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AULA 2 NEUROCIÊNCIA EDUCACIONAL Prof. Wagner Allan Cagliumi 2 CONVERSA INICIAL “As pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e formos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos educando para a paz.” Maria Montessori Em nosso primeiro capítulo, pudemos conhecer um pouco da mágica anatomia do sistema nervoso e suas relações funcionais gerais, fornecendo uma base para que possamos conhecer agora como todas essas estruturas convergem para as várias formas em que nos relacionamos com o meio ambiente. Pudemos perceber o quanto essas estruturas se desenvolveram com nossa evolução e, consequentemente, como são importantes em nosso cotidiano. Iniciaremos, então, o estudo das funções nervosas superiores, começando pelos sentidos. Falaremos um pouco de visão, audição, tato, gustação, olfato e sistema vestibular, um importante sentido pouco comentado. Os sentidos fundamentais do corpo humano (visão, audição, tato, gustação, olfato e sistema vestibular) constituem as funções que propiciam o nosso relacionamento com o ambiente. Por meio dos sentidos, o nosso corpo pode perceber muita coisa do que nos rodeia; contribuindo para a nossa sobrevivência e integração com o ambiente em que vivemos. CONTEXTUALIZANDO Existem determinados receptores, altamente especializados, capazes de captar estímulos diversos. Tais receptores, chamados receptores sensoriais, são formados por células nervosas capazes de traduzir ou converter esses estímulos em impulsos elétricos ou nervosos que serão processados e analisados em centros específicos do sistema nervoso central, onde será produzida uma resposta voluntária ou involuntária. Com o conhecimento adquirido das percepções, poderemos estudar as bases da memória, que, por sua vez, dependem das percepções, incluindo aí a atenção. A memória, imenso arquivo humano de experiências, impressões e conhecimentos, como base da aprendizagem, será tratada pelo ponto de vista neuroanatomofisiológico, ou seja, sua anatomia, seus sistemas e sua formação. 3 TEMA 1 – BASES NEURONAIS DA PERCEPÇÃO 1.1 Percepção visual O sentido da visão é um dos principais sentidos utilizados neste momento de nossa evolução. A capacidade do olho de distinguir entre dois pontos próximos é chamada acuidade visual, a qual depende de diversos fatores, em especial do espaçamento dos fotorreceptores na retina e da precisão da refração do olho. Para se ter uma ideia da utilização desse sentido, sabe-se que hoje cerca de 65% de todas as informações que chegam ao sistema nervoso central são informações visuais, o que, para nós, educadores, tem importância significativa, pois se para nosso aluno essa não for a melhor maneira de apreender o meio, corremos o risco de sobrecarregar esse sentido em detrimento de outras possibilidades sensoriais que também podem resultar em aprendizagem. A percepção visual é a identificação, organização e interpretação dos dados sensoriais recebidos pelos olhos. Subdivide-se em discriminação, fechamento, figura – fundo, memória visual, planejamento motor e sequência. A discriminação visual pode ser definida como a habilidade de perceber diferenças e semelhanças, o que nos permite distinguir as variadas formas, cores e tamanhos daquilo que vemos e dar-lhes significados diferentes. Quando falamos em fechamento, na percepção visual, estamos nos referindo a habilidade de perceber estímulos visuais e identificar uma figura incompleta. A habilidade de perceber objetos misturados a outros e canalizá-los é denominada figura-fundo. A memória visual é a habilidade de guardar estímulos visuais e de usá-los quando solicitado. Podemos definir como planejamento motor a habilidade de reproduzir, de memória, atividades que já tenham sido previamente demonstradas, como desenhos e letras. Finalmente, sequência é a reprodução da informação em uma determinada ordem. 4 1.2 Percepção auditiva A audição e a visão podem ser consideradas os sentidos mais utilizados pelo ser humano moderno por este motivo iniciarão com um texto que gostaria que lessem e refletissem, pois o considero um dos melhores textos relativos aos sentidos. Na verdade, este depoimento trata da privação dos sentidos da visão, que já estudamos, e da audição que iniciamos. Quero aproveitar esta oportunidade para lembrar que estes estudos que estamos fazendo, convergem para a ilimitada potencialidade humana, a adaptação e a sobrevivência da espécie. Desta forma, veremos um ser humano que supera a desvantagem da dificuldade em comunicar-se após a perda de seus sentidos visual e auditivo. O texto seguinte é um impressionante depoimento de Helen Keller a respeito da descoberta da linguagem: Ela me trouxe o chapéu e eu sabia que iria sair para o sol quente. Este pensamento, se é que uma sensação sem palavras pode chamar-se um pensamento, fez que eu pulasse e saltasse de prazer. Andamos pelo caminho do poço, atraídas pela fragrância das madressilvas que o cobriam. Alguém estava tirando água e a professora colocou minha mão debaixo da bica. Quando a corrente fria jorrou sobre minha mão, ela soletrou, na outra, a palavra água, primeiro devagar, depois rapidamente. Fiquei parada, toda a minha atenção fixa no movimento de seus dedos. De repente, senti uma obscura consciência como de algo esquecido – uma emoção de pensamento que retornava; e, de algum modo, o mistério da linguagem me foi revelado. Soube então que á-g-u-a significava o algo maravilhoso e frio que escorria sobre minha mão. Aquela palavra viva despertou-me a alma, deu-lhe luz, esperança, alegria, libertou-a! Ainda existiam barreiras, é verdade, mas barreiras que com o tempo poderiam ser removidas. Deixei o poço ansiosa por aprender. Tudo tinha um nome, e cada nome deu à luz um pensamento. Quando voltamos para casa, todo objeto que eu tocava parecia tremer de vida. Isto porque eu via tudo com a estranha e nova visão que sobreviera. (Langer, 1971) Após tão belo depoimento de Hellen Keller, seguimos nossa jornada buscando entender melhor o ser humano para que nosso trabalho seja o de propiciar o desenvolvimento e a qualidade de vida para pessoas que, com ou sem deficiências, incapacidades funcionais, ou quaisquer desvantagens que possam permear seu universo, são cidadãos e sobretudo seres humanos em busca de seu lugar. Comecemos pelo som, o qual é produzido por ondas que se propagam no ar de maneira semelhante às ondas na superfície da água. Essas ondas sonoras vão avançando até alcançar nossa orelha. 5 A orelha humana é um órgão cuja sensibilidade possibilita a percepção e interpretação de ondas sonoras de frequências entre 16 e 20.000 Hertz (ondas por segundo). Da captação do som até sua percepção e interpretação, há uma sequência de transformações da energia: Sonora Mecânica Hidráulica Elétrica O pavilhão auditivo capta e canaliza as ondas sonoras para o canal auditivo e para o tímpano. Este transforma as vibrações sonoras em vibrações mecânicas que são comunicadas aos ossículos (martelo, bigorna e estribo), que funcionam como alavancas, aumentando a força das vibrações mecânicas e agindo como amplificadores das vibrações da onda sonora. Na orelha interna, denominada labirinto, existem escavações no osso temporal, que são revestidas por uma membrana e preenchidas com líquido. A parte anterior do labirinto é chamada de cóclea e, à medida em que a vibração sonora penetra na cóclea, o líquido mencionado é lançado mais profundamente – energia hidráulica, e o movimento deste líquido provoca a vibração de uma membrana, denominada basilar, que, por sua vez, flexiona células ciliares. A flexão desses cílios excita células sensoriaise gera impulsos nas terminações nervosas da cóclea. Assim a energia hidráulica é convertida em energia elétrica. Esses impulsos são transmitidos através do nervo coclear até os centros auditivos do tronco encefálico e córtex cerebral. Os centros auditivos do tronco encefálico relacionam-se com a localização da direção da qual o som emana e com a produção reflexa de movimentos rápidos da cabeça, dos olhos ou mesmo de todo o corpo, em resposta a estímulos auditivos. O córtex auditivo, localizado na porção média do giro superior do lobo temporal, recebe os estímulos auditivos e os interpreta como sons diferentes. Após a compreensão do mecanismo básico da audição, vamos entender a percepção auditiva, que, a exemplo da percepção visual, pode ser definida como a identificação, a organização e a interpretação do som. Divide-se em atenção, habilidade de reagir a um som, discriminação auditiva, a habilidade de distinguir sons de ruídos e figura-fundo, habilidade de selecionar sons específicos. 6 1.3 Percepção gustativa e paladar Quando conhecemos o funcionamento de nosso corpo, acabamos por atentar para as sensações de forma mais acentuada. Sentimos o sabor das coisas que comemos, e com uma riqueza e variação enorme, graças ao paladar, que, se não o possuíssemos, nossas refeições seriam totalmente insípidas, servindo somente para repor a energia gasta e alimentar o corpo. A gustação é primariamente uma função da língua, embora regiões da faringe, palato e epiglote tenham alguma sensibilidade. Os aromas da comida passam pela faringe, onde podem ser detectados pelos receptores olfativos. Nossa língua possui em sua superfície dezenas de papilas gustativas, cujas células sensoriais percebem os quatro sabores primários, aos quais chamamos sensações gustativas primárias: amargo, azedo ou ácido, salgado e doce. De sua combinação resultam centenas de sabores distintos. A distribuição dos quatro tipos de receptores gustativos, na superfície da língua, não é homogênea. Cada tipo de comida em sua combinação de sabores básicos ajuda a torná- la única. Muitas comidas têm um sabor distinto como resultado da soma de seu gosto e cheiro, percebidos simultaneamente. Além disso, outras modalidades sensoriais também contribuem com a experiência gustativa, como a textura e a temperatura dos alimentos. A sensação de dor também é essencial para sentirmos o sabor picante e estimulante das comidas apimentadas. Pois bem, então temos na língua as papilas gustativas de onde serão transmitidos os estímulos via nervo lingual para o tracto solitário, localizado no bulbo, que, por sua vez, se localiza no tronco encefálico. Em seguida, os estímulos são transmitidos ao tálamo; do tálamo passam ao córtex gustativo primário e, subsequentemente, às áreas associativas gustativas circundantes e à região integrativa comum, que é responsável pela integração de todas as sensações. E não nos esqueçamos de que este fabuloso sentido do paladar como todos os outros deve ser explorado, sentido, preservado. 1.4 Percepção tátil Sentimos tantas sensações importantes através de nossa pele, pressão, dor, frio, calor entre outras, graças ao sentido do tato. 7 Pois bem, para que possamos processar essas sensações aferidas do ambiente, contamos com o maior órgão do corpo humano: a pele, que chega a dois metros quadrados, e pesar até 4 kg em um adulto. Constitui-se basicamente por duas camadas unidas entre si: uma mais externa denominada epiderme e outra mais interna, a derme. Também é a pele nosso maior órgão sensorial, pois toda sua superfície é provida de terminações nervosas capazes de captar estímulos térmicos, mecânicos ou dolorosos. Globalmente conhecido como sentido do tato, na verdade a pele tem diferentes receptores especializados para percepções separadas: dor, temperatura, pressão e tato propriamente dito. Sua sensibilidade é tamanha que podemos discriminar um ponto em relevo com apenas 0,006 mm de altura e 0,04 mm de largura quando tateado com a ponta do dedo. A polpa dos dedos percebe, em média, cerca de seis impressões táteis de uma só vez. O alfabeto Braile, que permite aos cegos ler, foi criado levando em conta essa característica. Nesse alfabeto, cada letra é uma combinação de até seis pontos. As terminações nervosas encontradas na pele são especializadas na recepção de estímulos específicos. Cada receptor tem um axônio com exceção das terminações nervosas livres. Nas regiões da pele providas de pelo, existem terminações nervosas específicas nos folículos capilares formadas por axônios que envolvem o folículo piloso e recebem forças mecânicas que são aplicadas contra o pelo; e outras chamadas receptores de Ruffini, que são receptores térmicos de calor. Temos ainda receptores que são comuns às regiões cobertas ou não por pelos. São os corpúsculos de Paccini, responsáveis pelos estímulos vibratórios e táteis; os corpúsculos de Meissner são táteis, e os discos de Merkel são relacionados com sensibilidade tátil e pressão. As terminações nervosas livres são sensíveis aos estímulos mecânicos, térmicos e dolorosos e os bulbos terminais de Krause, receptores térmicos do frio. Pois é, amigos neuroleitores, não se esqueçam de que mais que células, neurônios, terminações nervosas, o tato é sobretudo um sentido que compõe nossas emoções. Tocar outra pessoa pode ser fonte de sensações que remetem a valores como confiança e carinho. Não é à toa que o mais tradicional cumprimento é o aperto de mãos. 8 TEMA 2 – BASES NEURONAIS DA ATENÇÃO “O cérebro escaneia o ambiente selecionando por meio de mensagens sensoriais para encontrar algo em que prestar atenção.” Sprenger O tema atenção está presente em nossa vida pessoal e profissional todo o tempo e frequentemente nos leva à reflexão do que significa essa habilidade. Quando estamos em um ambiente cheio de estímulos visuais, sonoros, táteis dentre outros, conseguimos estar atentos à conversa com nossos amigos e sequer percebemos a quantidade de luzes, cores ou sons que nos rodeia. Não percebemos a pressão do calçado em nossos pés ou a camisa sobre nossa pele, no entanto, todos esses estímulos estão chegando de alguma forma até nosso sistema nervoso central e sendo processados. Mas nossa atenção continua na conversa com nossos amigos. Então, que habilidade é essa que consegue ao mesmo tempo levar várias informações ao nosso cérebro e somente o que é “relevante” chega à nossa consciência? Primeiramente devemos entender que não se trata de uma única habilidade ou sentido, mas sim um conjunto de habilidades que envolvem grau de alerta, concentração, orientação, seleção e exploração e que o desempenho dessas funções depende da atividade conjunta de diversas estruturas situadas em diferentes níveis do sistema nervoso central, conforme relata Schwartzman (2001). Estruturas nervosas corticais e subcorticais, formação reticular, tálamo e sistema límbico, dentre outras, parecem estar envolvidas com funções sensitivo- sensoriais e motoras, incluindo aí a atenção. 2.1 O que é a atenção? A atenção desempenha um papel importante em diferentes aspectos da vida das pessoas, tanto que têm sido muitos os esforços por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento a estudá-la e na tentativa de definir seu status entre os processos neuropsicobiológicos. Embora não haja um consenso, os estudos científicos tentam definir o processo de atenção e localizar áreas do sistema nervoso central envolvidas nessas habilidades. Vários autores definem a atenção como um processo, relatando que a atenção possui fases, dentre as quais se destacam a sua orientação, seleção e manutenção. 9 Assim, podemos dizer que a atenção é um processo discriminativo e complexo que acompanha todo o processamento cognitivo. Também é responsável pela filtragem da informação bem comopela evocação de recursos para permitir a adaptação interna do organismo em relação às demandas externas. Alguns autores definem ainda a atenção como um processo pelo qual dirigimos nossos recursos mentais sobre aspectos mais relevantes do ambiente, ou na execução de certas ações que consideramos mais apropriadas entre as possíveis. Refere-se ao estado de observação alerta e nos permite ter consciência do que está ocorrendo ao nosso redor. Em outras palavras, a atenção é a capacidade de gerar, gerir e manter um estado de ativação para o processamento das informações. Para a psicologia, a atenção é uma qualidade de percepção que funciona como uma espécie de filtro de estímulos, avaliando quais são os mais relevantes e os priorizando para um processamento mais profundo. Obviamente esse processo neuropsicológico é básico para o processamento de qualquer modalidade de informação externa ou interna para a realização de qualquer atividade. Dentre todas as tentativas de definir a atenção ou localizar as áreas neuroanatômicas envolvidas, realizadas por diversos estudos; a atenção pode ser definida como a capacidade de selecionar e se concentrar em estímulos relevantes. 2.2 Desenvolvimento da atenção Como pudemos perceber no tema anterior, embora não tenhamos alcançado ainda um consenso para definir com sucesso a atenção, devido à diversidade de critérios, estudos e atividades envolvidas e sistemas neuroanatômicos relacionados, a maioria dos autores em suas tentativas de consegui-lo, fornecem uma descrição de suas características. Podemos observar, dentre os vários aspectos envolvidos com a atenção, que algumas características emergem como base desse processo. Dentre as características, podemos citar a amplitude, ou seja, a quantidade de informações ou tarefas que podem ser realizadas simultaneamente: a seletividade, ou atenção seletiva, e a concentração. 10 2.3 Classificação da atenção Para entendermos melhor esse processo de atenção, destacamos alguns dos principais tipos: Atenção seletiva: ocorre a seleção das informações, evidenciando o foco principal. Algumas vezes o cérebro não consegue assimilar todos esses sinais, e usa como saída a atenção seletiva para omitir informações irrelevantes. Atenção alternada: alternar o foco sem perdê-lo. Ajudando em tarefas que requerem mais de um nível de compreensão, por exemplo, no trânsito, permanecer atento às placas, sinais, pedestres, entre outras das muitas informações enquanto se dirige, sem perder a concentração no todo. Atenção sustentada: habilidade de se manter focado durante uma mesma atividade extensa e contínua. Por exemplo, manter-se atento durante reuniões longas, sustentando o foco da atenção nesse período. Atenção concentrada: capacidade de direcionar a atenção para apenas uma atividade. Em casos específicos pode se relacionar com o estado flow. Em entrevista à Revista Wired, Mihaly Csikszentmihalyi (criador do conceito) descreve esse estado como “estar completamente envolvido em uma atividade em si. O ego desaparece. O tempo voa. Toda ação, movimento e pensamento segue naturalmente. Todo o seu ser está envolvido, e você está usando o máximo de suas habilidades” (Csikszentmihalyi, 1990). TEMA 3 – MEMÓRIA: BASES DA APRENDIZAGEM Aprendizagem e memória são funções abrangentes e específicas que são ativadas por estímulos ambientais e capazes de modificar o comportamento. Além dos estímulos, o comportamento também é influenciado pela interação do programa genético individual, ou seja, nosso comportamento final está relacionado aos fatores genéticos e epigenéticos. Podemos definir que a aprendizagem é um processo pelo qual adquirimos informação que se traduz em conhecimento. A memória é um termo amplo que se refere a uma série de funções nervosas distintas. A característica comum entre elas é a capacidade de recriar experiências pelo disparo sincrônico dos neurônios envolvidos na situação original. 11 Podemos dizer que a formação da memória envolve o aprendizado e a reconstrução parcial ou total de uma experiência passada. Durante o evento, as informações são levadas até o cérebro, onde células nervosas são acionadas em conjunto. Estas células são alteradas e tendem a disparar juntas novamente reconstruindo a experiência original, o que produzira a “lembrança”. A repetição do evento aumenta a probabilidade dessas células dispararem novamente em conjunto facilitando a evocação da lembrança. Assim, a formação da memória é dependente de vários estágios espontâneos, como seleção, consolidação, recordação, mudança e esquecimento. Definiremos o estágio de seleção da memória pela utilidade da informação que chega ao sistema nervoso central. O ser humano é neurologicamente programado para armazenar informações que serão úteis no futuro, o restante das informações passa sem registro. Eventualmente experiências importantes são negligenciadas e informações irrelevantes são retidas. No estágio da consolidação, as experiências selecionadas para a memorização são armazenadas, associadas a memórias relevantes preexistentes e retidas por um período apropriado. Para que possamos definir o estágio da recordação, devemos compreender que os acontecimentos vigentes devem evocar memórias úteis como nomes, eventos e palavras, acessando a informação de forma adequada. Pequenas modificações ocorrem quando a memória é evocada. Para que haja a acomodação de nova informação (que pode ser definida como o estágio da mudança), no estágio do esquecimento, as informações desnecessárias serão apagadas. TEMA 4 – ANATOMIA E SISTEMAS DE MEMÓRIA Atenção leitores neurocuriosos, para que possamos entender a formação da memória, precisaremos estudar sua anatomia, ou seja, precisamos conhecer estruturas nervosas envolvidas nessa função. Podemos afirmar que, de alguma forma, todo o encéfalo está envolvido nos processos de memória, no entanto algumas estruturas, à luz da neurociência, têm destaque nessa função que protagoniza a evolução do ser humano. O sistema límbico responde pelos comportamentos primitivos, por emoções profundas e impulsos relacionados à sobrevivência, como medo, prazer, impulso 12 sexual e ira. Esse importante sistema forma uma ponte entre o córtex cerebral, área de consciências superiores e o tronco encefálico, regulador das funções corporais. Esse complexo sistema tem importantes relações com a memória, por meio de estruturas como hipocampo, amígdalas e corpos mamilares. Outras estruturas corticais e subcorticais também estão implicadas na memória. Uma dessas estruturas é o hipocampo. Não podemos pensar na anatomia da memória sem destacar essa estrutura. O hipocampo está localizado no sistema límbico, possui entre uma e três camadas de células nervosa e seleciona informações provisórias para memorização, para depois passá-las para áreas de memória de maior duração. Podemos afirmar que o hipocampo transforma experiências em memórias. As amígdalas também estão localizadas no sistema límbico e possuem forma de amêndoas, formando um conglomerado de neurônios que estão relacionadas com a memória emocional, Os corpos mamilares são pequenos blocos de células nervosas que retransmitem sinais ao tálamo, contribuindo para a prontidão e a formação da memória. Também relacionados à memória, temos os núcleos da base, denominados assim, por estarem na base do cérebro. São agrupamentos de corpos de neurônios com fibras que se projetam para várias áreas do encéfalo. Essas estruturas são como ilhas de substância cinzenta em meio à substância branca das fibras neuronais. Os núcleos da base estão localizados no interior dos hemisférios cerebrais: lateralmente ao tálamo, temos os núcleos caudado, putâmen e globo pálido; e abaixo do tálamo, temos o núcleo subtalâmico e a substância negra, importante áreade produção de dopamina. O putâmen é um núcleo localizado lateralmente ao tálamo, recebendo fibras aferentes do córtex pré-motor, da área motora suplementar e do córtex somatossensorial primário. Essa estrutura está relacionada com o planejamento de padrões motores aprendidos. Já o núcleo caudado está localizado lateralmente ao tálamo, recebe aferências de todo o córtex cerebral, mas principalmente de áreas associativas, como o córtex pré-frontal, pré-motor e parietal posterior. Relaciona-se mais com aspectos cognitivos da atividade motora – com a escolha de padrões motores adequados à situação percebida sensorialmente e às informações armazenadas na memória de longo prazo. 13 Importante estrutura, o tálamo está situado no centro do encéfalo. Situado no centro anatômico do encéfalo, o tálamo é a principal estação de retransmissão para os sinais nervosos provenientes de todos os sentidos, exceto o olfato. O tálamo seleciona, inicia o processamento das informações sensoriais e as envia ao córtex cerebral. Está relacionado com a seleção e a filtragem da atenção, importantes habilidades para o processamento da memória. Não podemos deixar de mencionar o cerebelo, implicado nos processos de memória. Alguns neurocientistas relatam que o condicionamento clássico de respostas da musculatura esquelética parece depender do cerebelo, sendo esta uma forma básica de aprendizagem associativa e memória. Também mencionam que o cerebelo atua na catalogação e manutenção de sequências de eventos necessários pra o funcionamento da memória operacional em situações que requeiram o ordenamento temporal das informações. Longas células nervosas denominadas células de Purkinje, encontradas no cerebelo, unem ações de diferentes partes do corpo, coordenando movimentos finos e complexos, estando, portanto, envolvidas na aprendizagem de movimentos novos por mudança de atividade sináptica. Assim, podemos dizer que o cerebelo participa da aprendizagem de movimentos finos e, para que ocorra tal aprendizagem, é necessário que se estabeleça alguma memória operacional na catalogação, no ordenamento temporal e no armazenamento de cada evento para que, posteriormente, possa haver a execução do movimento. Finalmente, devemos citar áreas corticais como os lobos parietais, relacionados com a memória espacial e o lobo frontal associado com a memória de trabalho. 4.1 Sistemas de memória A memória, de uma maneira geral, é a retenção e o armazenamento da informação. Do ponto de vista estrutural, sempre se considerou que a memória seria uma propriedade geral do córtex cerebral como um todo. Entretanto, pudemos observar que existem diferentes formas e sistemas de memória que estão relacionados a diferentes estruturas encefálicas. Vejam que as formas ou tipos de memória são processos em que há o reconhecimento de algo, como um rosto ou um objeto, com base em um determinado tipo de informação (auditiva, visual, tátil, dentre outras). Considerando a forma em que se pode recuperar a memória e as possíveis 14 estruturas envolvidas, a memória pode ser diferenciada em implícita, explícita, declarativa e não declarativa. As memórias explícita e declarativa se caracterizam pela recuperação consciente de informações e experiências passadas e de habilidades motoras, em que, por exemplo, se recorda como fazer as coisas. Seu substrato neuroanatômico se relaciona predominantemente com o lobo temporal medial. Vejamos também que possuímos memórias de curto prazo, que são mantidas somente pelo tempo necessário; e as de longo prazo, que podem ser evocadas até por décadas no ser humano. Entre elas as memórias de médio prazo, que duram entre meses e anos ou simplesmente desaparecem. Fatores como conteúdo emocional, novidade e o esforço de memorização determinam se uma experiência ou conhecimento formará uma memória de curto ou longo prazo. Assim, podemos reconhecer, nos seres humanos, cinco sistemas de memória: memória episódica, memória de trabalho, memória semântica, memória procedimental e memória implícita. A memória episódica reconstrói experiências passadas, sensações e emoções. As estruturas envolvidas dependem do conteúdo da experiência original. No córtex frontal, as áreas de associação asseguram que a memória episódica não seja confundida com a realidade presente. Na memória de trabalho os lobos frontais acessam itens de outras áreas do encéfalo. Dois sistemas em forma de alças neurais para informações visuais e de linguagem funcionam como um rascunho, mantendo os dados temporariamente até que sejam apagados pela tarefa seguinte. A memória semântica é ativada nas áreas do lobo frontal que recorrem ao conhecimento armazenado para guiar o comportamento atual. No lobo temporal há a codificação das informações, sinalizando os fatos evocados. Os eventos que pertencem à memória semântica podem ter tido um contexto emocional, mas permanecem como simples conhecimento. Armazenadas em áreas subcorticais, as memórias procedimentais ou memória corporal permitem a execução de ações motoras comuns, de forma automática, após a aprendizagem. No núcleo caudado estão armazenadas informações de ações instintivas, como o cuidado com a aparência, por exemplo. No putâmen estão armazenadas as habilidades aprendidas, como dirigir ou nadar; e o cerebelo irá controlar a coordenação e tempo. 15 As memórias implícitas são aquelas de que não temos consciência. Porém, influenciam nossas ações de forma sutil. Quando associamos um sabor a uma aparência e não gostamos sem ao menos experimentar, pois nos remete a algo desagradável, estamos sendo afetados pela memória implícita. TEMA 5 – FORMAÇÃO DA MEMÓRIA E APRENDIZAGEM A percepção de uma experiência é gerada por um subgrupo de neurônios que disparam em conjunto. A descarga sincrônica os torna inclinados a dispararem juntos novamente, recriando a experiência original e, se esses neurônios disparam juntos com frequência, se tornam sensíveis permanentemente um com os outros, ou seja, quando um dispara, os outros também irão disparar, formando um circuito. Apenas as experiências intensas são codificadas como memória. As memórias de longo prazo incluem experiências da vida pessoal, as chamadas episódicas e semânticas, de fatos impessoais, formando as chamadas memórias declarativas, evocadas de forma consciente. As memórias procedimentais e as implícitas também podem ser armazenadas por longo prazo. 5.1 Formação da memória de longo prazo Nem todas nossas experiências se tornam permanentes. Aquelas que, por inúmeras razões, alteram as estruturas neurais formando novas conexões poderão ser recriadas por um longo prazo. Uma memória de longo prazo poderá levar até anos para se formar, com estágios que duram de uma fração de segundos ao estágio que levará mais de dois anos para a consolidação da memória. Estes estágios são atenção, carga emocional, sensação, memória de trabalho, processamento do hipocampo e consolidação. Nosso sistema nervoso tem capacidade de experimentar poucos estímulos por vez ou focar em um único evento e extrair o máximo de informações. No estágio de atenção, com duração de aproximadamente 0,2 segundo, os neurônios que registram o evento disparam com mais frequência, tornando a atividade mais intensa e aumentando a possibilidade de registro na memória. No estágio da emoção, em aproximadamente 0,25 segundo, caso haja grande carga emocional na experiência, haverá aumento de atenção e maior probabilidade de se estabelecer a memória. O estímulo é levado por via 16 inconsciente à amígdala, disparando uma resposta emocional também inconsciente. Devemos lembrar aqui que eventos traumáticos podem ser armazenados permanentemente na amígdala. A sensação é o estágio que dura entre 0,2 e 0,5 segundo, se consideramos que a maior parte das memórias decorre de experiênciassensoriais, formando a matéria-prima da memória. Neste estágio, a intensidade do evento determinará a formação de memória. Possivelmente a memória de trabalho envolva dois circuitos neurais nos quais a informação é mantida pelo tempo necessário. Um circuito é destinado às informações visual e espacial e outro ao som. Este processo dura entre 0,5 segundo e 10 minutos. Vejam que esses circuitos neurais envolvem os córtices sensoriais, visual e auditivo e os lobos frontais, este último permitindo a consciência da experiência. O processamento da memória no hipocampo dura entre 10 minutos e 2 anos, e experiências na memória de trabalho se projetam ao hipocampo, onde são processadas. A informação mais significativa é codificada, sendo novamente projetada para áreas onde foram registradas primeiramente. Durante dois anos, o padrão neural que codifica a experiência oscila entre o hipocampo e o córtex. A repetição deste processo promove a transferência do padrão do hipocampo ao córtex, liberando espaço para novas informações. Esse processo ocorre predominantemente durante o sono, e é denominado consolidação. FINALIZANDO Como pudemos estudar neste capítulo, as percepções e a memória são habilidades apaixonantes e altamente complexas. Poderíamos estudar por muitos anos e sempre estaríamos aprendendo, claro, pois acabamos de ver que a capacidade computacional da memória é quase que infinita. Vale lembrar que as percepções não são apenas a aferição das informações relacionadas ao meio, e sim o seu processamento. Aqui estudamos as percepções visual, auditiva, gustativa e paladar e tátil. Com base nas percepções desenvolvemos a memória, a qual se forma baseada em experiências vividas e reconstituídas em nosso cérebro. Várias são as estruturas envolvidas na memória, destacando-se o sistema límbico e o córtex cerebral. 17 Seguramente, se vocês conseguiram acompanhar essas informações, podemos seguir adiante, conhecer um pouco mais das habilidades que tornam o ser humano essa complexa espécie e cada um de nós um ser único. LEITURA COMPLEMENTAR Texto de abordagem teórica FONSECA, V. da. Desenvolvimento Psicomotor e Aprendizagem. CONGRESO INTERNACIONAL EDUCACIÓN INFANTIL Y DESARROLLO DE COMPETENCIAS. Asociación Mundial de Educadores Infantiles (AMEI-WAECE) (Org.). Anais... Madrid, 28-30 nov. 2008. Disponível em: <http://www.waece.org/ameicongresocompetencias/ponencias/victor_da_fonsec a.pdf>. Acesso em: 1 set. 2018. Para aprimorar o conhecimento acerca do desenvolvimento psicomotor e de aprendizagem tão discutidos nesta aula, convido você a realizar a leitura desse artigo, de ninguém menos que Vitor da Fonseca, referência mundial em psicomotricidade. Texto de abordagem prática IZQUIERDO, I. Memórias. Estudos Avançados, v. 3, n. 6. São Paulo, maio- ago., 1989. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi d=S0103-40141989000200006>. Acesso em: 1 set. 2018. Tema extremamente significativo na educação, o entendimento da memória poderá ser facilitado por esse texto. 18 REFERÊNCIAS CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow: the Psychology of optimal experience. New York; Harper and Row, 1990. CUNHA, V. L. O.; CAPELLINI, S. A. Desempenho de escolares de 1ª a 4ª série do ensino fundamental nas provas de habilidades metafonológicas e de leitura- Prohmele. Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, v. 14, n. 1, p. 56-68, 2009. FONSECA, V. da. Psicomotricidade. São Paulo: Martins Fontes, 1988. _____. Psicomotricidade: filogênese, ontogênese e retrogênese. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998 FONSECA, V. da. Desenvolvimento Psicomotor e Aprendizagem. CONGRESO INTERNACIONAL EDUCACIÓN INFANTIL Y DESARROLLO DE COMPETENCIAS. Asociación Mundial de Educadores Infantiles (AMEI-WAECE) (Org.). Anais... Madrid, 28-30 nov. 2008. Disponível em: <http://www.waece.org/AMEIcongresocompetencias/ponencias/victor_da_fonsec a.pdf>. Acesso em: 1 set. 2018. GINDRI, G.; KESKE-SOARES, M.; MOTA, H. B. Memória de trabalho, consciência fonológica e hipótese de escrita. Pró-Fono Revista Atualidades Científicas. 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