensões da realidade objetiva a gênese do fenômeno da reprodução humana, a saber: - estrutural – o desenvolvimento de modo capitalista de produção na Região Metropolitana de São Paulo e sua objetivação em relação ao controle do tamanho das classes trabalhadoras, expressa nos níveis de fecundidade constatados na Região. - particular – o modo como cada classe social incorpora os processos gerais, com base nos seus perfis específicos de produção e consumo. - singular – a maneira como cada mulher incorpora, na sua individualidade, os processos estruturais e os processos de classe. (Fonseca, 1990)32 Dos exemplos anteriores se depreende que a questão central da epidemiologia é o estudo da causalidade dos fenômenos, estudo este que tem diferentes formas de interpretação de acordo com o referencial teórico metrológico adotado. O ponto central para compreensão das diferenças entre as duas visões antagônicas, a Teoria da Multicausalidade e a da Determinação Social é a diferenciação entre causa e determinação, que é a maneira como estas teorias entendem, respectivamente, a causalidade em epidemiologia. A noção de causa, baseada no paradigma positivista, pressupõe uma relação de linearidade e universalidade. Assim, a causa vai reproduzir sempre a mesma conseqüência, mesmo que em situações diferentes. É algo externo que pode ser delimitado, baseando o seu conteúdo explicativo na lógica formal. A noção de determinação, ao contrário, pressupõe uma relação dialética entre dois fenômenos não reproduzíveis igualmente em diferentes condições. Englobando a causa, trabalha com a dialética da externalidade e internalidade dos fenômenos. Pressupõe a realidade em um movimento sujeito a leis, estabelecendo uma relação entre o geral, o particular e o 31 singular. No processo saúde-doença, por exemplo, relaciona as formas de organização social, representada pela estrutura das forças produtivas e das relações de produção, com o processo de reprodução social de cada classe social, conformado pelos processos de produção e de consumo, articulados às condições específicas de cada pessoa no quotidiano (fenótipo e genótipo) (Breilh, 1991)30. Como se percebe, a categoria central para a compreensão da noção de determinação social é a noção de reprodução social que “é a forma de organização da vida social, tanto no conjunto global de uma sociedade como nos grupos particulares da mesma. A reprodução social é um processo dinâmico determinado por um sistema de contradições que ocorrem em vários domínios integrados: a vida de trabalho e de consumo (eixo de reprodução), a vida organizativa e consciencial-cultural e a vida de relações com o meio ambiente. Nesses domínios recai a determinação da qualidade de vida” (Breilh, 1995)29. Assim, a reprodução social tem como eixo a relação entre produção e consumo que determina as demais relações. Neste processo há forças benéficas (valores) e forças destrutivas (contra-valores), cuja relação se expressa em manifestações de saúde-doença (Breilh, 1991) 30. “No início da história da sociedade os homens produziam e consumiam equilibradamente. Nesse sentido, o movimento determinante era o consumo. Se produzia na medida exata da demanda do consumo. Portanto, a sociedade se reproduzia como um todo social unitário mediante a elaboração de ‘coisas’ como a realização de um projeto. No entanto, ocorreram modificações históricas que determinaram o surgimento de etapas nas quais o movimento produtivo passou a ser hegemônico” (Marx, 1982) 33. Um dos pontos mais importantes para e epidemiologia social é que da forma específica deste predomínio e do efeito dele sobre a qualidade do consumo (reprodução social), resulta um certo perfil de trabalho e reposição de cada grupo social que, por sua vez, determina um perfil típico de saúde-doença, denominado perfil epidemiológico. Dada a existência de uma especificidade histórica da reprodução social de cada classe social, que se transforma com o tempo porque é sujeita às leis da 32 determinação histórica, há uma especificidade histórica do perfil reprodutivo típico de cada classe que sofre, igualmente, permanente transformação. (Breilh, 1991) 30. “As condições de saúde das pessoas e dos grupos sociais são o resultado do processo complexo e dinâmico que se produz socialmente em todos os âmbitos em que a vida social se desenvolve. As condições de saúde dos trabalhadores das cidades, por exemplo, se produzem em seus locais de trabalho, no âmbito da vida familiar em casa, na vida associativa, na vida cultural, tudo isso em espaços ou ambientes determinados. Em cada um desses espaços da vida social ocorrem fatos que são destrutivos para o funcionamento do corpo ou da mente dos trabalhadores.Em todos e em cada um desses locais ocorrem também fatos que são benéficos para a saúde. Dito de outra forma, os processos fisiológicos e condições psíquicas (fenótipo) assim como as formas de reação genética (genótipos) se debatem entre o fisiológico e o fisiopatológico devido, justamente, aos condicionamentos do padrão de vida, mediado pelos processos conjunturais de sua cotidianeidade. Quer dizer, a vida humana se forja entre os aspectos que nos causam danos e os que nos protegem em cada momento e o resultado dessas contradições é o que se chama “saúde-doença” cujos fenômenos observáveis se fazem evidentes nas pessoas” (Breilh, 1995) 29, conforme pode ser visto no quadro a seguir. DETERMINANTES EPIDEMIOLÓGICOS: SISTEMA DE CONTRADIÇÕES DO PERFIL EPIDEMIOLÓGICO Sistema de contradições de reprodução social DOMÍNIOS Processos saudáveis Processos destrutivos GERAL - Condições da estrutura econômica (produtividade, distribuição de riqueza, remunerações e capacidade aquisitiva do salário etc.) - Políticas do Estado e poder das organizações da população. - Políticas salariais/poder e cobertura de organizações populares e de trabalhadores. - Condições ideológicas e culturais. Processos laborais saudáveis Processos laborais destrutivos PARTICULAR (Integração, aprendizagem, identidade social e pessoal, destrezas, intelecto, estruturação do tempo etc.) (Alienação, subsunção, hierarquização do trabalho, sobrecargas, processos destrutivos para o sistema ergonômico, sistemas imune, 33 sistema cárdio-vascular, cárdio- respiratório, neurológico, estressores, micro-ambiente de trabalho. Processos saudáveis de consumo Processos destrutivos de consumo Processos saudáveis do meio ambiente (ambiente ou território de consumo) Formas de organização e poder eficazes e protetoras da vida. Formas culturais que fortalecem a consciência. Processos destrutivos do meio ambiente (ambiente ou território de consumo); deterioração das condições naturais (deterioração ecológica) Debilidade da organização para a proteção da vida e da saúde. Falta de poder Formas culturais alienantes MEDIAÇÕES GRUPAIS FAMILIARES COTIDIANAS Padrões familiares e individuais favoráveis práticas humanizantes; práticas domésticas saudáveis. Padrões familiares e cotidianos deteriorantes Isolamento, privatização da vida, conflitividade, pressão para trabalho doméstico destrutivos (reprodução de privado). INDIVIDUAIS (Geno- fenotípicas) Processos fisiológicos e normas genéticas favoráveis Reserva/Recurso Processos fisiopatológicos e normas genéticas destrutivas PERFIL DE SAÚDE- DOENÇA - AVANÇO FISIOLÓGICO - SOBREVIDA - SAÚDE - DETERIORAÇÃO FISIOLÓGICA - SOBRE-ENVELHECIMENTO - DOENÇA – MORTE Fonte: Breilh, 1995. A epidemiologia clássica hegemônica diferencia-se da epidemiologia crítica de diferentes maneiras: 1. Epidemiologia hegemônica a) Epidemiologia acadêmica. É caracterizada pelo reducionismo formal. Pode ser: • empírico-positivista – utiliza o método indutivo; • falsacionista – utiliza o método hipotético-dedutivo. b) Epidemiologia oficial simplificada – características: • a versão simplificada para uso nos serviços define as prioridades probabilisticamente; • reduz as necessidades ao plano fenomênico; 34 • reifica a realidade em “fatores de risco”. Tem grande importância no hemisfério norte, onde tem buscado os fundamentos que justificam e desenvolvem a racionalidade das práticas médicas dominantes (Barreto, 2002) 20. 2. Epidemiologia crítica • surge no contexto das urgências sócio-sanitárias de populações sobre- exploradas, especialmente na América Latina, onde os esforços têm se concentrado “na busca de explicação e solução para o fosso que separa a maioria da população esfomeada e doente de uma maioria saciada e sadia” (Barreto, 2002) 20; • enfrenta postulados teórico-metodológicos e práticos da saúde pública oficial e da medicina hegemônica; • não se reduz ao uso progressista de conceitos, técnicas e linhas de ação convencionais, tampouco adaptação terceiro-mundista de modalidades simplificadas de saber dos centros hegemônicos; • surge baseada no pensamento científico emancipador como uma expressão particular da luta autárquica que tem como referência as necessidades sociais da população; • surge como crescimento e aprofundamento especializados da revolução filosófica que esteve na periferia dos campos técnicos. (Barreto, 2002) 20 Na verdade a opção por uma delas, do ponto de vista político se situa da seguinte maneira: “ou se fecha em uma mediocrização e funcionalização tecnocrática ou se embarca numa profunda transformação em um processo democrático de construção de um novo pensamento” (Breilh, 1995)29. No que tange às ações em saúde, a diferenciação entre a Saúde Pública e a Saúde Coletiva∗ mostram contraste entre a vigilância epidemiológica convencional e o monitoramento crítico das condições de saúde da população ou a chamada vigilância à saúde, mostra o quadro a seguir: ∗ Para maiores detalhes da diferenciação entre a Saúde Pública e a Saúde Coletiva, ver capítulo “Considerações a respeito da saúde coletiva” 35 ASPECTO VIGILÂNCIA CONVENCIONAL MONITORAMENTO CRÍTICO Objeto • individual • eventos sentinela • perfis de grupo • processo crítico-estratégicos Observação • doença • risco • determinantes • processos protetores e destrutivos: no trabalho; no consumo e a vida cotidiana; na capacidade e limites para a ação;nos saberes e ideologia Prevenção • etiológica • profunda: multidimensional e integral Centralização da ação • centrada no Estado • centrada na coletividade popular (negociação/estratégica) Projeção da ação • funcional ao Estado • informação mínima necessária • construção de poder e consciência popular • humanização da vida humana Alvo • evento sentinela • espaço social de monitoramento e ação estratégica Fonte: Breilh, 199529. 4. A EPIDEMIOLOGIA SOCIAL E O PRINCÍPIO DA INTEGRALIDADE Em relação aos usos da epidemiologia social, descrevem-se três campos principais: 1. a investigação da determinação e distribuição do processo saúde-doença na população, desenvolvidas sob determinados modos de produção. Estes estudos não se referem unicamente à medida e comparação de doenças, mas incluem a detecção e o estudo de populações suscetíveis, com suas respectivas condições de vida e de saúde. 2. os estudos referentes ao planejamento e avaliação dos serviços de saúde. 3. as investigações de caráter específico relacionados às medidas preventivas terapêuticas farmacológicas e de conduta, para as quais têm importância os estudos experimentais. (Najera, 1991)7 36 Especificamente em relação aos serviços de saúde, a epidemiologia tem três usos principais: o planejamento dos serviços de saúde, a organização e a administração desses serviços (incluindo a avaliação do impacto das suas ações) e a investigação sobre a causalidade e novos métodos de estudo dos problemas de saúde da população (Najera, 1991)7. Desde os decênios de 50 e 60 é consenso que a epidemiologia pode contribuir com o instrumental necessário para planejar, organizar e avaliar os serviços de saúde, porém com exceção dos programas verticais ou de determinado tipo de assistência à saúde, a epidemiologia, na realidade nunca antes assumiu isto, tendo sido utilizada basicamente nos meios acadêmicos. Em conseqüência, os serviços de saúde têm mudado em sua maior parte de forma anárquica,
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