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ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 1 A POÉTICA-POLÍTICA DOS CORPOS NA CIDADE: ENTRE PERFORMANCE E DANÇA Jardel Sander (UFMG) Jardel Sander, dançarino, performer, professor do curso de Dança da Escola de Belas Artes (EBA) – UFMG, na área de performance e videodança; pós-doutorado na UFSC, com pesquisa intitulada “Performance: corpos-públicos e micropolíticas disruptivas nas sociedades de controle” (bolsa de pós-doutorado CNPq); doutor pela PUCSP, sob orientação da Profa. Dra. Suely Rolnik, com tese intitulada “Camelos também dançam. Movimento corporal e processos de subjetivação contemporâneos: um olhar através da dança”; formação artística em teatro, capoeira e dança contemporânea, com foco no contato improvisação; integrante do grupo de performance e teatro Zona de Interferência (Belo Horizonte/MG); integrante do coletivo de dança planoB (Florianópolis/SC). E-mail: jardelss@gmail.com Resumo Este trabalho focaliza-se na relação poética-política dos corpos com os espaços urbanos, através do movimento dançado. Busca aprofundar e redimensionar a problematização do corpo em seus recursos expressivos e em sua atividade micropolítica, tomando como base investigativa a pesquisa de pós-doutorado do autor, intitulada “Performance: corpos-públicos e micropolíticas disruptivas nas sociedades de controle”, em que foram estudadas as relações presentes no trinômio corpo-subjetivação-expressividade, focalizando especialmente a dimensão do movimento corporal, na relação entre cotidiano e dança. Em termos de análise, tem-se procurado compor uma reflexão sobre as micropolíticas disruptivas esboçadas nos gestos de pessoas que transitam pelo centro urbano de duas cidades brasileiras (Florianópolis/SC e Belo Horizonte/MG), buscando compreender tanto gestos cotidianos, quanto artísticos, através da realização de performances nestes espaços. Paralelamente, tem sido feita uma investigação metodológica, tanto na própria pesquisa, quanto no diálogo com pesquisadores de diversas universidades e de outros espaços de pesquisas artísticas, no sentido de problematizar o uso de imagens nas performances e intervenções urbanas. Palavras-chave: Corpo, Movimento Dançado, Intervenção Urbana, Micropolítica. THE POETIC-POLITICAL BODIES IN THE CITY: BETWEEN PERFORMANCE AND DANCE Abstract This work focuses on the relationship between the poetic-political bodies and urban spaces, through dance movement. Seeks to enhance and resize the problematic of the body in its expressive features and micropolitics activity, based on author’s postdoctoral investigative research, entitled "Performance: Public bodies and disruptive micropolitics in control societies," in which were studied the relationships in the triad body-subjectivity-expression, focusing especially on the dimension of body movement, the relationship between everyday life and dance. In terms of analysis, has been done a reflection on the disruptive micropolitics outlined by people gestures passing through two brazilian cities urban center (Florianópolis / ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 2 SC and Belo Horizonte / MG), seeking to understand both daily gestures, and artistic ones, through the performing of urban interventions on these spaces. In parallel, has been made a methodological research in both the research itself, and in dialogue with researchers from several universities and other spaces for artistic research, to discuss the use of images in performances and urban interventions. Keywords: Body, Dance Movement, Urban Intervention, Micropolitics. A pesquisa a que se refere este texto diz respeito a um aprofundamento perspectivo no estudo do corpo e das corporeidades 1 , sendo originada por questões levantadas por pesquisas anteriores, bem como de minha atuação artística, tanto junto ao grupo de performance e dança Zona de Interferência2 (Belo Horizonte), quanto, mais recentemente, em Florianópolis3 Pretendo, aqui, discorrer sobre a questão da dança como ferramenta na construção de corpos públicos-políticos. O percurso será feito a partir de uma problematização do corpo, do gesto e da performance no cotidiano da cidade; e através de dois exemplos de intervenções urbanas, realizadas em 2008 (Belo Horizonte e Salvador) e em 2011 (Florianópolis). Este texto refere-se a um work in process, não sendo possível apresentar resultados definitivos ou um produto final. . Arte e Corpo Inicialmente, é preciso ressaltar a importância que a temática do corpo assume na compreensão atual da relação entre as artes, os processos de subjetivação e os espaços urbanos. Pois, pelo menos desde os anos 1950 – se não quisermos ir ainda mais longe, até as vanguardas do início do século XX –, não só a mente consciente como recurso expressivo cedeu lugar para uma pesquisa profunda de outros estados mentais; mas o próprio estatuto da arte como espaço privilegiado foi sendo diluído, questionado, combatido. A arte, então, flertou com o inconsciente e com a loucura – não que já não o tivesse feito, mas desta vez de maneira proposital. O espaço da produção artística transbordou para Nesse aspecto, é possível citar, sobretudo minha pesquisa de pós-doutorado, intitulada Performance: corpos-públicos e micropolíticas disruptivas nas sociedades de controle (2010-2011), mas também tese de doutoramento, Camelos Também Dançam. Movimento Corporal e Processos de Subjetivação Contemporâneos: um olhar através da dança (2006), entre outras pesquisas realizadas na PUCMG, entre 2007-2010. Cf. http://www.zonadeinterferencia.com. Pesquisa de pós-doutorado, financiada pelo CNPq. ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 3 as ruas, para o espaço público, para a cidade como signo do movimento. E o corpo parece ter servido como o cadinho mais apropriado para esta química. De lá para cá, muito aconteceu no cenário artístico. Mas, para o que nos interessa aqui, é possível afirmar que os estudos sobre o corpo e sobre as corporeidades cotidianas nos espaços urbanos são especialmente importantes para as artes cênicas e para a dança. Não somente por nos possibilitarem compreender os sujeitos em sua cotidianidade expressiva; mas, também, e mais profundamente, sua extra-cotidianidade4 O estudo sobre o corpo cotidiano nos permite partir das práticas corporais, e a elas retornar de maneira renovada. Mesmo que isso não seja simples, sobretudo em nossa contemporaneidade. Afinal, a exposição do corpo pela mídia, atualmente, torna-o onipresente: o corpo nos ocupa (Sander, 2006). E quanto mais o exploramos imageticamente, mais o esvaziamos de sentido, nessa película bidimensional a ocupar nossos olhos, afastando-nos de sua potência: o devir do movimento. , sua potência disruptiva, em ruptura com o estabelecido, transformando o já-dado. A política atual que incide sobre as corporeidades é um mais novo estágio daquilo que Michel Foucault (2005; 1990) chamou de biopolítica. Isto é: se sobre nós opera uma tecnologia de regulação – que, segundo Foucault (2005), vem se desenvolvendo pelo menos desde o século XVIII –, a novidade é que essa tecnologia atingiu tal ponto de refinamento que a regulação não passa mais necessariamente por um controle externo, por uma agência reguladora, por uma instituição materializada: o controle se interiorizou. É nesse sentido que Gilles Deleuze (1992), ao refletir sobre a obra foucaultiana, fala de nossa contemporaneidade como uma “sociedade de controle”5 Sobre extra-cotidianidade, cf. Barba& Savarese, 1995, pp.9 e ss. (Deleuze, 1992, p.219 e ss.). Essa interiorização do controle evidencia-se nas produções de subjetividade de nossas sociedades industrializadas que, como foi dito acima, envolve o corpo e sua imagética. Mas não só: a própria questão de nossa expressividade se encontra aí comprometida, uma vez que nossos corpos tendem a ser espetacularizados a cada esquina. Os corpos saíram do anonimato, para ganharem evidência. Este termo, “sociedade de controle”, Deleuze o toma emprestado de um livro (uma ficção futurista) de William Burroughs, Expreso Nova. Cf. Burroughs, 1973. ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 4 No entanto, isso não representa um menor controle por parte do Estado e das forças hegemônicas. O que acontece é que o controle não mais se dá, somente, por incidência direta sobre os corpos e os espaços; ele opera mais por esvaziamento dos gestos, tornando-os espetacularmente banais, através da neutralização do sentido. O que se observa, pois, é uma crescente banalização dos corpos e dos espaços (e dos corpos nos espaços) a partir de uma hiperexposição de imagens daqueles, desprovidas de um significado vivido, na nossa contemporaneidade. Esta problemática atinge diretamente o estatuto de política que pretendemos sustentar – como micropolítica 6 , seguindo a conceituação de Guattari e Rolnik (2005) –, uma vez que esvazia, frequentemente, seu conteúdo. Corpo-imagem, corpo-movimento Mikhail Bakhtin (1999) nos apresenta, como contraposição ao corpo-grotesco presente nas obras de Rabelais, a ascensão de um novo “cânon corporal” a partir do século XVI (1999, p.281). Este novo cânon de que fala o autor, podemos compreendê-lo na relação que estabelece com o racionalismo, bem como pelo humanismo por ele engendrado, ambos profundamente implicados nas técnicas de civilidade que se desenvolveram a partir de então (sobretudo no século XVIII), tão bem analisadas por Norbert Elias (1994). O que nos interessa desse corpo civilizado – leia-se: disciplinado e regulado –, para os propósitos desse texto, são as transformações que sofreu para chegar ao estágio atual, em que a imagética corporal cumpre uma função política. A esse respeito, Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine e Georges Vigarello (2005), em seu prefácio à coleção Histoire du Corps, informam-nos que sobre o corpo incidiram três lógicas distintas entre os séculos XVII e XX, a saber: uma lógica mecânica (a partir do século XVII); uma lógica energética (séc. XIX); e uma lógica informacional (séc. XX). É neste ponto que nos encontramos, no qual o corpo inevitavelmente informa, comunica. Sobretudo, o corpo se mostra. Como micropolítica, entendamos, de modo geral, as relações do desejo com o mundo, principalmente na forma de alteridade. Com micropolíticas disruptivas, queremos apontar para formas de subjetivação abertas e porosas, que estabelecem trânsito com os desejos, com os fluxos e com o devir. Um modo de fazer vida pública que não se fecha à alteridade. Cf. Deleuze & Guattari, 1996, pp. 83 e ss. ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 5 De fato, o que se tem observado é a paradoxal junção de dois fenômenos envolvendo as corporeidades: uma “hiper-exposição” agregada a uma “desimportância expressiva”. Encaminhamo-nos para uma época em que cada gesto do sujeito será registrado em imagens, mas absolutamente esvaziadas de sentido. Pois a proliferação de imagens na contemporaneidade tende a elidir o processo mesmo (vital, histórico, político) que torna possível essas imagens, doravante capturadas pelo instantaneísmo dos olhares humanos e mecânicos. É nesse contexto que o estudo do corpo, não reduzido à sua redução imagética, assume importância crucial, uma vez que nos remete às políticas de produção de subjetividade da nossa contemporaneidade, e nos abre, via criação artística, o caminho para uma nova expressividade. Pois, para além do corpo- imagem, há um corpo-movimento (Sander, 2009; 2006). Para tanto, é preciso compreender o gesto, diferenciando-o em seus movimentos cotidianos e artísticos. Gesto e Performance Quando nos referimos ao corpo, geralmente o remetemos a um discurso ou a uma imagem. Temos dificuldade em abordá-lo no seu movimento. Para que possamos, pois, problematizar e aprofundar as discussões sobre o corpo, num tal contexto, é necessário considerar o gesto, pois este nos esclarece o corpo na relação com o espaço. Gesto não é imagem, mesmo que se possa (ou se queira) representar os gestos através das imagens. Gesto é movimento e sentido. É corpo que se move (corpo-movimento) e que, movendo-se, cria espaço, significando-o e significando- se. O gesto interfere, desloca, reinventa um determinado espaço. Se pensarmos em termos de processos de subjetivação – que é a subjetividade movente – o gesto é, a um só tempo, seu fio condutor e sua modalidade expressiva. Nesse aspecto, as pesquisas de Leroy-Gourhan (1985) são basilares para a compreensão. Além disso, encontramos importantes discussões em Marcel Mauss (2003 [1935]), Gilles Deleuze (1968), François Delaporte (2003). Por fim, é importante diferenciar gesto cotidiano de gesto artístico, ou aquilo que Eugenio Barba e Nicola Savarese (1995), ao caracterizar o trabalho de antropologia teatral, definem como cotidianidade e extra-cotidianidade – esta, por sua vez, vinculada à prática e à pesquisa do ator. É este também o ponto de ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 6 conexão com a performance, na acepção abordada por Paul Zumthor (2007), segundo a qual performar é dar forma, ou seja, o trabalho do performer é justamente o de criar, através de uma modalidade expressiva, uma forma de expressão aos afetos que, no cotidiano, são só minimamente esboçados pelas pessoas, ou apenas imaginados, ou nem isso. Mas também da dança, especificamente a improvisação, que busca atualizar um corpo-em-dança – logo, um corpo extra-cotidiano –, mais do que representar uma obra ou a personalidade do bailarino. A pesquisa entre as modalidades de expressão gestual cotidianas, em contraste com aquelas encontradas na performance e na dança, pode nos informar do modo como os sujeitos se subjetivam e se expressam no dia-a-dia das cidades, bem como do papel das artes nestes contextos. Vejamos dois exemplos. Espaços públicos, espaços privados e interferências Em 2008 o grupo Zona de Interferência realizou uma pesquisa sobre a privatização dos espaços, dos corpos e das subjetividades na cidade de Belo Horizonte. Percorremos ruas, calçadas e praças, problematizando a ocupação destes locais, seus diversos cercamentos e vigilâncias, mas também suas possibilidades de abertura e de interferência poética. Desta pesquisa – que se direcionava para a construção de um espetáculo contemplado pelo edital do Fundo Municipal de Cultura – surgiu uma intervenção urbana denominada aCerca do Espaço. Este trabalho, que busca poetizar e discutir a relação de cada um com o espaço que o cerca e com as cercas que construímos ao nosso redor, foi performado em Belo Horizonte e em Salvador, quando da seleção da proposta para fazer parte do CorpoCidade (UFBA, novembro de 2008). Em termos práticos, o que fizemos foi construir um dispositivo que tornasse evidente o que nosso dia-a-dia disfarçava: estamos nos cercando cada vez mais; nosso próximo passo é construirmos para nós mesmos um pequeno refúgio individual. Foi o que fizemos: construímos este refúgio – cercas individuais para vestir – e saímos às ruas com elas, como bonscidadãos, preocupados com a nossa segurança. ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 7 O que buscávamos com isso era poetizar a vivência da cidade, por meio de dispositivos que pudessem tensionar as fissuras que a “cidade privatizada” provoca no espaço vivido. Interessava-nos construir uma poética que relacionasse a concretude do espaço urbano com a forma como cada pessoa o vivencia, subjetivando-se/subjetivando-o, uma vez que esse espaço revela-se, cada vez mais, a partir da esfera da privatização e do consumo, da negação da diferença e da espetacularização da violência. Presente no desenho e na representação simbólica a ele correspondente, o continente privado da vida é apresentado, espetacularizado, desejado e gozado cotidianamente. Afinal, cercamo-nos para não sermos invadidos, para não sermos atingidos e atravessados. Para nos livrarmos do impoluto e do indesejável. Com isso nos tornamos refratários ao desconhecido e ao próprio desejo do outro. Ao construir as cercas que buscam impedir e acabam por negar ao outro, geramos uma falsa impermeabilidade – a recusa de sermos atingidos pelo outro, exterior a nós. São diversos muros e cercas erguidos cotidianamente pelas barreiras reais e simbólicas, pela espetacularização da violência, pela inviabilização da vida pública. Tornamo-nos reféns desse imaginário, de nossos medos e do que conhecemos. Tolhemos a troca e a proximidade do outro – muitas vezes não a proximidade física, mas justamente a subjetiva, a dimensão dos afetos: afetar e deixar ser afetado. A materialização da cerca representava a concretização de nossas estratégias de privação de contato; e da aceitação, unicamente, do que é semelhante a nós mesmos. Neste processo, encontramos a experiência da rua, território próprio do público e do político. A rua tornada “residual”, a rua como fissura da cidade, como resíduo indesejado, como aquilo que não se pôde privatizar. Dentro ou fora, dentro e fora: o centro da cidade, o espaço urbano é sempre dispositivo de produção da vida pública, pois possui a dimensão do humano em todos os seus cantos e em sua produção simbólica. Também é aí que vivenciamos o espaço do conflito. Por outro lado, o mundo privado – cercas, controles, vigilância, contenção, produção – propõe proteger-nos deste conflito que, por sua vez, é ineliminável. É preciso, assim, tomar a cidade por seu movimento, pela forma como o espaço é ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 8 apropriado, produzido e reproduzido, e não percebê-la apenas por meio de seus aspectos exteriores. Vivenciar a cidade, com suas cercas e muros, delírios de controle e segurança. Materializar e tornar visível o que já se faz familiar e introjetado – subjetivado e desejado. Enfim, entender que intervir nesse espaço é transformar sua vivência cotidiana. É tornar o gesto um problematizador poético da vivência do dia-a-dia. Neste aspecto, minhas problematizações atingiram um outro ponto de conexão: e se poetizássemos o espaço urbano através de um movimento extra- cotidiano? E se dançássemos a rua, ao invés de apenas marchá-la? Passo, agora, a relatar a segunda experiência. Esta, que creio ser muito potente, principalmente pela sua delicadeza, trata-se da dança de contato improvisação no centro de Florinanópolis/SC. Desde a metade do ano de 2010, venho participando de experimentações de contato improvisação (C.I.) em Florianópolis, organizados pela dançarina Ana Alonso Krischke, e outros pesquisadores e interessados. Para 2011, foi viabilizada a ideia de fazermos o contato improvisação nas ruas, uma vez por mês. Isto veio ao encontro de uma vontade que eu tinha, e que remonta a experiências que tive em Belo Horizonte com o grupo de contato improvisação que se formou em torno ao Estúdio de Dudude Herrmann, quando dançávamos em praças daquela cidade. A experiência de C.I. na rua é muito potente, pela capacidade de deslocamento da perspectiva sobre a cidade e sua ocupação, que provoca em quem dança; mas também para quem está na rua e vê/vivencia isso, podendo, de alguma forma ser afetado por essa dança, por essa movimentação e ocupação não cotidianas das praças, ruas e calçadas do centro. É interessante perceber que em meu trabalho de pesquisa da movimentação nos centros urbanos das cidades, no qual tenho partido do gesto mais simples – o andar/caminhar nas cidades –, tenho percebido que estes gestos caracterizam-se, majoritariamente, por uma objetividade: faz-se tal movimento com tal objetivo. Por exemplo, o caminhar: caminha-se para se chegar a algum lugar. De modo semelhante, a ocupação do espaço não é de permanência, mas sim de passagem. Passa-se pelo centro, cruzam-se as ruas e calçadas. A vida segue. O corpo se move automaticamente pela cidade. ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 9 Com a dança, é possível experimentar outra modalidade do estar nas ruas. É como se uma micropercepção se abrisse aos corpos, permitindo-lhes vivenciar um espaço renovado. As calçadas, concretamente, continuam sendo as mesmas calçadas; mas, ao dançá-las, criamos, na renovada ocupação, um outro espaço. Um espaço vivido, através da poética do corpo em dança. É nesse aspecto que arte e política se encontram, no sentido de comporem uma micropolítica disruptiva, que rompe com o estabelecido, isto é, com a política7 As micropolíticas disruptivas, quando elas são possíveis, são justamente nesses intervalos do império da objetividade e da imagética hegemônica em nossas ocupações das cidades. É claro, não é só com a performance ou a dança que isso é possível. Nem mesmo só com as artes. Mas as artes são importantes dispositivos, para colocarmos e experimentarmos questões, que nem sempre encontram – nem precisam encontrar – respostas. Pois as micropolíticas são da ordem da experimentação. que normalmente se impõe nas cidades contemporâneas, a saber: ocupação vigiada, movimentação objetiva, corporeidades imagéticas hiperexpostas e esvaziadas de sentido. Referências BAKHTIN, M. A Cultura Popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Brasília: HUCITEC, 1999. BARBA, E.; SAVARESE, N. A Arte Secreta do Ator: dicionário de antropologia teatral. Campinas: São Paulo: Editora da Unicamp/HUCITEC, 1995. BURROUGHS, W. Expreso Nova. 2.ed. Buenos Aires: Minotauro, 1973. CORBIN, A.; COURTINE, J.-J.; VIGARELLO, G. (orgs.). Histoire du Corps. 3 vols. Paris: Seuil, 2005. DELAPORTE, F. Anatomie des Passions. Paris: PUF, 2003. (Col. Science, Histoire et Société) Geralmente entendemos pela noção de “política” aquela representativa, dos “políticos”, dos partidos, do Estado. Mas esta é uma faceta da política, inclusive sua face mais endurecida, ou mesmo carcomida. Segundo Jacques Rancière (1996), isso se refere à polícia: controle e ordenamento. A política, ainda segundo este autor, é o dissenso, é a vivência da diferença, da alteridade na cidade. É disso que se trata a política aqui tratada. ANAIS DO II CONGRESSO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA Comitê Dança e(m) Política – Julho/2012 http://portalanda.org.br/index.php/anais 10 DELEUZE, G. Conversações. São Paulo: Ed.34, 1992. (Coleção TRANS). __________. Spinoza et le problème de l’expression. Paris: Minuit, 1968. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol.3. São Paulo: Ed. 34, 1996 [1980]. (Coleção TRANS). DIDI-HUBERMAN, G. El Bailaor de Soledades. Valencia: Pre-Textos, 2008 ELIAS, N. O Processo Civilizador. 2 vols. 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Performance, Recepção, Leitura. São Paulo: Cosac Naify: 2007.
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