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Anais II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido

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ISBN: 978-85-66716-06-1 
 
 
2017 
 
 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade - 
JITOU 
 
 
Comissão Organizadora 
Andréia Manho 
Anília Silveira 
Cachalote Mattos 
César Augusto Paro 
Flavio Sanctum 
Helen Sarapeck 
Jussara Trindade 
Licko Turle 
Rosane Campelo 
Telemakos Endler 
Zeca Ligiero 
 
 
Equipe de Editoria 
 
Coordenação 
César Augusto Paro 
 
1ª. Revisão 
César Augusto Paro 
 
2ª. Revisão 
Cachalote Mattos 
Flavio Sanctum 
Helen Sarapeck 
Licko Turle 
Sebastián Torterola 
 
Projeto Gráfico, Editoração e Capa 
Cachalote Mattos 
 
 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) 
 
 
 J828 Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade: arte, 
pedagogia e política (2. :2014: Rio de Janeiro, RJ) 
 
Anais/ II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade: 
arte, pedagogia e política, 16-17 de outubro de 2014 em Rio de Janeiro, 
RJ. - Rio de Janeiro: GESTO, 2017. 
 
155 p. 
 
 Inclui bibliografia. 
ISBN: 978-85-66716-06-1 
 
1. Teatro do oprimido - Congresso. 2. Teatro na educação - Congresso. 
I. Paro, César Augusto, coord. II. Mattos, Cachalote, org. III. Título. 
 
 
 CDD - 792.015 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
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APRESENTAÇÃO 
 
 
As I Jornadas Internacionais de Teatro do Oprimido e Universidade 
(JITOU), sob o tema Teatro do Oprimido: Teoria e Prática – fruto da curta 
passagem do Acervo Boal pela Universidade Federal do Estado do Rio de 
Janeiro (UNIRIO) –, ocorreram em junho de 2013, em parceria com o Centro de 
Teatro do Oprimido (CTO), e objetivou promover reflexões sobre a metodologia 
criada por Augusto Boal (1931-2009) – dramaturgo, diretor teatral, professor, 
político e teatrólogo – e sua utilização em diferentes contextos. 
Sob a responsabilidade do Prof. Dr. Zeca Ligiéro, coordenador do Núcleo 
de Estudos das Performances Afro-Ameríndias (NEPAA)/UNIRIO, e com o apoio 
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), o 
Acervo Boal permaneceu por dois anos na UNIRIO. Durante esse período, 
prestou um valioso auxílio a diversas pesquisas, como trabalhos de conclusão 
de curso, dissertações e teses. Mesmo curta, a sua permanência na instituição 
aprofundou o contato do público universitário com a obra de Boal: na graduação, 
com o estudo de textos dramatúrgicos de Augusto Boal como conteúdo da 
disciplina “LED - Leitura Dramatizada” e a oferta da disciplina de “Técnicas 
Paralelas - Teatro do Oprimido de Augusto Boal”; e, na pós-graduação, com a 
realização dos cursos “Augusto Boal: Arte, Política e Pedagogia” (que, em 2015, 
foi publicado em livro homônimo) e “Do distanciamento de Bertold Brecht ao 
Teatro do Oprimido de Augusto Boal”, além de oficinas livres de extensão 
universitária. 
Outro importante legado foi a criação do Grupo de Estudos em Teatro 
Oprimido (GESTO) por estudantes e pesquisadores do NEPAA/UNIRIO 
interessados na difusão das ideias de Boal e na investigação das funções 
sociais, educativas, terapêuticas, políticas e artísticas do seu método, praticado 
hoje em mais de setenta países. Surge então, a ideia de instaurar na UNIRIO 
um espaço acadêmico de compartilhamento dessas práticas, realizadas a partir 
do pensamento de Boal: nascem as Jornadas Internacionais de Teatro do 
Oprimido e Universidade - JITOU. 
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O tema Teatro do Oprimido: teoria e prática orientou a dinâmica do evento 
em sua primeira edição, que contou com a participação de pesquisadores de 
treze nacionalidades diferentes. Na parte da manhã, foi realizada uma grande 
oficina com estudantes de Teatro do Oprimido da Universidade do Sul da 
Califórnia e da disciplina de Técnicas Paralelas da UNIRIO. À tarde, em uma 
ampla mesa redonda, pesquisadores da Inglaterra, Itália, Chile, EUA e Brasil 
apresentaram exposições orais sobre o ensino do Teatro do Oprimido em seus 
respectivos países e, em seguida, aberto um debate com o público presente na 
Sala de Audiovisual da Escola de Teatro da UNIRIO. 
Devido ao caráter inaugural e, até mesmo, experimental do evento, não 
houve, na primeira edição, o registro da oficina e o envio dos textos das 
miniconferências proferidas na mesa redonda. Contudo, o entusiasmo dos 
participantes e a riqueza das discussões suscitadas na ocasião levaram o 
GESTO a redimensionar o seu potencial, de modo a preencher tal lacuna no ano 
seguinte. 
As II JITOU trouxeram o tema Teatro do Oprimido: arte, política e 
pedagogia, abordando as três grandes áreas em que Boal atuou: o Teatro de 
Arena, o Teatro Legislativo e o ensino do teatro. A programação, mais extensa, 
incluiu conferências, comunicações orais de trabalhos acadêmicos, oficinas, 
apresentações artísticas, lançamento de livros, e contou com a participação de 
quase trezentos inscritos oriundos de onze países. 
Durante dois dias, a UNIRIO foi palco de relatos de práticas, projetos e 
experiências realizadas no Brasil e no exterior por profissionais de áreas 
diversas, e de apresentações de pôsteres e espetáculos de Teatro-Fórum, uma 
das técnicas do Teatro do Oprimido mais difundidas por todo o mundo. 
Os textos das comunicações orais e das conferências seguem, agora, 
devidamente registradas nestes Anais das II JITOU, como testemunhos vivos da 
importante contribuição de Augusto Boal para o Brasil e o mundo, sobretudo no 
vasto campo multidisciplinar do Teatro do Oprimido. 
 
Licko Turle 
Jussara Trindade 
 
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SUMÁRIO 
 
Apresentação ............................................................................................ 4 
Licko Turle e Jussara Trindade 
 
Programação ............................................................................................. 
 
 
8 
 
Brecht, Boal e a coragem de mostrar a verdade ........................................ 
 
18 
Alessandra Vannucci 
 
O Teatro do Oprimido na Empresa: Teatro Fórum & qualidade de vida do 
trabalhador ................................................................................................ 
 
 
 
24 
Antonia Pereira Bezerra 
 
A experiência do Teatro do Oprimido dentro do Projeto “Ô de casa!”: 
intercâmbio de saberes e culturas entre os cursos de Licenciatura em 
Teatro e Educação do Campo da UFT ..................................................... 
 
 
 
 
36 
Bárbara Tavares dos Santos 
 
Variaciones para una ciudadanía rococó ................................................... 
 
 
42 
Betsy Perafán 
 
Teatro do Oprimido, Promoção da Saúde e Empoderamento: limites e 
possibilidades ............................................................................................ 
 
 
 
72 
César Augusto Paro e Neide Emy Kurokawa e Silva 
 
O desenvolvimento de Teatro do Oprimido em Taiwan .............................. 
 
 
78 
Kelly Ju-Hsin Hsieh 
 
A força física como dispositivo no espetáculo de cena fórum “Bye bye 
baby e outras mulheres” ............................................................................ 
Lívia Martins Fernandez 
 
Na trama de um grupo de teatro: Policultura .............................................. 
Lucimara Gonçalves e Iara Cássia Castro 
 
 
 
 
88 
 
 
94 
Diálogos entre Boal e Freire: o teatro e a educação popular no 
enfrentamento da violência contra as mulheres ......................................... 
Iara Cássia Castro e Sirlei S. Dudalski 
 
 
100 
Te extraño mucho. Operaciones de extrañamiento como método para el 
conocimiento y la trasformación social desde la antropología y el teatro .. 
 
105 
Jimena Ines Garrido 
 
O Teatro do Oprimido de Augusto Boal no exercício da cidadania em 
questões relativas ao petróleo, gás, energia e biocombustíveis ................ 
 
 
 
111 
JulianaCavassin 
 
 
 
 
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7 
 
O Ensino da Psicologia Institucional e o Teatro do Oprimido: uma 
proposta em desenvolvimento .................................................................. 
Mercedes Guarnieri 
 
O teatro brasileiro sob a tempestade: um estudo sobre a peça “A 
Tempestade”, de Augusto Boal ................................................................. 
Patrícia Freitas dos Santos 
 
Projeto Reviver – vivências teatrais transformadoras como oportunidade 
para reflexões práticas e novas descobertas ............................................. 
Rosimairy Carla Silva e Deus 
 
Bajar del drama a la propuesta. Una experiencia de Teatro Legislativo en 
Uruguay ..................................................................................................... 
Sabrina Speranza 
 
O teatro do oprimido na terceira idade: construindo emancipação e 
autonomia com um grupo de mulheres ...................................................... 
Thaísa Soares Silva 
 
 
117 
 
 
 
122 
 
 
 
128 
 
 
 
140 
 
 
 
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VANNUCCI, Alessandrai. Brecht, Boal e a coragem de mostrar a verdade. Rio 
de Janeiro, RJ, Brasil: Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de 
Janeiro (ECO/UFRJ). 
 
RESUMO 
Mantendo intenso diálogo com pensadores clássicos (como Aristóteles, 
Platão) e modernos (como Adorno, Benjamin), Boal busca na arte um processo 
de subjetivação capaz de alterar o estado de subalternidade do cidadão. O ator, 
superativado politicamente em função de Curinga, age ao modo do filósofo 
platônico cujas andanças para dentro e para fora da caverna (do palco) no 
esforço de revelar a verdade, não são em vão. Assim como para Brecht, é 
preciso coragem a quem queira mostrar a verdade e fazer da arte um antídoto 
aos regimes de opressão. 
PALAVRA-CHAVE: estética do oprimido. 
 
ABSTRACTii 
Quoting classical and modern thinkers (such as Adorno, Benjamin), Boal 
tries to reveal in art the antidote against oppression. In the case of theatre, actor 
is super-activated as jolly, a kind of platonic philosopher whose efforts in 
revealing truth is not in vain. Such as Brecht, courage is needed for whom who 
wants to show the truth. 
KEYWORD: esthetic of the oppressed. 
 
 
O insistente desafio, no pensamento do Augusto Boal, de revogar a 
proscrição platônica dos artistas e readmiti-los à república, convida a argui-lo à 
luz dos conceitos do filósofo grego e de seus leitores contemporâneos, mesmo 
que heterodoxos como o próprio Boal. Entre outras maneiras de fazer, as artes 
fundadas no cânon mimético embaralham – argumenta Platão (2001) em A 
República (III) – ao invés que iluminar o processo de subjetivação presente em 
experiências de visão, pois, ao apresentar fantasmas (simulacros) ao invés que 
ícones (imagens autênticas), enganam sistematicamente o espectador e o 
afastam do caminho da Verdade. Ao desqualificar a arte do ator, pois como 
poderia alguém ser ao mesmo tempo cidadão e enganador de cidadãos, Platão 
denuncia a impraticabilidade do paradoxo; entretanto, pelo fato que tal paradoxo 
é normalmente praticado, admite um regime de exceção para a arte mimética 
entre outras práticas ordinárias e ordenadas de trabalho. Por ser ilusório e 
enganoso, o teatro produz um deslocamento no regime de visibilidade que 
contradiz a ordenação do comum e confunde a partilha de competências que 
definem e limitam a participação à vida pública conforme o princípio pedagógico 
da utilidade. “Pra que serve o teatro?”, pergunta desconcertado Platão. Que tipo 
de serviço político (no interesse da pólis) se faz no teatro? Qual sua função na 
construção da cidade ideal? 
 
Uma primeira resposta, de Aristóteles (1993) na Poética (VI, 27) tende a 
reconduzir a exceção ao princípio pedagógico apelando para um termo de 
derivação médica (catarse) já utilizado em âmbito ritual, que remete ao conceito 
de antídoto: a utilidade do teatro consiste no efeito de purificação das paixões 
por meio da aplicação em dose homeopática de um remédio (farmakon) ao 
espectador, como paciente de uma terapia de controle social. Tal remédio é a 
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identificação emotiva e sua enorme eficácia depende da passividade do 
espectador, levado a aceitar a ação (drama) apresentada, o sacrifício ou castigo 
do herói, mesmo que injusto e atroz, como algo natural e inevitável. O palco é 
lugar de exposição e cura das doenças psicossociais; tudo pode ser mostrado 
ao cidadão que, sentado na plateia, observa um outro cidadão submetido às 
terríveis consequências de suas paixões excessivas e experimenta o estranho 
prazer (pathos) de não estar sendo envolvido pessoalmente. O paradoxo do ator 
– ser ao mesmo tempo real e simulacro – torna-se método, ferramenta ou hábito 
de produção (tecné) a serviço de uma cena que faz visível uma determinada 
ordenação de mundo. Torna-se, emprestando o termo inaugurado por Michel 
Foucault (1994, p.299), um dispositivo, isto é, uma “estratégia racional e 
combinada de relações de força” funcional não somente ao cumprimento do 
trabalho do ator como à manutenção do regime representativo que, perpassando 
séculos, fundamenta a sociedade moderna no cânon do “espetáculo”. Segundo 
Débord (1997), tal regime consiste na separação entre a vida e suas 
representações, as quais tendem a tomar o lugar da vivência (no sentido de 
experiência autêntica) mesmo que sabidamente falsas. A alerta de Theodor 
Adorno e Max Horkheimer (1985) quanto ao uso das artes miméticas nos 
regimes totalitários (onde inscreve seja o fascismo e seja a indústria cultural) 
como um “sono sem sonhos” capaz de alienar a multidão trabalhadora em massa 
de consumidores de felicidades ilusórias, enquanto a própria vida permanece 
inalcançável no mundo real, parece ecoar a negatividade platônica. Entre outros 
simulacros, a arte realizada como mais uma mercadoria na sociedade do 
espetáculo se esvazia de qualquer conteúdo teleológico e produz experiências 
estéticas cada vez mais subjugadoras e totalizantes. 
 
Bertolt Brecht intervém no debate sobre os usos do teatro pela sociedade 
implicando diretamente com Aristóteles e abrindo caminho para a resposta do 
Boal. Se é por meio da identificação emotiva que o espectador aceita o 
sofrimento do herói como natural, Brecht sugere empregar recursos cênicos que 
interrompam tal ilusão e despertem o espectador de seu estado de 
encantamento: na prática, ele passaria a estranhar aquele sofrimento e a 
analisar de quais maneiras seria remediável. De passivo, o espectador passaria 
a ser “dialético”, isto é, capaz de enxergar as contradições do real. Sem recusar 
a representação nem sair do palco italiano, Brecht entende que o mesmo drama 
pode ter um efeito repressor (purgar o desejo ilegítimo do espectador-paciente) 
ou transformador (fazer com que o espectador-dialético se descubra capaz de 
realizá-lo no mundo real); a tal mudança no regime estético corresponde uma 
radical mudança de tarefaspara o ator. O ator de Brecht é um lutador cujo 
objetivo se dá fora do palco, na luta revolucionária; ele testemunha o drama, sem 
tomar partido mas mostrando-o sob diversos pontos de vista; é do seu exercício 
de abstração e distanciamento (V-effekt) que o espectador recebe os meios de 
sua emancipação política. Depende do ator impedir que o teatro seja usado 
como aparelho disciplinar e se torne um contradispositivo: uma tática de 
resistência criativa, com técnicas específicas que esvaziem o efeito catártico e 
potenciem a insubordinação da plateia. Sendo alguém que “quer dizer 
eficazmente a verdade sobre o mal estar das coisas, é preciso que o diga de 
maneira que permita reconhecer as suas causas evitáveis, pois, uma vez 
reconhecidas as causas evitáveis, o mau estado de coisas pode ser combatido”, 
aponta Brecht (1973, p.56). 
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Na esteira de Brecht, Boal divisa na tarefa do ator um compromisso com 
a coragem de dizer a verdade – não uma verdade essencialista mas imanente 
ao estado de coisas que ocorre naquela determinada realidade. Sem recusar a 
mimese, já que parte de expectativas realistas e de exercícios de criação 
stanislawskianos (no Teatro de Arena), Boal propõe o rodizio do personagem 
entre atores (função-curinga) como técnica à maneira brechtiana de interrupção 
da possível ilusão cênica. O sucessivo surgimento do curinga, mediador 
maiêutico entre palco e plateia (no teatro-forum, técnica do Teatro do Oprimido), 
configura uma mudança de tarefa para o ator, assim como para o espectador, 
ao adentrar em um regime estético esvaziado de tais expectativas. Livre de 
qualquer personagem, o ator é superativado em sua presença performática 
como involuntário filósofo que transpõe o limiar entre ficção e realidade, 
emancipando os espectadores de sua passividade, assim como o iluminado 
platônico entra e sai da caverna buscando desvendar os simulacros e fazer com 
que a Verdade seja desvelada. Em nome da verbalização coletiva da Verdade, 
Boal redime a arte mimética da proscrição platônica pois, neste caso, cada 
reapresentação do drama configura uma nova autoria (não uma cópia) e 
proporciona ao espectador (que entrando em cena torna-se espect-ator) uma 
experiência estética autêntica pois, ao combater e transformar o “mau estado 
das coisas” no mundo encenado, ele possivelmente se transforma (metaxis). 
Assim como o filósofo, é preciso que tenha coragem o ator ou espect-ator que 
queira mostrar a verdade “em sua luta contra a mentira e não como algo elevado 
e genérico” (BRECHT, 1973, p.56): tal coragem consiste no ato de palavra com 
o qual o sujeito revela-se para si e para a comunidade sem ser por isso sujeitado, 
ao contrário, subjetivando-se. Na manutenção do paradoxo do ator, que adentra 
simultaneamente dois planos de presença – eu e não eu, real e ficcional – 
consiste a chave da contribuição do Boal quando atribui ao ator uma radicalidade 
política totalmente oposta ao esvaziamento preconizado por Diderot (2000): ou 
seja, a adoção de formas de existência coerentes e indissociáveis do 
conhecimento adquirido, destinadas a promover uma transformação ontológica 
do ser humano, como nas escolas filosóficas antigas – com a diferença de que, 
ao passo que o iluminado cínico vive seu heroísmo até as extremas 
consequências e morre, o ator sobrevive ao seu ato de coragem e constrói 
coletividades. Como para a assembleia da pólis regida pelo princípio da 
isonomia, sem heróis e sem delegados, o ato de palavra valoriza o ator (em latim, 
actor, aquele que age) como ator social, ou seja, um cidadão que toma parte do 
comum pelo fato de governar e ser governado. 
 
Em A Estética do oprimido, Boal (2009) parte da consideração de que 
regimes simbólicos (como a estética monológica empossada pela indústria 
cultural na televisão, na publicidade e também no teatro) tendem a incorporar as 
desigualdades existentes no âmbito social, em sua apreensão do mundo 
sensível; sendo assim, é todo um sistema estético-político, não tanto a mimese 
que de tal sistema é uma das ferramentas, que precisa ser questionado. É 
justamente o que faz o espect-ator quando, transitando entre eu e não eu, real e 
possível, produz um deslocamento no regime de visibilidade e reconfigura a 
partilha do comum entre vozes autorizadas ou menos, competentes ou não. O 
movimento do espect-ator que se apropria da palavra e da cena questiona um 
dos fundamentos do sistema estético vigente na indústria cultural que Boal 
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significativamente chama de “império”, isto é, a pressuposição de que cidadãos 
destinados a governar e cidadãos os destinados a serem governados não teriam 
o mesmo equipamento sensorial nem a mesma inteligência simbólica. A busca 
incessante por um método (um arsenal de contra dispositivos), por parte do Boal, 
visa suspender esta dicotomia ativo-passivo que no teatro burguês corresponde 
à partilha da autoria entre atores-espectadores ou produtores-consumidores. 
Suas inovações técnicas são táticas empíricas (variantes, maneiras alternativas 
de fazer) que visam subtrair a arte do âmbito das mercadorias e devolvê-la ao 
âmbito da palavra, não no sentido convencional mas no sentido de comunicação 
expandida às dimensões visual, plástica, tátil e auditiva: palavra como potencial 
escrita do mundo, à qual todo cidadão igualmente tem direito. O que embasa o 
lance utópico do Boal é uma visão dialética de mundo, em movimento constante, 
em que qualquer indivíduo pode fazer sua própria história pois reconhece na 
opressão não um destino individual irremediável e sim uma construção social, 
com suas contradições e falhas; que pode ser reescrita. O teatro, isto é, a 
representação ficcional de determinada conjuntura real, justamente por causa 
deste duplo regime de visibilidade produzindo deslocamento e diferença, permite 
a análise do sistema e a multiplicação de experiências autênticas de luta contra 
a opressão. É um ensaio geral da revolução. Propriamente neste caso, é a 
técnica que fixa a exceção do teatro (da arte, em geral) como forma desalienada 
de trabalho, que elabora seu próprio sentido mesmo quando se repete. 
 
Cabe notar que, ao longo de todo o seu percurso político-teatral, Boal se 
mantém atento a não abastecer o sistema dominante, interrompendo 
constantemente seja a sua possível integração (como artista e intelectual, 
detentor de fama e de direitos autorais) e seja a abdução das técnicas pelo 
aparelho repressor (como no caso do teatro do oprimido virar produto contratado 
por empresas). Como aponta Walter Benjamin (1985), para manter a arte como 
arma na luta contra a opressão, para impedir que entre ao serviço dos regimes 
de consenso e totalitários, não basta liberar e multiplicar os meios de produção: 
é preciso refuncionalizá-los. Qualquer recurso (objeto físico ou sonoro, imagens, 
dados estatísticos, slogans, provérbios, lendas, histórias e até mesmo o ator com 
seu repertório gestual e verbal) pode se tornar material para um novo regime 
estético desde o momento que é desnaturalizado, isso é, analisado no contexto 
da opressão que simboliza ou produz. Qualquer espaço (praça, rua, salão de 
igreja, de escola, de hospital psiquiátrico ou sindicato, até mesmo um teatro) 
pode se tornar lugar de um novo regime estético desde que sejam suspendidas 
as normas de conduta ali aplicadas como dispositivos de manutenção da 
vigilância, do controle e da opressão. Qualquer arte (dança, pintura, poesia, 
instalação, canto e até mesmo representação) pode se tornar uma prática de 
presença que transgrede o mapa, suspende o sentido das condutas rotineiras e 
revela interrogações coletivas sobre qual sociedade o mapa hospeda e as 
condutas obedecem. A produção, dentro da cartografia oficial dos espaços, de 
outro “território humano”, mesmo que temporário e efêmero, mas livre de 
qualquer alienação, coerção e controle pois embasadoem características ideais 
de convivência, tal como isonomia, acessibilidade e livre expressão de desejos 
de transformação, parece constituir uma concreta estratégia de invenção de um 
outro mundo. Não porém um outro mundo imaginário, sem lugar real (uma 
utopia) mas, sim, um outro mundo concreto, “fora de todos os lugares reais 
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embora seja efetivamente localizável”, uma heterotopia (citando Foucault, 2009), 
onde a realidade se dá como é e, contemporaneamente, como poderia ser. 
 
Quando, nas cidades-estados gregas, a multidão (oi polloi) instituiu a 
política como assembleia pública, o fez deslocando seus corpos no espaço 
urbano aparelhado e interrompendo o fluxo ordenado do cotidiano com a tomada 
da palavra por parte de quem não tem parte no comum. Para desconcerto de 
Platão, a própria democracia em sua origem é um contradispositivo, uma 
irrupção da multidão dos oprimidos que revela um desajuste e dá visibilidade ao 
que era invisível, dá voz ao que não era ouvido, representa o irrepresentável, 
como aponta Jacques Rancière no Desentendimento (1996). Neste sentido, 
reformulando a pergunta da Gayatri Spivak (1992) sobre a possibilidade do 
oprimido (subaltern) falar, parece mais interessante indagar de que modo o 
subalterno pode ser ouvido. A resposta de Rancière diz respeito à reintrodução 
da dimensão política no espaço público, a partir da irrupção dos que não tem 
parte no comum, deslocamento que por si só desvela a pura contingência de 
qualquer ordem social e denuncia a ausência de qualquer fundamento para a 
opressão de um ser humano pelo outro e dominação de uma classe sobre outra. 
No Espectador emancipado, Rancière (2012) reconhece neste deslocamento de 
corpos e derrubada da distribuição convencional de lugares que ocorre quando 
subalternos tomam a palavra, na assembleia pública assim como no teatro, mais 
do que uma aventura intelectual: a “demanda de que o teatro alcance, como sua 
essência, a reunião de uma comunidade” (p.118). Tal potência de criação do 
comum – um território autônomo mesmo que temporário, onde todas as vozes 
podem ser ouvidas e todos os corpos serem representados como espect-atores 
de sua própria história – instituiria um novo estágio de igualdade, onde “os 
diferentes tipos de espetáculo se traduziriam uns nos outros, demandando 
espectadores que são intérpretes ativos, se apropriam das histórias e escrevem 
suas próprias histórias a partir daquelas” (p.118): uma comunidade emancipada. 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1993. 
ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002 
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge 
Zahar, 1985. 
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. 
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. 
BRECHT, Bertolt. Scritti sulla letteratura e sull'arte. Torino: Einaudi, 1973. 
DÉBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 
DIDEROT, Denis. Paradoxo sobre o comediante. In: GUINSBURG, Jacob. Diderot: Obras II. 
São Paulo: Perspectiva: 2000. 
FOUCAULT, Michel. Dits et ecrits, v.III. Paris: Gallimard, 1994. 
______. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 
2009. 
PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. 
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005. 
______. O desentendimento. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. 
______. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012. 
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Can the Subaltern Speak? In: WILLIAMS, Patrick; CHRISMA, 
Laura. (Eds.). Colonial Discourse and Post-Colonial Theory. New York: Columbia University 
Press, 1992. p.66–111. 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
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i Docente da Graduação ECO/UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena 
(PPGAC), ECO/UFRJ; pesquisadora do CNPq; dramaturga e diretora teatral. Contato 
eletrônico: alevannucci@gmail.com. 
ii Título em inglês: “Brecht, Boal and the courage of showing the truth”. 
 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
24 
 
BEZERRA, Antonia Pereirai. O Teatro do Oprimido na Empresa: Teatro Fórum 
& qualidade de vida do trabalhador. Salvador, BA, Brasil: Universidade Federal 
da Bahia (UFBA). 
 
RESUMO 
Este ensaio reflete sobre os problemas e aquisições do Projeto Teatro-Fórum 
e Dimensões Formativas desenvolvido na Empresa Baiana de Saneamento Básico 
(EMBASA) em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da 
Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA), o Serviço Social da Indústria 
(SESI) e a Federação das Indústrias do Estado da Bahia (FIEB). Visando à 
qualidade de vida do trabalhador e à melhoria das relações interpessoais no 
ambiente opressivo do trabalho na empresa, o projeto desenvolveu atividades 
ancoradas na Poética do Oprimido. Neste contexto específico, foram montados e 
apresentados três espetáculos-fóruns: “Cresça e Apareça”, sobre experiências de 
opressão dos funcionários da Indústria EMBASA; “Revolução na América do Sul”, 
texto de Augusto Boal; e “Máquina Escavadora”, inspirado no texto original de 
Armand Gatti. Envolto em muitas polêmicas e desconfianças, o projeto interrogou a 
possibilidade de aplicação da Poética do Oprimido com trabalhadores da indústria, 
num contexto em que as opressões sociais estão localizadas no ambiente de 
trabalho, nas relações trabalhistas. Como unir tal universo de exploração às 
poéticas de Boal e Gatti – dois homens de teatro e militantes – visando à promoção 
de uma “guerrilha de conciências”? 
PALAVRAS-CHAVE: Teatro: Opressão: Trabalho: Empresa: Teatro-Fórum. 
 
ABSTRACTii 
This essay reflects on the problems and achievements of project “Forum 
Theater” and educational dimensions developed in the Basic Sanitation 
Company in the State of Bahia (EMBASA), in partnership with the Post-Graduate 
Program in Arts of the Federal University of Bahia (PPGAC/UFBA), the Social 
Service of Industry (SESI) and the Federation of Industry of the State of Bahia 
(FIEB). Aiming at quality of life of the worker as well as the improvement of the 
Interpersonal relationships in the oppressive work environment within the 
company, this project developed activities based in the “Poetics of the 
Oppressed”. In this specific context were created and presented three forum-
spectacles: “Grow and appear” treats about oppressive experiences of 
employees in EMBASA industry; “Revolution in South American” is a text written 
by Agusto Boal; and “Excavator Machine” inspired by the original text of Armand 
Gatti. Wrapped in many controversies and mistrust, the project questioned the 
possibility of applying the Poetics of the Oppressed to industry workers, in a 
context where social oppression is located in the workplace, in labor relations. 
How to unite this universe of exploration to the poetics of two men of theater and 
militants Boal e Gatti, aiming at the promotion of a "guerilla of consciences"?. 
KEYWORDS: Theatre: Oppression: Work: Company: “Forum Theater”. 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
Em outubro de 2010, quando o SESI e a EMBASA nos convidaram para 
trabalhar, a partir da técnica do Teatro Fórum, questões de opressão dos seus 
trabalhadores com discussão das relações empregador versus empregado e a 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
25 
 
saúde no ambiente de trabalho, eu e minha equipe (duas doutorandas, duas 
mestrandas, três bolsistas de iniciação científica, uma bolsista de apoio técnico 
e demais voluntários alunos da Escola de Teatro da UFBA) abraçamos a causa 
e elegemos a empresa EMBASA como nossa comunidade de extensão. Essa 
relação durou 18 meses, durante os quais três espetáculos foram montados,estreitando os laços academia-empresa-comunidade e gerando a perspectiva 
de criação de um mestrado profissional nesse contexto específico. 
 
Assim, essa pesquisa, ancorando-se nos princípios da Poética do 
Oprimido, fomentou reflexões teóricas e práticas sobre temas referentes à 
qualidade de vida no trabalho, saúde do trabalhador, relações interpessoais, 
entre outros, a partir das sugestões dos funcionários da EMBASA e alunos da 
Escola de Teatro da UFBA envolvidos no projeto. Teve como resultado as 
montagens de três espetáculos teatrais, encenados pelo viés da técnica do 
Teatro-Fórum, gerando diversas apresentações em vários locais dentro e fora 
das instituições teatrais: Teatro do SESI, sala cinco da Escola de Teatro da 
UFBA, auditórios e anfiteatros da EMBASA, entre outros. 
 
 Ao integrar alunos do curso de Pós-Graduação em Artes Cênicas e da 
Graduação em Teatro – Cursos de Interpretação Teatral e de Licenciatura em 
Teatro – da Escola de Teatro da UFBA, o projeto contou com uma equipe de 
artistas e arte-educadores, responsáveis pelas atividades formativas e de 
montagens dos espetáculos-fórum. Ao lado dessa equipe central, convidamos 
um núcleo de psicologia coordenado pela psicóloga e pesquisadora Denise 
Lemos e uma médica e socióloga do trabalho, Tânia Franco, ambas professoras 
da UFBA. Também integraram a equipe de pesquisa do projeto dois alunos de 
Licenciatura em Teatro, e o aluno do bacharelado em interpretação teatral, todos 
bolsistas de iniciação científica. 
 
DO PRINCIPAL PROBLEMA ABORDADO 
 
Por seus objetivos e natureza, a referida investigação inseriu-se no 
contexto de desenvolvimento social, promovendo tanto a formação de plateias, 
quanto a iniciação científica de universitários (Alunos IC da Graduação em 
Teatro), secundaristas (alunos voluntários da rede pública de ensino) e 
trabalhadores da indústria desejosos de dizer algo por meio do teatroiii. O 
desenvolvimento deste projeto numa perspectiva práticaiv foi fundamentalmente 
determinado por sua dimensão pedagógica iminente e pelo impacto que os 
processos engendrados nesse gênero de “intervenção teatral” provocaram na 
relação entre o espectador e o ator. Além de dramaturga e professora de teatro, 
também atuei como atriz em “peças convencionais”, no âmbito de montagens 
ditas "comerciais e/ou profissionais". Em decorrência, minha curiosidade incitou-
me a interrogar o interesse por um teatro e formas teatrais que rompem com as 
convenções e distanciam-se, ainda que simbolicamente, do “anfiteatro do 
espetáculo” para retornar ou recuperar sua ancestral função libertadora e sua 
dimensão democrática. 
 
 As atividades teóricas e práticas do projeto e que implicavam tão somente 
a equipe formadora – doutorandas e mestrandas do PPGAC – foram iniciadas 
em outubro de 2010, quando procedemos à: 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
26 
 
 
 Revisão da tradução da peça, em dois atos, de Armand Gatti La Machine 
Excavatrice (A Máquina Escavadora); 
 
 Análise do texto de Augusto Boal, intitulado Revolução na América do Sul; e 
 
 Realização de experimentos cênicos através da técnica de teatro-fórum, a 
partir do texto A Máquina Escavadora. 
 
 DO ESTADO DA ARTE 
 
 Em meados de novembro de 2010, iniciamos as oficinas e encontros com 
os integrantes do EMBASART – funcionários da EMBASA e os alunos da 
Graduação em Teatro – Bolsistas IC e voluntários. Esses encontros e oficinas 
foram marcados pela aplicação dos jogosexercícios de Augusto Boal e ateliês 
de dramaturgia baseado nos textos de Armand Gatti. A partir dos modelos 
dramatúrgicos de Armand Gatti e dos jogos e técnicas propostos por Augusto 
Boal, para a concepção de espetáculos de Teatro-Fórum, com fins à instauração 
de uma “pedagogia da intervenção” junto aos trabalhadores da EMBASA e do 
SESI/Bahia, bem como à comunidade por extensão, desenvolvemos um projeto 
que se legitimou, tanto por sua dimensão prática, quanto por sua dimensão 
teórica. De fato, nessas perspectivas teatrais destacaram-se aspectos de uma 
prática teatral “transgressora”, suscetível de contribuir para o exercício da 
cidadania e para a transformação do individuo. Gatti e Boal, em suas “militâncias 
e engajamentos políticos”, ensejaram instaurar o espetáculo como festa, 
comunhão; o espetáculo enquanto “obra aberta”, permitindo ao cidadão ser, ao 
mesmo tempo, seu próprio espectador e ator. Há nessas poéticas, um 
movimento de resgate e preservação dos elementos de uma autêntica 
“celebração”. 
 
 Para Jean Duvignaud (1971, p.33), “o contrário do teatro não é o anti-teatro 
nem o teatro revolucionário, é a ‘festa’”v. Que a festa é um grupo que, com seus 
próprios meios, se “produz em espetáculo” é fato incontestável. A festa situa-se 
no “começo”, antes do teatro: ela representa a passagem da produção ao 
consumo. Gatti e Boal, pretendendo situar no mesmo plano o espectador e o 
ator, a pessoa e a personagem, propõem uma “redemocratização do teatro”, pela 
reivindicação de um evento similar à festa e, também, pelo questionamento das 
relações de produção-consumo. Em suma, eles tentam “instaurar uma produção 
livre”: a do homem se produzindo com seus próprios meios, diante de outros 
homens, longe de “quaisquer diferenças”. 
 
 De certa maneira, as poéticas de Gatti e Boal, ao reivindicarem um teatro 
político e “popular”, esforçam-se para denunciar o sistema pelo qual a “cidade” 
lançava e lança, ainda, uma armadilha ao cidadão-espectador. Com efeito, são 
práticas engajadas na transformação do coletivo e do individual. Apesar da 
nossa pesquisa ter comportado tradução de texto, nosso interesse principal 
recaiu nas concepções de “jogo teatral” imanentes a essas poéticas. Ora no 
nosso contexto específico – alunos da graduação e Pós-Graduação X 
trabalhadores da Indústria, funcionários da EMBASA - foi o “jogo teatral” que 
cristalizou as relações ambíguas e, às vezes, equívocas que estes teatros 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
27 
 
mantêm com o espectador e o problema da representação teatral. Este estudo 
se inscreveu, portanto, na perspectiva de um “novo distanciamento teatral”, pois 
que articulou a análise da criatividade formal à análise da criatividade 
espontânea; estabeleceu paralelos entre os planos teórico e prático, o trabalho 
do ator-personagem e o do espectador-pessoa. 
 
 Ao longo dos tempos, o teatro e a linguagem sempre foram objetos de 
conflitos entre as classes dominantes e as classes dominadas, entre 
profissionais e amadores; conflitos de ordem teórica, política e econômica. 
Empreender um estudo dessa natureza significou ressuscitar a velha querela 
entre o novo e o moderno, entre os especialistas e os não especialistas. 
Portanto, não pudemos descartar, neste percurso, a comparação com outras 
vertentes teatrais passadas e contemporâneas. E nesse trajeto pontuamos ecos 
e interfaces, diferenças, semelhanças e analogias com outros autores e outras 
áreas do conhecimento. Pela interpretação dos elos e parentescos com outras 
práticas, outros diretores unimos esses diferentes aspectos, numa preocupação 
de homogeneidade, justificada por uma espécie de “anatomia comparada” e em 
função das variantes e semelhanças que nos foi possível discernir, posto que 
necessário nos pareceu analisar as relações que a arte teatral tenta empreender 
com a vida; refletir sobre o papel e a maneira de praticá-la, na perspectiva da 
implicação do espectador e do ator, questionando assim as noções de 
intervenção, de ator e de espectador. 
 
 Igual empreendimento exigiu uma atenção e vigilância constantes. Ora, 
uma investigação dessa natureza, ancorada em poéticas nas quais o “ator social” 
pretende desnudar o “ator teatral”, apontando o problema de seus destinos 
comuns, pressupôs, da nossa parte, uma técnica teatral elaborada e aliada a 
uma consciência política clara. O fato de permanecermos atentos, nesse sentido, 
nos levou a evitar manipulações ideológicas e, sobretudo,a impedir o sacrifício 
do rigor estético em detrimento da militância e do imediatismo das opressões 
debatidas. Esse foi um grande desafio, uma dimensão pensada ao longo de toda 
a pesquisa. Tratou-se realmente de uma pedagogia da e pela intervenção teatral. 
 
 De fato, nessas práticas “distanciamento” e “identificação” se fundiram a tal 
ponto que se tornou difícil delimitar as fronteiras entre teatro e vida, espectador 
e ator, pessoa e personagem. Foi nessa perspectiva que tentamos identificar o 
que subjazia às concepções boalianas e gattinianas de jogo, de emoção, de 
identificação e de distanciamento crítico do espectador-ator em relação à 
personagem, bem como suas incidências concretas no exercício da cidadania e 
na luta real pela liberação das opressões sociais cotidianas. 
 
 Nesse contexto especícifico que unia alunos da Graduação e da Pós-
Graduação em Artes Cênicas e trabalhadores da indústria para os quais as 
opressões sociais estavam localizadas no ambiente de trabalho, nas relações 
trabalhistas, os dois autores da pesquisa e suas militâncias foram cruciais para 
a promoção de uma “guerrilha de conciências”. Num primeiro tempo, montamos 
um Fórum sobre as opressões do cotidiano dos trabalhadores da EMBASA. Essa 
experiêcia de criação dramatúrgica e cênica coletivas resultou no Espetáculo 
“Cresça e Apareça – o qual estreou em abril de 2011. O segundo espetáculo foi 
sobre o trabalhador e a globalização – a montagem do texto de Augusto Boal, 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
28 
 
“Revolução na América do Sul” – o qual estreou em novembro de 2011. Por fim 
a partir do texto de Armand Gatti e sempre pelo viés do Teatro-Fórum, montamos 
o texto “Máquina Escavadora” – o qual estreou em maio de 2012. 
 
 Como Boal, Gatti (1982) considera que o fato de querer comunicar algo 
pronto ao público, significa que ele não tem nada a dizer ou, o que pode ser pior, 
significa querer FAZER e DIZER no seu lugar. Nesta ótica, abandonar o “espaço 
utópico do teatro” não é suficiente em si. Torna-se igualmente necessário mudar 
a mentalidade, pois para o autor, esta arte (...) seja de direita ou de esquerda 
[apresenta-se] como o mesmo e velho teatro reacionário. A técnica do teatro-
fórum promoveu uma união harmoniosa com a dramaturgia de Gatti e seu 
pequeno Manual de Guerrilha Urbanavi. Ora, a "guerrilha" sugerida e ensinada 
pelo Pequeno Manual é antes de tudo uma guerrilha de consciências, um convite 
a assumir e conduzir a termo seu próprio destino, um convite a ser criador. “Nós 
defendemos o seguinte princípio: cada homem é um criador, exclama" um ator 
de Máquina Escavadora (GATTI, 1970, p.221). Em termos formais e estruturais 
Máquina Escavadora, como todas as peças do Pequeno Manual, é atual e 
constitui significativo e rico material didático e de reflexão sobre as noções de 
cidadania, de individualidade e coletividade. Como no Teatro do Oprimido, não 
se exige do cidadão-ator ou do cidadão-espectador que se tornem criadores. 
Eles já o são. O problema é que os obstáculos e as barreiras são tantos e tão 
sólidos que os mesmos não têm consciência de serem criadores potenciais. 
 
 Todo combate, toda a utopia do Pequeno Manual consiste nessa tarefa de 
conscientização, nesse combate político e teatral. Como no teatro-fórum, a 
realidade é a mesma para o Teatro e para a Cidade. E é, exatamente, por essa 
razão que não somente Máquina Escavadora, mas todas as mini-peças do 
Pequeno Manual, tentam engajar o espectador, contam com suas intervenções. 
Para além da época e de sua dimensão político pedagógica, O Pequeno Manual 
constitui um projeto didaticamente aplicável, adaptável às preocupações sócio-
políticas e artístico-culturais dos alunos da Graduação e Pós-Graduação em 
Artes Cênicas da UFBA e dos trabalhadores da Indústria – os integrantes do 
EMBASART. Nem Gatti, nem Boal renunciaram aos trabalhos de escrita pessoal. 
Em suas “missões”, cada experiência constituiu um apelo à transformação do 
mundo: através do verbo para Gatti e através do ato para Boal. Ambos os 
autores não conceberam seus sistemas em termos de “utopia”, mas sim, em 
termos de “ativismo”. Quando nos referimos aos loulousvii de Gatti ou aos 
oprimidos de Boal, não evocamos os termos “fuga” ou “amadorismo”, e sim os 
termos “espectadores ativos”, uma vez que esses autores exortam atores e 
espectadores, formulam, através de técnicas dramatúrgicas ou de jogo teatral, 
um convite a “transformar o mundo”, recompensando uma escrita e uma ação 
oriunda da “realidade”, da “trama da existência”. 
 
DO CONTEXTO ESPECÍFICO DA PESQUISA E SEUS IMPACTOS 
 
Pontualmente e sob minha coordenação, o respectivo projeto, ancorado 
na técnica do Teatro do Oprimido - o Teatro-Fórum - de Augusto modificou e 
reavaliou as relações dos membros do grupo EMBASARTviii, bem como os 
produtos estéticos do EMBASART. As peças teatrais produzidas pelo 
EMBASART, até então, procuravam aliar informação, entretenimento e 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
29 
 
responsabilidade social, levando ao público a missão e os valores da Empresa 
Baiana de Água e Saneamento. As apresentações eram estruturadas com o 
objetivo de alertar e conscientizar a população da necessidade de preservação 
dos recursos naturais, além de trabalhar institucionalmente temas como 
aposentadoria, segurança no trabalho, pregão eletrônico e atendimento ao 
cliente interno e externo. Desde outubro de 2010, o grupo ganha outra 
configuração organizacional ao aceitar desenvolver um projeto voltado para a 
saúde do trabalhador, enveredando, para tanto, nos princípios e técnicas da 
Poética do Oprimido. Nessa perspectiva, o Núcleo de Arte- NARTE, através do 
Programa de Qualidade de Vida do Trabalhador, aceitou, em parceria com o 
SESI, a respectiva empreitada, promovendo, entre outras importantes ações: 
 
 A iniciação do grupo EMBASART na Poética do Oprimido; 
 
 Experimentação da técnica do Teatro-Fórum, fomentando reflexões 
teóricas e práticas sobre temas referentes à qualidade de vida, motivação para 
o trabalho, saúde nas relações interpessoais, Opressão no trabalho e saúde do 
trabalhador, entre outros tópicos sugeridos pelos funcionários envolvidos no 
projeto; 
 
 Produção de três espetáculos teatrais durante um ano e meio, com 
participação ativa dos integrantes do grupo, gerando diversas apresentações 
em vários locais dentro e fora das instituições teatrais; 
 
 Sistematização e registro da experiência do grupo, através de publicação 
de um livro e edição de um DVD sobre os processos e produtos da pesquisa, 
como material educativo. 
 
Tais objetivos fizeram do projeto, uma iniciativa pioneira e situou o 
SESI/DR-BA e a EMBASA na posição de empresas inovadoras no enfoque da 
qualidade de vida do trabalhador, através da arte. O ensejo maior consiste 
agora em induzir a ampliação da experiência - a aplicação teórica e prática da 
proposta em outras empresas. Ora, com a prática evidenciou que tal 
experiência pode ser levada a qualquer empresa interessada em questões 
como qualidade de vida do trabalhador, relações interpessoais na instituição, 
questões trabalhistas e desenvolvimento do senso de cidadania e autoestima. 
 
DOS ESPETÁCULOS MONTADOS 
 
O primeiro espetáculo, Cresça e Apareça, discutiu as relações no 
trabalho, a partir de improvisações e roteiros elaborados em processos de 
criação coletiva, cujo tema principal consistia na avaliação funcional. Cresça e 
Apareça, por razões estilísticas e, sobretudo, porque estávamos iniciando o 
grupo EMBASART nas técnicas e teorias do Teatro do Oprimido, foi um 
espetáculo de custo zero e absolutamente despojado em termos cenográficos, 
de caracterização de figurino, maquiagem e de iluminação. Sem cenário e com 
figurino básico (blusa e calça de malha preta); maquiagem neutra e concepção 
de luz básica, Cresça e Apareça investiu no treinamento vocal e corporal dos 
atores, preparando para uma concepção mais sofisticada– em termos de 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
30 
 
figurino, cenário, luz e adereços - que caracterizaria as duas outras montagens 
vindouras. 
 
CRESÇA E APAREÇA 
 
O argumento principal dessa trama foi a opressão sofrida por Ana Maria, 
uma representante sindical. Com cerca de vinte anos na Empresa Lado B 
Produções, Ana Maria se vê diante do conflito de ter que aceitar uma avaliação 
funcional da qual discorda. No decorrer da trama são apontados diversas 
formas e mecanismos de opressão, evidenciadas através de uma personagem 
opressora, a gerente geral da empresa, Doutora Leonor, que lhe dá um ultimato: 
“ou assina a sua avaliação funcional ou será transferida para o setor de xérox”. 
Neste caso o setor mencionado, além de rebaixar a atuação profissional da 
oprimida, tem atribuições completamente divergentes da formação e 
habilidades da funcionária. No momento preciso em que a situação de opressão 
atinge o clímax, o ultimato dado por sua superiora - Dra. Leonor, o espetáculo 
é interrompido com a intervenção do Curinga. 
 
Mediando o jogo, o curinga, através de suas exortações, coletivamente, 
propõe a busca de soluções provenientes do público para que a personagem 
Ana Maria atinja seus objetivos, quais sejam: conseguir que sua superiora 
efetue uma revisão de sua avaliação funcional. O papel do Curinga é 
desempenhado pela doutoranda Cilene Candaix. O anti-modelo desse 
espetáculo-fórum foi construído, a partir do tema da avaliação funcional, 
inspirado em experiências do grupo. No coração da construção desse anti-
modelo, uma protagonista oprimida, cuja análise funcional da qual discorda, foi 
negativa e violenta, pois que pautada em critérios aleatórios e absurdos, 
sobretudo em face “dos muitos anos de dedicação à empresa”. A angústia 
vivenciada pela protagonista acentuou-se, durante o processo, em seus 
movimentos contraditórios. Outra questão bastante problemática foi a 
sucessiva troca do nome da empresa fictícia, Lado B Produções, por nomes em 
que a sonoridade revelava sempre e inexoravelmente o grupo consonantal MB. 
Um extraordinário trocadilho, denunciativo de uma provável associação com a 
empresa original, a EMBASA. O fato revelou o quanto a questão da avaliação 
funcional foi vivida de maneira dolorosa pela atriz e pelo grupo como um todo. 
 
REVOLUÇÃO NA AMÉRICA DO SUL 
 
Contrariamente à Cresça e Apareça, essa segunda montagem foi 
realizada com alto rigor e exigências estéticas mais sofisticadas, reivindicando 
em seus processos e produtos profissionais concepções mais elaboradas de 
luz, cenário, figurino, preparação corporal, vocal e musical – arranjos, 
preparação coral e execução da trilha sonora. Revolução na América do Sul, 
texto de Augusto Boal, escrito no início dos anos 60, inaugura, à época, uma 
nova estética no Teatro Arena de São Paulo. Com este texto há, por parte de 
Boal, um abandono da “dramática”, em prol de um investimento no gênero 
cômico, porque não dizer farsesco – opção esta que viabilizava ao autor a 
inserção da narrativa épica, a mais adequada para provocar o efeito de 
distanciamento – Verfremdung, de Bertolt Brecht. 
 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
31 
 
A trama de Revolução Na América do Sul problematiza as tensões na 
relação capital/trabalho, por meio das mediações sociais existentes. Assim, o 
operário brasileiro e a situação econômica e social, à qual ele está submetido, 
é o motor principal. A fábula gira em torno da saga de José da Silva, operário 
e homem simples do povo. Fiel aos princípios brechtianos, a peça é episódica, 
ou seja, dividida em quadros. Em todos os quadros o único objetivo de José é 
conseguir comida e a cada quadro do texto ele passa por uma situação 
inusitada que ilustra a situação do operário brasileiro. No final da história, José 
morre engasgado com a primeira colherada de comida. 
 
A ENCENAÇÃO DE REVOLUÇÃO NA AMÉRICA DO SUL 
 
Para a adaptação do texto à encenação com o EMBASART, 
preservamos, entretanto, apenas nove quadros. A peça inicia-se com os 
atores/trabalhadores da EMBASA cantando o Hino Nacional e um corifeu 
anunciando que a Revolução vai começar. Em seguida, distribuído nesses nove 
quadros, temos José da Silva, seu opressor principal, o patrão, e seus 
opressores secundários: a mulher, o feirante, os parlamentares e o próprio 
Zequinha, amigo, mas informado e menos alienado que José, o qual o incita a 
fazer a Revolução em vez de pedir aumento. Na verdade José da Silva é meio 
que expulso de casa pela mulher, com a ressalva de que não adianta voltar, 
sem antes pedir aumento ao patrão. José, apesar do medo, consegue solicitar 
o tal aumento, mas é expulso do escritório do patrão – representado por uma 
grande sombra projetada numa parede branca e uma voz imponente – pelo 
imenso e amedrontador capanga deste último. 
 
Na saída, ao lamentar-se com Zequinha do seu fracasso, José da Silva 
descobre que o salário foi aumentado, mas em sua peregrinação jornada 
adentro, constata que o preço de tudo também aumentou. De que adianta o 
aumento do salário, se tudo aumenta junto? Quem é o culpado por tanto 
aumento? De parlamentar à feirante, passando por borracheiros e outros 
capitalistas, José da Silva, não encontrando respostas à sua pergunta, 
convencido por Zequinha, decide participar da Revolução. Marca-se dia e 
horário numa boate, ambiente isento de suspeitas. No entanto é nesse 
ambiente que José, abandonado pelos companheiros de luta é surpreendido - 
pelo patrão, em primeiro lugar, e depois pela própria mulher - segurando uma 
bandeira vermelha com a insígnia REVOLUÇÃO! 
 
O espetáculo interrompe-se com a máxima: você escolhe, ou faz a 
revolução ou está demitido! - acompanhado dos apelos desesperados da 
mulher que relembra a José os filhos com fome. As luzes se apagam, o curinga 
ocupa a dianteira da cena. Como se trata de um texto convencional adaptado 
ao Fórum, algumas imagens (a prática do Teatro Imagem), para facilitar a 
passagem ao Teatro-Fórum, são propostas. Essas imagens, quatro no total, 
retratam e condensam os principais momentos de opressão infligidos pelos 
opressores de José: A Mulher (imagem 1), O feirante (imagem 2), Os 
Parlamentares (imagem 3) e o Patrão (imagem 4). 
 
 
 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
32 
 
REVOLUÇÃO NA AMÉRICA DO SUL: O PROCESSO 
 
“Revolução na América do Sul”, texto ainda pouco montado e estudado 
no Brasil constituiu um material didático promissor, pelas questões sócio-
históricas e políticas que suscitou nos integrantes do EMBASART. A montagem 
além de evidenciar o cenário, figurinos, luz, música – ressaltou também o 
trabalho de preparação do ator inspirado nas técnicas da Commedia Dell’Arte, 
particularmente com a intenção de ressaltar a dimensão episódica do texto e 
facilitar a técnica do distanciamento brechtiano na interpretação dos atores. Os 
principais personagens opressores usavam máscaras e tinham gestuais e 
deslocamentos coreográficos bem precisos. 
 
Ademais, o modelo dramatúrgico da intriga de Revolução Na América do 
Sul foi bastante similar ao anti-modelo dramático do espetáculo fórum – 
apresentando, em suas situações dramáticas, o conflito constante entre 
opressores e oprimidos. Este aspecto autorizou com maior serenidade a 
adaptação do texto à técnica do teatro fórum. No espetáculo-Fórum que se 
seguiu às apresentações da peça, os espect-atores, inicialmente tímidos, 
ganhavam a cena e jogavam o jogo, maravilhados e entusiasmados com a 
ficção, seus labirintos e artifícios. 
 
MÁQUINA ESCAVADORA 
 
Obedecendo aos mesmos princípios e objetivos que nortearam o 
processo e o produto de Revolução na América do Sul, Máquina Escavadora 
contou com concepções sofisticadas para figurino, cenário, sonoplastia, 
preparação corporal, vocal e coral. Com a experiência e lastros adquiridos pelos 
atores no processo de montagem do primeiro espetáculo, Cresça e apareça – o 
ensejomaior para essas duas últimas montagens era unir nossas preocupações 
estéticas: teatro de ação, improvisação à perfeição artística, imprimindo assim 
um aspecto profissional aos processos e produtos da pesquisa. 
 
Assim, esse terceiro e último espetáculo foi livremente inspirado no já 
referido texto de Armand Gatti, La Machine Excavatrice. A fábula original de 
Gatti gira em torno da história de Totuy e Marianne, um guerrilheiro e uma 
profissional de meteorologia, que tiveram no passado um relacionamento 
afetivo. No presente, Totuy se encontra em Cuba, à frente da colônia de invasão 
Che Guevara, e Marianne, na França, exercendo sua profissão. Ambos se 
perguntam se é ou não possível prosseguirem nesta relação, já que se 
encontram tão distantes e têm projetos de vida tão diferentes. Esta discussão 
do casal tem lugar, se não num plano onírico, no mínimo numa dimensão 
poética, considerando que os dois se encontram em locais distantes e distintos 
e que misturam às suas considerações, diálogos do passado e do presente. 
 
Os companheiros de Totuy se opõem veementemente ao romance, por 
considerarem a luta armada incompatível com uma relação dessa natureza. Em 
dado momento os atores abrem a discussão para os espectadores, que passam 
a opinar, através da votação e da participação direta na cena. Máquina 
Escavadora ou para entrar no plano de implantação da Colônia de Invasão Che 
Guevara, comporta 5 personagens: Totuy, aliás Diaz, o Capitão cubano, 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
33 
 
Mariane, sua mulher, Cecil, Dionige, Rogelio - camaradas de Totuy. A peça 
subdivide-se em quatro espaços, norte, sul, leste, oeste, todos localizados e 
decorados com os diferentes elementos de uma máquina escavadora. 
 
Nesta trama, os personagens não se falam diretamente, eles se contam. 
A rigor, Máquina Escavadora pode ser definida como uma peça de cinco 
personagens que se contam diante do público. Em sua tentativa de integrar à 
linguagem teatral, formas que, a priori, não são teatrais, esta solução surgiu para 
Gatti como a mais viável. O debate de La Machine Excavatrice gira em torno da 
pertinência da relação do casal protagonista da ação, Totuy e Marianne. Essa 
característica do texto nos autorizou - através da imagem caleidoscópica (outra 
técnica do T.O descrita na Obra Arco-íris do desejo) a encontrar ecos e 
semelhanças de situações de impasses ou de divisão, as quais desencadearam 
a reconstituição/rememoração de situações concretas de opressão nos 
integrantes do EMBASART. 
 
No espetáculo-Fórum resultante, os membros do EMBASART contaram 
em cena situações de opressões de - gênero, raça, cor, sexo - padecidas no 
ambiente de trabalho. Nessa perspectiva, espectadores e atores definiram 
conjuntamente os rumos do próprio espetáculo. O trabalho do EMBASART 
iniciou-se com a encenação de opressões reais, afirmou-se com a encenação 
de um texto dramatúrgico convencional e finalizou partindo de um texto para 
chegar às opressões reais. O movimento cíclico consistiu, então, em partir da 
vida à ficção; da ficção à vida. Quem reinventou o quê? Tal experiência 
comprovou que é possível unir objetivos políticos e ideológicos: teatro de ação 
com improvisação e perfeição artística. 
 
DOS OBJETIVOS ALCANÇADOS 
 
 Nossos objetivos iniciais, relembremos, consistiam em: 
 
- refletir sobre a dimensão pedagógica destas poéticas e seus aspectos de 
intervenção social; 
 
- identificar e/ou apontar os elementos universais inerentes ao teatro desses 
autores: aspectos políticos, sagrados, ritualísticos – a instauração da festa e a 
natureza democrática da arte do teatro; 
 
- estabelecer ecos e interfaces com práticas passadas e contemporâneas. 
 
 Ao atingir tais objetivos, efetuamos em termos práticos e teóricos: 
 
- uma revisão, a partir dos três espetáculos-fóruns montados, do secular e 
polêmico conceito (ou paradoxo) de mímesis; 
 
- questionamos os pressupostos teóricos presentes nas poéticas de Gatti e Boal 
e suas contribuições e incidências concretas na realidade dos sujeitos 
implicados nessa pesquisa (trabalhadores da EMBASA e do SESI/Bahia). 
 
 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
34 
 
DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
 De maneira geral, esta pesquisa não se limitou à genealogia das técnicas 
utilizadas por Boal e Gatti, nem às montagens de espetáculos-fórum, somente, 
mas interrogou o campo de ação e o objeto concreto dessas poéticas: arte, 
política, ou terapia? À luz de teorias semiológicas, literárias, sociológicas e até 
psicológicas, a pesquisa compreendeu três etapas precisas; estruturou uma 
problemática que considerou: a relação ao engajamento político do sujeito 
implicados (trabalhadores da indústria, alunos da graduação e da pós-graduação 
em artes cênicas); e a relação pedagógica: “educação e libertação do ator-
espectador-pessoa”; 
 
 Conforme assinalado desde o início, tratou-se de uma pesquisa teórico-
prática que culminou em performances e encenações ao final do processo. A 
pesquisa teórica, além do estabelecimento de uma rede de conceitos 
fundamentais, comportou um levantamento dos elementos significativos do 
quadro histórico sócio-político-econômico e artístico-cultural no qual emergiram 
e afirmaram-se as práticas de Boal e Gatti. Nesse sentido sempre adaptamos 
tais elementos à atualidade e à realidade dos sujeitos implicados. 
 
 O título desta conferência questionou-me enquanto pesquisadora, artista e 
professora de teatro. Tendo em vista que, antes de trabalhar com a comunidade, 
trabalhadores da EMBASA/SESI-Bahia, tenho uma atuação predominante e 
afirmativa na graduação e na pós-graduação em Artes Cênicas, com indivíduos 
que aspiram a uma especialização e/ou a uma profissionalização, não pude 
escapar de, através deste projeto, alimentar outra ambição. Nessa perspectiva, 
interroguei-me acerca da natureza e dos fins desta investigação/intervenção. 
 
 Tratou-se de tornar os trabalhadores da indústria em melhores 
espectadores, amadores esclarecidos e mais exigentes ou transformá-los 
igualmente em «atores» sociais e teatrais? O que realmente esperamos de seus 
comportamentos sociais ao engajá-los em montagens e produções de 
espetáculos-fóruns? Devíamos ter-lhes ensinado, de uma só vez, que o teatro é 
uma dimensão substancial do ser humano, o Solar e o Lunar, Apolo e Dionísio, 
a clareza de espírito e as profundezas noturnas do ser? 
 
 Não foram meras interrogações, mas questões essenciais, que impregnam 
a nossa vida no que ela possui de mais trivial e concreto e também no que ela 
possui de mais metafísico. E o teatro interrogou esses “atores” em seus corpos 
e espíritos. Mas não se tratou de estabelecer um equilíbrio estático entre Apolo 
e Dionísio ou, para retomar as oposições binárias, de colocar um pouco de 
«papel» e um pouco de «personalidade»; um pouco de Artaud e um pouco de 
Brecht, sob pena de confundirmos dois enfoques absolutamente distintos: o da 
arte e a da vida cotidiana. 
 
 Antonin Artaud (1973, p.166, tradução nossa), nesse domínio, nos propôs 
um modelo: a personagem de Héliogabale: ao mesmo tempo, Deus e Homem, 
astro solar e astro lunar, homem e mulher “é a religião de Um que se rompe em 
Dois, para agir, para ser”. Talvez seja seguindo os gregos ou Héliogabale, 
trabalhando a partir de duas atitudes opostas - Brecht e Artaud - que o teatro 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
35 
 
pode nos ajudar a AGIR e a SER, o que é, segundo Brecht (1972, p.84), 
diametralmente oposto à vida da personagem: “é alguém com quem os outros 
vivem e de que vivem os outros. Ë alguém que não vive realmente e possui 
apenas a ilusão de viver (...) Ela é, por assim dizer, vivida”. 
 
 Seguir quem acredita que «o homem-espectador» pode ser o criador e 
mestre do destino do «homem-personagem», quem clama, como Boal (1991,p.11) “Não digam! Venham em cena e mostrem-nos suas visões do mundo“, ou 
quem prefere, como Gatti, ir ao encontro dos «atores da realidade» e reapropriar-
se com eles do “poder da linguagem teatral” para tornarem-se "criadores", seria 
uma opção eficaz?. Com certeza a dimensão prática desse projeto respondeu a 
algumas dessas importantes questões. Ela já afirmou a dimensão solidária e 
democrática dessa arte ao reunir, universitários e trabalhadores da indústria num 
só projeto, nu só intento: o de jogar e discutir questões político-sociais, questões 
das relações no trabalho e da saúde do trabalhador através do teatro. 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
ARTAUD, Antonin. Oeuvres complètes. Tome II. Paris: Gallimard, 1973. 
BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rios de Janeiro: Garamond, 2008. 
______. Jogos para Atores e não atores, com vontade de dizer algo através do teatro. Rio de 
Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. 
______. Teatro do Oprimido e outras políticas, 6ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 
1991. 
BRECHT, Bertolt. L’achat du cuivre. Paris: L’Arche, 1972. 
DUVIGNAUD, Jean. Le Théâtre et après. Tournai: Casterman, 1971. 
GATTI, Armand. On a theatrical event. Modern Drama, v. XXV, n. 1, 1982.Jean 
______. Oeuvres Théâtrales. Tome II. Lagrasse: Editions Verdier, 1970. 
i Atriz e dramaturga; Pós-Doutora em Dramaturgia pela Université du Québec à Montréal 
UQAM; Professora Associada IV da UFBA; Pesquisadora 1C do CNPq e Coordenadora da 
Área das Artes na CAPES. Contato eletrônico: apereira@ufba.br. 
ii Título em inglês: “The Theatre of the Oppressed in the company: ‘Forum Theater’ and quality 
of life of the worker”. 
iii Alusão ao subtítulo de uma das obras de Augusto Boal (1988): Jogos para Atores e não 
atores, com vontade de dizer algo através do teatro. 
iv O aporte principal desta pesquisa foi, portanto, a validação pela experiência prática, das 
hipóteses levantadas no plano teórico e/ou o surgimento de novas hipóteses que emergiram 
desta prática. 
v Tradução minha. "le contraire du théâtre, ce n'est pas l'anti- théâtre, ou théâtre 
révolutionnaire, c'est la fête". 
vi Reunião de Peças políticas do autor comportando um número pequeno de personagens e 
com estrutura cênica transportável e adaptável aos mais diversos lugares e espaços para sua 
representação. O Título Pequeno Manual de Guerrilla Urbana é uma irônica resposta ao 
Prefeito de Paris, que em maio de 1968 declarou, referindo-se aos artistas que manifestavam 
nas ruas - dentre os quais Gatti: nós tivemos que lidar com verdadeiros profissionais de 
guerrilha”. 
vii Gatti trabalha, sobretudo, nas prisões de Toulouse, Marseille e Strasbourg. Loulous é o termo 
carinhoso para se referir a esses “atores sociais”, enclausurados, para quem talvez a 
linguagem (teatral) possa se constituir numa via de libertação. 
viii Grupo de Teatro formado pelos os funcionários da EMBASA. 
ix Sob minha orientação Cilene Canda defendeu tese de doutorado no PPGAC/UFBA intitulada 
Todo mundo pode fazer teatro: o teatro do oprimido e a formação político-estética de 
trabalhadores da indústria. 2013. 263fl. Dissertação – Universidade Federal da Bahia, 
Salvador, 2013. 
 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
36 
 
SANTOS, Bárbara Tavares dosi. A experiência do Teatro do Oprimido dentro 
do Projeto “Ô de casa!”: intercâmbio de saberes e culturas entre os cursos de 
Licenciatura em Teatro e Educação do Campo da UFT. Arraias/Palmas, TO, 
Brasil: Universidade Federal do Tocantins (UFT). 
 
RESUMO 
Este breve artigo trata do relato de uma experiência de Teatro do Oprimido 
que foi vivenciada na cidade de Arraias, Tocantins, em setembro de 2014. As 
práticas (que envolveram jogos, debates e a apresentação de uma Cena de 
Teatro Fórum), foram realizadas dentro do Projeto “Ô de Casa!”. Busca-se 
enfocar no relato, reminiscências da experiência vivida, e, a partir delas, propor 
reflexões sobre possíveis contribuições que a prática do Teatro do Oprimido, 
dentro de um projeto voltado à troca de saberes, pode suscitar na formação dos 
futuros professores de artes que irão atuar nas áreas urbanas e rurais do estado 
do Tocantins. 
PALAVRAS-CHAVE: Teatro do Oprimido: Memória: Formação de professores: 
Intercâmbio de saberes. 
 
ABSTRACTii 
This short paper is an experience report with the Theatre of the Oppressed 
Theatre in the city of Arraias, Tocantins, at September 2014. The practice, 
(involving games, debates and the presentation of a Forum play) were held within 
the project “Ô de casa!”. The aim is to hang in reminiscences account of lived 
experience, and from memory to reflect on possible contributions to the practice 
of Theatre of the Oppressed, together with the exchange of knowledge, may raise 
the formation of future arts teachers who will work in urban areas and rural of 
Tocantins state. 
KEYWORDS: Theatre of the Oppressed: Memory: Teacher training: Knowledge 
exchange. 
 
 
O Projeto “Ô de casa!” 
 
A experiência do Teatro do Oprimido relatada neste artigo foi uma das 
ações realizada dentro do Projeto “Ô de casa!” na cidade de Arraias, Tocantins, 
no mês de setembro 2014. A ação faz parte das práticas artístico-pedagógicas 
que estão sendo desenvolvidas na Universidade Federal do Tocantins (UFT), 
com a parceria entre docentes e discentes do curso de Licenciatura em Teatro 
de Palmas e do Curso de Educação do Campo de Arraias. O projeto é promovido 
pelos colegiados dos referidos cursos e conta com o apoio financeiro e 
institucional da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFT. 
 
A proposta emergiu do desejo dos docentes por intercambiar saberes e 
culturas produzidas nas diferentes realidades dos campis que abrigam os cursos 
de licenciatura em artes da UFT. Entre os objetivos do projeto estão: 
i)proporcionar um intercâmbio de saberes entre universidade e comunidade, 
ii)contribuir com o processo de formação estética, política e social dos futuros 
professores de artes que irão atuar no estado do Tocantins e iii)fortalecer os 
diferentes saberes e as práticas artísticas que já são patrimônios culturais e 
históricos da cidade de Arraias. 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
37 
 
 
As práticas com o Teatro do Oprimido foram realizadas na sede do 
campus da UFT de Arrais/Polo UABiii, e na Praça Joaquim de Sena e Silva, no 
centro histórico da mesma cidade. Participaram das atividades, docentes e 
discentes do curso de Licenciatura em Teatro do campus de Palmas e, do curso 
de Educação do Campo e de outras licenciaturas do campus de Arraias. A oficina 
teatral foi ministrada pela autora deste trabalho, tendo como mediadoras as 
professoras Daniela Gomes e Sílvia Tavares, ambas idealizadoras do projeto. 
As atividades duraram dois dias, contando com 18 participantes entre 20 a 45 
anos, tanto do sexo masculino quanto do feminino, abarcando no grupo, 
inclusive, indivíduos de classes populares. 
 
Fragmento de memória: uma escolha estético-afetiva 
 
Dando seguimento ao relato, passo a fazê-lo em forma de fragmento de 
memória, porque, como Walter Benjamin nos diz, “a memória é a mais épica de 
todas as faculdades” (1994, p.210). Ela é o fragmento do Todo que nos permite 
apropriarmos do curso das coisas vividas, por um lado, e resignarmos, por outro 
lado, com o esquecimento das coisas. Porém, não se trata aqui apenas de uma 
crônica de impressões vividas e/ou esquecidas, mas, da exposição de traços de 
reminiscências que atravessam instâncias individuais e coletivas. Ou seja, 
fragmentos de memória, por meio das quais é possível visar em um fluxo espiral, 
aspectos históricos, estéticos, políticos e afetivos que articulam passado, 
presente e futuro. 
 
Proponho trazer a memória como um fio condutor que conduz a vida e 
que nos permite imaginar e sentir, mais que descrever e analisar. Uma memória 
que contém a ancestralidade, que transpassa fronteiras e que permitejuntar 
reflexões de Augusto Boal e de Walter Benjamim com a capoeira, a súciaiv, a 
comida, a bebida, as histórias sobre as opressões do coronelismo e sobre o ciclo 
da mineração, assim como as resistências negras na cidade de Arraias. Enfim, 
as memórias que unem a geografia física, política e afetiva de Arraias com as 
histórias de vida de nós todos, docentes e discentes oriundos de diversas partes 
do país, e, atualmente, estudantes e artistas-pesquisadores residentes no 
Tocantins. Parece-me então, que, de fato, a memória “tece a rede que em última 
instância todas as histórias constituem entre si” (BENJAMIM, 1994, p.211). 
 
Permito-me agora seguir o fluxo de minhas reminiscências conforme elas 
vão sendo rememoradas, sem uma preocupação com encadeamento linear dos 
fatos, mas ao contrário, procurando narrar os múltiplos (e simultâneos) espaços 
e tempos que me atravessaram, e, que me permitem, aqui e agora, estabelecer 
reflexões e suscitar aprendizados. 
 
Fragmento I – o encontro com a(s) realidade(s) ou quando a imagem 
da cidade rememora tempos de opressão 
 
Não sei se chegamos a Arraias ou se foi à pequena cidade que chegou 
até nós. Era por volta da hora do almoço, o sol brilhava intensamente sobre as 
pequenas ruas de paralelepípedos quando fomos recepcionados pela professora 
Sílvia Tavaresv. Em seguida, ela nos conduziu à sede do campus da UFT no 
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centro da cidade, local onde ocorreu a oficina. Lembro-me de ter entrado 
rapidamente no edifício que abrigou as atividades. Depois de algum tempo, 
passada a correria pelo início da oficina, atentei-me para o fato de que o local 
era uma espécie de casarão que, embora modificado, mantinha alguns poucos 
resquícios de traços da arquitetura portuguesa estilo colonial. Arquitetura esta, 
também presente em outras casas que avistamos depois. 
 
Curiosamente, após alguns instantes ficamos sabendo, durante a 
apresentação da história da cidade feita pela professora Sílvia Tavares, que 
Arraias foi fundada em meados do século XVIII, durante o período do Ciclo do 
Ouro, e que, portanto, guarda de fato em sua arquitetura e em suas tradições, 
traços desse tempo passado. Embora, no momento do relato da história da 
cidade, eu não tivesse de imediato antevisto as considerações que ora exponho, 
reflito agora o quanto o encontro com o espaço físico de Arraias proporcionou 
por si só encontro(s) com realidade(s). Isto é, encontro(s) com diferentes e 
díspares histórias de todas as negritudes que outrora ajudaram a erguer a 
cidade, e que agora constituem as etnias miscigenadas que compõem as atuais 
realidades arraianas. Encontros in loco com histórias de um processo colonial 
pautado na exploração das riquezas da terra, no status quo burguês, na 
manutenção de preconceitos étnico-raciais e religiosos (entre outros), ligados 
aos mecanismos de agenciamento e manutenção de opressões. 
 
Reflito o quanto a oportunidade de aprender e ensinar teatro por meio de 
um projeto que proporciona encontro(s) de histórias e de saberes pode ser 
produtivo. Produtivo, não só do ponto de vista do levantamento de materiais a 
serem utilizados esteticamente em cena (seja ela uma cena de Teatro Fórum ou 
não), como também produtivos do ponto de vista de reflexões éticas, afetivas e 
políticas. Penso que a oportunidade dada aos estudantes dos diferentes cursos 
de licenciatura de se encontrarem no projeto “Ô de casa!”, tendo que se deslocar 
de seus lugares de conforto (advindos da estrutura acadêmica convencional) e 
com os confrontamentos (em meio à produção de um trabalho estético) com 
realidades tão diversas e ricas, talvez funcione como um potente caminho 
alternativo para se redimensionar procedimentos e métodos de ensino, e, mais 
especificamente, do ensino de teatro. 
 
Fragmento II – A oficina de teatro do oprimido: corpos em afetos 
 
Dei início à oficina às 14 horas. Com a ajuda de todos, retiramos as 
carteiras que estavam na sala para que pudéssemos realizar os jogos. Anunciei 
que se tratava de uma oficina de Teatro do Oprimido e perguntei quem conhecia 
a metodologia. Alguns disseram que sim, outros disseram que não. Fiz, então, 
uma breve explanação sobre quem foi Augusto Boal e a importante contribuição 
dele para a história do teatro brasileiro e mundial. 
 
Expliquei ainda que o “Teatro do Oprimido, em todas as suas vertentes 
busca sempre a transformação da sociedade no sentido da liberdade dos 
oprimidos. É ação em si mesmo, e é também preparação para ações futuras” 
(BOAL, 2005, p.19). Após esse momento de contextualização, dei início aos 
exercícios. Talvez, um leitor não familiarizado com o tema possa estar se 
Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 
39 
 
perguntando: o que são os exercícios no Teatro do Oprimido? Para responder a 
pergunta, convido então o próprio Boal (2000, p.87-88) a falar: 
 
Neste livro, utilizo a palavra “exercício” para designar todo o movimento físico, 
muscular, respiratório, motor, vocal que ajude aquele que o faz a melhor conhecer 
e reconhecer seu corpo, seus músculos, seus nervos, suas estruturas 
moleculares, e suas relações com os outros corpos, sua gravidade, objetos, 
espaços, dimensões, volumes, distâncias, pesos, velocidade e as relações entre 
essas diferentes forças. [...] Na verdade, os jogos e exercícios que aqui descrevo 
são antes de tudo joguexercícios, havendo muito de exercício no jogo e vice-versa. 
 
Percebemos pela fala de Boal, que os exercícios/jogos são procedimentos 
físicos, expressivos e didáticos, que possibilitam aos jogadores, estabelecer 
encontros(s) e descobertas corporais individuais e coletivas. Partilhando desse 
espírito de descobertas, iniciamos os trabalhos. 
 
 Entre os momentos vivenciados na oficina, recordo-me dos corpos em 
afetos. Lembro-me da variante que fizemos do exercício Floreta dos sons (BOAL, 
2000, p.155) relacionado à percepção auditiva. Estávamos todos em círculo de 
mãos dadas com os olhos fechados. Os participantes, que já haviam sido 
anteriormente divididos entre as funções de cego e guia, respiravam juntos em 
sintonia. No instante em que o start do jogo foi dado, em meio aos sons 
produzidos pelos guias, os cegos começaram a movimentar-se lentamente 
desfazendo aos pouquinhos o círculo. Durante o deslocar dos corpos, os 
participantes cegos, caminhando em direção ao som emitido por seus parceiros 
guias, esbarravam por vezes uns nos outros, formando um balé de afetos 
advindo do contato sutil entre mãos, braços e corpos, que em movimento, 
esculpiam formas vivas. 
 
Lembro ainda, ao final desse exercício, de ter ouvido dos participantes 
que há muito tempo eles não sentiam seus corpos tão presentes em si mesmo, 
nos outros, e no aqui e agora, quanto naquele instante do exercício Floresta dos 
sons. 
 
Fragmento III – A Cena Fórum: o eterno reencontro com a dúvida e 
com as grandes descobertas 
 
O Teatro Fórum, uma das vertentes do Teatro do Oprimido, é um pequeno 
espetáculo baseado em fatos reais, no qual personagens oprimidos e opressores 
entram em conflito, de forma objetiva, na defesa de seus interesses. No 
confronto, o oprimido fracassa e o público é convidado pelo Curinga a entrar em 
cena, substituir o protagonista e apontar alternativas para o conflito encenado. 
 
Em nossa oficina, trabalhos com o Teatro Fórum. A cena foi decidida por 
meio da votação feito pelos participantes do grupo. Todos os participantes 
tiveram liberdade para relatar situações pessoais ou comunitárias de opressão 
que tivessem vivenciado em algum momento de suas vidas, contudo, uma das 
participantes optou por não relatar uma história pessoal, mas por narrar uma 
situação de opressão que havia ocorrido com a mãe dela. Após o relato, o grupo, 
por meio de debate, entendeu que a opressão relatada era uma caso relevante 
para a cidade e que merecia ser debatido por toda a comunidade. Assim, a 
Anais das

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