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ISBN: 978-85-66716-06-1 2017 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade - JITOU Comissão Organizadora Andréia Manho Anília Silveira Cachalote Mattos César Augusto Paro Flavio Sanctum Helen Sarapeck Jussara Trindade Licko Turle Rosane Campelo Telemakos Endler Zeca Ligiero Equipe de Editoria Coordenação César Augusto Paro 1ª. Revisão César Augusto Paro 2ª. Revisão Cachalote Mattos Flavio Sanctum Helen Sarapeck Licko Turle Sebastián Torterola Projeto Gráfico, Editoração e Capa Cachalote Mattos Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) J828 Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade: arte, pedagogia e política (2. :2014: Rio de Janeiro, RJ) Anais/ II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade: arte, pedagogia e política, 16-17 de outubro de 2014 em Rio de Janeiro, RJ. - Rio de Janeiro: GESTO, 2017. 155 p. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-66716-06-1 1. Teatro do oprimido - Congresso. 2. Teatro na educação - Congresso. I. Paro, César Augusto, coord. II. Mattos, Cachalote, org. III. Título. CDD - 792.015 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 4 APRESENTAÇÃO As I Jornadas Internacionais de Teatro do Oprimido e Universidade (JITOU), sob o tema Teatro do Oprimido: Teoria e Prática – fruto da curta passagem do Acervo Boal pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) –, ocorreram em junho de 2013, em parceria com o Centro de Teatro do Oprimido (CTO), e objetivou promover reflexões sobre a metodologia criada por Augusto Boal (1931-2009) – dramaturgo, diretor teatral, professor, político e teatrólogo – e sua utilização em diferentes contextos. Sob a responsabilidade do Prof. Dr. Zeca Ligiéro, coordenador do Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias (NEPAA)/UNIRIO, e com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), o Acervo Boal permaneceu por dois anos na UNIRIO. Durante esse período, prestou um valioso auxílio a diversas pesquisas, como trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses. Mesmo curta, a sua permanência na instituição aprofundou o contato do público universitário com a obra de Boal: na graduação, com o estudo de textos dramatúrgicos de Augusto Boal como conteúdo da disciplina “LED - Leitura Dramatizada” e a oferta da disciplina de “Técnicas Paralelas - Teatro do Oprimido de Augusto Boal”; e, na pós-graduação, com a realização dos cursos “Augusto Boal: Arte, Política e Pedagogia” (que, em 2015, foi publicado em livro homônimo) e “Do distanciamento de Bertold Brecht ao Teatro do Oprimido de Augusto Boal”, além de oficinas livres de extensão universitária. Outro importante legado foi a criação do Grupo de Estudos em Teatro Oprimido (GESTO) por estudantes e pesquisadores do NEPAA/UNIRIO interessados na difusão das ideias de Boal e na investigação das funções sociais, educativas, terapêuticas, políticas e artísticas do seu método, praticado hoje em mais de setenta países. Surge então, a ideia de instaurar na UNIRIO um espaço acadêmico de compartilhamento dessas práticas, realizadas a partir do pensamento de Boal: nascem as Jornadas Internacionais de Teatro do Oprimido e Universidade - JITOU. Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 5 O tema Teatro do Oprimido: teoria e prática orientou a dinâmica do evento em sua primeira edição, que contou com a participação de pesquisadores de treze nacionalidades diferentes. Na parte da manhã, foi realizada uma grande oficina com estudantes de Teatro do Oprimido da Universidade do Sul da Califórnia e da disciplina de Técnicas Paralelas da UNIRIO. À tarde, em uma ampla mesa redonda, pesquisadores da Inglaterra, Itália, Chile, EUA e Brasil apresentaram exposições orais sobre o ensino do Teatro do Oprimido em seus respectivos países e, em seguida, aberto um debate com o público presente na Sala de Audiovisual da Escola de Teatro da UNIRIO. Devido ao caráter inaugural e, até mesmo, experimental do evento, não houve, na primeira edição, o registro da oficina e o envio dos textos das miniconferências proferidas na mesa redonda. Contudo, o entusiasmo dos participantes e a riqueza das discussões suscitadas na ocasião levaram o GESTO a redimensionar o seu potencial, de modo a preencher tal lacuna no ano seguinte. As II JITOU trouxeram o tema Teatro do Oprimido: arte, política e pedagogia, abordando as três grandes áreas em que Boal atuou: o Teatro de Arena, o Teatro Legislativo e o ensino do teatro. A programação, mais extensa, incluiu conferências, comunicações orais de trabalhos acadêmicos, oficinas, apresentações artísticas, lançamento de livros, e contou com a participação de quase trezentos inscritos oriundos de onze países. Durante dois dias, a UNIRIO foi palco de relatos de práticas, projetos e experiências realizadas no Brasil e no exterior por profissionais de áreas diversas, e de apresentações de pôsteres e espetáculos de Teatro-Fórum, uma das técnicas do Teatro do Oprimido mais difundidas por todo o mundo. Os textos das comunicações orais e das conferências seguem, agora, devidamente registradas nestes Anais das II JITOU, como testemunhos vivos da importante contribuição de Augusto Boal para o Brasil e o mundo, sobretudo no vasto campo multidisciplinar do Teatro do Oprimido. Licko Turle Jussara Trindade Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 6 SUMÁRIO Apresentação ............................................................................................ 4 Licko Turle e Jussara Trindade Programação ............................................................................................. 8 Brecht, Boal e a coragem de mostrar a verdade ........................................ 18 Alessandra Vannucci O Teatro do Oprimido na Empresa: Teatro Fórum & qualidade de vida do trabalhador ................................................................................................ 24 Antonia Pereira Bezerra A experiência do Teatro do Oprimido dentro do Projeto “Ô de casa!”: intercâmbio de saberes e culturas entre os cursos de Licenciatura em Teatro e Educação do Campo da UFT ..................................................... 36 Bárbara Tavares dos Santos Variaciones para una ciudadanía rococó ................................................... 42 Betsy Perafán Teatro do Oprimido, Promoção da Saúde e Empoderamento: limites e possibilidades ............................................................................................ 72 César Augusto Paro e Neide Emy Kurokawa e Silva O desenvolvimento de Teatro do Oprimido em Taiwan .............................. 78 Kelly Ju-Hsin Hsieh A força física como dispositivo no espetáculo de cena fórum “Bye bye baby e outras mulheres” ............................................................................ Lívia Martins Fernandez Na trama de um grupo de teatro: Policultura .............................................. Lucimara Gonçalves e Iara Cássia Castro 88 94 Diálogos entre Boal e Freire: o teatro e a educação popular no enfrentamento da violência contra as mulheres ......................................... Iara Cássia Castro e Sirlei S. Dudalski 100 Te extraño mucho. Operaciones de extrañamiento como método para el conocimiento y la trasformación social desde la antropología y el teatro .. 105 Jimena Ines Garrido O Teatro do Oprimido de Augusto Boal no exercício da cidadania em questões relativas ao petróleo, gás, energia e biocombustíveis ................ 111 JulianaCavassin Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 7 O Ensino da Psicologia Institucional e o Teatro do Oprimido: uma proposta em desenvolvimento .................................................................. Mercedes Guarnieri O teatro brasileiro sob a tempestade: um estudo sobre a peça “A Tempestade”, de Augusto Boal ................................................................. Patrícia Freitas dos Santos Projeto Reviver – vivências teatrais transformadoras como oportunidade para reflexões práticas e novas descobertas ............................................. Rosimairy Carla Silva e Deus Bajar del drama a la propuesta. Una experiencia de Teatro Legislativo en Uruguay ..................................................................................................... Sabrina Speranza O teatro do oprimido na terceira idade: construindo emancipação e autonomia com um grupo de mulheres ...................................................... Thaísa Soares Silva 117 122 128 140 151 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 8 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 9 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 10 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 11 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 12 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 13 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 14 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 15 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 16 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 17 Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 18 VANNUCCI, Alessandrai. Brecht, Boal e a coragem de mostrar a verdade. Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Escola de Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). RESUMO Mantendo intenso diálogo com pensadores clássicos (como Aristóteles, Platão) e modernos (como Adorno, Benjamin), Boal busca na arte um processo de subjetivação capaz de alterar o estado de subalternidade do cidadão. O ator, superativado politicamente em função de Curinga, age ao modo do filósofo platônico cujas andanças para dentro e para fora da caverna (do palco) no esforço de revelar a verdade, não são em vão. Assim como para Brecht, é preciso coragem a quem queira mostrar a verdade e fazer da arte um antídoto aos regimes de opressão. PALAVRA-CHAVE: estética do oprimido. ABSTRACTii Quoting classical and modern thinkers (such as Adorno, Benjamin), Boal tries to reveal in art the antidote against oppression. In the case of theatre, actor is super-activated as jolly, a kind of platonic philosopher whose efforts in revealing truth is not in vain. Such as Brecht, courage is needed for whom who wants to show the truth. KEYWORD: esthetic of the oppressed. O insistente desafio, no pensamento do Augusto Boal, de revogar a proscrição platônica dos artistas e readmiti-los à república, convida a argui-lo à luz dos conceitos do filósofo grego e de seus leitores contemporâneos, mesmo que heterodoxos como o próprio Boal. Entre outras maneiras de fazer, as artes fundadas no cânon mimético embaralham – argumenta Platão (2001) em A República (III) – ao invés que iluminar o processo de subjetivação presente em experiências de visão, pois, ao apresentar fantasmas (simulacros) ao invés que ícones (imagens autênticas), enganam sistematicamente o espectador e o afastam do caminho da Verdade. Ao desqualificar a arte do ator, pois como poderia alguém ser ao mesmo tempo cidadão e enganador de cidadãos, Platão denuncia a impraticabilidade do paradoxo; entretanto, pelo fato que tal paradoxo é normalmente praticado, admite um regime de exceção para a arte mimética entre outras práticas ordinárias e ordenadas de trabalho. Por ser ilusório e enganoso, o teatro produz um deslocamento no regime de visibilidade que contradiz a ordenação do comum e confunde a partilha de competências que definem e limitam a participação à vida pública conforme o princípio pedagógico da utilidade. “Pra que serve o teatro?”, pergunta desconcertado Platão. Que tipo de serviço político (no interesse da pólis) se faz no teatro? Qual sua função na construção da cidade ideal? Uma primeira resposta, de Aristóteles (1993) na Poética (VI, 27) tende a reconduzir a exceção ao princípio pedagógico apelando para um termo de derivação médica (catarse) já utilizado em âmbito ritual, que remete ao conceito de antídoto: a utilidade do teatro consiste no efeito de purificação das paixões por meio da aplicação em dose homeopática de um remédio (farmakon) ao espectador, como paciente de uma terapia de controle social. Tal remédio é a Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 19 identificação emotiva e sua enorme eficácia depende da passividade do espectador, levado a aceitar a ação (drama) apresentada, o sacrifício ou castigo do herói, mesmo que injusto e atroz, como algo natural e inevitável. O palco é lugar de exposição e cura das doenças psicossociais; tudo pode ser mostrado ao cidadão que, sentado na plateia, observa um outro cidadão submetido às terríveis consequências de suas paixões excessivas e experimenta o estranho prazer (pathos) de não estar sendo envolvido pessoalmente. O paradoxo do ator – ser ao mesmo tempo real e simulacro – torna-se método, ferramenta ou hábito de produção (tecné) a serviço de uma cena que faz visível uma determinada ordenação de mundo. Torna-se, emprestando o termo inaugurado por Michel Foucault (1994, p.299), um dispositivo, isto é, uma “estratégia racional e combinada de relações de força” funcional não somente ao cumprimento do trabalho do ator como à manutenção do regime representativo que, perpassando séculos, fundamenta a sociedade moderna no cânon do “espetáculo”. Segundo Débord (1997), tal regime consiste na separação entre a vida e suas representações, as quais tendem a tomar o lugar da vivência (no sentido de experiência autêntica) mesmo que sabidamente falsas. A alerta de Theodor Adorno e Max Horkheimer (1985) quanto ao uso das artes miméticas nos regimes totalitários (onde inscreve seja o fascismo e seja a indústria cultural) como um “sono sem sonhos” capaz de alienar a multidão trabalhadora em massa de consumidores de felicidades ilusórias, enquanto a própria vida permanece inalcançável no mundo real, parece ecoar a negatividade platônica. Entre outros simulacros, a arte realizada como mais uma mercadoria na sociedade do espetáculo se esvazia de qualquer conteúdo teleológico e produz experiências estéticas cada vez mais subjugadoras e totalizantes. Bertolt Brecht intervém no debate sobre os usos do teatro pela sociedade implicando diretamente com Aristóteles e abrindo caminho para a resposta do Boal. Se é por meio da identificação emotiva que o espectador aceita o sofrimento do herói como natural, Brecht sugere empregar recursos cênicos que interrompam tal ilusão e despertem o espectador de seu estado de encantamento: na prática, ele passaria a estranhar aquele sofrimento e a analisar de quais maneiras seria remediável. De passivo, o espectador passaria a ser “dialético”, isto é, capaz de enxergar as contradições do real. Sem recusar a representação nem sair do palco italiano, Brecht entende que o mesmo drama pode ter um efeito repressor (purgar o desejo ilegítimo do espectador-paciente) ou transformador (fazer com que o espectador-dialético se descubra capaz de realizá-lo no mundo real); a tal mudança no regime estético corresponde uma radical mudança de tarefaspara o ator. O ator de Brecht é um lutador cujo objetivo se dá fora do palco, na luta revolucionária; ele testemunha o drama, sem tomar partido mas mostrando-o sob diversos pontos de vista; é do seu exercício de abstração e distanciamento (V-effekt) que o espectador recebe os meios de sua emancipação política. Depende do ator impedir que o teatro seja usado como aparelho disciplinar e se torne um contradispositivo: uma tática de resistência criativa, com técnicas específicas que esvaziem o efeito catártico e potenciem a insubordinação da plateia. Sendo alguém que “quer dizer eficazmente a verdade sobre o mal estar das coisas, é preciso que o diga de maneira que permita reconhecer as suas causas evitáveis, pois, uma vez reconhecidas as causas evitáveis, o mau estado de coisas pode ser combatido”, aponta Brecht (1973, p.56). Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 20 Na esteira de Brecht, Boal divisa na tarefa do ator um compromisso com a coragem de dizer a verdade – não uma verdade essencialista mas imanente ao estado de coisas que ocorre naquela determinada realidade. Sem recusar a mimese, já que parte de expectativas realistas e de exercícios de criação stanislawskianos (no Teatro de Arena), Boal propõe o rodizio do personagem entre atores (função-curinga) como técnica à maneira brechtiana de interrupção da possível ilusão cênica. O sucessivo surgimento do curinga, mediador maiêutico entre palco e plateia (no teatro-forum, técnica do Teatro do Oprimido), configura uma mudança de tarefa para o ator, assim como para o espectador, ao adentrar em um regime estético esvaziado de tais expectativas. Livre de qualquer personagem, o ator é superativado em sua presença performática como involuntário filósofo que transpõe o limiar entre ficção e realidade, emancipando os espectadores de sua passividade, assim como o iluminado platônico entra e sai da caverna buscando desvendar os simulacros e fazer com que a Verdade seja desvelada. Em nome da verbalização coletiva da Verdade, Boal redime a arte mimética da proscrição platônica pois, neste caso, cada reapresentação do drama configura uma nova autoria (não uma cópia) e proporciona ao espectador (que entrando em cena torna-se espect-ator) uma experiência estética autêntica pois, ao combater e transformar o “mau estado das coisas” no mundo encenado, ele possivelmente se transforma (metaxis). Assim como o filósofo, é preciso que tenha coragem o ator ou espect-ator que queira mostrar a verdade “em sua luta contra a mentira e não como algo elevado e genérico” (BRECHT, 1973, p.56): tal coragem consiste no ato de palavra com o qual o sujeito revela-se para si e para a comunidade sem ser por isso sujeitado, ao contrário, subjetivando-se. Na manutenção do paradoxo do ator, que adentra simultaneamente dois planos de presença – eu e não eu, real e ficcional – consiste a chave da contribuição do Boal quando atribui ao ator uma radicalidade política totalmente oposta ao esvaziamento preconizado por Diderot (2000): ou seja, a adoção de formas de existência coerentes e indissociáveis do conhecimento adquirido, destinadas a promover uma transformação ontológica do ser humano, como nas escolas filosóficas antigas – com a diferença de que, ao passo que o iluminado cínico vive seu heroísmo até as extremas consequências e morre, o ator sobrevive ao seu ato de coragem e constrói coletividades. Como para a assembleia da pólis regida pelo princípio da isonomia, sem heróis e sem delegados, o ato de palavra valoriza o ator (em latim, actor, aquele que age) como ator social, ou seja, um cidadão que toma parte do comum pelo fato de governar e ser governado. Em A Estética do oprimido, Boal (2009) parte da consideração de que regimes simbólicos (como a estética monológica empossada pela indústria cultural na televisão, na publicidade e também no teatro) tendem a incorporar as desigualdades existentes no âmbito social, em sua apreensão do mundo sensível; sendo assim, é todo um sistema estético-político, não tanto a mimese que de tal sistema é uma das ferramentas, que precisa ser questionado. É justamente o que faz o espect-ator quando, transitando entre eu e não eu, real e possível, produz um deslocamento no regime de visibilidade e reconfigura a partilha do comum entre vozes autorizadas ou menos, competentes ou não. O movimento do espect-ator que se apropria da palavra e da cena questiona um dos fundamentos do sistema estético vigente na indústria cultural que Boal Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 21 significativamente chama de “império”, isto é, a pressuposição de que cidadãos destinados a governar e cidadãos os destinados a serem governados não teriam o mesmo equipamento sensorial nem a mesma inteligência simbólica. A busca incessante por um método (um arsenal de contra dispositivos), por parte do Boal, visa suspender esta dicotomia ativo-passivo que no teatro burguês corresponde à partilha da autoria entre atores-espectadores ou produtores-consumidores. Suas inovações técnicas são táticas empíricas (variantes, maneiras alternativas de fazer) que visam subtrair a arte do âmbito das mercadorias e devolvê-la ao âmbito da palavra, não no sentido convencional mas no sentido de comunicação expandida às dimensões visual, plástica, tátil e auditiva: palavra como potencial escrita do mundo, à qual todo cidadão igualmente tem direito. O que embasa o lance utópico do Boal é uma visão dialética de mundo, em movimento constante, em que qualquer indivíduo pode fazer sua própria história pois reconhece na opressão não um destino individual irremediável e sim uma construção social, com suas contradições e falhas; que pode ser reescrita. O teatro, isto é, a representação ficcional de determinada conjuntura real, justamente por causa deste duplo regime de visibilidade produzindo deslocamento e diferença, permite a análise do sistema e a multiplicação de experiências autênticas de luta contra a opressão. É um ensaio geral da revolução. Propriamente neste caso, é a técnica que fixa a exceção do teatro (da arte, em geral) como forma desalienada de trabalho, que elabora seu próprio sentido mesmo quando se repete. Cabe notar que, ao longo de todo o seu percurso político-teatral, Boal se mantém atento a não abastecer o sistema dominante, interrompendo constantemente seja a sua possível integração (como artista e intelectual, detentor de fama e de direitos autorais) e seja a abdução das técnicas pelo aparelho repressor (como no caso do teatro do oprimido virar produto contratado por empresas). Como aponta Walter Benjamin (1985), para manter a arte como arma na luta contra a opressão, para impedir que entre ao serviço dos regimes de consenso e totalitários, não basta liberar e multiplicar os meios de produção: é preciso refuncionalizá-los. Qualquer recurso (objeto físico ou sonoro, imagens, dados estatísticos, slogans, provérbios, lendas, histórias e até mesmo o ator com seu repertório gestual e verbal) pode se tornar material para um novo regime estético desde o momento que é desnaturalizado, isso é, analisado no contexto da opressão que simboliza ou produz. Qualquer espaço (praça, rua, salão de igreja, de escola, de hospital psiquiátrico ou sindicato, até mesmo um teatro) pode se tornar lugar de um novo regime estético desde que sejam suspendidas as normas de conduta ali aplicadas como dispositivos de manutenção da vigilância, do controle e da opressão. Qualquer arte (dança, pintura, poesia, instalação, canto e até mesmo representação) pode se tornar uma prática de presença que transgrede o mapa, suspende o sentido das condutas rotineiras e revela interrogações coletivas sobre qual sociedade o mapa hospeda e as condutas obedecem. A produção, dentro da cartografia oficial dos espaços, de outro “território humano”, mesmo que temporário e efêmero, mas livre de qualquer alienação, coerção e controle pois embasadoem características ideais de convivência, tal como isonomia, acessibilidade e livre expressão de desejos de transformação, parece constituir uma concreta estratégia de invenção de um outro mundo. Não porém um outro mundo imaginário, sem lugar real (uma utopia) mas, sim, um outro mundo concreto, “fora de todos os lugares reais Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 22 embora seja efetivamente localizável”, uma heterotopia (citando Foucault, 2009), onde a realidade se dá como é e, contemporaneamente, como poderia ser. Quando, nas cidades-estados gregas, a multidão (oi polloi) instituiu a política como assembleia pública, o fez deslocando seus corpos no espaço urbano aparelhado e interrompendo o fluxo ordenado do cotidiano com a tomada da palavra por parte de quem não tem parte no comum. Para desconcerto de Platão, a própria democracia em sua origem é um contradispositivo, uma irrupção da multidão dos oprimidos que revela um desajuste e dá visibilidade ao que era invisível, dá voz ao que não era ouvido, representa o irrepresentável, como aponta Jacques Rancière no Desentendimento (1996). Neste sentido, reformulando a pergunta da Gayatri Spivak (1992) sobre a possibilidade do oprimido (subaltern) falar, parece mais interessante indagar de que modo o subalterno pode ser ouvido. A resposta de Rancière diz respeito à reintrodução da dimensão política no espaço público, a partir da irrupção dos que não tem parte no comum, deslocamento que por si só desvela a pura contingência de qualquer ordem social e denuncia a ausência de qualquer fundamento para a opressão de um ser humano pelo outro e dominação de uma classe sobre outra. No Espectador emancipado, Rancière (2012) reconhece neste deslocamento de corpos e derrubada da distribuição convencional de lugares que ocorre quando subalternos tomam a palavra, na assembleia pública assim como no teatro, mais do que uma aventura intelectual: a “demanda de que o teatro alcance, como sua essência, a reunião de uma comunidade” (p.118). Tal potência de criação do comum – um território autônomo mesmo que temporário, onde todas as vozes podem ser ouvidas e todos os corpos serem representados como espect-atores de sua própria história – instituiria um novo estágio de igualdade, onde “os diferentes tipos de espetáculo se traduziriam uns nos outros, demandando espectadores que são intérpretes ativos, se apropriam das histórias e escrevem suas próprias histórias a partir daquelas” (p.118): uma comunidade emancipada. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Ars Poetica, 1993. ADORNO, Theodor. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002 ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1985. BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Garamond, 2009. BRECHT, Bertolt. Scritti sulla letteratura e sull'arte. Torino: Einaudi, 1973. DÉBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. DIDEROT, Denis. Paradoxo sobre o comediante. In: GUINSBURG, Jacob. Diderot: Obras II. São Paulo: Perspectiva: 2000. FOUCAULT, Michel. Dits et ecrits, v.III. Paris: Gallimard, 1994. ______. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Rio de Janeiro: Editora 34, 2005. ______. O desentendimento. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. ______. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Can the Subaltern Speak? In: WILLIAMS, Patrick; CHRISMA, Laura. (Eds.). Colonial Discourse and Post-Colonial Theory. New York: Columbia University Press, 1992. p.66–111. Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 23 i Docente da Graduação ECO/UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC), ECO/UFRJ; pesquisadora do CNPq; dramaturga e diretora teatral. Contato eletrônico: alevannucci@gmail.com. ii Título em inglês: “Brecht, Boal and the courage of showing the truth”. Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 24 BEZERRA, Antonia Pereirai. O Teatro do Oprimido na Empresa: Teatro Fórum & qualidade de vida do trabalhador. Salvador, BA, Brasil: Universidade Federal da Bahia (UFBA). RESUMO Este ensaio reflete sobre os problemas e aquisições do Projeto Teatro-Fórum e Dimensões Formativas desenvolvido na Empresa Baiana de Saneamento Básico (EMBASA) em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia (PPGAC/UFBA), o Serviço Social da Indústria (SESI) e a Federação das Indústrias do Estado da Bahia (FIEB). Visando à qualidade de vida do trabalhador e à melhoria das relações interpessoais no ambiente opressivo do trabalho na empresa, o projeto desenvolveu atividades ancoradas na Poética do Oprimido. Neste contexto específico, foram montados e apresentados três espetáculos-fóruns: “Cresça e Apareça”, sobre experiências de opressão dos funcionários da Indústria EMBASA; “Revolução na América do Sul”, texto de Augusto Boal; e “Máquina Escavadora”, inspirado no texto original de Armand Gatti. Envolto em muitas polêmicas e desconfianças, o projeto interrogou a possibilidade de aplicação da Poética do Oprimido com trabalhadores da indústria, num contexto em que as opressões sociais estão localizadas no ambiente de trabalho, nas relações trabalhistas. Como unir tal universo de exploração às poéticas de Boal e Gatti – dois homens de teatro e militantes – visando à promoção de uma “guerrilha de conciências”? PALAVRAS-CHAVE: Teatro: Opressão: Trabalho: Empresa: Teatro-Fórum. ABSTRACTii This essay reflects on the problems and achievements of project “Forum Theater” and educational dimensions developed in the Basic Sanitation Company in the State of Bahia (EMBASA), in partnership with the Post-Graduate Program in Arts of the Federal University of Bahia (PPGAC/UFBA), the Social Service of Industry (SESI) and the Federation of Industry of the State of Bahia (FIEB). Aiming at quality of life of the worker as well as the improvement of the Interpersonal relationships in the oppressive work environment within the company, this project developed activities based in the “Poetics of the Oppressed”. In this specific context were created and presented three forum- spectacles: “Grow and appear” treats about oppressive experiences of employees in EMBASA industry; “Revolution in South American” is a text written by Agusto Boal; and “Excavator Machine” inspired by the original text of Armand Gatti. Wrapped in many controversies and mistrust, the project questioned the possibility of applying the Poetics of the Oppressed to industry workers, in a context where social oppression is located in the workplace, in labor relations. How to unite this universe of exploration to the poetics of two men of theater and militants Boal e Gatti, aiming at the promotion of a "guerilla of consciences"?. KEYWORDS: Theatre: Oppression: Work: Company: “Forum Theater”. INTRODUÇÃO Em outubro de 2010, quando o SESI e a EMBASA nos convidaram para trabalhar, a partir da técnica do Teatro Fórum, questões de opressão dos seus trabalhadores com discussão das relações empregador versus empregado e a Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 25 saúde no ambiente de trabalho, eu e minha equipe (duas doutorandas, duas mestrandas, três bolsistas de iniciação científica, uma bolsista de apoio técnico e demais voluntários alunos da Escola de Teatro da UFBA) abraçamos a causa e elegemos a empresa EMBASA como nossa comunidade de extensão. Essa relação durou 18 meses, durante os quais três espetáculos foram montados,estreitando os laços academia-empresa-comunidade e gerando a perspectiva de criação de um mestrado profissional nesse contexto específico. Assim, essa pesquisa, ancorando-se nos princípios da Poética do Oprimido, fomentou reflexões teóricas e práticas sobre temas referentes à qualidade de vida no trabalho, saúde do trabalhador, relações interpessoais, entre outros, a partir das sugestões dos funcionários da EMBASA e alunos da Escola de Teatro da UFBA envolvidos no projeto. Teve como resultado as montagens de três espetáculos teatrais, encenados pelo viés da técnica do Teatro-Fórum, gerando diversas apresentações em vários locais dentro e fora das instituições teatrais: Teatro do SESI, sala cinco da Escola de Teatro da UFBA, auditórios e anfiteatros da EMBASA, entre outros. Ao integrar alunos do curso de Pós-Graduação em Artes Cênicas e da Graduação em Teatro – Cursos de Interpretação Teatral e de Licenciatura em Teatro – da Escola de Teatro da UFBA, o projeto contou com uma equipe de artistas e arte-educadores, responsáveis pelas atividades formativas e de montagens dos espetáculos-fórum. Ao lado dessa equipe central, convidamos um núcleo de psicologia coordenado pela psicóloga e pesquisadora Denise Lemos e uma médica e socióloga do trabalho, Tânia Franco, ambas professoras da UFBA. Também integraram a equipe de pesquisa do projeto dois alunos de Licenciatura em Teatro, e o aluno do bacharelado em interpretação teatral, todos bolsistas de iniciação científica. DO PRINCIPAL PROBLEMA ABORDADO Por seus objetivos e natureza, a referida investigação inseriu-se no contexto de desenvolvimento social, promovendo tanto a formação de plateias, quanto a iniciação científica de universitários (Alunos IC da Graduação em Teatro), secundaristas (alunos voluntários da rede pública de ensino) e trabalhadores da indústria desejosos de dizer algo por meio do teatroiii. O desenvolvimento deste projeto numa perspectiva práticaiv foi fundamentalmente determinado por sua dimensão pedagógica iminente e pelo impacto que os processos engendrados nesse gênero de “intervenção teatral” provocaram na relação entre o espectador e o ator. Além de dramaturga e professora de teatro, também atuei como atriz em “peças convencionais”, no âmbito de montagens ditas "comerciais e/ou profissionais". Em decorrência, minha curiosidade incitou- me a interrogar o interesse por um teatro e formas teatrais que rompem com as convenções e distanciam-se, ainda que simbolicamente, do “anfiteatro do espetáculo” para retornar ou recuperar sua ancestral função libertadora e sua dimensão democrática. As atividades teóricas e práticas do projeto e que implicavam tão somente a equipe formadora – doutorandas e mestrandas do PPGAC – foram iniciadas em outubro de 2010, quando procedemos à: Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 26 Revisão da tradução da peça, em dois atos, de Armand Gatti La Machine Excavatrice (A Máquina Escavadora); Análise do texto de Augusto Boal, intitulado Revolução na América do Sul; e Realização de experimentos cênicos através da técnica de teatro-fórum, a partir do texto A Máquina Escavadora. DO ESTADO DA ARTE Em meados de novembro de 2010, iniciamos as oficinas e encontros com os integrantes do EMBASART – funcionários da EMBASA e os alunos da Graduação em Teatro – Bolsistas IC e voluntários. Esses encontros e oficinas foram marcados pela aplicação dos jogosexercícios de Augusto Boal e ateliês de dramaturgia baseado nos textos de Armand Gatti. A partir dos modelos dramatúrgicos de Armand Gatti e dos jogos e técnicas propostos por Augusto Boal, para a concepção de espetáculos de Teatro-Fórum, com fins à instauração de uma “pedagogia da intervenção” junto aos trabalhadores da EMBASA e do SESI/Bahia, bem como à comunidade por extensão, desenvolvemos um projeto que se legitimou, tanto por sua dimensão prática, quanto por sua dimensão teórica. De fato, nessas perspectivas teatrais destacaram-se aspectos de uma prática teatral “transgressora”, suscetível de contribuir para o exercício da cidadania e para a transformação do individuo. Gatti e Boal, em suas “militâncias e engajamentos políticos”, ensejaram instaurar o espetáculo como festa, comunhão; o espetáculo enquanto “obra aberta”, permitindo ao cidadão ser, ao mesmo tempo, seu próprio espectador e ator. Há nessas poéticas, um movimento de resgate e preservação dos elementos de uma autêntica “celebração”. Para Jean Duvignaud (1971, p.33), “o contrário do teatro não é o anti-teatro nem o teatro revolucionário, é a ‘festa’”v. Que a festa é um grupo que, com seus próprios meios, se “produz em espetáculo” é fato incontestável. A festa situa-se no “começo”, antes do teatro: ela representa a passagem da produção ao consumo. Gatti e Boal, pretendendo situar no mesmo plano o espectador e o ator, a pessoa e a personagem, propõem uma “redemocratização do teatro”, pela reivindicação de um evento similar à festa e, também, pelo questionamento das relações de produção-consumo. Em suma, eles tentam “instaurar uma produção livre”: a do homem se produzindo com seus próprios meios, diante de outros homens, longe de “quaisquer diferenças”. De certa maneira, as poéticas de Gatti e Boal, ao reivindicarem um teatro político e “popular”, esforçam-se para denunciar o sistema pelo qual a “cidade” lançava e lança, ainda, uma armadilha ao cidadão-espectador. Com efeito, são práticas engajadas na transformação do coletivo e do individual. Apesar da nossa pesquisa ter comportado tradução de texto, nosso interesse principal recaiu nas concepções de “jogo teatral” imanentes a essas poéticas. Ora no nosso contexto específico – alunos da graduação e Pós-Graduação X trabalhadores da Indústria, funcionários da EMBASA - foi o “jogo teatral” que cristalizou as relações ambíguas e, às vezes, equívocas que estes teatros Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 27 mantêm com o espectador e o problema da representação teatral. Este estudo se inscreveu, portanto, na perspectiva de um “novo distanciamento teatral”, pois que articulou a análise da criatividade formal à análise da criatividade espontânea; estabeleceu paralelos entre os planos teórico e prático, o trabalho do ator-personagem e o do espectador-pessoa. Ao longo dos tempos, o teatro e a linguagem sempre foram objetos de conflitos entre as classes dominantes e as classes dominadas, entre profissionais e amadores; conflitos de ordem teórica, política e econômica. Empreender um estudo dessa natureza significou ressuscitar a velha querela entre o novo e o moderno, entre os especialistas e os não especialistas. Portanto, não pudemos descartar, neste percurso, a comparação com outras vertentes teatrais passadas e contemporâneas. E nesse trajeto pontuamos ecos e interfaces, diferenças, semelhanças e analogias com outros autores e outras áreas do conhecimento. Pela interpretação dos elos e parentescos com outras práticas, outros diretores unimos esses diferentes aspectos, numa preocupação de homogeneidade, justificada por uma espécie de “anatomia comparada” e em função das variantes e semelhanças que nos foi possível discernir, posto que necessário nos pareceu analisar as relações que a arte teatral tenta empreender com a vida; refletir sobre o papel e a maneira de praticá-la, na perspectiva da implicação do espectador e do ator, questionando assim as noções de intervenção, de ator e de espectador. Igual empreendimento exigiu uma atenção e vigilância constantes. Ora, uma investigação dessa natureza, ancorada em poéticas nas quais o “ator social” pretende desnudar o “ator teatral”, apontando o problema de seus destinos comuns, pressupôs, da nossa parte, uma técnica teatral elaborada e aliada a uma consciência política clara. O fato de permanecermos atentos, nesse sentido, nos levou a evitar manipulações ideológicas e, sobretudo,a impedir o sacrifício do rigor estético em detrimento da militância e do imediatismo das opressões debatidas. Esse foi um grande desafio, uma dimensão pensada ao longo de toda a pesquisa. Tratou-se realmente de uma pedagogia da e pela intervenção teatral. De fato, nessas práticas “distanciamento” e “identificação” se fundiram a tal ponto que se tornou difícil delimitar as fronteiras entre teatro e vida, espectador e ator, pessoa e personagem. Foi nessa perspectiva que tentamos identificar o que subjazia às concepções boalianas e gattinianas de jogo, de emoção, de identificação e de distanciamento crítico do espectador-ator em relação à personagem, bem como suas incidências concretas no exercício da cidadania e na luta real pela liberação das opressões sociais cotidianas. Nesse contexto especícifico que unia alunos da Graduação e da Pós- Graduação em Artes Cênicas e trabalhadores da indústria para os quais as opressões sociais estavam localizadas no ambiente de trabalho, nas relações trabalhistas, os dois autores da pesquisa e suas militâncias foram cruciais para a promoção de uma “guerrilha de conciências”. Num primeiro tempo, montamos um Fórum sobre as opressões do cotidiano dos trabalhadores da EMBASA. Essa experiêcia de criação dramatúrgica e cênica coletivas resultou no Espetáculo “Cresça e Apareça – o qual estreou em abril de 2011. O segundo espetáculo foi sobre o trabalhador e a globalização – a montagem do texto de Augusto Boal, Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 28 “Revolução na América do Sul” – o qual estreou em novembro de 2011. Por fim a partir do texto de Armand Gatti e sempre pelo viés do Teatro-Fórum, montamos o texto “Máquina Escavadora” – o qual estreou em maio de 2012. Como Boal, Gatti (1982) considera que o fato de querer comunicar algo pronto ao público, significa que ele não tem nada a dizer ou, o que pode ser pior, significa querer FAZER e DIZER no seu lugar. Nesta ótica, abandonar o “espaço utópico do teatro” não é suficiente em si. Torna-se igualmente necessário mudar a mentalidade, pois para o autor, esta arte (...) seja de direita ou de esquerda [apresenta-se] como o mesmo e velho teatro reacionário. A técnica do teatro- fórum promoveu uma união harmoniosa com a dramaturgia de Gatti e seu pequeno Manual de Guerrilha Urbanavi. Ora, a "guerrilha" sugerida e ensinada pelo Pequeno Manual é antes de tudo uma guerrilha de consciências, um convite a assumir e conduzir a termo seu próprio destino, um convite a ser criador. “Nós defendemos o seguinte princípio: cada homem é um criador, exclama" um ator de Máquina Escavadora (GATTI, 1970, p.221). Em termos formais e estruturais Máquina Escavadora, como todas as peças do Pequeno Manual, é atual e constitui significativo e rico material didático e de reflexão sobre as noções de cidadania, de individualidade e coletividade. Como no Teatro do Oprimido, não se exige do cidadão-ator ou do cidadão-espectador que se tornem criadores. Eles já o são. O problema é que os obstáculos e as barreiras são tantos e tão sólidos que os mesmos não têm consciência de serem criadores potenciais. Todo combate, toda a utopia do Pequeno Manual consiste nessa tarefa de conscientização, nesse combate político e teatral. Como no teatro-fórum, a realidade é a mesma para o Teatro e para a Cidade. E é, exatamente, por essa razão que não somente Máquina Escavadora, mas todas as mini-peças do Pequeno Manual, tentam engajar o espectador, contam com suas intervenções. Para além da época e de sua dimensão político pedagógica, O Pequeno Manual constitui um projeto didaticamente aplicável, adaptável às preocupações sócio- políticas e artístico-culturais dos alunos da Graduação e Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA e dos trabalhadores da Indústria – os integrantes do EMBASART. Nem Gatti, nem Boal renunciaram aos trabalhos de escrita pessoal. Em suas “missões”, cada experiência constituiu um apelo à transformação do mundo: através do verbo para Gatti e através do ato para Boal. Ambos os autores não conceberam seus sistemas em termos de “utopia”, mas sim, em termos de “ativismo”. Quando nos referimos aos loulousvii de Gatti ou aos oprimidos de Boal, não evocamos os termos “fuga” ou “amadorismo”, e sim os termos “espectadores ativos”, uma vez que esses autores exortam atores e espectadores, formulam, através de técnicas dramatúrgicas ou de jogo teatral, um convite a “transformar o mundo”, recompensando uma escrita e uma ação oriunda da “realidade”, da “trama da existência”. DO CONTEXTO ESPECÍFICO DA PESQUISA E SEUS IMPACTOS Pontualmente e sob minha coordenação, o respectivo projeto, ancorado na técnica do Teatro do Oprimido - o Teatro-Fórum - de Augusto modificou e reavaliou as relações dos membros do grupo EMBASARTviii, bem como os produtos estéticos do EMBASART. As peças teatrais produzidas pelo EMBASART, até então, procuravam aliar informação, entretenimento e Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 29 responsabilidade social, levando ao público a missão e os valores da Empresa Baiana de Água e Saneamento. As apresentações eram estruturadas com o objetivo de alertar e conscientizar a população da necessidade de preservação dos recursos naturais, além de trabalhar institucionalmente temas como aposentadoria, segurança no trabalho, pregão eletrônico e atendimento ao cliente interno e externo. Desde outubro de 2010, o grupo ganha outra configuração organizacional ao aceitar desenvolver um projeto voltado para a saúde do trabalhador, enveredando, para tanto, nos princípios e técnicas da Poética do Oprimido. Nessa perspectiva, o Núcleo de Arte- NARTE, através do Programa de Qualidade de Vida do Trabalhador, aceitou, em parceria com o SESI, a respectiva empreitada, promovendo, entre outras importantes ações: A iniciação do grupo EMBASART na Poética do Oprimido; Experimentação da técnica do Teatro-Fórum, fomentando reflexões teóricas e práticas sobre temas referentes à qualidade de vida, motivação para o trabalho, saúde nas relações interpessoais, Opressão no trabalho e saúde do trabalhador, entre outros tópicos sugeridos pelos funcionários envolvidos no projeto; Produção de três espetáculos teatrais durante um ano e meio, com participação ativa dos integrantes do grupo, gerando diversas apresentações em vários locais dentro e fora das instituições teatrais; Sistematização e registro da experiência do grupo, através de publicação de um livro e edição de um DVD sobre os processos e produtos da pesquisa, como material educativo. Tais objetivos fizeram do projeto, uma iniciativa pioneira e situou o SESI/DR-BA e a EMBASA na posição de empresas inovadoras no enfoque da qualidade de vida do trabalhador, através da arte. O ensejo maior consiste agora em induzir a ampliação da experiência - a aplicação teórica e prática da proposta em outras empresas. Ora, com a prática evidenciou que tal experiência pode ser levada a qualquer empresa interessada em questões como qualidade de vida do trabalhador, relações interpessoais na instituição, questões trabalhistas e desenvolvimento do senso de cidadania e autoestima. DOS ESPETÁCULOS MONTADOS O primeiro espetáculo, Cresça e Apareça, discutiu as relações no trabalho, a partir de improvisações e roteiros elaborados em processos de criação coletiva, cujo tema principal consistia na avaliação funcional. Cresça e Apareça, por razões estilísticas e, sobretudo, porque estávamos iniciando o grupo EMBASART nas técnicas e teorias do Teatro do Oprimido, foi um espetáculo de custo zero e absolutamente despojado em termos cenográficos, de caracterização de figurino, maquiagem e de iluminação. Sem cenário e com figurino básico (blusa e calça de malha preta); maquiagem neutra e concepção de luz básica, Cresça e Apareça investiu no treinamento vocal e corporal dos atores, preparando para uma concepção mais sofisticada– em termos de Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 30 figurino, cenário, luz e adereços - que caracterizaria as duas outras montagens vindouras. CRESÇA E APAREÇA O argumento principal dessa trama foi a opressão sofrida por Ana Maria, uma representante sindical. Com cerca de vinte anos na Empresa Lado B Produções, Ana Maria se vê diante do conflito de ter que aceitar uma avaliação funcional da qual discorda. No decorrer da trama são apontados diversas formas e mecanismos de opressão, evidenciadas através de uma personagem opressora, a gerente geral da empresa, Doutora Leonor, que lhe dá um ultimato: “ou assina a sua avaliação funcional ou será transferida para o setor de xérox”. Neste caso o setor mencionado, além de rebaixar a atuação profissional da oprimida, tem atribuições completamente divergentes da formação e habilidades da funcionária. No momento preciso em que a situação de opressão atinge o clímax, o ultimato dado por sua superiora - Dra. Leonor, o espetáculo é interrompido com a intervenção do Curinga. Mediando o jogo, o curinga, através de suas exortações, coletivamente, propõe a busca de soluções provenientes do público para que a personagem Ana Maria atinja seus objetivos, quais sejam: conseguir que sua superiora efetue uma revisão de sua avaliação funcional. O papel do Curinga é desempenhado pela doutoranda Cilene Candaix. O anti-modelo desse espetáculo-fórum foi construído, a partir do tema da avaliação funcional, inspirado em experiências do grupo. No coração da construção desse anti- modelo, uma protagonista oprimida, cuja análise funcional da qual discorda, foi negativa e violenta, pois que pautada em critérios aleatórios e absurdos, sobretudo em face “dos muitos anos de dedicação à empresa”. A angústia vivenciada pela protagonista acentuou-se, durante o processo, em seus movimentos contraditórios. Outra questão bastante problemática foi a sucessiva troca do nome da empresa fictícia, Lado B Produções, por nomes em que a sonoridade revelava sempre e inexoravelmente o grupo consonantal MB. Um extraordinário trocadilho, denunciativo de uma provável associação com a empresa original, a EMBASA. O fato revelou o quanto a questão da avaliação funcional foi vivida de maneira dolorosa pela atriz e pelo grupo como um todo. REVOLUÇÃO NA AMÉRICA DO SUL Contrariamente à Cresça e Apareça, essa segunda montagem foi realizada com alto rigor e exigências estéticas mais sofisticadas, reivindicando em seus processos e produtos profissionais concepções mais elaboradas de luz, cenário, figurino, preparação corporal, vocal e musical – arranjos, preparação coral e execução da trilha sonora. Revolução na América do Sul, texto de Augusto Boal, escrito no início dos anos 60, inaugura, à época, uma nova estética no Teatro Arena de São Paulo. Com este texto há, por parte de Boal, um abandono da “dramática”, em prol de um investimento no gênero cômico, porque não dizer farsesco – opção esta que viabilizava ao autor a inserção da narrativa épica, a mais adequada para provocar o efeito de distanciamento – Verfremdung, de Bertolt Brecht. Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 31 A trama de Revolução Na América do Sul problematiza as tensões na relação capital/trabalho, por meio das mediações sociais existentes. Assim, o operário brasileiro e a situação econômica e social, à qual ele está submetido, é o motor principal. A fábula gira em torno da saga de José da Silva, operário e homem simples do povo. Fiel aos princípios brechtianos, a peça é episódica, ou seja, dividida em quadros. Em todos os quadros o único objetivo de José é conseguir comida e a cada quadro do texto ele passa por uma situação inusitada que ilustra a situação do operário brasileiro. No final da história, José morre engasgado com a primeira colherada de comida. A ENCENAÇÃO DE REVOLUÇÃO NA AMÉRICA DO SUL Para a adaptação do texto à encenação com o EMBASART, preservamos, entretanto, apenas nove quadros. A peça inicia-se com os atores/trabalhadores da EMBASA cantando o Hino Nacional e um corifeu anunciando que a Revolução vai começar. Em seguida, distribuído nesses nove quadros, temos José da Silva, seu opressor principal, o patrão, e seus opressores secundários: a mulher, o feirante, os parlamentares e o próprio Zequinha, amigo, mas informado e menos alienado que José, o qual o incita a fazer a Revolução em vez de pedir aumento. Na verdade José da Silva é meio que expulso de casa pela mulher, com a ressalva de que não adianta voltar, sem antes pedir aumento ao patrão. José, apesar do medo, consegue solicitar o tal aumento, mas é expulso do escritório do patrão – representado por uma grande sombra projetada numa parede branca e uma voz imponente – pelo imenso e amedrontador capanga deste último. Na saída, ao lamentar-se com Zequinha do seu fracasso, José da Silva descobre que o salário foi aumentado, mas em sua peregrinação jornada adentro, constata que o preço de tudo também aumentou. De que adianta o aumento do salário, se tudo aumenta junto? Quem é o culpado por tanto aumento? De parlamentar à feirante, passando por borracheiros e outros capitalistas, José da Silva, não encontrando respostas à sua pergunta, convencido por Zequinha, decide participar da Revolução. Marca-se dia e horário numa boate, ambiente isento de suspeitas. No entanto é nesse ambiente que José, abandonado pelos companheiros de luta é surpreendido - pelo patrão, em primeiro lugar, e depois pela própria mulher - segurando uma bandeira vermelha com a insígnia REVOLUÇÃO! O espetáculo interrompe-se com a máxima: você escolhe, ou faz a revolução ou está demitido! - acompanhado dos apelos desesperados da mulher que relembra a José os filhos com fome. As luzes se apagam, o curinga ocupa a dianteira da cena. Como se trata de um texto convencional adaptado ao Fórum, algumas imagens (a prática do Teatro Imagem), para facilitar a passagem ao Teatro-Fórum, são propostas. Essas imagens, quatro no total, retratam e condensam os principais momentos de opressão infligidos pelos opressores de José: A Mulher (imagem 1), O feirante (imagem 2), Os Parlamentares (imagem 3) e o Patrão (imagem 4). Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 32 REVOLUÇÃO NA AMÉRICA DO SUL: O PROCESSO “Revolução na América do Sul”, texto ainda pouco montado e estudado no Brasil constituiu um material didático promissor, pelas questões sócio- históricas e políticas que suscitou nos integrantes do EMBASART. A montagem além de evidenciar o cenário, figurinos, luz, música – ressaltou também o trabalho de preparação do ator inspirado nas técnicas da Commedia Dell’Arte, particularmente com a intenção de ressaltar a dimensão episódica do texto e facilitar a técnica do distanciamento brechtiano na interpretação dos atores. Os principais personagens opressores usavam máscaras e tinham gestuais e deslocamentos coreográficos bem precisos. Ademais, o modelo dramatúrgico da intriga de Revolução Na América do Sul foi bastante similar ao anti-modelo dramático do espetáculo fórum – apresentando, em suas situações dramáticas, o conflito constante entre opressores e oprimidos. Este aspecto autorizou com maior serenidade a adaptação do texto à técnica do teatro fórum. No espetáculo-Fórum que se seguiu às apresentações da peça, os espect-atores, inicialmente tímidos, ganhavam a cena e jogavam o jogo, maravilhados e entusiasmados com a ficção, seus labirintos e artifícios. MÁQUINA ESCAVADORA Obedecendo aos mesmos princípios e objetivos que nortearam o processo e o produto de Revolução na América do Sul, Máquina Escavadora contou com concepções sofisticadas para figurino, cenário, sonoplastia, preparação corporal, vocal e coral. Com a experiência e lastros adquiridos pelos atores no processo de montagem do primeiro espetáculo, Cresça e apareça – o ensejomaior para essas duas últimas montagens era unir nossas preocupações estéticas: teatro de ação, improvisação à perfeição artística, imprimindo assim um aspecto profissional aos processos e produtos da pesquisa. Assim, esse terceiro e último espetáculo foi livremente inspirado no já referido texto de Armand Gatti, La Machine Excavatrice. A fábula original de Gatti gira em torno da história de Totuy e Marianne, um guerrilheiro e uma profissional de meteorologia, que tiveram no passado um relacionamento afetivo. No presente, Totuy se encontra em Cuba, à frente da colônia de invasão Che Guevara, e Marianne, na França, exercendo sua profissão. Ambos se perguntam se é ou não possível prosseguirem nesta relação, já que se encontram tão distantes e têm projetos de vida tão diferentes. Esta discussão do casal tem lugar, se não num plano onírico, no mínimo numa dimensão poética, considerando que os dois se encontram em locais distantes e distintos e que misturam às suas considerações, diálogos do passado e do presente. Os companheiros de Totuy se opõem veementemente ao romance, por considerarem a luta armada incompatível com uma relação dessa natureza. Em dado momento os atores abrem a discussão para os espectadores, que passam a opinar, através da votação e da participação direta na cena. Máquina Escavadora ou para entrar no plano de implantação da Colônia de Invasão Che Guevara, comporta 5 personagens: Totuy, aliás Diaz, o Capitão cubano, Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 33 Mariane, sua mulher, Cecil, Dionige, Rogelio - camaradas de Totuy. A peça subdivide-se em quatro espaços, norte, sul, leste, oeste, todos localizados e decorados com os diferentes elementos de uma máquina escavadora. Nesta trama, os personagens não se falam diretamente, eles se contam. A rigor, Máquina Escavadora pode ser definida como uma peça de cinco personagens que se contam diante do público. Em sua tentativa de integrar à linguagem teatral, formas que, a priori, não são teatrais, esta solução surgiu para Gatti como a mais viável. O debate de La Machine Excavatrice gira em torno da pertinência da relação do casal protagonista da ação, Totuy e Marianne. Essa característica do texto nos autorizou - através da imagem caleidoscópica (outra técnica do T.O descrita na Obra Arco-íris do desejo) a encontrar ecos e semelhanças de situações de impasses ou de divisão, as quais desencadearam a reconstituição/rememoração de situações concretas de opressão nos integrantes do EMBASART. No espetáculo-Fórum resultante, os membros do EMBASART contaram em cena situações de opressões de - gênero, raça, cor, sexo - padecidas no ambiente de trabalho. Nessa perspectiva, espectadores e atores definiram conjuntamente os rumos do próprio espetáculo. O trabalho do EMBASART iniciou-se com a encenação de opressões reais, afirmou-se com a encenação de um texto dramatúrgico convencional e finalizou partindo de um texto para chegar às opressões reais. O movimento cíclico consistiu, então, em partir da vida à ficção; da ficção à vida. Quem reinventou o quê? Tal experiência comprovou que é possível unir objetivos políticos e ideológicos: teatro de ação com improvisação e perfeição artística. DOS OBJETIVOS ALCANÇADOS Nossos objetivos iniciais, relembremos, consistiam em: - refletir sobre a dimensão pedagógica destas poéticas e seus aspectos de intervenção social; - identificar e/ou apontar os elementos universais inerentes ao teatro desses autores: aspectos políticos, sagrados, ritualísticos – a instauração da festa e a natureza democrática da arte do teatro; - estabelecer ecos e interfaces com práticas passadas e contemporâneas. Ao atingir tais objetivos, efetuamos em termos práticos e teóricos: - uma revisão, a partir dos três espetáculos-fóruns montados, do secular e polêmico conceito (ou paradoxo) de mímesis; - questionamos os pressupostos teóricos presentes nas poéticas de Gatti e Boal e suas contribuições e incidências concretas na realidade dos sujeitos implicados nessa pesquisa (trabalhadores da EMBASA e do SESI/Bahia). Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 34 DAS CONSIDERAÇÕES FINAIS De maneira geral, esta pesquisa não se limitou à genealogia das técnicas utilizadas por Boal e Gatti, nem às montagens de espetáculos-fórum, somente, mas interrogou o campo de ação e o objeto concreto dessas poéticas: arte, política, ou terapia? À luz de teorias semiológicas, literárias, sociológicas e até psicológicas, a pesquisa compreendeu três etapas precisas; estruturou uma problemática que considerou: a relação ao engajamento político do sujeito implicados (trabalhadores da indústria, alunos da graduação e da pós-graduação em artes cênicas); e a relação pedagógica: “educação e libertação do ator- espectador-pessoa”; Conforme assinalado desde o início, tratou-se de uma pesquisa teórico- prática que culminou em performances e encenações ao final do processo. A pesquisa teórica, além do estabelecimento de uma rede de conceitos fundamentais, comportou um levantamento dos elementos significativos do quadro histórico sócio-político-econômico e artístico-cultural no qual emergiram e afirmaram-se as práticas de Boal e Gatti. Nesse sentido sempre adaptamos tais elementos à atualidade e à realidade dos sujeitos implicados. O título desta conferência questionou-me enquanto pesquisadora, artista e professora de teatro. Tendo em vista que, antes de trabalhar com a comunidade, trabalhadores da EMBASA/SESI-Bahia, tenho uma atuação predominante e afirmativa na graduação e na pós-graduação em Artes Cênicas, com indivíduos que aspiram a uma especialização e/ou a uma profissionalização, não pude escapar de, através deste projeto, alimentar outra ambição. Nessa perspectiva, interroguei-me acerca da natureza e dos fins desta investigação/intervenção. Tratou-se de tornar os trabalhadores da indústria em melhores espectadores, amadores esclarecidos e mais exigentes ou transformá-los igualmente em «atores» sociais e teatrais? O que realmente esperamos de seus comportamentos sociais ao engajá-los em montagens e produções de espetáculos-fóruns? Devíamos ter-lhes ensinado, de uma só vez, que o teatro é uma dimensão substancial do ser humano, o Solar e o Lunar, Apolo e Dionísio, a clareza de espírito e as profundezas noturnas do ser? Não foram meras interrogações, mas questões essenciais, que impregnam a nossa vida no que ela possui de mais trivial e concreto e também no que ela possui de mais metafísico. E o teatro interrogou esses “atores” em seus corpos e espíritos. Mas não se tratou de estabelecer um equilíbrio estático entre Apolo e Dionísio ou, para retomar as oposições binárias, de colocar um pouco de «papel» e um pouco de «personalidade»; um pouco de Artaud e um pouco de Brecht, sob pena de confundirmos dois enfoques absolutamente distintos: o da arte e a da vida cotidiana. Antonin Artaud (1973, p.166, tradução nossa), nesse domínio, nos propôs um modelo: a personagem de Héliogabale: ao mesmo tempo, Deus e Homem, astro solar e astro lunar, homem e mulher “é a religião de Um que se rompe em Dois, para agir, para ser”. Talvez seja seguindo os gregos ou Héliogabale, trabalhando a partir de duas atitudes opostas - Brecht e Artaud - que o teatro Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 35 pode nos ajudar a AGIR e a SER, o que é, segundo Brecht (1972, p.84), diametralmente oposto à vida da personagem: “é alguém com quem os outros vivem e de que vivem os outros. Ë alguém que não vive realmente e possui apenas a ilusão de viver (...) Ela é, por assim dizer, vivida”. Seguir quem acredita que «o homem-espectador» pode ser o criador e mestre do destino do «homem-personagem», quem clama, como Boal (1991,p.11) “Não digam! Venham em cena e mostrem-nos suas visões do mundo“, ou quem prefere, como Gatti, ir ao encontro dos «atores da realidade» e reapropriar- se com eles do “poder da linguagem teatral” para tornarem-se "criadores", seria uma opção eficaz?. Com certeza a dimensão prática desse projeto respondeu a algumas dessas importantes questões. Ela já afirmou a dimensão solidária e democrática dessa arte ao reunir, universitários e trabalhadores da indústria num só projeto, nu só intento: o de jogar e discutir questões político-sociais, questões das relações no trabalho e da saúde do trabalhador através do teatro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARTAUD, Antonin. Oeuvres complètes. Tome II. Paris: Gallimard, 1973. BOAL, Augusto. A Estética do Oprimido. Rios de Janeiro: Garamond, 2008. ______. Jogos para Atores e não atores, com vontade de dizer algo através do teatro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. ______. Teatro do Oprimido e outras políticas, 6ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. BRECHT, Bertolt. L’achat du cuivre. Paris: L’Arche, 1972. DUVIGNAUD, Jean. Le Théâtre et après. Tournai: Casterman, 1971. GATTI, Armand. On a theatrical event. Modern Drama, v. XXV, n. 1, 1982.Jean ______. Oeuvres Théâtrales. Tome II. Lagrasse: Editions Verdier, 1970. i Atriz e dramaturga; Pós-Doutora em Dramaturgia pela Université du Québec à Montréal UQAM; Professora Associada IV da UFBA; Pesquisadora 1C do CNPq e Coordenadora da Área das Artes na CAPES. Contato eletrônico: apereira@ufba.br. ii Título em inglês: “The Theatre of the Oppressed in the company: ‘Forum Theater’ and quality of life of the worker”. iii Alusão ao subtítulo de uma das obras de Augusto Boal (1988): Jogos para Atores e não atores, com vontade de dizer algo através do teatro. iv O aporte principal desta pesquisa foi, portanto, a validação pela experiência prática, das hipóteses levantadas no plano teórico e/ou o surgimento de novas hipóteses que emergiram desta prática. v Tradução minha. "le contraire du théâtre, ce n'est pas l'anti- théâtre, ou théâtre révolutionnaire, c'est la fête". vi Reunião de Peças políticas do autor comportando um número pequeno de personagens e com estrutura cênica transportável e adaptável aos mais diversos lugares e espaços para sua representação. O Título Pequeno Manual de Guerrilla Urbana é uma irônica resposta ao Prefeito de Paris, que em maio de 1968 declarou, referindo-se aos artistas que manifestavam nas ruas - dentre os quais Gatti: nós tivemos que lidar com verdadeiros profissionais de guerrilha”. vii Gatti trabalha, sobretudo, nas prisões de Toulouse, Marseille e Strasbourg. Loulous é o termo carinhoso para se referir a esses “atores sociais”, enclausurados, para quem talvez a linguagem (teatral) possa se constituir numa via de libertação. viii Grupo de Teatro formado pelos os funcionários da EMBASA. ix Sob minha orientação Cilene Canda defendeu tese de doutorado no PPGAC/UFBA intitulada Todo mundo pode fazer teatro: o teatro do oprimido e a formação político-estética de trabalhadores da indústria. 2013. 263fl. Dissertação – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013. Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 36 SANTOS, Bárbara Tavares dosi. A experiência do Teatro do Oprimido dentro do Projeto “Ô de casa!”: intercâmbio de saberes e culturas entre os cursos de Licenciatura em Teatro e Educação do Campo da UFT. Arraias/Palmas, TO, Brasil: Universidade Federal do Tocantins (UFT). RESUMO Este breve artigo trata do relato de uma experiência de Teatro do Oprimido que foi vivenciada na cidade de Arraias, Tocantins, em setembro de 2014. As práticas (que envolveram jogos, debates e a apresentação de uma Cena de Teatro Fórum), foram realizadas dentro do Projeto “Ô de Casa!”. Busca-se enfocar no relato, reminiscências da experiência vivida, e, a partir delas, propor reflexões sobre possíveis contribuições que a prática do Teatro do Oprimido, dentro de um projeto voltado à troca de saberes, pode suscitar na formação dos futuros professores de artes que irão atuar nas áreas urbanas e rurais do estado do Tocantins. PALAVRAS-CHAVE: Teatro do Oprimido: Memória: Formação de professores: Intercâmbio de saberes. ABSTRACTii This short paper is an experience report with the Theatre of the Oppressed Theatre in the city of Arraias, Tocantins, at September 2014. The practice, (involving games, debates and the presentation of a Forum play) were held within the project “Ô de casa!”. The aim is to hang in reminiscences account of lived experience, and from memory to reflect on possible contributions to the practice of Theatre of the Oppressed, together with the exchange of knowledge, may raise the formation of future arts teachers who will work in urban areas and rural of Tocantins state. KEYWORDS: Theatre of the Oppressed: Memory: Teacher training: Knowledge exchange. O Projeto “Ô de casa!” A experiência do Teatro do Oprimido relatada neste artigo foi uma das ações realizada dentro do Projeto “Ô de casa!” na cidade de Arraias, Tocantins, no mês de setembro 2014. A ação faz parte das práticas artístico-pedagógicas que estão sendo desenvolvidas na Universidade Federal do Tocantins (UFT), com a parceria entre docentes e discentes do curso de Licenciatura em Teatro de Palmas e do Curso de Educação do Campo de Arraias. O projeto é promovido pelos colegiados dos referidos cursos e conta com o apoio financeiro e institucional da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura da UFT. A proposta emergiu do desejo dos docentes por intercambiar saberes e culturas produzidas nas diferentes realidades dos campis que abrigam os cursos de licenciatura em artes da UFT. Entre os objetivos do projeto estão: i)proporcionar um intercâmbio de saberes entre universidade e comunidade, ii)contribuir com o processo de formação estética, política e social dos futuros professores de artes que irão atuar no estado do Tocantins e iii)fortalecer os diferentes saberes e as práticas artísticas que já são patrimônios culturais e históricos da cidade de Arraias. Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 37 As práticas com o Teatro do Oprimido foram realizadas na sede do campus da UFT de Arrais/Polo UABiii, e na Praça Joaquim de Sena e Silva, no centro histórico da mesma cidade. Participaram das atividades, docentes e discentes do curso de Licenciatura em Teatro do campus de Palmas e, do curso de Educação do Campo e de outras licenciaturas do campus de Arraias. A oficina teatral foi ministrada pela autora deste trabalho, tendo como mediadoras as professoras Daniela Gomes e Sílvia Tavares, ambas idealizadoras do projeto. As atividades duraram dois dias, contando com 18 participantes entre 20 a 45 anos, tanto do sexo masculino quanto do feminino, abarcando no grupo, inclusive, indivíduos de classes populares. Fragmento de memória: uma escolha estético-afetiva Dando seguimento ao relato, passo a fazê-lo em forma de fragmento de memória, porque, como Walter Benjamin nos diz, “a memória é a mais épica de todas as faculdades” (1994, p.210). Ela é o fragmento do Todo que nos permite apropriarmos do curso das coisas vividas, por um lado, e resignarmos, por outro lado, com o esquecimento das coisas. Porém, não se trata aqui apenas de uma crônica de impressões vividas e/ou esquecidas, mas, da exposição de traços de reminiscências que atravessam instâncias individuais e coletivas. Ou seja, fragmentos de memória, por meio das quais é possível visar em um fluxo espiral, aspectos históricos, estéticos, políticos e afetivos que articulam passado, presente e futuro. Proponho trazer a memória como um fio condutor que conduz a vida e que nos permite imaginar e sentir, mais que descrever e analisar. Uma memória que contém a ancestralidade, que transpassa fronteiras e que permitejuntar reflexões de Augusto Boal e de Walter Benjamim com a capoeira, a súciaiv, a comida, a bebida, as histórias sobre as opressões do coronelismo e sobre o ciclo da mineração, assim como as resistências negras na cidade de Arraias. Enfim, as memórias que unem a geografia física, política e afetiva de Arraias com as histórias de vida de nós todos, docentes e discentes oriundos de diversas partes do país, e, atualmente, estudantes e artistas-pesquisadores residentes no Tocantins. Parece-me então, que, de fato, a memória “tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si” (BENJAMIM, 1994, p.211). Permito-me agora seguir o fluxo de minhas reminiscências conforme elas vão sendo rememoradas, sem uma preocupação com encadeamento linear dos fatos, mas ao contrário, procurando narrar os múltiplos (e simultâneos) espaços e tempos que me atravessaram, e, que me permitem, aqui e agora, estabelecer reflexões e suscitar aprendizados. Fragmento I – o encontro com a(s) realidade(s) ou quando a imagem da cidade rememora tempos de opressão Não sei se chegamos a Arraias ou se foi à pequena cidade que chegou até nós. Era por volta da hora do almoço, o sol brilhava intensamente sobre as pequenas ruas de paralelepípedos quando fomos recepcionados pela professora Sílvia Tavaresv. Em seguida, ela nos conduziu à sede do campus da UFT no Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 38 centro da cidade, local onde ocorreu a oficina. Lembro-me de ter entrado rapidamente no edifício que abrigou as atividades. Depois de algum tempo, passada a correria pelo início da oficina, atentei-me para o fato de que o local era uma espécie de casarão que, embora modificado, mantinha alguns poucos resquícios de traços da arquitetura portuguesa estilo colonial. Arquitetura esta, também presente em outras casas que avistamos depois. Curiosamente, após alguns instantes ficamos sabendo, durante a apresentação da história da cidade feita pela professora Sílvia Tavares, que Arraias foi fundada em meados do século XVIII, durante o período do Ciclo do Ouro, e que, portanto, guarda de fato em sua arquitetura e em suas tradições, traços desse tempo passado. Embora, no momento do relato da história da cidade, eu não tivesse de imediato antevisto as considerações que ora exponho, reflito agora o quanto o encontro com o espaço físico de Arraias proporcionou por si só encontro(s) com realidade(s). Isto é, encontro(s) com diferentes e díspares histórias de todas as negritudes que outrora ajudaram a erguer a cidade, e que agora constituem as etnias miscigenadas que compõem as atuais realidades arraianas. Encontros in loco com histórias de um processo colonial pautado na exploração das riquezas da terra, no status quo burguês, na manutenção de preconceitos étnico-raciais e religiosos (entre outros), ligados aos mecanismos de agenciamento e manutenção de opressões. Reflito o quanto a oportunidade de aprender e ensinar teatro por meio de um projeto que proporciona encontro(s) de histórias e de saberes pode ser produtivo. Produtivo, não só do ponto de vista do levantamento de materiais a serem utilizados esteticamente em cena (seja ela uma cena de Teatro Fórum ou não), como também produtivos do ponto de vista de reflexões éticas, afetivas e políticas. Penso que a oportunidade dada aos estudantes dos diferentes cursos de licenciatura de se encontrarem no projeto “Ô de casa!”, tendo que se deslocar de seus lugares de conforto (advindos da estrutura acadêmica convencional) e com os confrontamentos (em meio à produção de um trabalho estético) com realidades tão diversas e ricas, talvez funcione como um potente caminho alternativo para se redimensionar procedimentos e métodos de ensino, e, mais especificamente, do ensino de teatro. Fragmento II – A oficina de teatro do oprimido: corpos em afetos Dei início à oficina às 14 horas. Com a ajuda de todos, retiramos as carteiras que estavam na sala para que pudéssemos realizar os jogos. Anunciei que se tratava de uma oficina de Teatro do Oprimido e perguntei quem conhecia a metodologia. Alguns disseram que sim, outros disseram que não. Fiz, então, uma breve explanação sobre quem foi Augusto Boal e a importante contribuição dele para a história do teatro brasileiro e mundial. Expliquei ainda que o “Teatro do Oprimido, em todas as suas vertentes busca sempre a transformação da sociedade no sentido da liberdade dos oprimidos. É ação em si mesmo, e é também preparação para ações futuras” (BOAL, 2005, p.19). Após esse momento de contextualização, dei início aos exercícios. Talvez, um leitor não familiarizado com o tema possa estar se Anais das II Jornadas Internacionais Teatro do Oprimido e Universidade 39 perguntando: o que são os exercícios no Teatro do Oprimido? Para responder a pergunta, convido então o próprio Boal (2000, p.87-88) a falar: Neste livro, utilizo a palavra “exercício” para designar todo o movimento físico, muscular, respiratório, motor, vocal que ajude aquele que o faz a melhor conhecer e reconhecer seu corpo, seus músculos, seus nervos, suas estruturas moleculares, e suas relações com os outros corpos, sua gravidade, objetos, espaços, dimensões, volumes, distâncias, pesos, velocidade e as relações entre essas diferentes forças. [...] Na verdade, os jogos e exercícios que aqui descrevo são antes de tudo joguexercícios, havendo muito de exercício no jogo e vice-versa. Percebemos pela fala de Boal, que os exercícios/jogos são procedimentos físicos, expressivos e didáticos, que possibilitam aos jogadores, estabelecer encontros(s) e descobertas corporais individuais e coletivas. Partilhando desse espírito de descobertas, iniciamos os trabalhos. Entre os momentos vivenciados na oficina, recordo-me dos corpos em afetos. Lembro-me da variante que fizemos do exercício Floreta dos sons (BOAL, 2000, p.155) relacionado à percepção auditiva. Estávamos todos em círculo de mãos dadas com os olhos fechados. Os participantes, que já haviam sido anteriormente divididos entre as funções de cego e guia, respiravam juntos em sintonia. No instante em que o start do jogo foi dado, em meio aos sons produzidos pelos guias, os cegos começaram a movimentar-se lentamente desfazendo aos pouquinhos o círculo. Durante o deslocar dos corpos, os participantes cegos, caminhando em direção ao som emitido por seus parceiros guias, esbarravam por vezes uns nos outros, formando um balé de afetos advindo do contato sutil entre mãos, braços e corpos, que em movimento, esculpiam formas vivas. Lembro ainda, ao final desse exercício, de ter ouvido dos participantes que há muito tempo eles não sentiam seus corpos tão presentes em si mesmo, nos outros, e no aqui e agora, quanto naquele instante do exercício Floresta dos sons. Fragmento III – A Cena Fórum: o eterno reencontro com a dúvida e com as grandes descobertas O Teatro Fórum, uma das vertentes do Teatro do Oprimido, é um pequeno espetáculo baseado em fatos reais, no qual personagens oprimidos e opressores entram em conflito, de forma objetiva, na defesa de seus interesses. No confronto, o oprimido fracassa e o público é convidado pelo Curinga a entrar em cena, substituir o protagonista e apontar alternativas para o conflito encenado. Em nossa oficina, trabalhos com o Teatro Fórum. A cena foi decidida por meio da votação feito pelos participantes do grupo. Todos os participantes tiveram liberdade para relatar situações pessoais ou comunitárias de opressão que tivessem vivenciado em algum momento de suas vidas, contudo, uma das participantes optou por não relatar uma história pessoal, mas por narrar uma situação de opressão que havia ocorrido com a mãe dela. Após o relato, o grupo, por meio de debate, entendeu que a opressão relatada era uma caso relevante para a cidade e que merecia ser debatido por toda a comunidade. Assim, a Anais das
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