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Inteiro Teor do Acórdão – Página 1 de 24 ADPF 109/SP 1 ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMEN- TAL 109 SÃO PAULO RELATOR: MIN. ALLAN DE ANDRADE FERREIRA REQTE.(S): CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA INDÚSTRIA INTDO.(A/S): CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO INTDO.(A/S): PREFEITO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO RELATÓRIO Trata-se de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) interposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da In- dústria (CNTI) contra a Lei Municipal n° 13.113/2001 do município de São Paulo. Por arrastamento, pede-se também que seja afastada a incidência do Decreto n° 41.788/2002. A lei em comento tem por objeto a vedação ao uso de materiais, elementos construtivos e equipamentos da construção civil constituídos de amianto naquela unidade da federação. Em apertada síntese, a parte autora sustenta: • O desrespeito à legislação federal com a edição da lei municipal; • A incompetência da câmara municipal para a edição de lei sobre a matéria já regulada de forma diametralmente oposta por lei fede- ral; • A inconstitucionalidade formal e material da lei; • A afronta ao pacto federativo e ao princípio republicano da livre iniciativa. No aspecto material, a Requerente alega ser possível a utilização responsável no uso do amianto crisotila e que a edição do normativo seria uma privação da liberdade econômica. Por outro lado, na parte formal, Inteiro Teor do Acórdão – Página 2 de 24 ADPF 109/SP 2 alega que após a edição, pela União, da Lei n° 9.055/95 disciplinando a matéria, o município não poderia extrapolar de suas competências e edi- tar matéria contrariando o normativo federal, visto que sua competência, por ser concorrente, é meramente residual em relação ao Estado e à União e tal lei expressamente autoriza a utilização do amianto crisotila. Por fim, alegando a presença do fumus boni iuris e periculum in mora, requer a concessão de medida cautelar sobre a questão ora em juízo. A câmara municipal, com o fito de pôr fim à controvérsia, sustém que 1) a parte autora é ilegítima para a propositura de tal ADPF, 2) que não cabe controle de constitucionalidade em face de lei municipal pelo STF e que 3) não se observou o princípio da subsidiariedade da ADPF, presente na lei n° 9.882/92 que a regulamentou. O município diz ainda que 1) não há risco de danos de difícil (ou impossível) reparação apto a ensejar a cautelar, 2) sua competência resi- dual não pode restar frustrada pela simples edição de lei federal, com a consequente redução do papel dos municípios no pacto federativo e 3) solicita a declaração incidental de inconstitucionalidade da Lei federal, alegando os sérios impactos que o amianto causa. É o breve relatório. Passo a decidir. 1. PRELÚDIO PROCESSUAL: DO CABIMENTO DA ADPF E DA LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM Como é cediço, as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) são propostas a fim de declarar inconstitucionais leis ou atos normativos federais ou estaduais. Não se encontra, pois, no rol de competências desta corte constitucional, estampado na alínea “a” do inciso I do art. 102 da Inteiro Teor do Acórdão – Página 3 de 24 ADPF 109/SP 3 carta magna, a competência para julgar ADI contra lei ou ato normativo municipal. Por outro lado, a Lei n° 9882/92 prevê expressamente que: Art. 1o A argüição prevista no § 1o do art. 102 da Constituição Federal será proposta perante o Supre- mo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou repa- rar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único. Caberá também argüição de des- cumprimento de preceito fundamental: I - quando for relevante o fundamento da controvér- sia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Cons- tituição; [...] Art. 4o A petição inicial será indeferida liminarmente, pelo relator, quando não for o caso de argüição de descumprimento de preceito fundamental, faltar al- gum dos requisitos prescritos nesta Lei ou for inepta. § 1o Não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer ou- tro meio eficaz de sanar a lesividade. Como se percebe, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fun- damental tem por objeto (i) evitar ou reparar lesão a preceito fundamen- tal resultante de ato comissivo ou omissivo do Poder Público, (ii) quando não houver outro meio apto a saná-la (princípio da subsidiariedade). A análise da lesão ou ameaça da lesão será o objeto de toda a lide, portanto, despicienda se faz a análise peremptória nesta parte do voto, o que se fará adiante. Todavia, quanto a subsidiariedade da ação, a doutri- na explica: Inteiro Teor do Acórdão – Página 4 de 24 ADPF 109/SP 4 [...] o princípio da subsidiariedade - inexistência de outro meio eficaz de sanar a lesão -, contido no §1º do art. 4º da Lei n. 9.882, de 1999, há de ser compreendi- do no contexto da ordem constitucional global. Nesse sentido, se considera o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta, inclusive, da legitimação ativa), meio eficaz de sanar a lesão parece ser aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. Assim, a Lei 9.882 exige como condição de possibili- dade da ADPF, o esgotamento de todos os meios para o saneamento do ato lesivo (§1º do art. 4º). Conforme posição firmada pelo STF na ADPF n. 33, os meios a serem esgotados para que se admita a ADPF são aqueles do controle concentrado.1 No que tange a ilegitimidade ativa ad causam, a lei supramenciona- da em seu art. 2°, inciso I, confere legitimidade para a proposição de ADPF aos mesmos agentes aptos a proporem ADI, dentre os quais consta, no inciso IX do art. 103 da constituição, “confederação sindical ou entida- de de classe de âmbito nacional”. Sendo assim, afasto qualquer alegação de que há inadequação da via eleita, uma vez que contra lei do município não se poderia interpor ADI nesta corte (ou qualquer outro meio de controle concentrado), res- tando, portanto, configurada a subsidiariedade da presente ação; e a dis- cussão da matéria é sobremaneira relevante para o adequado cumpri- mento dos preceitos constitucionais relativos à saúde e à valorização do trabalho e livre iniciativa. Quedou-se também afastada a ilegitimidade ativa da CNTI tendo em vista a expressa previsão do art. 2°, inciso I, da Lei n° 9.882/92 c/c o art. 103, inciso IX, da constituição. 1 CANOTILHO, J. J. GOMES; MENDES, Gilmar Ferreira; SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet e STRECK, Lenio Luiz. Coordenação Científica. Comentários à Constituição do Brasil. 2 ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 1499. Inteiro Teor do Acórdão – Página 5 de 24 ADPF 109/SP 5 Feitas essas considerações preliminares, passo ao exame do mérito. 2. DAS CONVENÇÕES N° 139 E 162 DA OIT E SEUS STATUS NO ORDENAMENTO PÁTRIO Ao adentrar no mérito é necessário ainda expor uma questão de ordem formal, que diz respeito a incidência ou não das convenções da OIT n° 139 e 162. Isso porque, após a edição da Emenda Constitucional n° 45, de 2004, que incluiu o § 3° ao art. 5°, não restaram dúvidas de que os tratados internacionais que versem sobre direitos humanos e que forem submetidos ao rito do art. 60 da constituição integram a lei maior. Ocorre que houve durante um tempo certa controvérsia sobre qual o status cons- titucional de tais tratados quando não forem submetidos ao quórum mí- nimo 3/5 (três quintos) dos membros do Senado e da Câmara dos Depu- tados, em 2 (dois) turnos. Esta corte, debruçando-se sobre tal celeuma, já assentou, na opor- tunidade do julgamento do RE 466.343, conforme se extrai do brilhante voto do Excelentíssimo Ministro Gilmar Mendes, que “o status normativo supralegal dos tratados internacionais de direitoshumanos subscritos pelo Brasil [...] torna inaplicável a legislação infraconstitucional com ele conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão”. A observação se faz imperiosa, porque a convenção n° 162 da OIT foi referendada pelo Decreto n° 126, de 22 de maio de 1991 e de igual ma- neira a convenção n° 139 também da OIT foi referendada pelo Decreto n° 157, de 2 de julho de 1991. Sendo assim, figuram em uma posição inter- mediária entre a constituição e as leis (infraconstitucionais e supralegais). Devem, portanto, obedecer aos cânones constitucionais, mas tangenciam a validade das leis produzidas no país. Inteiro Teor do Acórdão – Página 6 de 24 ADPF 109/SP 6 Após demonstrar a incidência das convenções, delas é possível ex- trair os seguintes excertos atinentes à matéria: CONVENÇÃO N° 162 DA OIT Art. 2º — Para os fins da presente Convenção: a) o termo ‘amianto’ refere-se à forma fibrosa dos silica- tos minerais que pertencem às rochas metamórficas do grupo das serpentinas, ou seja, a crisotila (amian- to branco), e do grupo das anfíbolas, isto é, a actinoli- ta, a amosita (amianto azul), a tremolita, ou todo composto que contenha um ou mais desses elementos minerais; [...] Art. 3º — 1. A legislação nacional deve prescrever as medidas a serem tomadas para prevenir e controlar os riscos, para a saúde, oriundos da exposição profis- sional ao amianto, bem como para proteger os traba- lhadores contra tais riscos. [...] Art. 10 — Quando necessárias para proteger a saúde dos trabalhadores, e viáveis do ponto de vista técnico, as seguintes medidas deverão ser previstas pela legis- lação nacional: a) sempre que possível, a substituição do amianto ou de certos tipos de amianto ou de certos produtos que contenham amianto por outros materiais ou produtos, ou, então, o uso de tecnologias alternativas desde que submetidas à avaliação científica pela autoridade Inteiro Teor do Acórdão – Página 7 de 24 ADPF 109/SP 7 competente e definidas como inofensivas ou menos perigosas; b) a proibição total ou parcial do uso do amianto ou de certos tipos de amianto ou de certos produtos que contenham amianto para certos tipos de trabalho. CONVENÇÃO N° 139 DA OIT ARTIGO 1 1 - Todo Membro que ratifique a presente Convenção deverá determinar periodicamente as substâncias e agentes cancerígenos aos quais estará proibida a ex- posição no trabalho, ou sujeita a autorização ou con- trole, e aqueles a que se devam aplicar outras disposi- ções da presente Convenção. [...] 3 - Ao determinar as substâncias e agentes a que se re- fere o parágrafo 1 do presente Artigo, deverão ser le- vados em consideração os dados mais recentes conti- dos nos repertórios de recomendações práticas ou guias que a Secretaria Internacional do Trabalho pos- sa elaborar, assim como a informação proveniente de outros organismos competentes. ARTIGO 2 1 - Todo Membro que ratifique a presente Convenção deverá procurar de todas as formas substituir as subs- tâncias e agentes cancerígenos a que possam estar ex- postos os trabalhadores durante seu trabalho por substâncias ou agentes não cancerígenos ou por subs- tâncias menos nocivas. Na escolha das substâncias ou agentes de substituição deve-se levar em conta suas propriedades cancerígenas, tóxicas e outras. Inteiro Teor do Acórdão – Página 8 de 24 ADPF 109/SP 8 Percebe-se dos normativos internacionais que a legislação brasileira necessita passar por reiteradas revisões, a fim de saber à luz do conheci- mentos científicos vigentes: 1) se é tecnicamente viável a substituição do amianto por outras substâncias menos danosas, levando em consideração os conhecimentos científicos e as tecnologias alternativas existente à épo- ca e as tecnologias; e, 2) se deve adotar a proibição parcial ou total do uso de amianto. Portanto, a decisão não prescinde da construção de um panorama técnico e científico do atual estágio das pesquisas sobre o impacto sanitá- rio do uso de amianto sobre os trabalhadores, bem como sobre a existên- cia e viabilidade de alternativas para a mesma finalidade. Esse panorama, salvo melhor juízo, já fora construído quando da análise da ADI 3.937/SP, onde se discorreu mais amiúde, dada a participação dos amici curiae, so- bre os impactos do uso de amianto. 3. A ANÁLISE TÉCNICA SOBRE O ASSUNTO NA ADI 3.937/SP E A TUTELA À SAÚDE O que melhor caracteriza a lógica das pesquisas científicas, nas li- ções de Karl Popper, é princípio da falseabilidade. É justamente ele que distingue o saber da ciência de outros tipos de saberes, como o religioso e o filosófico. A advertência é relevante, pois justifica a necessidade de re- visões periódicas sobre a matéria. A ciência vive uma constante evolução e o ordenamento jurídico não poderia ficar alheio a elas, pois poderia, com isso, desproteger os bens jurídicos fundamentais. Como bem disse Karl Popper2, ela possui algumas regras metodológicas que lhe conferem um caráter evolutivo: 2 POPPER, Karl Raimund. A lógica da pesquisa científica. São Paulo: Editora Cultrix, 2004, p. 56. Inteiro Teor do Acórdão – Página 9 de 24 ADPF 109/SP 9 (1) O jogo da ciência é, em princípio, interminável. Quem decida, um dia, que os enunciados científicos não mais exigem prova, e podem ser vistos como definitivamente verificados, retira-se do jogo. (2) Uma vez proposta e submetida a prova a hipótese e tendo ela comprovado suas qualidades, não se pode per- mitir seu afastamento sem uma “boa razão”. Uma “boa razão” será, por exemplo, sua substituição por outra hipó- tese, que resista melhor às provas, ou o falseamento de uma conseqüência da primeira hipótese. O plexo normativo não pode estar atado à antigas concepções cien- tíficas, simplesmente porque se decidiu de tal ou qual forma durante al- gum tempo. Antes de representar uma instabilidade do sistema jurídico, isso representa uma verdadeira tutela aos interesses constitucionalmente protegidos, porque se a sociedade se modifica, deve se ter em mente que as normas reguladoras de determinadas atividades hão de sofrer modifi- cações interpretativas de acordo com os conhecimentos científicos à dis- posição dos operadores do direito. E é com esteio nas normas da OIT do qual o Brasil é signatário que esta corte novamente volta a debater o te- ma. A posição dessa corte foi muito bem delineada em voto proferido pela Sra. Ministra Carmén Lúcia, quando analisou a ADI n° 3.470/RJ. Demonstrou que a matéria não é nova nesta casa, tal como se extrai de resumo que elaborei do voto da eminente Ministra: (1) O STF deferiu par- cialmente, em 26.09.2001, cautelar na ADI 2.396/MS, julgando, por una- nimidade, ainda que com ressalvas, a inconstitucionalidade formal da lei do Mato Grosso do Sul que vedava o uso de amianto em todas suas for- mas, por ter excedido a margem de competência concorrente; (2) O en- tendimento foi confirmado em plenário no dia 08.05.2003, quando a corte julgou parcialmente procedente o pedido da ADI contra a lei do Mato Grosso do Sul, declarando inconstitucional o art. 1º, caput e §§ 1º, 2º e 3º, Inteiro Teor do Acórdão – Página 10 de 24 ADPF 109/SP 10 do art. 2º, do art. 3º, caput e §§ 1º e 2º, e art. 5º, parágrafo único, da Lei nº 2.210/2001. E na mesma data julgou parcialmente procedente a ADI 2.656/SP, para declarar a inconstitucionalidade formal dos arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º e 7º da Lei nº 10.813/2001, do Estado de São Paulo; e, (3) Em 04.06.2008, novamente às voltas com a matéria, o Plenário da casa, por maioria dos votos, negou referendo à liminar concedida pelo Relator da ADI 3.937/SP (Ministro Marco Aurélio), o que representou verdadeiro overruling, conferindo aos arts. 23 e 24 da constituição interpretação me- nos centrípetas das competências comuns e concorrentes. Na oportunidade dessejulgamento, houve intensa participação de amici curiae, aos quais destaco a frente os pontos que julgo mais relevantes para dar um deslinde à questão. A Dra. Sérgia de Souza Oliveira, representante do Ministério do Meio Ambiente, evidenciou, a princípio, que a nomenclatura “amianto" caracteriza seis variedades de minerais, com variadas cores e texturas, conforme a composição química. São eles: crisotila, única pertinente ao grupo “serpentina", e a amostra, crocidolita, tremolita, actinolita e antofi- lita, todos integrados no grupo dos anfibólios, que representam apenas 5% do amianto utilizado no mundo, estando praticamente banido, inclu- sive no Brasil. A diferença entre os grupos está no modelo da fibra: certi- ficou que o material possui esse nome por seu caráter indestrutível, in- combustível e incorruptível, motivo pela qual encontra aplicação em va- riados setores da atividade econômica. Apontou que a essencial delas é o fibrocimento (com 92%), seguido pelos produtos de fricção (6%), têxteis (2%), filtros, papéis e papelões, produtos de vedação, isolantes térmicos, plásticos, revestimentos e asfalto, além da utilização na limpeza de águas e síntese de medicamentos e como reagentes em processos industriais, etc. Inteiro Teor do Acórdão – Página 11 de 24 ADPF 109/SP 11 Ressaltou que a ampla ameaça de uso do amianto faz com que, muitas vezes, não sejam executados os cuidados adequados. Retratou ca- sos em que isso transcorreu. Asseverou haver riscos no pós-consumo. Elucidou que o amianto tem vasta mobilidade e não é biodegradável, sendo certo que inexistem estudos mais detalhados sobre a dispersão do amianto em meios aquáticos. Aludiu ao fato de a substância ser absorvida pelo organismo. Alegou que estudos em mamíferos de pequeno porte revelaram alto índice de surgimento de câncer, inversamente adequado ao diâmetro da fibra, mas disse da inexistência de conclusão quanto ao impacto nas plantas, pássaros e outros animais. Relatou o que intitulou de “rede de exposição às fibras", que vai desde a remoção do minério ao contrato com produtos desgastados ou quebrados. A Dra. Rúbia Kuno, gerente da divisão de Toxicologia e Microbio- logia Ambiental da CETESB, proposta pelo Estado de São Paulo, concen- trou-se no perigo de exibição da população em geral aos riscos descen- dentes do amianto. Declarou estarem confirmado os males à saúde. Retra- tou a Norma ABNT n°10.004 e a deliberação CONAMA n° 348/2004, que dispõem sobre a administração de resíduos arriscados, entre os quais se inclui o amianto. Como necessitam ser instruídos a aterros especiais – em São Paulo, há quatro desabrigados –, o custo para procedimento do des- crito lixo seria exorbitante. Recordou que o papel da companhia de sane- amento de São Paulo é preservar a população, e isso tem sido feito atra- vés de direção das fontes. Relatou acidentes em espaços públicos que concederam liberdade ao uso do amianto, bem como empresas que de- gringolaram e deixaram o depósito do produto sem o cuidado propício. Pela Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto e pela Assem- bleia Legislativa do Estado de São Paulo, falou o Dr. Ubinatan de Paulo Santos, médico da divisão de doenças respiratórias do instituto do cora- ção do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Divulgou que os danos do amianto são vistos há mais de Inteiro Teor do Acórdão – Página 12 de 24 ADPF 109/SP 12 um século e alegou ter presenciado, ao longo de trinta anos, inúmeros casos de trabalhadores que pegaram doenças em razão da proximidade com o amianto. Sustentou que todas as formas e fibras do amianto, en- volvendo a crisotila brasileira, são, conforme apresentaram estudos e pesquisas internacionais, produtos cancerígenos, além de responsáveis de outras doenças que dirigem à insuficiência respiratória. Explanou que o pulmão não consegue eliminar a fibra mineral, até mesmo a mais curta, presente na crisotila. Nessa experiência, ele inflama e se autodestrói, pro- cesso, na maioria dos acontecidos, letais. Salientou que os tratamentos das doenças resultantes do contato com o amianto englobam custos altís- simos. Nas suas próprias palavras: [...] o amianto crisotila é o amianto usado no mundo – 90% do amianto usado até hoje, nos último cem anos, é dessa variedade. Seria estranho supor que 10%, 5% das outras variedades fossem a única causa das doenças ou as causas das doenças, e não esse tipo de amianto. O que corrobora para isso? Em vários países onde houve a cessação de seu uso; há trinta ou quarenta anos, a cessação dos anfibólios e continua a usar a crisotila, a mortalidade por doenças a asbesto relacionadas continuou e continua aumentando. É por isso que a IARC considera essa fibra cancerígena para o homem. Quando se analisa tecido de pacientes com me- sotelioma e câncer de pulmão, encontra-se essa fibra. Por- tanto, é falácia experimental que ela não tem biopersistên- cia [...]3. Pela Organização Internacional do trabalho falou o Dr. Zuher Han- dar. Apresentou dados que estimam em 100.000 mortes por ano de víti- mas dos efeitos colaterais do uso de amianto. A OIT se posiciona pelo ba- nimento do uso de amianto, em todas as suas formas, inclusive a crisotila: 3 Notas taquigráficas da audiência pública sobre amianto, na ADI 3.937/SP, pp. 189-190. Inteiro Teor do Acórdão – Página 13 de 24 ADPF 109/SP 13 Finalizo, aqui, reafirmando o posicionamento dos organismos internacionais relacionados à saúde dos trabalhadores, em es- pecial da OIT e da OMS, que insistem em afirmar que, conside- rando que até o momento não temos provas de que o efeito cancerígeno do amianto crisotila e dos anfibólios tenham um limite seguro, ou melhor, um limite de exposição aceitável e se- guro, e que se tem observado o aumento do risco de câncer em populações, mesmo com um nível de exposição muito baixo, a forma mais eficiente de eliminar as doenças relacionadas com o amianto consiste em deter a utilização de todos os tipos de ami- anto4. Cabe, ainda, citar as palavras do Dr. Hermano Albuquerque de Castro, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), que falou pela Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto, para lembrar que o problema da exposição não se restringe a um problema laboral, mas a partir do momento que esses produtos são colocados para consumo se transformam em um problema de saúde pública, ampliando, assim, o es- copo de incidência dos problemas relacionados ao uso de amianto: Só para reforçar um pouco do que já foi colocado na parte da manhã e relembrar, nós concordamos que todas as formas de amianto são carcinogênicas, incluindo a crisotila, muito por conta do que já foi colocado pelo Ministério da Saúde. Esse é um documento da OMS, que define claramente que não há li- mite de tolerância para exposição a esse agente carcinogênico. Eu gostaria de lembrar que não há limite de tolerância para ne- nhum agente carcinogênico, quer dizer, [para] qualquer agente potencialmente causador de câncer na população, em seres humanos, pequenas doses ou baixas doses podem levar a cân- cer. E eu vou falar também aqui de um problema, porque nós fugimos da saúde ocupacional propriamente dita na medida em 4 Trecho da exposição do Dr. ZUHER HANDAR, representante da Organização Internacional do Trabalho, na audiência pública da ADI 3.937/SP, p. 303-304. Inteiro Teor do Acórdão – Página 14 de 24 ADPF 109/SP 14 que o amianto não é um problema ocupacional estrito; ele, na verdade, quando vai para o consumo, para o comércio, no transporte, ultrapassa o muro da fábrica e ganha a sociedade. E a Saúde Pública exatamente engloba esse escopo maior da saú- de, envolvendo a saúde do trabalhador, a saúde ambiental, a saúde do consumidor, onde a população pode, potencialmente, estar exposta a uma substânciacarcinogênica. Então, nesse sen- tido a atuação da Vigilância não se restringe apenas ao ambien- te do trabalho5. Pela mesma Associação falou o Dr. Arthur L. Frank6, defendendo a viabilidade técnica para a substituição do amianto, pautando-se em estu- dos realizados no Reino Unido. Essa substituição, pondera, precisa ser gradual para não causar maiores problemas à indústria. A mesma posição adotou o Dr. Vanderley John7, Professor de Engenharia Civil da USP, fa- lando pelo Instituto Brasileiro de Crisotila. Este declarou categoricamente a possibilidade de substituição de amianto crisotila. As evidências científicas trazidas pela comunidade acadêmica me parecem suficientes para formar um entendimento de que o amianto, em suas mais diversas formas, é prejudicial à saúde. Não há limites aceitáveis para a exposição da população, sendo perfeitamente viável a sua substi- tuição. Após colher tais entendimentos, impende analisar a constituciona- lidade ou não da lei municipal sob o ângulo da competência formal, mui- to embora a corte tenha guinado no seu entendimento como já demons- trado, não vislumbro estabilidade na matéria. 4. A COMPETÊNCIA MUNICIPAL PARA ELABORAR AS NOR- MAS 5 Notas taquigráficas da audiência pública sobre amianto, na ADI 3.937 /SP, p. 152. 6 Notas taquigráficas da audiência pública sobre amianto, na ADI 3.937 /SP, p. 438. 7 Notas taquigráficas da audiência pública sobre amianto, na ADI 3.937 /SP, p. 354. Inteiro Teor do Acórdão – Página 15 de 24 ADPF 109/SP 15 É certo que diante da Lei nº 9.055/1995, em que foi editada pela União normas gerais disciplinando “a extração, industrialização, comer- cialização e transporte do asbesto/amianto”, devido ao interesse do tema de forma nacional, seria natural que em lei municipal se buscasse tratar da matéria de forma suplementar. Como podemos observar, a competên- cia para dispor sobre a matéria de proteção ambiental contida na CF/88, confere à União, aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal a atri- buição de legislar sobre a proteção do meio ambiente, controle da polui- ção, florestas, fauna e recursos naturais (art. 24, VI, CF/88), sobre a produ- ção e consumo (art. 24, V, CF/88), bem como sobre a proteção e defesa da saúde (art. 24, XII, CF/88). Aos municípios é atribuída, ainda, a competên- cia para legislar sobre assuntos de interesse local e de forma suplementar a legislação federal e estadual, no que for necessário (art. 30, I e II, CF/88). O busílis desta lide está muito provavelmente concentrado neste ponto, isto é, teria o município competência para legislar contrariando a lei federal? A legislação federal seria um óbice uma espécie de limite má- ximo da competência legislativa dos municípios? A constituição estabeleceu a divisão de competências de tal forma que, dentre elas constam as competências concorrentes. Cabe, pois, a to- dos os entes legislarem sobre determinadas matérias. A divisão das com- petências concorrentes entre esses entes atende ao princípio da predomi- nância do interesse, “segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local”, como ensina José Afonso da Silva8. 8 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 41. ed. São Paulo: Malhei- ros, 2018, p. 482. Inteiro Teor do Acórdão – Página 16 de 24 ADPF 109/SP 16 No sistema de repartição de competências adotado pela nossa cons- tituição, as leis federais, de caráter geral, são as linhas mestras as quais devem dar os contornos das legislações regionais e locais. A legislação federal não pode ser malsinada pelas legislações locais, sob pena de se esvaziar o conteúdo da norma federal. Como bem averbou, o nunca assaz citado professor Raul Machado Horta9: As Constituições federais passaram a explorar, com maior amplitude, a repartição vertical de competências, que realiza a distribuição de idêntica matéria legislativa entre a União Federal e os Estados-membros, estabelecendo verdadeiro condomínio legislativo, consoante regras constitucionais de convivência. A repartição vertical de competências conduziu à técnica da legislação federal fundamental, de normas gerais e de diretrizes essenciais, que recai sobre de- terminada matéria legislativa de eleição do constituinte federal. A legislação federal é reveladora das linhas essen- ciais, enquanto a legislação local buscará preencher o claro que lhe ficou, afeiçoando a matéria revelada na legislação de normas gerais às peculiaridades e às exigências estadu- ais. A Lei Fundamental ou de princípios servirá de molde à legislação local. É a Rahmengesetz, dos alemães; a Legge- cornice, dos italianos; a Loi de cadre, dos franceses; são as normas gerais do Direito Constitucional Brasileiro. Ao passo que, pelo menos formalmente, uma legislação municipal ou estadual que destoe de uma legislação federal deverá ser, prima facie, declarada inconstitucional. No entanto, a exegese das questões constitu- cionais não pode cingir-se à observação de minúcias formalistas. O espa- ço conferido ao intérprete deve adentrar-se ao conteúdo normativo da legislação, correndo o risco de, se não o fizer, sofrer de uma hipertrofia da forma e degringolar em um estado de coisas inconstitucionais, extirpando materialmente os direitos fundamentais presentes na constituição. Vis- 9 HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 366. Inteiro Teor do Acórdão – Página 17 de 24 ADPF 109/SP 17 lumbra-se, de saída, duas alternativas ao caso: 1) a lei municipal é for- malmente inconstitucional por invasão de competência ou 2) a lei federal é materialmente inconstitucional e não merece observância. 5. A VIGÊNCIA E VALIDADE DAS NORMAS: UMA NECESSÁ- RIA DISTINÇÃO Inobstante as práticas jurídicas ainda estarem atadas à vetustas concepções sobre o Direito, não se pode olvidar que com a derrocada po- sitivista (pelo menos no campo acadêmico) já não podemos tratar de for- ma idêntica a vigência e a validade das normas. O constitucionalismo contemporâneo propiciou uma revolução paradigmática no Direito, para situar de forma concêntrica a constituição, conferindo-lhe a envergadura não mais de simples carta de intenções, mas verdadeiro prisma sobre o qual reflui toda a validade do ordenamento jurídico. Nesta quadra da his- tória, a constituição já não é mais um simples “programa” a ser seguido, mas um verdadeiro alicerce sobre o qual os direitos fundamentais orbi- tam. Canotilho10, em célebre lição, anunciou a morte das normas constitu- cionais programáticas, pelo menos no sentido que classicamente se lhe atribuía: O sentido destas normas não é [...] o assinalado pela dou- trina tradicional: simples programas, exortações morais, declarações, sentenças políticas, aforismos políticos, pro- messas, apelos ao legislador, programas futuros, juridica- mente desprovidos de qualquer vinculatividade. Às nor- mas programáticas é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição. Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma cons- titucional deve considerar-se obrigatória perante quais- 10 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7. Ed. Coimbra: Almeidina, 2003, p. 1176-1177. Inteiro Teor do Acórdão – Página 18 de 24 ADPF 109/SP 18 quer órgãos do poder político (Crisafulli). Mais do que is- so: a eventual mediação concretizadora, pela instância le- giferante, das normas programáticas, não significa que es- te tipo de normas careça de positividade jurídica autóno- ma, isto é, que a sua normatividade sejaapenas gerada pe- la interpositio do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessida- de da intervenção dos órgãos legiferantes. Concretizando me- lhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: (1) vinculação do legislador, de forma permanente, à realização (imposi- ção constitucional); (2) vinculação positiva de todos os ór- gãos concretizadores, devendo estes tomá-las em conside- ração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da actividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação, na qualidade de limi- tes materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam. A saúde, como se sabe, foi erigida ao patamar de direito fundamen- tal na constituição brasileira de 1988. Como bem assinalou Ingo Sarlet11 essa passagem de um simples direito para o status de direito fundamen- tal é algo que não ocorreu em outros países, tais como a Espanha, o que significa que a saúde se encontra situada em um núcleo fundante do or- denamento jurídico pátrio. Dessa forma, a normatividade dos dispositi- vos constitucionais que tratam da saúde deve se espraiar por toda a ativi- dade do Estado, seja ela legiferante, jurisdicional ou executória. Por esse motivo a simples vigência de uma norma não quer dizer que ela seja vá- lida, visto que há de ser adequada a todo o ordenamento jurídico. Para melhor elucidar, cabe citar Ferrajoli12: 11 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. Livraria do Advogado editora, 2018 12 FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: Teoría del derecho y de la democracia. 1. Teoía del dere- cho. Madrid: Editorial Trotta, 2013, p. 499-500. Inteiro Teor do Acórdão – Página 19 de 24 ADPF 109/SP 19 ‘Vigente’ es el acto formal dotado de una forma conforme al me- nos com algunas de las normas formales sobre su producción. ‘Válido’ es el acto formal cuyas formas son todas conformes con las normas formales sobre su formación y que admite al menos un significado coerente con todas las normas sustantivas sobre su producción. Para que un acto formal exista, o, si se quiere, esté en vigor, es pues necesario y suficiente, [...], que no todas pero al menos sí algunas de sus formas —aquellas que lo hacen reconocible e inteligible como acto dotado de significado jurídico— sean conformes con las correspondientes nor- mas formales. Mucho más compleja es la noción de validez. Para que un acto formal sea válido se requieren dos clases de condicio- nes: que no algunas sino todas sus formas sean conformes con las normas formales que lo prevén; y que además, si se trata de una decisión, tenga al menos un significado cohe- rente con todas las normas sustantivas sobre su producción. No son válidos por ejemplo, aunque estén vigentes mien- tras no sean anulados, el contrato viciado en el consenti- miento o la sentencia carente de las formas de los que más arriba he hablado; como tampoco lo son una ley que viola el principio constitucional de igualdad, una disposición administrativa cuyo contenido contraste con una ley, un contrato viciado por causa ilícita o similares. Válido sólo es el acto formal por así decir «perfecto», el que observa no un mínimo sino un máximo de normas sobre su pro- ducción: no sólo las normas formales que condicionan su vigencia sino todas las normas, formales y sustantivas, de grado superior al mismo. Uma norma que seja inválida, logicamente, não pode servir de va- lidade ou limite para quaisquer outras normas, dado que a sua existência é apenas no campo do ser e não do dever ser. Ela existe, mas não faz parte Inteiro Teor do Acórdão – Página 20 de 24 ADPF 109/SP 20 do ordenamento, não vincula, situa-se em um estágio que aguarda ape- nas a declaração de inconstitucionalidade, mas a declaração é apenas uma enunciação, deontologicamente ela já não está apta a produzir efeitos desde a sua gênese (ex tunc). Malgrado esteja vigente, é destituída de for- ça normativa, cabendo a todos os operadores do direito, e não só ao po- der judiciário, obliterá-la, como ensina Lenio Streck13: O juiz (e o operador jurídico lato sensu) somente está sujeito à lei enquanto válida, quer dizer, coerente com o conteúdo mate- rial da Constituição. [...] como bem ilustra o mestre italiano [Luigi Ferrajoli], em uma perspectiva “garantista” do Di- reito, “todos os direitos fundamentais [...] equivalem a vín- culos de substância e não de forma, que condicionam a vali- dade substancial das normas produzidas e exprimem, ao mesmo tempo, os fins para que está orientado esse mo- derno artifício que é o Estado Constitucional de Direito.” A partir desta ótica garantista, explica Ferrajoli, o juiz está sujeito somente à lei enquanto válida, isto é, coerente com a Constituição: “A interpretação judicial da lei é sempre um juízo sobre a própria lei, relativamente à qual o juiz tem o dever e a responsabilidade de escolher somente os significados válidos, ou seja, (os significados que são) compa- tíveis com as normas substanciais e com os direitos fundamen- tais por ela estabelecidos”. Fazer isto, segundo o mestre italiano, é fazer uma interpretação da lei conforme à Constitui- ção, e quando a contradição é insanável, é dever do juiz (ou Tri- bunal) declará-la inconstitucional. Portanto, conclui, já não é uma sujeição à lei de tipo acrítico e incondicional, mas sim sujeição, antes de mais nada à Constituição, que impõe aos tribunais e aos juízes a crítica das leis inválidas por meio da sua reinterpretação em sentido constitucional (interpretação conforme) ou a sua denúncia por inconstitucionalidade (invalidade total). 13 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 218-219. Inteiro Teor do Acórdão – Página 21 de 24 ADPF 109/SP 21 Ora, sendo assim, ainda que a norma federal esteja vigente, não significa que ela seja válida. É indispensável que se analise se ela possui adequação constitucional e convencional. Alçada ao patamar de direito fundamental, a proteção à saúde não pode ser deixada ao alvedrio de eventuais escolhas legislativas momentâneas, não pode ser adiada para um futuro distante, quiçá inexistente, quando se sabe que existem claras possibilidades de melhor atender aos ditames constitucionais. Ao dizer isso, que fique claro, não busco usurpar a competência le- gislativa ou executiva, colocando-me em uma posição de decidir quais as melhores escolha legislativas devem ser feitas, pelo contrário, simples- mente estou a afirmar que não é só do judiciário a competência de verifi- car se os atos possuem fundamento constitucional, mas de todos os pode- res. A única distinção é que o judiciário tem o poder-dever de fazê-lo nos demais poderes. Mas a tutela desse interesse cabe a todos os poderes pú- blicos. 6. A INSUFICIENTE PROTEÇÃO À SAÚDE DA LEI N° 9.055/95 E A JURISPRUDÊNCIA Uma norma, ainda que vigendo no ordenamento jurídico e que não seja válida deve ser afastada. A validade dela, como dito alhures, está condicionada a um elemento formal e a um elemento material. No plano infraconstitucional as normas devem respeito à constituição e às conven- ções no qual o país é signatário. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 3.937/SP, declarou constitucionalidade formal da Lei 12.684/2007, do Estado de São Paulo, que proíbe uso de produtos constituídos de amianto. Volto ao tema, por- que é salutar trazer à baila a posição de dois ministros, quando do julga- mento daquela ADI. Colhe-se, do voto do eminente Ministro JoaquimBarbosa, as seguintes considerações: Inteiro Teor do Acórdão – Página 22 de 24 ADPF 109/SP 22 Penso que é inadequado concluir que a lei federal exclui a aplicação de qualquer outra norma ao caso. A pré- existência da Convenção impede que se tente elevar a lei ordinária federal ao status de norma geral. Em verdade, é a Convenção que possui tintas de generalidade. A distinção entre lei geral e lei específica é inaplicável ao caso das leis sobre amianto. E isto por uma razão simples: em matéria de defesa da saúde, matéria em que os estados têm competência, não é razoável que a União exerça uma opção permissiva no lugar do estado, retirando-lhe a li- berdade de atender, dentro de limites razoáveis, os inte- resses da comunidade. O exercício desta opção esvaziaria o compromisso assumido pelo Brasil na Convenção. A limitação estadual ao amianto é razoável também pela inexistência de alternativas. O contexto fático indica que não há medida intermediária à proibição. E o Ministro AYRES BRITTO, por sua vez, acrescentou: Acontece que esse caso me parece peculiar, e muito pecu- liar – se o superlativo for admitido eu diria peculiaríssimo –, porque a lei federal faz remissão à Convenção da Orga- nização Internacional do Trabalho (OIT) 162, art. 3°, que, por versar tema que no Brasil é tido como de direito fun- damental (saúde), tem o status de norma supralegal. Esta- ria, portanto, acima da própria lei federal que dispõe sobre a comercialização, produção, transporte, etc., do amianto. [...] De maneira que, retomando o discurso do Min. Joa- quim Barbosa, a norma estadual, no caso, cumpre muito mais a CF nesse plano da proteção à saúde ou de evitar riscos à saúde humana, à saúde da população em geral, dos trabalhadores em particular e do meio ambiente. A le- gislação estadual está muito mais próxima dos desígnios constitucionais, e, portanto, realiza melhor esse sumo princípio da eficacidade máxima da Constituição em ma- téria de direitos fundamentais, e muito mais próxima da OIT, também, do que a legislação federal. Então, parece- Inteiro Teor do Acórdão – Página 23 de 24 ADPF 109/SP 23 me um caso muito interessante de contraposição de norma suplementar com a norma geral, levando-nos a reconhecer a Superioridade da norma suplementar sobre a norma ge- ral. Acompanhando a posição dos eminentes Ministros naquele outro julgado, entendo que a competência municipal não poderia frustrar o exercício da tutela à saúde, porque ele se coaduna de melhor forma aos compromissos internacionais que o país assumiu do que a norma federal. Do contexto fático-probatório, não se pode ignorar os efeitos cancerígenos naqueles que manipulam substâncias que contenham amianto em sua composição. Essa posição também encontra perfeita sintonia com a posição as- sumida por essa corte no julgamento da ADI 4.066, que julgou procedente a ação e declarou inconstitucional, por proteção deficiente, do art. 2° da Lei n° 9.055/1995, que permitia a fabricação e utilização de amianto criso- tila. A interpretação conferida à questão, pautada em um modelo menos centrípeto das competências, busca dar uma maior proteção aos direitos fundamentais. Sendo assim, uma das formas de inconstitucionalidade de uma lei é quando ela não protege ou a faz de forma insuficiente em rela- ção a tais direitos. A norma federal, portanto, está vigente, mas não possui validade, porque não protege suficientemente os interesses assinalados pelo Brasil nas convenções da OIT. A lei municipal, por outro lado, está muito mais em consonância com essas normas. Em um controle de convencionalida- de, pode-se dizer que há um vazio normativo da lei federal, em que pese sua vigência. Diante dessa vacuidade legal e do modelo de competências adotada para a matéria, caberia ao Estado legislar plenamente e ao Muni- cípio legislar de forma suplementar, porque a lei federal inexiste no plano jurídico. Em perfeita harmonia com a Lei Estadual n° 12.684/2007 de São Inteiro Teor do Acórdão – Página 24 de 24 ADPF 109/SP 24 Paulo, que também proíbe a utilização de amianto, a Lei Municipal exer- ceu sua competência dentro dos parâmetros da juridicidade constitucio- nal. O direito à liberdade econômica não pode sobrepujar-se ao direito à vida. O núcleo duro das garantias constitucionais é o respeito à dignidade humana. Não se pode conceber um Estado que proteja deficientemente esse núcleo e bens jurídicos como a saúde e estão inseridos dentro desse escopo de normas jurídicas fundamentais. As vidas são únicas e insubsti- tuíveis; a atividade econômica, com o desenvolvimento tecnológico e ci- entífico, pode adquirir outras formas de sustentação e são, via de regra, perfeitamente substituíveis. 7. CONCLUSÃO Ante o exposto, conheço a ADPF, e a julgo, no mérito, improceden- te, com a declaração de inconstitucionalidade material do o art. 2° da Lei Federal n° 9.055/1995 com efeitos erga omnes, porque (1) a norma munici- pal estabelece uma melhor harmonia com as convenções da OIT e o direi- to fundamental à saúde, além de que o princípio da livre iniciativa não fica maculado com a vedação estabelecida em norma municipal, tendo em vista a existência de perfeitos substitutivos ao amianto que são menos nocivos à saúde e porque (2) a norma federal embora vigente não é váli- da, portanto não pode servir de base para julgar formalmente a lei muni- cipal inconstitucional, anote-se que a validade de uma norma possui uma natureza formal e outra material, que devem ser respeitadas de forma conjuntiva, o que não ocorreu com a lei federal aqui vergastada.
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