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FAC - FACULDADE CURITIBANA Lucinda Teresa B. Sardinha A CADEIA DE CUSTÓDIA DA PROVA NO PROCESSO PENAL Resenha Curitiba / Paraná 2020 A cadeia de custódia da prova no processo penal Geraldo Prado inicia sua obra chamando atenção para o fato de que o assunto prova penal está na ordem do dia, considerando que vivemos em tempos de globalização jurídica, com frequentes transplantes de institutos entre tradições jurídicas que há séculos se distanciaram umas das outras. A situação é ilustrada pelo especial diálogo transnacional entre jurisdições criminais, particularmente entre tribunais constitucionais e tribunais internacionais de direitos humanos. O autor esclarece que o seu livro tem por objetivo reconhecer, em operação de redução da complexidade que, no estado de direito, a legitimação da punição reclama a rigorosa adoção de um sistema de controles epistêmicos que é essencial à própria noção de devido processo legal. Por outro lado, contrapôs que o Código Penal brasileiro até então não previa a necessidade de determinação e preservação da cadeia de custódia da prova. Prado elegeu como marco inicial para orientar as ideias do livro o pragmático, evoluindo de uma abstrata teoria do processo penal na direção de uma concreta teoria do caso penal. Reporta-se a recente decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que reconheceu, de forma inédita, a relevância de se acionar um dos dispositivos do sistema de controles epistêmicos, na hipótese a cadeia de custódia de determinadas provas digitais, de modo a assegurar fiabilidade às provas produzidas pelas partes em um processo criminal concreto. Para isso, foi necessário levantar o véu que encobria com o manto do indiscutível a séria questão da prova dos fatos. No lugar da verdade real, o tribunal enfrentou o tema dos standards de prova do direito anlgo-americano, que é o standard da prova além do direito razoável. O autor ressalta que o processo penal regido pela presunção de inocência deve tutelar com muito cuidado a atividade probatória, por meio da adoção de um rigoroso sistema de controles epistêmicos que seja capaz de dominar o decisionismo. Aponta a dimensão epistêmica da prova como um ganho em termos de garantia de liberdade e cita Danny Marrero, que assim elucida: “o conhecimento dos fatos situa-se na interseção entre a epistemologia, a filosofia do direito e o direito probatório”. Nas democracias, a legitimidade do poder punitivo está condicionada pelo valor de verdade reconhecida na sentença. Por sua vez, o autor destaca que os juízes não são dotados de superpoderes epistêmicos. Os magistrados dominam muito bem o Direito. São peritos em dizer o direito. Mas o conhecimento dos fatos situa-se na interseção supracitada. Existem métodos desenvolvidos no âmbito da epistemologia para creditar aos elementos probatórios determinados valores, partindo-se de um estado de incerteza e a caminhada na direção do conhecimento seguro não é algo aleatório, arbitrário ou caprichoso. Assim, o conhecimento correto e preciso sobre elementos que podem ou não caracterizar as infrações penais deve estar justificado não pela crença do juiz, mas por uma crença justificada em base empírica, ou seja, a tese acusatória em um processo criminal deve ser submetida à verificação e exposta à refutação, para que resulte apoiada por provas e contra provas. Para o autor, a punição apenas estará legitimada quando superado o estado de incerteza. O tipo de “processo” adequado constitucionalmente é aquele que se caracteriza por viabilizar o conhecimento da infração penal e sua autoria em um esquema lógico e jurídico, que esteja apto a apoiar a decisão em um determinado contexto de “verdade”. A adoção da categoria “verdade” como indicador epistêmico revela-se, pois, funcional ao fim de dotar o processo de uma meta e simplesmente definir os limites éticos, políticos e jurídicos da atividade de investigação da verdade material. Geraldo Prado ensina que dispositivo é o guia ou buscador no qual está inserida a atividade probatória. A reorientação do dispositivo processual requisita uma nova elaboração teórico prática das atividades probatórias que remete ao início da persecução penal, com a valorização concreta da análise dos elementos probatórios. A tarefa desafia um plano global de compreensão que envolve todos os institutos, instituições, sujeitos e normas que configuram o sistema processual penal, com o entendimento formal do que é o processo cedendo à materialidade da intervenção estatal que se revela já no momento a notícia crime. O conhecimento de circunstâncias relevantes para a decisão cobra do dispositivo processual que se beneficie, quando possível, do emprego de meios científicos, de modo a “reduzir a área na qual o juízo sobre os fatos pode ser formulado somente sobre bases cognoscitivas não científicas”. Esta é a contribuição que a exigência de manutenção da cadeia de custódia das provas pode oferecer à adequação do processo penal aos princípios do estado de direito. Prado reitera que somente o processo que se caracteriza desde o início pela incerteza e que reclama a produção da certeza como meta, porém em seus próprios termos, isto é, em harmonia com preceitos que assegurem a dignidade da pessoa, estará de acordo com o ideal preconizado pela categoria jurídica “devido processo legal”. Assim, sublinha que a proibição de desautorização do processo, efeito direto da presunção de inocência, encontra perfeita tradução no axioma “não há pena sem processo”. Para o autor, a prova penal é um dos principais elementos que, a depender do tratamento que receba, estabelece que tipo de processo penal vigora em determinada sociedade. A simplicidade das normas de regências do Código de Processo Penal de 1941 sobre a busca da verdade, levava em conta a ideia-força de que os fins justificam os meios. E a presunção de que o processo seria capaz de se constituir em instrumento de acesso à verdade demitia a lei da tarefa de regular as atividades probatórias e definir o papel das partes na formação da convicção judicial. A perseguição da verdade material como expressão de uma determinada “razão pública”, interpretada como razão de estado” foi determinante naquela época para que o Código de Processo Penal previsse o poder judicial de produzir provas de ofício. Esta concepção revelou-se funcional ao modelo autoritário de processo penal que dominou a realidade brasileira por muito tempo e o esquema ideológico sobre o qual está amparada ainda sobrevive. Geraldo Prado relata que, durante o período da ditadura brasileira, o Ministro Francisco Campos decidiu pela possibilidade de intervenção do juiz na atividade processual, não somente para dirigir a marcha da ação penal e julgar no final, mas também para ordenar, de ofício, as provas que lhe parecerem úteis ao esclarecimento da verdade. Assim, o Estado assumira em tese o monopólio legítimo do exercício da força e a elevação quântica dos poderes judiciais apoiou-se na verdade real. A entrada em cena da criminologia crítica perturbou o ritmo seguro e aparentemente imparável da citada roda discursiva, pois questionou os critérios de validade de cada um dos termos do discurso e da relação que se estabelecia automaticamente entre eles. Quando em 2008 entrou em vigor a minirreforma do CPP brasileiro, erigiu-se a “qualidade da decisão penal” como meta. A medida desta qualidade é aferida: a) pela compatibilidade dos procedimentos, entre eles o probatório, ao estado de direito; b) pela definição do Ministério Público como sujeito processual protagonista da ação penal – e não mais o juiz; c) pela afirmação categórica da principal função judicial como sendo de custódia do complexo dispositivo de construção da decisão penal; d) pela identificação e delimitação dos métodos de demonstração empírica do fundamento das alegações das partes. No capítulo 4 é desenvolvida a ideia de que um dos vetores do direito fundamental do acusado ao conhecimento da acusação consiste no concreto acesso às fontes de prova. O autor ressalta a proliferação de atos deingerência na intimidade, como metodologia corrente das investigações criminais em crimes econômicos e alerta, citando o professor alemão Hassemer, que a adoção dessas providências requisita “justificação substancial”, algo que exige a “fundada suspeita” em face do investigado, mas que na prática tem resultado na “erosão da figura da suspeita”. Prado traz à baila a “Discovery”, dispositivo fundamental na estrutura acusatória, o qual repousa na ideia da passividade e neutralidade do juiz no que concerne à busca das provas, o equilíbrio entre as partes, tomando como fim último a produção de uma decisão justa. O funcionamento eficaz dos Discovery devices (conjunto de medidas de “descoberta” das fontes de prova) depende da estruturação do procedimento penal que tenha aptidão para viabilizar o controle pelas partes da atividade probatória do adversário – e sua consequente licitude – e também da prescrição ao juiz criminal de papel destacado de fiscalização da regularidade procedimental, em um contexto em que a atividade jurisdicional penal é concebida como de tutela da Constituição e das leis. Na mesma linha, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem incentivado reformas processuais capazes de organizar o procedimento de modo a que o exercício da ação penal respeite padrões mínimos de tutela da dignidade da pessoa humana. Geraldo Prado destaca que, epistemologicamente, o contraditório é fundamental como mecanismo de controle de fiabilidade da prova, isto é, funciona como método de demonstração da correção da própria atividade probatória e garantia de sua qualidade. O objetivo é perseguir a melhor qualidade da decisão judicial e reduzir ao máximo os riscos de incriminação imprópria. Afirma que a cadeia de custódia deve estar conformada pelo menor número de custódios possível, de modo que o elemento seja menos manipulado. A menor manipulação o expõe menos, protegendo o elemento, se lhe está defendendo. Conforme Robert A. Doran “a cadeia de custódia é um processo usado para manter e documentar a história cronológica da evidência. Este processo deve resultar num produto: a documentação formal do processo”. Prado acrescenta que os procedimentos da cadeia de custódia devem continuar até o processo ter transitado em julgado. Paridade de armas e conhecimento integral das fontes obtidas durante a investigação criminal articulam-se para o concreto exercício do direito de defesa, que não fica restrito aos elementos informativos que interessam apenas à acusação. O autor destaca que a expansão dos métodos ocultos de investigação é a realidade das práticas de investigação criminal pelo menos nas duas últimas décadas e alerta que tais tendem a violar o âmbito essencial de configuração da vida privada. Porém, a legalidade penal não se desenvolve na mesma velocidade para estipular critérios e definir mecanismos que protejam este âmbito essencial. Ademais, a nova “subjetividade digital” em que estão inseridos os métodos ocultos de prova, igualmente tem potencial de levar a substituição da convicção pela crença injustificada. Enquanto as antigas provas ditas materiais (armas, documentos, drogas, etc) devem ser mantidas intocadas para que possam, sob o crivo do contraditório judicial, verificar sua autenticidade, submetendo-as, portanto, à contraprova, o meio digital estaria a salvo desta confrontação. O máximo que se supõe duvidoso é a interpretação sobre as cenas transmitidas. Prado explica que nem todas as interferências probatórias são epistêmicas, ou seja, nem todas compartilham uma base empírica como fundamento. Não raras vezes, o fundamento é de ordem normativa, justificado por sua finalidade de proteção de valores ou princípios. Mas há regras lógicas e jurídicas a disciplinar as hipóteses e, no tocante às jurídicas, há uma hierarquia normativa que coloca em primeiro plano a presunção de inocência. Sobre a inadmissibilidade da prova obtida por meio da violação da sua cadeia de custódia, expõe que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos conferiu trato rigoroso ao tema e definiu seis critérios incidentes aos casos de prova ilícita, que servem de parâmetro ao direito brasileiro, quais sejam: a) exclusão de provas ilícitas na aplicação da garantia do direito ao processo equitativo; b) a exigência do direito a poder contraditar a prova produzida pela outra parte; c) a proscrição de procedimentos de investigação baseados na violência, na astúcia ou engano; d) o exame conjunto das provas lícitas e ilícitas como método de comprovação da existência de um verdadeiro processo equitativo; e) a possibilidade de transgressão do direito ao processo equitativo pela adição de irregularidades sem virtualidade inválida de forma isolada; e f) em alguns casos, a subsanabilidade de efeitos produzidos em primeiro grau, em sede de recurso. Geraldo Prado conclui sua obra reiterando que a formação e a preservação do elemento probatório devem ser cercadas de cuidados, sob pena de prejuízo à comprovação e/ou refutação dos elementos informativos, requisitos de verificação dos fatos penalmente relevantes. Com efeito, os elementos apreendidos não podem ser empregados validamente como fonte ou meio de prova. Traduzem-se em prova ilícita. Por fim, elucida que o Estado não deve ser superior ao criminoso apenas pelo ângulo do monopólio do exercício legítimo da coação. Sua superioridade, antes de qualquer coisa, deve ser ética.