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| ESPECIAL • INCONSCIENTE | OS DESCONHECIDOS UNIVERSOS DA MENTE O QUE MOVE VOCÊ? A motivação traz satisfação e favorece conquistas, mas nem sempre é fácil manter o entusiasmo. Para cientistas, é indispensável entender o que está por trás de nossos objetivos ANO XIII No 319 LER PENSAMENTO Tecnologia permite exploração de informações guardadas no cérebro ATENÇÃO Truque do cérebro ajuda a eleger estímulo para evitar as distrações OLFATO Cheiro de suor da pessoa amada diminui estresse e ansiedade GLÁUCIA LEAL, editora-chefe glaucialeal@editorasegmento.com.br @glau_f_leal Os “porquês” de cada um O que faz você se levantar da cama a cada dia? Qual é a sua motivação? Quan-do se trata de trabalho, é muito frequente que as pessoas respondam ra-pidamente que o que as impulsiona é a necessidade de “ganhar dinheiro”. Certo, mas para quê? Por que comprar coisas ou pagar contas, qual o objetivo mais profundo de suas ações? Afinal, sabemos – mais ou menos claramente – que é onde colocamos energia (entendida aqui como empenho de tempo, capacidade intelectual e afetiva) que acreditamos, no mais íntimo de nós, que encontraremos satisfação. Especialistas chegam a argumentar que a motivação – aquilo que move a ação – pode ser até mais importante e determinante do que o talento. Claro, sempre é pos- sível recorrer à didática pirâmide proposta por Abraham Maslow, de 1954, para falar das buscas nas quais nos empenhamos ao longo da vida. Ele classificou necessidades humanas, em ordem de prioridade, em fisiológicas, de segurança, de amor e atenção, de estima e de autorrealização. Os dois textos sobre motivação, nesta edição digital de Mente e Cérebro, mostram que atualmente a psicologia identifica “elementos críticos” que oferecem suporte à motivação. Quando enfrentamos dificuldade, convém pergun- tar o que está faltando. A resposta, em geral, se relaciona à ausência de autonomia, sensação de que a tarefa é inútil ou dúvida sobre nossa capacidade. Pesquisadores ob- servam que, quando o entusiasmo se esvai, o questionamento pessoal é fundamental para avaliar objetivos e, eventualmente, rever escolhas. Como enfatizam ensinamentos budistas, o mais importante não é a experiência em si, mas o que restou dela após seu término. Ou seja: em quem você se trans- formou após a tão sonhada viagem, a conclusão do curso, o sucesso da dieta, o casamento ou chegada do bebê ou a promoção no trabalho? O que o motivou e ainda continua a impulsionar suas atitudes? No final do dia, qual era mesmo o seu “porquê”? Boa leitura. carta da editora 3 sumário agosto 2019 capa 12 O que move você? O entusiasmo tende a nos tornar mais comprometidos e alegres. Mas nem sempre a dedicação é compatível com os resultados. Novas pesquisas mostram a importância de rever objetivos e formas de alcançá-los Motivação 18 O que vale a pena buscar? A satisfação está muito mais no empenho em conseguir o que queremos do que em atingir nossos objetivos. Essa conclusão ajuda a entender por que aceitamos postergar o prazer 6 Máquinas que leem pensamentos Parece enredo de filme de ficção científica, mas é realidade: técnicas de imageamento cerebral já permitem a exploração de informações armazenadas do cérebro 22 Truque cerebral para evitar distrações Quando algo nos atrai em um momento em que precisamos nos concentrar, a mente “escolhe” apenas um estímulo por vez para ser alvo de interesse 26 Pintinhos bons de matemática Assim como as crianças, filhotes de galinha parecem ter preferência inata por algarismos menores à esquerda e maiores à direita 30 Cheiro da pessoa amada diminui estresse Mulheres que cheiram a camisa suada do parceiro relataram ter menos reações de ansiedade do que aquelas que sentiram o odor de um estranho ou de uma roupa não usada 34 A forma secreta das letras Cientistas encontram pistas sobre a razão de associarmos certas letras e palavras com formatos circulares ou pontiagudos www.mentecerebro.com.br Presidente: Edimilson Cardial Diretoria: Carolina Martinez, Marcio Cardial e Rita Martinez Editora-chefe: Gláucia Leal Editora de arte: Sheila Martinez Colaboradores: Maria Stella Valli e Ricardo Jensen (revisão) Tratamento de imagem: Paulo Cesar Salgado Produção gráfi ca: Sidney Luiz dos Santos Escritórios regionais: Brasília – Sonia Brandão (61) 3321-4304/9973-4304 sonia@editorasegmento.com.br Rio de Janeiro – Edson Barbosa (21) 4103-3846 /(21) 988814514 edson. barbosa@editorasegmento.com.br MARKETING/WEB Diretora: Carolina Martinez Gerente de marketing: Mariana Monné ASSINATURAS E CIRCULAÇÃO Supervisora: Cláudia Santos Eventos Assinaturas: Simone Melo Mente e Cérebro é uma publicação mensal da Editora Segmento com conteúdo estrangeiro fornecido por publicações sob licença de Scientifi c American. Spektrum der Wissenschaft Verlagsgesellschaft, Slevogtstr. 3-5 69126 Heidelberg, Alemanha Editor-chefe: Carsten Könneker Gerentes editoriais: Hartwig Hanser e Gerhard Trageser Diretores-gerentes: Markus Bossle e Thomas Bleck MENTE E CÉREBRO ON-LINE Visite nosso site e participe de nossas redes sociais digitais. www.mentecerebro.com.br facebook.com/mentecerebro twitter.com/mentecerebro Instagram: @mentecerebro REDAÇÃO Comentários sobre o conteúdo editorial, sugestões, críticas às matérias e releases. redacaomec@editorasegmento.com.br tel.: 11 3039-5600 fax: 11 3039-5610 Cartas para a revista Mente e Cérebro: Rua Paulistania, 551 - São Paulo/SP - CEP 05440-001 Cartas e mensagens devem trazer o nome e o endereço do autor. Por razões de espaço ou clareza, elas poderão ser publicadas de forma reduzida. 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Saiba com antecedência qual será o tema da capa da próxima edição www.mentecerebro.com.br Acompanhe a @mentecerebro no Instagram 3 CARTA DA EDITORA 54 LIVRO � LANÇAMENTO O oráculo da noite seções especial 38 Universos além da consciência Temos na mente signifi cados codifi cados, revestidos de metáforas e imagens, que surgem nos sonhos, chistes, atos falhos e associações 42 Estranhos mundos internos Esse intrigante aspecto psíquico que infl uencia escolhas organiza memórias e experiências que preferimos esquecer ou dos quais não queremos saber. E se revela em sonhos, amores, desejos e fantasias 47 A mente no laboratório Mais de um século depois de Freud apresentar sua teoria, cientistas se rendem a evidências de que temos uma instância mental sobre a qual não temos controle Inconsciente tecnologia 6 Nos últimos anos, as técnicas de imageamento cerebral avançaram tanto que se tornaram capazes de perscrutar – e em alguns casos alterar – conhecimentos guardados no cérebro Máquinas que leem pensamentos 7 A ideia de que a mente está completamente prote- gida das intrusões externas persistiu por séculos. Mas hoje essa suposição pode não ser mais válida. Sofisticados equipamentos de neuroimageamento e interfaces cérebro-computador detectam a atividade elétri-ca de neurônios, o que permite a decodificação e até altera- ção de sinais do sistema nervoso que acompanham proces- sos mentais. Embora tais avanços tenham grande potencial para as áreas de pesquisa e medicina, eles trazem um desafio ético, jurídico e social: de repente se torna importante deter- minar se, ou em que condições, é legítimo obter acesso à atividade neuronal de outra pessoa ou interferir nela. Essa questão tem especial relevância porque muitas neu- rotecnologias se desviaram de uma configuração médica e passaram a fazer parte do domínio comercial. Tentativas de decodificar informações mentais por meio do imagea- mento também estão ocorrendo em processos judiciais em tribunais, às vezes de modo bastante questionável cientifi- camente. Há quase uma década, por exemplo, uma mulher indiana foi condenada por homicídio e sentenciada à prisão perpétua com base em um exame de varredura cerebral que mostrava, de acordo com o juiz, “conhecimento expe- riencial” sobre o crime. O potencial uso de tecnologia neural como um detector de mentiras durante interrogatórios ganhou atenção espe- cial. Apesar do ceticismo de especialistas, empresas já es- tão comercializando tecnologia baseada em imageamento por ressonância magnética funcional e eletroencefalografia para detectar mentiras. As forças armadas americanas tam- tecnologia 8 bém têm testado técnicas de monitoramento, mas por outra razão: a ideia é utilizar estímulo neural para aumentar o es- tado de alerta e a atenção dos soldados. A tecnologia de leitura cerebral pode ser vista como só mais uma etapa de uma tendência inevitável do mundo digi- tal de avançar um pouco mais sobre nosso espaço pessoal. Talvez não estejamos dispostos a aceitar essa intromissão em nosso universo mental. As pessoas poderiam, de fato, considerar tal tecnologia como algo que exige a revisão de conceitos acerca dos direitos humanos básicos e até mes- mo da criação de “direitos neuroespecíficos”. Diante da evolução tec- nológica, é possível falar hoje em direito à liberda- de cognitiva. Isso daria às pessoas a possibilidade de tomar decisões livres e in- formadas sobre a aplicação prática do conhecimento científico que possa vascu- lhar seus conhecimentos ou até afetar seus pensa- mentos. Num futuro próximo, o direito à privacidade mental deveria nos proteger tanto de intrusões não consentidas de terceiros em nossos “arquivos” cerebrais, quanto da coleta não autorizada dessas informações. Violações de privacidade no âmbito neural poderiam ser até mais perigosas do que as convencionais, uma vez que ultrapassam o nível do raciocínio consciente, deixando- -nos expostos ao risco de ter nossa mente lida involunta- riamente. Por mais que lembre enredo de filme de ficção, Empresas como Facebook, Netflix e Samsung já cogitam traduzir pensamentos direto do cérebro do usuário para o computador; num futuro próximo, o controle cerebral poderá substituir o teclado e o reconhecimento da fala tecnologia o fato é que esse perigo existe não apenas em estudos de marketing predatório ou tribunais que poderiam utilizar a tecnologia em demasia, mas também em usos que afeta- riam consumidores em geral. Esta última categoria, aliás, está crescendo. Há poucos meses, o Facebook revelou um plano para criar uma inter- face “discurso-para-texto” com o intuito de traduzir pensa- mentos direto do cérebro para o computador. Ensaios pare- cidos são feitos por empresas como a Samsung e a Netflix. No futuro, o controle cerebral poderia substituir o teclado e o reconhecimento da fala como forma principal de interagir com computadores. Se tais ferramentas se tornarem cada vez mais comuns – como é bem possível que ocorra –, novas possibilidades de uso indevido surgirão, inclusive violações de segu- rança. Cientes de que dispositivos neurológicos conectados ao cére- bro são vulneráveis a sabotagem, neurocientistas da Universidade de Oxford sugerem que a mesma fra- gilidade se aplica a implantes ce- rebrais e que podem levar a um fenômeno chamado brainjacking, que seria uma espécie de “hackea- mento” da mente. Tal possibilidade pode exigir a reconsideração do que entendemos hoje como direito à integri- dade mental, já reconhecida como uma prerroga- tiva indispensável para a saúde mental. tecnologia 9 Essa nova interpretação, porém, tem desdobramentos: não só protegeria pacientes contra uma possível recusa a tratamentos para doenças mentais, mas também defenderia as pessoas de modo geral contra manipulações prejudiciais de nossa atividade mental pelo uso indevido da tecnologia. Por fim, o direito à “continuidade psicológica” pode pro- teger a vida mental contra alterações feitas por terceiros. Um exemplo: o mesmo tipo de intervenção em estudo para reduzir a necessidade de sono nas forças armadas poderia ser adaptado para tornar soldados mais belige- rantes ou destemidos. A neurotecnologia traz benefícios, mas para diminuir riscos indesejados precisamos de um debate aberto que envolva neurocientistas, psicólogos, psicanalistas, médicos peritos le- gais, especialistas em ética e cidadãos comuns. Para alguns, podem parecer precipitadas essas preocupações, mas o mundo se transforma rápido, frequentemente nos surpreen- de. Afinal, há 15 anos você imaginava o quanto a tecnologia ocuparia sua vida hoje e o faria tão dependente de seu celu- lar ou computador? tecnologia 10 Entenda o que eles pensaram. E se prepare para pensar a educação daqui para frente. c o l e ç ã o Reserve sua coleção e receba em casa www.lojasegmento.com.brLançamento no A coleção que apresenta as visões essenciais da pedagogia organizadas em seis volumes acondicionados em estojo. Para você ter sempre à mão, consultar, debater e aplicar no dia a dia de trabalho. Conheça e entenda a contribuição de cada pensador para a pedagogia, saiba identifi car suas teses principais e os resultados que suas ideias geram até hoje nas escolas. Conte também com extensa bibliografi a comentada para ajuda-lo a organizar os próximos passos e continuar aprendendo. História da Pedagogia. Essencial para quem quer fazer história na educação. c o l e ç ã o A coleção que apresenta as visões essenciais da pedagogia organizadas A coleção que apresenta as visões essenciais da pedagogia organizadas em seis volumes acondicionados em estojo. Para você ter sempre à mão, em seis volumes acondicionados em estojo. Para você ter sempre à mão, P i a g e t • V i g o t s k i • W a l l o n • F r e i r e • R o u s s e a u • D e w e y LI G H T História da Pedagogia C o l e ç ã o Realização: capa • motivação Pessoas motivadas procuram se superar e buscar melhores resultados, são mais entusiasmadas, responsáveis, comprometidas e, principalmente, mais satisfeitas. O problema é que nem sempre nosso empenho está alinhado com os resultados que obtemos. Novas pesquisas indicam a importância de rever rotas O que move você? capa • motivação 1313 T odo mundo que cursa psicologia – ou mesmo outras formações na área de ciências humanas – em algum momento assiste à aula sobre a famosa pirâmide de Abraham Maslow (1908-1970). O psicólogo america- no estabeleceu uma hierarquia, expressa graficamente, locali- zando as necessidades mais básicas (como alimentação, por exemplo) na base da figura geométrica. No topo, ficam aspec- tos ligados à realização pessoal. Psicólogos e neurocientistas acreditam, porém, que as coisas não são tão simples. O que nos faz trabalhar, estudar, viajar, tomar banho, fazer ginástica, correr riscos, iniciar e manter relacionamentos? Resolvidas as necessidades básicas, o que nos move mesmo é uma exigên- cia interna de autonomia, conhecimento, envolvimento e dina- mismo. Fácil? Nem tanto. Em plena era da tecnologia, em que as possibilidades se mul- tiplicam diante dos nossos olhos, muitos pesquisadorestêm questionado ideias sim- plistas sobre as necessida- des e os anseios humanos. Alguns estudiosos veem a maior fonte da motiva- ção humana na ampliação das próprias competências e falam de dois sistemas de razões antagônicas que se formaram ao longo da evolu- ção: curiosidade e medo, ambos repletos tanto de oportu- nidades quanto de riscos. É o caso do psicólogo Clemens Trudewind, pesquisador da Universidade de Bochum, na Alemanha, que durante algum tempo estudou essa inte- ração. Ele comprovou algo que muitos pais e educadores Quando enfrentamos dificuldade, convém perguntar o que está faltando; a resposta, em geral, se relaciona a falta de autonomia, sensação de que a tarefa é inútil ou dúvida sobre nossa capacidade 1414 já sabiam: crianças curiosas e destemidas resolvem pro- blemas com mais eficácia do que as temerosas e passi- vas. No entanto, a curiosidade e o medo não são opostos: os pequenos muito medrosos e ao mesmo tempo curiosos também se revelaram bons solucionadores de problemas, segundo Trudewind. Razões supostamente antagônicas, portanto, não são obrigatoriamente excludentes. Três elementos críticos Uma grande vantagem bastante prática da motivação é que ela nos faz mais entusiasmados, comprometidos, empenha- dos em buscar os melhores resultados e, em última instân- cia, felizes – no que quer que estejamos empenhados. Além disso, aumenta a capacidade criativa e favorece as habili- dades de comunicação. Especialistas chegam a argumentar que a motivação – aquilo que move a ação – pode ser até mais importante e decisiva para o sucesso do que o talento. Mas, afinal, de onde vem esse ânimo de direcionar a energia (um misto de empenho de tempo, capacidade in- telectual e afetiva) em direção a um objetivo? A psicologia identifica três “elementos críticos” que oferecem suporte à motivação. A boa notícia é que todos podem ser ampliados e ajustados em nosso próprio benefício. n Autonomia. Os psicólogos Edward L. Deci e Richard M. Ryan, da Universidade de Rochester, acreditam que au- mentamos nosso grau de motivação quando nos sentimos responsáveis. Os pesquisadores trabalham com grupos de estudantes, atletas e funcionários e descobriram que a percepção de autonomia prediz a energia com a qual os indivíduos perseguem uma meta. capa • motivação 15 Junto com o psicólogo Arlen C. Moller, Deci e Ryan desen- volveram vários experimentos para avaliar as consequên cias emocionais e cognitivas de uma ação controlada por outras pessoas em comparação aos efeitos das próprias escolhas. Eles descobriram que os voluntários que tiveram a oportu- nidade de desenvolver uma ação com base em suas opi- niões (contra ou a favor de algum tema) persistiram mais tempo em uma atividade subsequente de resolução de um quebra-cabeça (tarefa aparentemente desvinculada da an- terior). Os cientistas afirmam que agir sob coação gera uma espécie de “tributário mental”, enquanto perseguir um obje- tivo no qual acreditamos nos deixa energizados. n Valor. Motivação também costuma persistir quando per- manecemos fiéis às nossas crenças. Atribuir valor a uma ativi- dade pode restaurar o senso de autonomia, uma descober- ta de grande interesse para os educadores. Em um artigo de capa • motivação 16 revisão, os psicólogos Allan Wigfield e Jenna Cambria, pesqui- sadores da Universidade de Maryland, observaram que vários estudos haviam encontrado correlação positiva entre a valori- zação de um assunto na escola e a vontade do estudante de investigar a questão de forma independente. Felizmente, valores podem ser mudados. O psicólogo Chris- topher S. Hulleman, professor da Universidade da Virgínia, descreveu uma intervenção realizada no final do semes- tre letivo com dois grupos de estudantes do ensino médio. Um deles escreveu sobre como a ciência se relacionava com sua vida e outro deveria simplesmente resumir o que fora aprendido nas aulas de ciências. Os resultados mais marcantes vieram de estudantes com baixas expectativas de desempenho. Aqueles que descreveram a importância da ciência em sua vida melhoraram suas notas e relataram maior interesse, em comparação aos alunos em situação semelhante no grupo de resumo-escrita. Em suma, parece que pensar sobre algo (uma situação, uma área de conhe- cimento etc.) tende a aumentar nosso comprometimento. Não por acaso, um tema básico de meditação analítica do budismo é o fato de que o praticante vai morrer, mas não sabe quando isso vai acontecer, o que leva à reflexão sobre a preciosidade da vida – e à motivação para desfru- tá-la de forma significativa. n Competência. Gostamos do que fazemos ou fa- zemos o que gostamos? Tudo indica que, à medida que dedicamos mais tempo a uma atividade, percebemos que nossas habilidades melhoram nessa área e adquirimos senso de competência. Psicólogos das universidades De- mocritus da Trácia e da Tessália, ambas na Grécia, entre- capa • motivação 17 vistaram 882 alunos sobre suas atitudes e o engajamento com o atletismo durante um período de dois anos. Os pes- quisadores descobriram uma forte ligação entre o sucesso obtido por um aluno nos esportes e o desejo de praticar determinada modalidade. A conexão funcionou em ambas as direções – a prática tornou os jovens mais propensos a se considerar competentes e o senso de competência determinou a perseverança na prática esportiva. Estudos semelhantes, considerando atividades como música e ren- dimento acadêmico, reforçam essas constatações. A psicóloga Carol S. Dweck, pesquisadora da Universida- de Stanford, mostrou que a competência está bastante associada às próprias crenças. Em uma série de estudos, ela descobriu que aqueles que se apoiam mais em talentos ina- tos que no trabalho árduo de- sistem mais facilmente quan- do enfrentam um novo desa- fio, porque temem que ele exceda sua capacidade. Já acreditar que o empenho promove a excelência nos ajuda a continuar aprendendo. Em geral, quando enfrenta- mos dificuldades para atingir aquilo que desejamos, con- vém perguntar o que está faltando. Muitas vezes, a respos- ta está em uma (ou mais de uma) destas três áreas: falta de autonomia, sensação de que a tarefa é inútil ou dúvida sobre sua capacidade. Enfrentar essas fontes de resistên- cia pode fortalecer sua determinação. A escolha é pessoal, claro. (Leia mais sobre o tema na pág. seguinte.) A curiosidade e o medo não são opostos; estudos mostraram que crianças muito medrosas e ao mesmo tempo curiosas se revelaram boas solucionadoras de problemas capa • motivação 18 Neurocientista da Universidade de Washington mapeou centenas de cérebros de animais e constatou que o prazer está muito mais em buscar o que queremos do que em conseguir. Talvez isso explique por que suportamos postergar o recebimento de recompensas O que vale a pena buscar? capa • motivação 19 N o começo da década de 50, o psicólogo James Olds, professor da Universidade Mc-Gill, no Ca- nadá, chegou à conclusão de que a busca pela satisfação e a satisfação em si são processadas na mesma região no cérebro dos ratos. Outras pesquisas realizadas depois revelaram que o funcionamento men- tal de seres humanos segue a mesma lógica. Isso explica por que buscamos prazeres continuamente. Mas a maioria das pessoas também consegue postergar a realização dos seus desejos: na expectativa de viver algo que queremos, nosso cérebro já nos dá uma provinha da satisfação. O professor de psicologia e neurociência da Universidade de Michigan Kent Berridge, vencedor do prêmio Grawe- meyer de psicologia em 2018, fez uma descoberta funda- mental sobre motivação: nos- so cérebro tem dois sistemas de recompensa, um que nos leva a querer e outro, à sensação de satisfação. Sentimos vontade de obter algo e, na sequência, a alegria da con- quista. Por estarem muito próximos, esses dois movimen-tos mentais confundiram os cientistas, mas hoje se sabe que eles podem funcionar separadamente. Quando estamos muito ansiosos, estressados, ou sob o efeito de drogas, por exemplo, a vontade de conseguir o que almejamos é potencializada e a capacidade de escolha fica comprometida. Talvez você mesmo já tenha se flagra- do, em momentos de grande tensão e cansaço, compran- capa • motivação Nosso cérebro tem dois sistemas de recompensa, um que nos leva a querer e outro, à sensação de satisfação. Sentimos vontade de obter algo e, na sequência, a alegria da conquista 20 do e comendo com avidez (mesmo sem fome) guloseimas pouco saudáveis, das quais sequer gosta de verdade. Po- demos pensar que naquele momento você queria aquilo, embora realmente não gostasse. O neurocientista Jaak Panksepp, pesquisador da Uni- versidade de Washington, mapeou centenas de cérebros de animais e constatou que o prazer está muito mais em buscar o que queremos do que em conseguir. Talvez isso explique, do ponto de vista da neurociência, por que su- portamos postergar o recebimento de recompensa – como o pagamento no fim do mês ou uma boa nota depois de passar o fim de semana estudando para a prova. Segundo Panksepp, isso também é observado no comportamento de muitos mamíferos que preferem procurar comida a en- contrá-la de uma forma fácil. Entre humanos, a lógica pode ser a mesma em muitas áreas da vida. Por exemplo, na paquera ou no início do na- moro, em que existe a constante motivação da conquista, em contraste com a “calmaria” da relação estável após al- gum tempo. Algo maior Durante uma das mais comentadas palestras do TED, a maior convenção de ideias do mundo, que acontece anu- almente na Califórnia, o professor do departamento de psicologia da Universidade de Chicago Mihaly Csikszent- mihalyi fez uma pergunta à plateia: “O que faz a vida valer a pena?”. Em 15 minutos de apresentação, ele chegou à seguinte conclusão: Não podemos ter uma ótima vida sem o sentimento de que fazemos parte de algo maior do que nós mesmos. capa • motivação 21 Talvez seja esse o propósi- to maior da nossa motivação. Além de atender às nossas ne- cessidades biológicas de so- brevivência, de sermos recom- pensados por aquilo que faze- mos bem feito e realizar com autonomia algo que importa, precisamos ter a sensação de que o que queremos e do que gostamos tem um significado. Ganhar dinheiro? Assistir a sé- ries? Viajar? Receber elogios? Ter um corpo considerado boni- to segundo os padrões de bele- za vigentes? Tudo isso é ótimo. Mas se empenhar continuamen- te em conseguir o que se deseja pode ser muito mais gratificante. Principalmente se o objetivo não for obter apenas satisfação pes- soal, mas encontrar um objetivo maior para motivar suas ações. capa • motivação Durante a maior parte da vida, buscamos recompensas – que podem aparecer em forma de bens materiais, prazeres sensoriais ou afeto – e evitamos punições, mas em geral nos frustramos atenção 22 Diante de uma situação em que precisamos nos concentrar, mas vários estímulos nos atraem simultaneamente, “escolhemos” apenas um para nos ater Truque cerebral para evitar distrações 23 V ocê está dirigindo por uma rodovia por onde não costuma transitar e sabe que a saída está em algum lugar desse trecho da estrada, mas nunca a utilizou antes e não quer perdê-la. Enquanto olha atenta- mente para um lado em busca do sinal de saída, numerosas distrações se intrometem em seu campo visual: cartazes, um conversível charmoso, o toque do celular. Como o seu cérebro se concentra na tarefa que está rea- lizando? Para responder a essa pergunta, neurocientistas em geral estudam o modo como o cérebro reforça sua resposta para o que você está procurando, condicionando-se com um impulso elétrico especialmente forte quando vê o que pro- cura. Outro “truque” neurológico pode ser igualmente im- portante: segundo um estudo divulga- do pelo periódico científico Journal of Neuroscience, o cérebro enfraque- ce sua reação deliberadamente perante tudo o mais, de modo que, comparativamente, o alvo de interesse ganhe destaque. E o mais curioso: fazemos isso sem sequer perceber. Os neurocientistas cognitivos John Gaspar e John McDonald, ambos pesquisadores da Universidade Simon Fraser, na Co- lúmbia Britânica, Canadá, chegaram a essa conclusão depois de pedirem a 48 universitários que fizessem testes de atenção em um computador. Os voluntários deveriam identificar rapida- mente um círculo amarelo isolado em meio a um conjunto de atenção Neurocientistas acreditam que a ampliação dessa linha de pesquisa poderá ajudar a compreender o que ocorre no cérebro de pessoas com transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) 24 círculos verdes sem serem distraídos por um círculo vermelho ainda mais chamativo. Durante todo esse tempo os pesquisa- dores monitoraram a atividade elétrica no cérebro dos estu- dantes por meio de uma rede de eletrodos conectados a seu couro cabeludo. Como primeira evidência direta desse pro- cesso neural em ação, os padrões registrados revelaram que o cérebro dos participantes do experimento consistentemente suprimira reações a todos os círculos, exceto quando se referia àquelas formas geométricas que estavam procurando. “Neurocientistas estão cientes da supressão há algum tem- po, mas ela não tem sido tão estudada quanto mecanismos que aumentam a atenção”, salienta McDonald. “A novidade é que, com esse trabalho, determinamos como é possível evitar distração por meio da supressão.” O neurocientista acredita que pesquisas desse tipo algum dia poderão ajudar os cientistas a entender o que ocorre no cérebro de pessoas com problemas de atenção, como o trans- torno de défi cit de atenção e hiperatividade (TDAH). E, em um mundo cada vez mais permeado de distrações, o que é um importante fator para acidentes de trânsito, qualquer insight sobre como o cérebro concentra atenção deve despertar tam- bém a nossa. atenção inteligência 26 Assim como as crianças, filhotes de galinha parecem ter preferência inata por algarismos menores à esquerda e maiores à direita Pintinhos bons de matemática 27 P ense em um número. Agora imagine um maior. Tente visualizar os dois na sua frente. Se você enxerga o menor do lado esquerdo, apenas confirma um dado encontrado frequentemente: tendemos a posicionar números no espaço da esquerda para a direita. Cada vez mais evidências, incluindo pes- quisas com bebês lactentes pré-verbais, sugerem que nascemos com essa tendência, que pode ser facilmente influenciada pela cultura e alterada. O curioso é que um estudo publicado pelo periódico científico Science, por uma equipe de pesquisado- res da Universidade de Tren- to, na Itália, mostra que be- bês de uma espécie comple- tamente diferente também preferem colocar os algaris- mos maiores nessa ordem. Os cientistas treinaram pin- tinhos de três dias de vida para andar em torno de um painel em busca de alimen- to. Num primeiro momento, alguns filhotes aprenderam a encontrar comida atrás de uma divisão em que havia cinco pontos desenhados. Em seguida, os cientistas, coordenados pela psicóloga cog- nitiva Rosa Rugani, substituíram o painel por outros dois. Quando essas novas separações mostravam duas mar- cações cada uma, os animais caminhavam inicialmente para a marca da esquerda em 70% das vezes. Quando inteligência Os resultados mostram que as escolhas dos animais dependem de quantidades relativas, e não de qualquer preferência absoluta por algum número, e indicam que essa predisposição é inata 28 os painéis exibiam oito, os pintinhos tendiam a escolher o número da direita, como se tivessem certa preferência pela disposição numérica. Os pesquisadores repetiram então o experimento com outros filhotes, que foram treinadoscom divisões exibin- do 20 pontos e testados com marcação de oito ou 32. Sur- preendentemente, em ambos os ensaios, os animais viraram à esquerda para os números pequenos e à direita para os grandes. Os cientistas escolheram como menor o oito em um contexto e maior no outro para mostrar que o efeito de- pende de quantidades relativas, e não de qualquer prefe- rência absoluta por algum número. Os resultados confirmam fortemente a ideia de que essa predisposição é inata. A pesquisa indica, porém, que a prefe- rência pode ser facilmente modificada pela experiência; por isso, é bem provável que substituí-la não represente muita dificuldade para cérebros jovens numa cultura que escreve nesse sentido. Falantes de árabe, por exemplo, mostram ten- dência espacial inversa. Outros povos que escrevem da di- reita para a esquerda e os dígitos na outra direção, como em hebraico, não mostram nenhuma predileção particular. Os autores do estudo sugerem que esses resultados estão relacionados com o fato de que cérebros não são simétri- cos. O hemisfério direito domina o processamento visuoes- pacial, levando a uma preferência para o lado esquerdo do espaço para comandar a atenção – o que talvez explique por que tendemos a pensar nos “primeiros” números nessa di- reção enquanto contamos. O esquema espacial pode surgir também de um mapa físico dos algarismos no cérebro, algo encontrado em humanos no córtex parietal posterior direito, mas ainda não observado em animais. inteligência sentidos 30 Cheiro da pessoa amada diminui estresse Em um novo estudo, os pesquisadores descobriram que as mulheres que tinham cheirado a camiseta suada do parceiro relataram ter menos estresse do que aquelas que sentiram o cheiro de um estranho ou de uma roupa não usada 31 E stá ansioso com a situação caótica do país, com o trânsito ou com o compromisso assumido de fa- lar em público? Tente cheirar a camiseta suada da pessoa amada. Estranho? Talvez, mas um estudo experimental recente revelou que o odor do parceiro afetivo pode reduzir os níveis de estresse psicológico e fi siológi- co, mesmo quando a pessoa não está presente. Já o cheiro de um estranho tende a aumentar os níveis de estresse, de acordo um estudo publicado no periódico científi co Journal of Personality and Social Psychology. “Muitas mulheres usam a camisa do parceiro e homens às vezes preferem o lado que a companheira normalmente ocu- pa na cama quando ela está fora”, diz a doutora em psicologia Marlise Hofer, pesquisadora da Universidade de British Co- lumbia. “Ao observar esses comportamentos, fi quei curiosa para saber se traziam algum benefício efetivo”, conta Hofer. Ela e outras três pesquisadoras recrutaram 96 casais hete- rossexuais para participar do estudo. Os homens foram ins- truídos a usar uma camiseta branca por 24 horas e evitar usar desodorante, fumar ou comer alimentos como alho ou cebo- la, que interferem diretamente no odor exalado. Após usarem as peças durante cinco horas, as devolveram ao laboratório. As camisetas foram dobradas e congeladas pelo avesso, em embalagens individuais, com a área da axila voltada para cima para preservar o aroma, e descongeladas duas horas antes do início do teste de estresse. Aliás, há algo curioso no método: congelar uma peça de roupa preserva o odor do usuário por até dois anos, segundo as pesquisadoras. Os homens foram esco- lhidos para usar as roupas porque costumam ter suor mais forte, enquanto as mulheres tendem a ter um olfato mais apurado. sentidos 32 As participantes deveriam cheirar, aleatoriamente, uma entre três tipos de camisetas por um minuto: a de seu par- ceiro, outra de um estranho ou uma peça limpa, não usada, sem saber de qual se tratava. As pesquisadoras pergunta- ram a cada uma se acreditavam que a roupa tinha sido usa- da por seu parceiro. Na sequência, as voluntárias passa- ram por um teste psicológico, destinado a induzir estresse, composto pela simulação de uma entrevista de emprego e um desafio mental que consistia em contar, de 2027 a 1 (ordem decrescente), o mais rápi- do possível, por 17 segundos, en- quanto eram observadas por uma banca de “juízes”, previamente instruídos a não sorrir. As pesquisadoras coletaram amostras de saliva das mulheres sete vezes ao longo do experimen- to, para medir os níveis de cortisol, o hormônio associado ao estres- se. Para controlar as diferenças na produção de cortisol, as voluntá- rias foram submetidas ao teste de estresse durante a mesma fase de seus ciclos menstruais. As mulheres também responderam ao mesmo questio- nário cinco vezes, indicando quão ansiosas, tensas ou des- confortáveis se sentiam numa escala de zero (nada) a 100 (muito). No geral, tanto antes como depois do exercício de matemática e da entrevista simulada de trabalho, as que ti- nham cheirado a camiseta do parceiro relataram se sentir menos estressadas do que aquelas que sentiram o cheiro de um estranho ou de uma roupa não usada. Os níveis de sentidos As camisetas foram dobradas e congeladas pelo avesso, em embalagens individuais, com a área da axila voltada para cima para preservar o aroma, e descongeladas duas horas antes do início do experimento cortisol caíram principalmente quando a mulher não só to- mava contato com o cheiro do marido ou namorado, mas também o reconhecia. “O cheiro associado à percepção de que o odor é do companheiro reduz sensivelmente a res- posta do estresse fi siológico”, afi rma Hofer. As mulheres que cheiraram o odor da axila de um estranho apresentaram nível mais alto de cortisol. No entanto, elas não relataram se sentir especialmente estressadas. “Isso sugere que as reações ao hormônio podem representar mobiliza- ção de energia dentro do sistema metabólico em preparação para uma ameaça potencial (a resposta de lutar ou fugir) e que a reação ao cortisol pode não ser acessível à experiência subjetiva de estresse”, escrevem as pesquisadoras no artigo sobre o experimento. sentidos 33 linguagem 34 Os idiomas variam muito de uma cultura para outra, mas raízes comuns podem ser encontradas na maioria deles. A ciência tem pistas sobre a razão de associarmos certas letras com formas redondas ou pontiagudas A forma secreta das letras 35 V ocê sabe o que quer dizer bouba, takete, malu- mi e kiki? Se não tem ideia, não faz mal, pois de fato as palavras não têm nenhum significado. Apesar disso, por décadas os vocábulos têm sido estudados por linguistas fascinados pela maneira como esses termos podem transmitir significado em mui- tos idiomas. Pesquisas da década de 1920 já demonstra- vam que crianças e adultos, independentemente do idio- ma que falavam, combinavam as palavras bouba e malu- mi com formas arredondadas e kiki e takete com forma- tos pontiagudos. O porquê permanece um enigma. Consoantes e vogais não têm nenhuma relação ine- rente com o significado na maioria das expressões. A letra “o” em “octógono”, por exemplo, não está liga- da de maneira “natural” a formas de oito lados, nem azul ao tom, à cor que associamos à palavra, por exemplo. Então, o que haveria de tão especial em bouba e takete? Hoje os cientistas apresentam uma resposta parcial a essa pergunta: consoantes parecem carregar significado além das palavras que ajudam a formar. Em um estudo recente com 71 falantes de francês publicado na Langua- ge and Speech, pesquisadores europeus liderados pela psicolinguista Mathilde Fort, da École Normale Supérieu- re, em Paris, mostraram que os participantes associavam consistentemente palavras com b, m e l com formas re- linguagem Consoantes parecem carregar significado além das palavras que ajudam a formar; um estudo recente com 71 falantes de francês mostrou associação de palavras com b, m e l com formas arredondadas 36 dondas e termos contendo k e t com forma- tos pontiagudos,independentemente das vogais com as quais eram combinadas. Os resultados sugerem que bouba e kiki podem ser semelhan- tes às palavras ono- matopaicas em in- glês “crash” (colisão) e “crunch” (masti- gação), em que as consoantes forne- cem um sentido simbólico de som do barulho do im- pacto, independente- mente das vogais. A di- ferença seria que b, m e l têm esses significados em vários idiomas, não apenas em inglês, como k e t. Um pequeno experimento de acom- panhamento, no entanto, mostrou que o efeito não é limi- tado a algumas consoantes. Participantes de uma amos- tra de 23 pessoas também combinaram palavras com d, n, s, p, sh e zh com formas arredondadas e termos com f, v e z com formatos pontiagudos. Assim como antes, os indivíduos pareciam ignorar as vogais. O resultado, que o simbolismo sonoro não pode explicar, sugere que temos reações fundamentais a certos sons, que persistem ape- linguagem Em diferentes culturas há reações semelhantes a certos sons, que persistem apesar da ampla diversidade de línguas; cientistas acreditam que certos sons desencadeiam associações específicas no cérebro sar da ampla diversidade de paisagens melódicas de línguas do mundo todo. É provável que as consoantes de cada grupo tenham algo em comum que de- sencadeia essas associações no cére- bro, mas os cientistas ainda não desco- briram de que se trata essa propriedade – a acústica simples não pode explicar. De qualquer forma, a descoberta mos- tra que as consoantes em geral desem- penham papel excepcional no idioma. De fato, algumas línguas, como árabe e hebraico, priorizam as consoantes so- bre vogais, muitas vezes omitindo es- tas últimas nos textos. A raiz do termo “escrever” em árabe é /ktb/. Se preen- chermos essas letras com vogais dife- rentes, teremos uma variedade de pa- lavras relacionadas, como kataba (ele escreveu), yaktubna (eles escrevem) e kitab (livro). A presença desses idio- mas no mundo – e a ausência de qual- quer um que priorize vogais – ajuda a reforçar a ideia de que as consoantes são fundamentais. As vogais continuam necessárias porque tornam possível di- zer as palavras em voz alta. Mas são as consoantes que fazem o trabalho duro de transmitir significado. linguagem 37 especial • inconsciente 38 Há em nossa mente significados codificados, revestidos de metáforas e imagens; sentimentos reprimidos, porém, reaparecem disfarçados e deslocados, tanto nos sonhos quanto no cotidiano Universos além da consciência por Gláucia Leal 3939 O inconsciente é por definição incognoscível. O psi- canalista está, portanto, na posição infeliz de um estudioso daquilo que não se pode conhecer”, es- creveu Thomas Ogden, em The primitive edge of experience, de 1989. Na verdade, podemos pensar o incons- ciente sob duas ópticas. Como adjetivo, é possível associá-lo ao que escapa à consciência, sem estabelecer discriminação entre conteúdos dos sistemas pré-consciente e inconsciente. Para melhor compreender, vale observar aqui que a concepção de consciência parece semelhante à de atenção: estamos cons- cientes daquilo para o que nos voltamos e inconscientes daquilo com que não nos ocupamos. Poderíamos, segundo essa lógica, estar conscientes de situações e fenômenos para os quais voltássemos nossa atenção – entraríamos então no que Freud chamou de pré-consciente. Aquilo para o que evitamos dar atenção por acharmos que pode deflagrar perturbação e dor está no in- consciente reprimido. É possível, nesse caso, falar do incons- ciente como substantivo, no sentido tópico. Trata-se, assim, de uma instância psíquica, faz parte da primeira teoria do aparelho psíquico desenvolvida por Freud, constituído de material recal- cado, não diretamente acessível à consciência. A consciência pode ser comparada com o que está visível na tela do computador. Temos acesso imediato a outras informa- ções “pulando” para outra parte do documento ou mudando de janela. Esse gesto seria análogo às partes consciente e pré- -consciente da mente. Mas pode ser mais difícil acessar outros especial • inconsciente 4040 conteúdos, pois podem estar criptografados ou atachados, po- dem exigir senha ou ainda ter sido corrompidos, de modo que a informação esteja embaralhada e, portanto, incompreensível. A ideia de que guardamos motivações sobre as quais não temos controle (e, por vezes, nem mesmo, ciência) traz à tona a hipótese que oferece consistência a comportamentos e vi- vências que, de outra forma, pareceriam completamente inco- erentes. Freud se deu conta de que lapsos verbais e de escrita, falhas da memória, ações confusas e outros equívocos podem ser, em um nível mais profundo, não casuais – mas inconscien- temente intencionais. Para ele, os sonhos constituem um cami- nho privilegiado para o inconsciente, embora não seja possível desvendá-los completamente. Da mesma forma que os sonhos, outras formas de comu- nicação podem apresentar representações de desejos e ob- servações inconscientes que empregam os mesmos meca- nismos oníricos. Os significados inconscientes são codificados, revestidos de metáforas e imagens. Um exemplo muito co- mum disso se dá em situações em que sentimos raiva, mas re- primimos essa emoção por sabermos que desencadeará sen- timentos dolorosos e em especial quando é dirigida a alguém com quem temos relação mais próxima. Assim, os sentimentos reprimidos são disfarçados e deslocados – e aparecem, por exemplo, quando criticamos outra pessoa. especial • inconsciente Lapsos verbais e de escrita, falhas da memória, ações confusas e outros equívocos podem ser, em um nível mais profundo, não casuais, mas inconscientemente intencionais 41 É possível pensar na se- guinte situação: a orienta- dora de pesquisa de uma jovem avisa que vai ausen- tar-se do país durante um período crítico do trabalho. A estudante pode até com- preender, de forma sincera, as razões da orientadora. Mas, prosseguindo a conversa, ela fala de um caso que ouvira: uma mãe havia deixado o filho pequeno sozinho em casa para fazer compras, a criança acordou e terminou se ferindo ao cair da escada. A mensagem inconsciente é clara: a orientadora é tida como a mãe negligente, a aluna é o filho desprotegido. A queda faz alusão ao risco que ela julga correr. Consciente- mente, a garota fala como adulta, mas inconscientemente se ressente com a orientadora que não cumpre a função de mãe. Cabe considerar que a consciência tem gradações. É frequen- te que vivências infantis que evocaram grande vergonha ou culpa fiquem tão abafadas que se torna muito difícil resgatá- -las, sendo possível ter apenas indícios desse material. Já uma introspecção momentânea, aliada a alguma capacidade psico- lógica de tolerar o desconforto de lidar com algum conteúdo que estava inconsciente, pode levar o desejo que parecia es- condido ao pleno conhecimento. Do mesmo modo, no decorrer de uma terapia psicanalí- tica na qual o paciente é encorajado a falar e pensar com maior liberdade para estabelecer associações, seus anseios e temores tendem a se aproximar, gradualmente, da cons- ciência. (Leia mais sobre o tema no artigo na próxima pág.) A AUTORA GLÁUCIA LEAL é jornalista, psicóloga e psicanalista, especialista em psicossomática psicanalítica. Editora-chefe de Mente e Cérebro. especial • inconsciente PARA SABER MAIS Freud nosso de cada dia. Gláucia Leal. Em: Por que Freud hoje? Coord. Daniel Kupermann. Zagodoni, 2017. O estranho (1919). Em: Freud (1917-1920) - “O homem dos lobos” e outros textos. Sigmund Freud. Obras Completas. Companhia das Letras, 2010. 42 Esse intrigante aspecto psíquico que influencia escolhas organiza memórias e experiências que preferimos esquecer ou dos quais não queremos saber. E se revela em sonhos, amores, desejos e fantasias especial • inconscienteEstranhos mundos internos 43 G rande parte dos nossos conteúdos psíquicos são inacessíveis ao próprio conhecimento. E apesar de “escondidos”, surgem disfarçados e influen- ciam nossas escolhas. Recentemente, ao pesqui- sar a ação de neurotransmissores, o psiquiatra Eric Kandel, ganhador do Nobel de Medicina em 2000, comprovou que o inconsciente tem também o papel de intensificar as emoções e sensações de angústia que pareciam ocultas. O incons- ciente freudiano não é apenas a inconsciência, no sentido da não consciência ou no de uma outra consciência. Trata-se de uma instância simultaneamente “descoberta e inventada”, uma vez que é um sistema que organiza nossas memórias, desejos e experiências que pretendemos esquecer ou dos quais não queremos saber. Ele existiu desde sempre, desde que sonhamos, amamos ou fantasiamos. O psicanalista Jacques Lacan acrescentou que há incons- ciente desde que falamos com os outros. Os animais não têm inconsciente não porque não são racionais, ou porque não te- Características da mente oculta(*) • Impulsos ou ideias incompatíveis podem existir simultaneamente sem parecer contraditórios. É aceitável que amor e ódio se expressem ao mesmo tempo, sem que haja discordância. • Os significados podem ser facilmente deslocados de uma imagem para outra. • Muitos significados podem ser reunidos em uma única imagem; é o que chamamos de condensação. • Processos inconscientes são atemporais e as ideias não têm ordem cronológica. Conteúdos referentes a anos atrás podem surgir misturados aos mais recentes. • O inconsciente independe do mundo externo, representa a realidade psíquica, interna. Por isso, sonhos e alucinações são percebidos como reais. (*) Identificadas por Freud no texto O inconsciente, de 1915. especial • inconsciente 44 nham consciência e muito menos porque estão pri- vados de afetos e emo- ções – mas exclusivamen- te porque não falam. Na verdade, o que Freud inventou foi uma forma de usar o inconsciente para alguma coisa – aliviar o sofrimento psíquico e os sintomas, de modo a tor- nar a vida das pessoas mais interessante e, quiçá, menos dolorosa. Ele criou um método para ler o inconsciente e libertar o desejo do qual ele é feito, usando uma maneira reduzida e muito mais concentrada de inconsciente que se chama transferência. Após algum tempo de análise, muitas pessoas se perguntam, surpresas, “o que acontece”, ao per- ceberem que passaram a agir de forma menos repetitiva e mais autônoma, sem, contudo, saber precisar de forma exata os momentos nos quais se deram as transformações. É o in- consciente que “acontece” entre analista e analisando. Com essa constatação, Freud mudou também nosso entendimen- to do que é uma patologia mental. A mesma neutralização do inconsciente se dá com o que chamamos de “psicológico”. O vizinho, o passado, a amnésia Se o inconsciente sempre existiu, o que Freud inventou foi um método de tratamento, usando o inconsciente como hi- pótese de trabalho e reforçando a ideia de que esse aspecto especial • inconsciente psíquico é algo que ocorre na relação entre pessoas, na for- ma como nós nos interpretamos e nos entendemos – ou nos desentendemos. Podemos pensar que o inconsciente tem três capítulos principais: o sexual, o infantil e o recalcado. São as três figuras deste estranho que nos habita: o vizinho lascivo que “só pensa naquilo”, o passado de enganos e ilusões e a amnésia deliberada para coisas desagradá- veis. Para Freud, sonhos são a “via régia para o inconsciente”. Segundo ele, porém, aquilo de que nos lembra- mos ao acordar é resultado da elaboração onírica, resultante da passagem do conteúdo la- tente para uma representação consciente, o que implica um processo de deformação da- quilo que está escondido em nossa mente. Para que esse “dis- farce” ocorra, os elementos são fundidos, combinados, deslocados e os pensamentos, expressos em palavras, sensações e principalmente imagens. Em 1919 Freud escreveu o ensaio das Unheimliche, na maioria das vezes traduzido para o português como O es- tranho e, mais recentemente, por Paulo César de Souza, di- reto do alemão (e publicado pela Companhia das Letras), como O inquietante. Souza reconhece, porém, que é “des- necessário chamar a atenção do leitor para a insuficiência desse termo”. Em seu texto, o criador da psicanálise não tra- ta propriamente do inconsciente, mas de temas afins, como especial • inconsciente 45 castração, compulsão à repetição, pulsão de morte, narcisismo e o duplo, tomando como ponto de partida o conto de E. T. de A. Hoffman, O homem da areia. Para Freud, o estra- nhamento tem origem em traumas da infância, é recal- cado no inconsciente e se torna algo, de alguma for- ma, “familiar” e ao mesmo tempo “suspeito”; ele chega à conclusão de que o inquie- tante é algo já conhecido, en- clausurado no inconsciente – e quando vem à tona causa sensação de medo, terror, estranheza. O conto de Hoffman revela estreita ligação entre o medo de perder os olhos com a castração na fase edípica. Nessa época, “poetas e escritores já dominavam um pensamento diferente daquele racional imposto pela ciência positivista que Freud bem articulou à nova ciência humana emergen- te, a psicanálise”, escreve a psicanalista Sandra Edler, na apresentação do livro Freud e o estranho, organizado por Bráulio Tavares (Casa da Palavra, 2007). “A qualquer mo- mento podemos nos confrontar com um episódio estranho, sem explicação à primeira vista, e por isso mesmo pertur- bador; mas Freud nos lembra de que vamos acabar por reencontrá-lo ou ainda reviver a inquietante sensação de estranheza que experimentamos. (Leia mais sobre o tema no artigo na próxima pág.) ” especial • inconsciente 46 especial • inconsciente Um século depois de Freud apresentar a teoria de que habita em nós uma instância sobre a qual não temos controle – mas se mostra em nossas ações e pensamentos – muitos cientistas se rendem a evidências e buscam estudá-la A mente no laboratório 47 especial • inconsciente H á mais de um século, quando o criador da psica- nálise lançou a ideia de que temos em nós um aspecto inconsciente, foi inevitável que fosse de- flagrada a desconfiança dos cientistas, que se per- petua ao longo de décadas. Não é para menos, a proposta de Sigmund Freud é intrigante. Segundo ele, essa parte da mente abriga pensamentos, desejos e lembranças que, por seu teor excessivo, sexual ou violento, não suportamos manter por per- to – e, por isso, são removidos para uma espécie de “porão” psíquico para que não tenhamos de lidar com eles a cada ins- tante. Apesar de nossos esforços para manter esses conteú- dos recalcados, eles continuam vívidos e vez por outra retor- nam mais ou menos disfarçados. Como esse aspecto não é, por definição, facilmente acessí- vel, não é simples estudá-lo – embora se apresente inúmeras vezes por meio de atos falhos e no conteúdo dos sonhos, por exemplo. Depois de muitas abordagens buscarem negar ou ignorar essa instância – o que, aliás, é compreensível, visto que parece realmente desconfortável ter um “estranho morando dentro de nós” –, a ciência tem se rendido e procurado com- preendê-la melhor. Atualmente, o domínio da inconsciência, descrito mais genericamente no âmbito da neurociência cognitiva como qualquer processo que não permita a ativação da cons- ciência, é rotineiramente estu- dado em centenas de labora- tórios que usam técnicas psi- cológicas objetivas baseadas em análises estatísticas. 48 especial • inconsciente Dentre tantos, dois experimentos revelam algumas capacida- des da mente inconsciente – embora nem de longe na profun- didade proposta por Freud e estejam mais ligados à percepção do que ao profundo universo da inconsciência abordada pela psicanálise. Os dois experimentos abordam um aspecto interes- sante dessa(ainda) misteriosa instância psíquica: ambos bus- cam compreender processos de “mascaramento”, a ocultação de objetos da cena apresentada. Ou seja: as pessoas que parti- cipam dos estudos olham, mas simplesmente não veem o que seus olhos captam. O primeiro estudo resultou de uma colaboração entre os pesquisadores Filip van Ops- tal, da Universidade Ghent, Bélgica, Floris P. de Lange, da Universidade Rad-boud Nij- megen, na Holanda, e Stanis- las Dehaene, do Collège de France, em Paris. Dehaene, diretor da Unidade de Neuroi- mageologia Cognitiva (Inserm-CEA, na sigla em francês), é mais conhecido por suas investigações sobre mecanismos cerebrais responsáveis por contas e números. Ele explora até que ponto uma simples adição ou uma média podem ser calculadas de for- ma automática – o que ele acredita que ultrapasse os limites da consciência. Somar 7, 3, 5 e 8 geralmente é considerado um pro- cesso cognitivo consciente e sofisticado. Porém, Van Opstal e seus colegas provaram o oposto de for- ma indireta, mas bastante convincente. Durante o experimento, a imagem de um conjunto de quatro números arábicos com Ao longo do tempo, várias abordagens psicológicas buscaram negar ou ignorar a instância inconsciente em nós, o que é compreensível, já que para muitos é desconfortável ter um “estranho morando em nós” 49 especial • inconsciente um único dígito (1 a 9, excluindo o 5) era projetada rapidamente numa tela. Voluntários tinham de indicar, o mais rápido possí- vel, se a média dos quatro números era maior ou menor que 5. Cada rodada era precedida por uma pista oculta que podia ser válida ou inválida. A pista consistia num flash mostrando outro conjunto de quatro números cuja média era menor ou maior que 5. Estes eram precedidos e seguidos por marcas hashtag ou jogo da velha (#) no lugar dos números visualizados de re- lance durante o flash. As marcas efetivamente escondiam as pistas de modo que, conscientemente, não era possível ver esse conjunto de números. Convidar os participantes a adivi- nhar se a média dos quatro números escondidos era menor ou maior que 5 também não funcionou: ela era aleatória. No entanto, a pista ainda influenciava a reação dos participan- tes. Quando a dica implícita era válida, a resposta final era cons- cientemente mais rápida que quando a pista era inválida. Na ilustração, a média dos quatro indícios invisíveis (3,75) era menor que 5, enquanto a média dos números-alvo visíveis era maior que 5. Resolver esse conflito requer mais tempo de proces- samento (cerca de 1/40 de segundo). Isso significa que a pista aciona a atividade neural representada pela declaração “menor que 5” que, por sua vez, interfere no estabelecimento imediato Em menos de 3 segundos somos capazes de detectar imagens incongruentes; sofisticadas redes neurais do córtex codificam as imagens, pois aprendemos que certos objetos combinam e outros não 50 especial • inconsciente de uma associação de neurônios representando “maior que 5”. Essas pistas invisíveis e indetectáveis influenciam no compor- tamento e sugerem que “saber sem se dar conta disso” pode, de alguma forma, ajudar a estimar a média dos quatro números de um dígito. É pouco provável que nesses casos as pessoas ajam seguindo as regras algébricas precisas que as crianças apren- dem na escola. Mas o processo pode basear-se na heurística (método para fazer descobertas). Por exemplo, para cada nú- mero maior que 5, realmente aumenta a probabilidade de o vo- luntário apertar o botão “maior que 5”. Este é apenas o último de uma batelada de experimentos que demonstram a capacidade de “codificação do conjunto”, uma habilidade da mente de esti- mar, em poucos segundos, a expressão emocional dominante de uma multidão de rostos ou das dimensões aproximadas de pontos agrupados, mesmo que as faces ou os pontos isolada- mente não sejam conscientemente identificados. Capa de Harry Potter Creio que a possibilidade que temos de agrupar rapidamente todos os diferentes elementos contidos numa cena e colocá- -los no mesmo contexto é uma das principais características da consciência. Intrigados com essa questão, os neurocientistas Liad Mudrik e Dominique Lamy, da Universidade de Tel Aviv, e Assaf Breska e Leon Y. Deouell, da Universidade Hebraica em 51 especial • inconsciente Jerusalém, dispuseram-se a testar até que ponto é possível integrar incons- cientemente todas as informações de um único quadro numa experiência vi- sual unificada e coerente. Os psicólogos israelenses usaram a “supressão por flashes contínuos”, uma técnica poderosa de ocultação, para tornar as imagens “invisíveis”. Nesse processo, padrões coloridos aleatórios, que mudam rapidamente, são dispa- rados na forma de flashes em um dos olhos enquanto a imagem de uma pes- soa realizando qualquer tarefa vai de- saparecendo lentamente no outro olho. Em poucos segundos, a figura torna-se completamente invisível e o observa- dor vê apenas formas coloridas. A cena que vai se tornando gradativamente mais intensa acaba finalmente irrom- pendo e o espectador consegue vê-la. Algo parecido com a capa de invisibili- dade de Harry Potter que, com o passar Num piscar de olhos Participantes do experimento viam quatro números durante 600 milissegundos e precisavam decidir rapidamente se a média ultrapassava 5. Máscaras com marcas hashtag (#) garantiam que os quatro números sugeridos não seriam vistos conscientemente; no entanto, a média pode ser estimada de forma “automática”. do tempo, vai sumindo e revela o que está por baixo. O aspec- to fascinante do estudo de Liad Mudrik é que o tempo até a cena se tornar visível depende do conteúdo da imagem. Imagens reais de uma mulher colocando uma pizza no forno, um garoto mirando um alvo com arco e flecha ou um jogador de basquete saltando para fazer um arremes- so levam 2,64 segundos para se tornar visíveis, enquanto os quadros não naturais são mascarados por 2,50 segun- 52 especial • inconsciente dos. A diferença é pequena, mas significativa: a mente inconsciente detecta coisas incon- gruentes nessas imagens. Uma mulher coloca um tabuleiro de xadrez no forno, a flecha a ser disparada é substituída por uma raquete de tênis e a bola de basquete se transfor- ma em uma melancia. Os psicólogos verificam se as duas imagens, a congruente e a incongruente, estão realmente invisíveis e não podem ser distinguidas uma da outra quando mascaradas. Essa desco- berta implica que a inconsciência reconhece que há algo er- rado nas imagens, que o objeto manuseado está fora do con- texto. A forma como a mente conduz esse processo é mui- to intrigante, talvez porque as vastas e intrincadas redes do córtex cerebral que codificam as imagens tenham aprendido que certos objetos combinam, outros não. Considerando o número quase infinito de combi- nações de objetos e contextos, é possível que essa solução seja realizada pelo cérebro? Ou será que as técnicas de ocultação suprimem a visibilidade da imagem, mas não impedem completamente o acesso consciente a elas? Somente mais pesqui- sas poderão responder a essas perguntas. Assim, talvez no futuro possamos finalmente conhecer a capacidade da inconsciência cognitiva e ter mais informações sobre o papel fundamental desempe- nhado pela consciência neste nível mais prático. Já para acessar aspectos mais profundos da estância inconsciente proposta por Freud nada melhor do que recorrer à psicanálise. 53 livro | lançamento Do misticismo à psicobiologia Livro de Sidarta Ribeiro trata do sonho, uma atividade mental governada por emoções e processos neuroquímicos, que nos permite simular futuros possíveis, esquecer, criar, ensaiar comportamentos e aprender O oráculo da noite – A história e a ciência do sonho. Sidarta Ribeiro. Companhia das Letras, 2019. 472 págs. R$ 79,90. E-book: R$ 39,90.Ao longo da história, as experiências oníricas guiaram decisões de líderes e várias culturas, e ainda hoje muitas pessoas fazem escolhas (como adiar viagens, por exemplo) com base nos sonhos. Em linhas psicote- rápicas que valorizam o papel da instância inconsciente, como a psicanálise e a psicologia analítica, essas manifestações noturnas são recursos importan- tes para compreender desejos e processos mentais nem sempre óbvios. Em O oráculo da noite, o neurocientista Sidarta Ribeiro, pós-doutor pela Universidade Duke, se pergunta – indagações que certamente já passaram pela cabeça de muita gente: o que é o sonho, afinal? Qual seu propósito? Como compreender suas mensagens simbólicas e detalhes tantas vezes intrigantes? 54 livro | lançamento 55 Para oferecer respostas, de forma instigante e inteligente, o professor de neu- rociência, fundador e vice-diretor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), busca embasamento em consistentes informa- ções antropológicas, psicanalíticas e literárias, além das mais recentes referências sobre biologia molecular, neurofisiologia e medicina. O neurocientista assinala, por exemplo, que experiência onírica foi provavelmente a primeira demonstração para nossos ancestrais de que a percepção sensorial pode ser apenas um teatro de ilusões. No momento em que foi possível experimentar vividamente a riqueza dessa formação psíquica, e lembrar-se disso na vigília, tornou-se possível perceber que nem tudo que é pensado deve corresponder a uma percepção ou ato motor na vida real. Daí para a imaginação consciente (incluindo o planejamento do futuro e a lembrança do passado, articulados) pode ter sido um pulo. Colunista de Mente e Cérebro du- rante 12 anos, Ribeiro recorre a histó- ria, filosofia, narrativas sobre amores, monges e demônios para compor um panorama atraente e ao mesmo tempo aprofundado. Ele ressalta que, hoje, a ciência sabe que sonhar – uma ativi- dade mental governada por emoções, motivações e processos neuroquímicos – nos permite simular futuros possíveis, esquecer, criar, ensaiar comportamentos. E aprender durante a noite sem nos submetermos aos riscos da realidade. O ato de compartilhar essas experiências por meio da linguagem talvez te- nha inaugurado a religião, confirmando para todos os membros da tribo que além dessa realidade há outras, fato atestado por todos ao despertar de manhã. Desvendar os mecanismos e funções oníricas esclarece muito sobre a origem da consciência humana. Embora numa época em que se dorme tão pouco os sonhos muitas vezes sejam desacreditados, menosprezados ou simplesmente esquecidos, seu uso como tecnologia psicológica e pedagógica se torna cada vez mais poderoso, à medida que adquirimos conhecimento sobre a melhor forma de dormir e sonhar. Desvendar os mecanismos e funções oníricas esclarece muito sobre a origem da consciência humana; o uso do sonho como tecnologia psicológica e pedagógica é um recurso pessoal poderoso Entenda o que eles pensaram. 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