Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO MEIO RURAL: RECORTES NO TEMPO E NO ESPAÇO Débora Amélia N. de LIRA/UFRN (deborandelira@yahoo.com.br) Amilka Dayane Dias MELO/ UFRN (amilkadayane@yahoo.com.br) *Financiado pelo CNPq RESUMO O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre o tratamento dispensado à educação rural brasileira ao longo dos anos por parte do poder público, sobretudo a partir dos anos 1930 até a contemporaneidade, evidenciando, ainda que de maneira incipiente, sua trajetória, avanços e as contradições que emergem ao longo da história. Trata-se de uma análise de cunho bibliográfico. O trabalho situa inicialmente a difusão do ideário ruralista na educação brasileira a partir dos anos 1930, influenciando a criação de diversos programas pontuais nas décadas de 1940 e 1950. Em seguida, aborda os “projetos integrados” nos anos de 1960-1970 – programas que propunham a integração de diversos setores sociais, entre eles o educacional. Por fim, discute os principais acontecimentos a partir do processo democrático, quando a educação passa a ser entendida como um direito público subjetivo. Palavras-chave: Políticas públicas; Programas educacionais; Educação para o meio rural; Desigualdades educacionais. G1 - POBREZA E DESIGUALDADE SOCIAL 2 A EDUCAÇÃO BRASILEIRA NO MEIO RURAL: RECORTES NO TEMPO E NO ESPAÇO Débora Amélia N. de LIRA/UFRN (deborandelira@yahoo.com.br) Amilka Dayane Dias MELO/ UFRN (amilkadayane@yahoo.com.br) *Financiado pelo CNPq Introdução O presente trabalho apresenta uma reflexão sobre o tratamento dispensado à educação rural brasileira ao longo dos anos por parte do poder público, sobretudo a partir dos anos 1930 até a contemporaneidade, evidenciando, ainda que de maneira incipiente, sua trajetória, avanços e as contradições que emergem ao longo da história, evidenciando novos e velhos desafios para a elaboração das políticas educacionais para o meio rural. Para efeito desse estudo, realizamos uma análise de cunho bibliográfico. Quanto à sua estrutura, o trabalho situa inicialmente a emergência do ruralismo pedagógico no contexto educacional brasileiro. Nesse sentido, é válido destacar que a emergência desse ideário pedagógico – que ganha força a partir dos anos 1930 com o objetivo de fixar o homem no campo através da educação – influencia o desenvolvimento de uma multiplicidade de programas pontuais nas décadas de 1940 e 1950. Em seguida, aborda uma série de ações educacionais denominadas de “projetos integrados” nos anos de 1960-1970, os quais consistiam em programas que propunham a integração de diversos setores, sendo, por sua vez, objeto de atividades multiprofissionais e interdependentes. Por fim, discute os principais acontecimentos ocorridos no setor a partir do processo democrático, quando a educação passa a ser entendida como um direito subjetivo de todo cidadão, evidenciando novas perspectivas para o setor e para a elaboração das políticas educacionais. Caracterizando a educação dos povos do campo na década de 1930: a emergência do ruralismo pedagógico 3 Embora tenham sido registradas algumas poucas e dispersas iniciativas educacionais no século XIX, sabe-se que só a partir dos anos de 1930 ocorreram programas efetivos de escolarização para as populações campesinas. O ruralismo pedagógico, nesse período, teve como objetivo a fixação do homem do campo em sua terra de origem. Sobre esse movimento pedagógico, Bezerra Neto explica (2003, p. 11 e 15): O termo ruralismo pedagógico foi cunhado para definir uma proposta de educação do trabalhador rural que tinha como fundamento básico a idéia de fixação do homem no campo por meio da pedagogia (...). Para essa fixação, os pedagogos ruralistas entendiam como sendo fundamental que se produzisse um currículo escolar que estivesse voltado para dar respostas às necessidades do homem do meio rural, visando atendê-lo naquilo que era parte integrante do seu dia-a-dia: o currículo escolar deveria estar voltado para o fornecimento de conhecimentos que pudessem ser utilizados na agricultura, na pecuária e em outras possíveis necessidades de seu cotidiano. Segundo Calazans (1993), essa corrente pedagógica reuniu idéias que estavam em ebulição desde a década de 1920, mas que só na década de 1930 eclodiram com o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova. Dentre essas idéias se destacam as seguintes pretensões para a escola do campo: a) Uma escola rural típica, acomodada aos interesses e necessidades da região a que fosse destinada (...) como condição de felicidade individual e coletiva; b) Uma escola que impregnasse o espírito brasileiro, antes mesmo de lhe dar a técnica do trabalho racional no amanhã dos campos, de alto e profundo sentido ruralista, capaz de lhe nortear a ação para a conquista da terra dadivosa e de seus tesouros, com a convicção de ali encontrar o enriquecimento próprio e do grupo social de que faz parte (...); c) Uma escola ganhando adeptos à vocação histórica para o ruralismo que há neste país. Os homens é que perturbam essa vocação, diziam os ruralistas, criando, primeiro, centros acadêmicos para os doutores e, depois, uma indústria, muitas vezes artificial (...). Antes da solidez da economia agrária, com a reabilitação da terra e do homem (...). (CALAZANS, 1993, p. 18). Esse caráter instrumental/utilitarista e idealista implícito na pedagogia ruralista da época faz parte de um ideário que visa manter os camponeses nas zonas rurais do país, como exposto anteriormente. Todavia, se faz indispensável compreender que a educação, por si mesma, não conseguiria dar conta dessa demanda, 4 uma vez que sem a promoção de condições de vida dignas, como trabalho, lazer e condições de habitabilidade, nenhuma ação educativa seria capaz de alcançar um objetivo de tamanha magnitude. Nesse particular, é fundamental a discussão da questão agrária brasileira, apesar de não ser objetivo central desse trabalho. Não obstante, é essencial destacar que a concentração fundiária no país tem início desde a colonização, em que os proprietários dos grandes latifúndios utilizam o trabalho escravo como principal instrumento de dominação. Com o fim desse tipo de trabalho, a “Lei de Terras”, de 18 de setembro de 1850, legitima as desigualdades fundiárias, na medida em que, ao invés de distribuir lotes de terras para os recém-libertos, estabelece que os territórios devolutos do Estado só poderiam ser apropriados mediante a compra e a venda. Destarte, aos ex-escravos e aos imigrantes pobres restaria apenas a sua força de trabalho para ser vendida aos grandes latifundiários. De acordo com Martins (1995, p. 23): (A Lei de Terras) lançou as bases para o surgimento da questão agrária no Brasil, à medida que a propriedade da terra, ao invés de ser usada para viabilizar o livre fluxo e a reprodução do capital, é enrijecida para viabilizar a sujeição do trabalhador livre ao capital proprietário da terra. Assim como tornou-se um instrumento de criação de um exército industrial de reserva necessário para assegurar a exploração da força de trabalho e a acumulação. Assim, torna-se notório o incentivo à propriedade privada, à concentração de terras nas mãos de poucos e à manutenção da força de trabalhos nos grandes latifúndios. Conforme Casagrande (2007, p.40), “certamente, se houvessem terras livres e pessoas livres para ocupá-las, não haveria a mão-de-obra para atender aos latifundiários”. Nesse caso, é refutável o argumento dos ruralistas segundo o qual bastaria que o professor ruralista fosse alguém carismático e apaixonado pelo campo para que o trabalhador fosse convencido a permanecer nele, desconsiderando as desumanas condições de vida instaladas no meio rural. Também é fundamental lembrar que a crise econômica vivenciada pelo país na década de 1930 gera uma enorme insatisfaçãodas várias camadas da população, dentre elas, setores cafeicultores, intelectuais, classe média e camadas 5 populares urbanas. Como produto dessas insatisfações, setores da oligarquia paulista passam a exigir uma nova Constituição. Nesse sentido, em 16 de julho de 1934 é promulgada uma Constituição que traz consigo diversas inovações: a instituição do voto feminino; o mandado de segurança, importante dispositivo jurídico de garantia dos direitos do cidadão perante o Estado; e, no plano educacional, a elaboração do Plano Nacional de Educação, a organização do ensino em sistemas e a criação dos Conselhos de Educação – responsáveis pela realização de tarefas relacionadas à assessoria dos governos, à elaboração do plano de educação e à distribuição de fundos especiais, além da definição de sua área de abrangência, que ia do ensino primário e secundário ao técnico e superior. Também fica estabelecido, nesse texto constitucional, a garantia do direito à educação e atribui às três esferas do poder a responsabilidade de seu provimento. Para viabilizar as mudanças, advindas da nova lei, referentes a essa modalidade de ensino, os governos, ao invés de promover a criação de escolas normais rurais para a capacitação de professores ruralistas, optaram pela criação de um curso, com duração de três a quatro meses, fornecido pelas escolas normais já existentes. De acordo com Lex (1973), essa formação era considerada insuficiente para atender às necessidades de aprendizagem dos educandos e para fomentar no professor o gosto pela educação camponesa. Ainda de acordo com Lex (1973, p. 250), os cursos supracitados eram compostos das seguintes disciplinas: Higiene Rural, que compreendia conteúdos referentes à alimentação, cuidados corporais, higiene doméstica, combate às doenças; Sociologia Rural, que abordaria os principais problemas sociais do campo e deveria contar com a interpretação e cooperação do professor na solução de tais problemas; Educação Rural, com destaque para o ensino da leitura e da linguagem no meio rural, educação física, jogos e todos os outros ensinos através dos centros de interesse rurais; e Atividades Rurais, com a finalidade de estimular nos mestres a simpatia pelo campo. Nesse ínterim, a década de 1920 e 1930 constitui-se, no plano internacional, num período de profundas guerras e de crises econômicas e políticas. O Nazismo e o Fascismo são movimentos que emergiram nessa época como uma maneira de reação a esse momento de intensos conflitos, adotados pelas classes 6 dominantes de alguns países da Europa, nos quais eram reprimidas todas e quaisquer manifestações populares. No cenário brasileiro, a repercussão desses movimentos deu margem a uma nova correlação de forças sociais, que pode ser representada pela criação de duas organizações com interesses distintos: a Ação Integralista Brasileira (AIB), marcada pela busca de um Estado nacionalista, antidemocrático e anticomunista; e a Aliança Nacional Libertadora (ANL), considerada o primeiro movimento de massa do país, com objetivos democráticos, antiimperialistas e reformistas. Diante desse quadro de instabilidade política, no qual ocorreram diversas revoltas e atos repressivos, tais como a Intentona Comunista, o Congresso Nacional declara “Estado de Guerra”, concedendo poderes especiais ao então presidente Getúlio Vargas para a contenção dos setores reacionários do país, o qual se aproveita da situação para dar um golpe de Estado, que o mantém no poder de 1937 a 1945. Os partidos políticos acabam suprimidos e uma nova Constituição é outorgada no dia 10 dezembro de 1937, na qual é dispensada atenção especial para a educação profissional. Sobre o período de governo de Vargas, denominado pelos historiadores de Estado Novo, Bezerra Neto (2003, p. 89) esclarece: Durante o Estado Novo (1937-1945), diversas medidas políticas e administrativas revelaram a sintonia de Vargas com os governos totalitários europeus. No aspecto educacional, a nova Constituição outorgada, manteve princípios anteriores e procurou dar ênfase ao trabalho manual, orientada pela tendência capitalista “de preparação de um maior contingente de mão-de-obra para as novas funções abertas pelo mercado”. Com o término do Estado Novo, diversas mudanças se processaram nas esferas política, econômica e social, trazendo importantes repercussões para o setor educacional e, conseqüentemente, para educação dos povos do campo. Desse assunto, trataremos com mais detalhes no tópico seguinte. A multiplicidade de programas nas décadas de 1940 e 1950 Na década de 1940, em algumas regiões do país, ainda vigorava o ideário do ruralismo pedagógico com vistas a dar respostas às tensões sociais, desencadeadas 7 pela inchação das urbes e pela incapacidade de absorção de toda a mão-de-obra disponível pelo mercado de trabalho urbano. Nessa perspectiva, buscava-se o desenvolvimento de uma educação que reforçasse os valores camponeses, com a finalidade de fixar o homem a terra, o que incita a necessidade da adaptação de programas e currículos ao meio rural. Assim, o período que compreende as décadas de 1940 e 1950 caracteriza- se pela implantação de diversos programas educativos, realizados na maioria dos estados brasileiros, tendo em vista a permanência do homem na região rural e o desenvolvimento de cada comunidade. Na primeira década, especialmente, foram criados programas tanto sob a responsabilidade do Ministério da Agricultura, como pelo Ministério da Educação e Saúde, como também por organizações norte- americanas, como a Comissão Brasileiro-Americana de Educação de Populações Rurais (CBAR). Esses programas caracterizam-se pelo oferecimento de cursos rápidos e práticos – o que denota o caráter instrumental de tais cursos – através da utilização dos meios de informação, tais como imprensa, rádio, cinema, edição de publicações instrutivas e semanas ruralistas. É importante destacar no âmbito da CBAR a elaboração de três subprogramas: o Centro de Treinamento; as Semanas Ruralistas; e os Clubes Agrícolas. Também é necessário dar ênfase à Campanha de Educação de Adultos, que data do ano de 1947, e às Missões Rurais de Educação de Adultos, que visavam a melhoria das condições de vida material e social de pequenas comunidades rurais (CALAZANS, 1993). Calazans (1993, p. 28) adverte sobre a natureza de tais programas, definindo-os como “pacotes que chegam prontos e acabados, moldados por uma realidade diversa”. E reafirma: Parece não se questionar a inadaptabilidade de seus métodos e conteúdos à realidade brasileira, e fica sempre a questão do papel relativo em tais discussões do pensamento social brasileiro. Isto é, de que forma a tradição brasileira de investigação e debate sobre questões rurais nacionais é chamada a intervir, pelo menos para operar as mediações indispensáveis à aclimatação de tais programas aos trópicos. 8 Logo, não é de se admirar que a escola rural tradicional apresentasse grandes déficits em relação à aprendizagem de suas populações. Em decorrência desse quadro, em 1942, os profissionais da educação realizaram o Oitavo Congresso Brasileiro de Educação com o objetivo de levantar possíveis diretrizes e soluções para os problemas educacionais das grandes massas campesinas. O evento promovido pela Associação Brasileira de Educação, que contava com o financiamento do governo federal e do governo de Goiás, apresentou através das exposições, estudos e debates a busca por uma escola caracteristicamente rural, que fosse capaz de atrair e fixar o homem no campo, objetivo pretendido pelo ruralismo pedagógico. Na prática, os programas de então não obtiveram grandes resultados, pois, apesar de essas ações educativas serem intensivas, também eram pontuais e episódicas. Quando elas acabavam, as comunidades locais retornavam as suas atitudes tradicionais,além de que havia uma resistência dessas populações em aderir valores e objetivos que eram alheios a sua cultura. Essa constatação foi feita pelos próprios promotores das missões. No quadro político, o fim do Estado Novo traz consigo a elaboração de uma nova Constituição, de cunho liberal e democrático. No campo educacional, determina a obrigatoriedade da oferta do ensino primário, como também confere competência à União para estabelecer as diretrizes e bases da educação nacional. Também reafirma o princípio da educação enquanto direito de todos, entendimento expresso no Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Em 1946, o ministro Raul Leitão da Cunha regulamenta a modalidade de ensino primário e normal, e cria o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – SENAC, em atendimento às mudanças advindas do processo de industrialização em curso. A partir de então, a escola passa a ser, com maior intensidade, objeto de reivindicação das camadas populares e motivo de inúmeros discursos políticos. Nesse sentido, é possível perceber que a preocupação com uma educação das populações do campo que contemplasse as peculiaridades da vida no meio rural não é nova e nem emerge com as lutas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Para Bezerra Neto (2003, p. 92): (...) É possível verificar que os estudos a respeito da educação rural, já durante a década de 1950 pareciam caracterizar-se pela 9 preocupação em sublinhar a especificidade do universo rural, ou seja, tais estudos pressupunham a necessidade de uma análise prévia da cultura rural como pano de fundo, sem a qual seria impossível determinar o funcionamento e os alvos da educação; pois, entendia-se (...) que o trabalhador rural tem concepções de mundo e necessidades que se diferenciam daquelas do homem que vive no meio urbano. Ainda segundo esse autor, algumas ações da década de 1950 destacam-se, entre elas: a inauguração do Centro Popular de Educação (1950), por Anísio Teixeira em Salvador/BA; os estudos de Lauro de Oliveira Lima (1952), em Fortaleza/CE, sobre as teorias de Piaget, dando origem ao método psicogenético; e a criação de um ministério independente para tratar dos assuntos educacionais – o Ministério da Educação e Cultura (1953). Contudo, tais ações também não foram capazes de promover grandes saltos qualitativos na educação oferecida nas regiões rurais brasileiras. Sobre os primeiros cinqüenta anos do século XX, Bezerra Neto (2003, p. 91) faz um balanço: Com isso, podemos constatar que durante a primeira metade do século XX, o país passou por grandes transformações no setor tecnológico, sem contudo atender à demanda por educação da população, a não ser na estrita medida das necessidades do desenvolvimento do capital. É interessante perceber que, nessa primeira metade do século XX, a falta de atenção por parte do Estado à educação das populações do campo, juntamente com a falta de preparo dos professores contratados, somadas às condições de vida, habitação e trabalho a que estavam submetidos os trabalhadores rurais contribuíram, em larga escala, para expulsá-los do campo para a cidade. Dados os limites desse trabalho, procuraremos identificar, no subitem seguinte, as principais mudanças ocorridas no período que compreende as décadas de 1960 e 1970, bem como elencar os diferentes projetos, de então, no âmbito da educação rural. A proliferação dos projetos integrados (especiais) na década de 1960 e 1970 Na passagem da década de 1950 para 1960, o país vivencia os chamados anos dourados, mas, em contrapartida, sofre uma crise decorrente do modelo nacional- 10 desenvolvimentista. Nesse particular, o governo de Juscelino Kubitschek contribui para elevar ainda mais a concentração de renda entre pequenas parcelas da população interna e amplia a dívida externa nacional. Já na presidência de João Goulart, acirram- se as disputas sociais e os grupos mais conservadores se unem contra os chamados intentos comunistas, como eram tidas as propostas de reforma agrária e de participação popular. No final da década de 1960, o aprofundamento das disparidades regionais entre as regiões Nordeste e o Centro-Sul, a identificação da intensidade do problema, segundo o qual o setor primário seria o ponto de maior entrave para a absorção da mão-de-obra e o crescente agravamento da tradição da vigência de uma estrutura de poder e de um regime semi-feudal da propriedade e do uso da terra foram, entre outros, os pontos de partida para a tomada de novas medidas por parte do poder público. Nesse sentido, é importante salientar a criação do primeiro órgão do planejamento e desenvolvimento regional brasileiro – a Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), cujo primeiro plano de ação não inclui a área educacional, mas que posteriormente, em seu segundo plano, destina seis por cento de seus recursos para essa área. Os recursos designados para o setor eram direcionados ao treinamento vocacional agrícola e industrial, para o preparo de recursos humanos nos estados e municípios, e para programas universitários e pré- universitários. Essa época também é marcada pela forte presença do capital estrangeiro, sendo desenvolvidos programas de ajuda financeira e assistência técnica por parte dos Estados Unidos, não só no país, como também em toda a América Latina. Ao lado disso, distingue-se pela enorme proliferação de programas integrados para o meio rural. Segundo Dirceu Pessoa apud Bezerra Neto (2003), os projetos integrados consistem em empreendimentos que envolvem diversos setores, sendo, por sua vez, objeto de atividades multiprofissionais e interdependentes, as quais seriam desenvolvidas de maneira integrada. No Nordeste, alguns desses projetos merecem evidência: o Povoamento do Maranhão (1961); o Grupo de Estudos do Vale do Jaguaribe (1961); o Grupo de Imigração do São Francisco (1960); a Cohebe (Companhia Hidrelétrica de Boa 11 Esperança) – 1963; a Ceplac (Comissão Executiva do Plano de Lavoura Cacaueira) – 1960; e o Projeto Sertanejo (1976). Com a participação de educadores ligados a universidades, movimentos religiosos e partidos de esquerda, nesse mesmo período, um importante movimento de educação popular se instaura, tendo em vista o incentivo à participação política das camadas populares, entre elas as do campo, e à criação de iniciativas pedagógicas condizentes com a cultura e as necessidades educacionais brasileiras, se contrapondo, dessa maneira, à importação de práticas pedagógicas alheias à realidade nacional. Dentre as organizações que fizeram parte desse movimento, cabe mencionar o Centro Popular de Cultura (CPT), criado em 1960 em Recife/ PE, os Centros de Cultura Popular (CCP), criados em 1961 pela União Nacional dos Estudantes e o Movimento de Educação de Base (MEB) - formado pela Confederação Geral dos Bispos no Brasil. Pela criatividade e inovação teórico-metodológica, também merece destaque o método Paulo Freire e as ações realizadas através dele, em relação à educação de adultos e populares. Em contrapartida, com o estabelecimento da ditadura militar no país em 1964 e a repressão política (e policial) que então se instalou, muitas das iniciativas elaboradas por tais organizações foram desarticuladas e suspensas. Nos setores de colonização e reforma agrária foram criados os seguintes ógãos: Supra (Superintendência de Política de Reforma Agrária) – 1962; o Ibra (Instituo Brasileiro de Reforma Agrária) e o Inda (Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário), em substituição ao Supra – 1964; e o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que se origina da fusão entre o Ibra e o Inda, no final da década de 1960. Tais organizações coordenam várias ações educativas, na forma de projetos rurais integrados, entre eles: o Prodac (Programa Diversificado de Ação Comunitária), doMobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), com incurso permanente em áreas rurais; o Pipmoa (Programa Intensivo de Preparação de Mão-de-Obra Agrícola) – 1963; o Senar (Serviço Nacional de Formação Profissional Rural) – 1976; o Crutac (Centro Rural Universitário de Treinamento e de Ação Comunitária) – 1965; o Projeto Rondon – 1968; e, no II Plano Nacional de Desenvolvimento, com recursos do Bird – o Polonordeste, o Poloamazônica e o Polocentro – com abrangência educacional e de 12 treinamento de mão-de-obra; o Promunicípio e o Edurural, que surgem na conjuntura dos Planos da Ditadura. Além disso, é indispensável fazer referência à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 4.024/61, cujo debate prolongou-se de 1948 a 1961, o que preconiza uma época de crise para a educação brasileira. Para Casagrande (2007, p. 60): Nesta nova legislação educacional a escola fundamental da zona rural foi deixada sob responsabilidade dos municípios caracterizando assim uma omissão em relação à escola do campo, já que grande parte das prefeituras não possuía recursos suficientes para a manutenção das mesmas. Com isso, sob condições precárias de manutenção pedagógica, administrativa e financeira, o sistema formal de educação rural entrou num processo de deteriorização e de submissão ao modelo de educação e aos interesses urbanos. Soma-se a esse cenário de deteriorização do ensino público em áreas rurais, devido ao processo de modernização conservadora adotado, o agravamento da questão agrária, bem como a explosão demográfica nos centros urbanos, decorrentes da expulsão de um grande contingente de trabalhadores do campo e o aumento da concentração de renda e da pobreza no país. Além disso, com a adoção do modelo de agricultura empresarial, durante a ditadura, que se caracteriza pela expansão do capital no campo, é intensificada a exploração dos trabalhadores rurais, como também é acirrada a expropriação dos pequenos produtores rurais. Nesse plano, torna-se primordial observar nos programas desenvolvidos nessas duas décadas (1960-1970) a emergência de uma nova concepção de educação, segundo a qual o ensino é considerado um fator de desenvolvimento sócio-econômico. Contudo, o meio rural não obtém grandes avanços no setor educacional, sobretudo em decorrência da valorização da educação que se desenvolve na cidade, quase que em detrimento de sua realização no campo, mas também devido à própria ausência de investimentos nesse setor, exceto quando na realização em programas pontuais, geralmente focalizados na erradicação da pobreza e destinados, especialmente, às regiões Norte e Nordeste. Dessa forma, fica evidente a dispensação de uma maior atenção ao ensino que se realizava no espaço citadino, como também as acentuadas disparidades educacionais e sociais entre as diversas regiões do país. 13 Da década de 1980 aos dias hodiernos: novas conquistas e possibilidades à instituição de uma cultura de direitos Em meados da década de 1980, com o intuito de reivindicar e construir um modelo educativo que contemplasse as peculiaridades culturais, os direitos e as necessidades da vida no campo, as organizações da sociedade civil, especialmente as ligadas à educação popular, incluíram a educação dos povos do campo na pauta dos temas estratégicos para a redemocratização do país. É importante ressaltar que, no entendimento de Casagrande (2007, p. 63): Com a volta do sistema democrático no país, a partir de 1985, com a entrada do Governo de José Sarney (1985-1990), é retomado o compromisso com a reforma agrária, organizando um grupo para elaboração de um Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA). Esse processo de luta pelo estabelecimento de uma sociedade democrática e pela garantia dos direitos sociais culminou na aprovação da Constituinte de 1988, a partir da qual foi criado um espaço de construção e elaboração de políticas públicas direcionadas às camadas populares, o qual, por sua vez, contribuiu para a fomentação de um ambiente político propício para afirmação de uma cultura de direitos e de respeito às diferenças (ao menos em termos legais). Podemos assinalar como avanços nessa área presentes no texto da referida lei: o princípio da participação direta na administração pública e a criação de conselhos gestores como forma de controle popular nas definições políticas do país. Casagrande chama a atenção para essa Constituinte, esclarecendo que: No que diz respeito à educação, na Carta de 1988, esta foi proclamada como um direito de todos e dever do Estado. Dessa forma, a educação é transformada em um direito público subjetivo, independentemente dos indivíduos residirem nas áreas urbanas ou rurais e, com isto, os princípios e preceitos constitucionais da educação passam a incorporar todos os níveis e modalidades de ensino ministrado em qualquer parte do país. (CASAGRANDE, 2007, p. 63). No entanto, é importante frisar que os grupos anti-reformistas do país também obtiveram grandes vitórias nesse período, como a extinção do Ministério da Reforma Agrária, em 1989, através da Medida Provisória nº 39, e a aprovação do 14 Decreto Lei nº 2363, de 23 de outubro de 1987, o qual limitava a 500 hectares as áreas passíveis de desapropriação. No Governo de Fernando Collor de Melo (1990-1992), fica claro o apoio a esses grupos opositores à reforma agrária, já que o então presidente também era dono de grandes latifúndios no Estado de Alagoas. Já o governo de seu vice, Itamar Franco que governa de 1992 a 1994, apresenta, em alguma medida, interesse pelas questões agrárias do país. Entretanto, embora tenha aprovado um programa especial para assentar oitenta mil famílias, apenas vinte e três mil famílias são assentadas de fato. No governo posterior, sob a direção de Fernando Henrique Cardoso, que perdurou oito anos, período que compreende dois mandatos (1995-1998 e 1999-2002), são assentadas 218.921 famílias nos três últimos anos de seu segundo mandato (CASAGRANDE, 2007). Porém, o que é prometido em sua campanha eleitoral é a doação de 400.000 títulos, ficando bem aquém da quantidade anunciada. No que concerne à área educacional e, mais especificamente, à área da educação das populações do campo, pode-se admitir que a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – representa um marco, na medida em que propõe, no seu art. 28, a adequação da escola à vida no campo, questão outrora não contemplada nas leis educacionais vigentes. De acordo com Leite (2002, p.54), a referida LDB apresenta avanços para a educação no campo, uma vez que apresenta “a desvinculação da escola rural dos meios e da performance escolar urbana, exigindo para a primeira um planejamento interligado à rural de certo modo desurbanizado”. Nessa perspectiva, pode-se considerar a aprovação dessa lei como uma conquista, antes de tudo, de toda a sociedade brasileira e, particularmente, dos movimentos sociais e políticos organizados do campo. Nesse particular, é relevante evidenciar os movimentos sociais que mais ganharam destaque no desenvolvimento de experiências educativas na área da educação para o meio rural, tanto em parceria com sistema oficial de ensino, quanto fora deste: o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, a Contag – Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura, a CPT – Comissão Pastoral da Terra e os CEFFAs – Centros Familiares de Formação por Alternância. Em 1998, o Governo Federal em parceria com instituições de ensino superior e movimentos sociais do campo institui o Programa Nacional de Educação da 15 Reforma Agrária (PRONERA) junto ao Ministério Extraordinário da Política Fundiária (MEPF), hoje Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA). Esse programa objetiva a elevação de escolaridade de jovens e adultos emáreas de reforma agrária e a formação de professores para as escolas localizadas em assentamentos. Nesse mesmo ano, foi criada uma entidade supra-organizacional denominada “Articulação Nacional por Uma Educação do Campo” (inicialmente chamada Articulação Nacional por Uma Educação Básica do Campo), cujos objetivos são a promoção e a gestão de ações conjuntas com o poder público, com vistas à escolarização dos povos do campo em nível nacional. Essa organização tem criado momentos e espaços de discussão importantes para a área, entre eles, a realização de duas Conferências Nacionais por uma Educação Básica do Campo - em 1998 e 2004. Na esfera do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), em 1999, foi criado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável para Agricultura Familiar (Condraf), com a finalidade de ampliar e institucionalizar a participação dos movimentos sociais na formulação de políticas públicas para o campo. Esse colegiado, juntamente com o GPT (Grupo Permanente de Trabalho de Educação do Campo – de 2003), trabalha com o Governo Federal no sentido de fortalecer a institucionalização e a disseminação das políticas públicas para a educação no meio rural. De qualquer forma, é possível perceber que, mesmo diante da criação desses espaços de discussão e luta, na prática, ainda há muito a ser alcançado. Pouco se avançou em relação a questões basilares, como as referentes à infra-estrutura e a capacitação de professores para o ensino rural. Segundo Casagrande (2007, p. 66): (...) As problemáticas ligadas à escola rural continuam, (...) como a presença do professor leigo, formação essencialmente urbana do professor, clientelismo político na convocação dos docentes, baixo nível salarial, questões referentes ao transporte e a tripla função que muitas vezes o professor tem que desenvolver, ou seja, ser professora, merendeira e faxineira. Com o fim da era FHC, no início do século XXI, assume a presidência da república Luís Inácio Lula da Silva, que governa o país no período de 2003 a 2006 e em 2007 é reeleito para o seu segundo mandato, mantendo-se na direção do país até o atual momento. Pela primeira vez, o Brasil conta com a presença de um suposto representante da classe trabalhadora no governo do país, apesar de ter José de Alencar como vice-presidente, empresário e membro do Partido Liberal (PL). 16 É importante situar entre as conquistas mais recentes, no que refere à instituição do direito à educação no meio rural: a elaboração das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), através da Resolução CNE/CEB nº 1, de 03 de dezembro de 2002; e a criação da Coordenação de Educação do Campo, em 2004, vinculada à Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC. Considerações Finais As mudanças ocorridas no plano educacional a partir da emergência do ruralismo pedagógico – ideário que se desenvolve a partir dos anos 1930 com o objetivo de fixar o homem no campo – influenciam o desenvolvimento de uma multiplicidade de programas educacionais para o meio rural. As décadas de 1940 e 1950 se caracterizam pelo desenvolvimento de cursos rápidos e práticos, que apesar de intensivos, também eram pontuais e episódicos. Já no período de 1960-1970, uma nova concepção de educação começa a ser discutida, segundo a qual o ensino é considerado um fator de desenvolvimento sócio-econômico. Contudo, o meio rural não obtém grandes avanços no setor educacional, sobretudo em decorrência da valorização da educação que se desenvolve na cidade, quase que em detrimento de sua realização no campo, mas também devido à própria ausência de investimentos nesse setor, exceto quando na realização em programas pontuais, geralmente focalizados na erradicação da pobreza e destinados, especialmente, às regiões Norte e Nordeste. Com o processo de transição democrática que culminou na aprovação da Constituinte de 1988, foi criado um espaço de construção e elaboração de políticas públicas direcionadas às camadas populares, o qual, por sua vez, contribuiu para a fomentação de um ambiente político propício para afirmação de uma cultura de direitos e de respeito às diferenças. No que refere à instituição do direito à educação no meio rural, merecem destaque a elaboração da LDB 9.394/96 e das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, através da Resolução CNE/CEB nº 1, de 03 de dezembro de 2002. 17 REFERÊNCIAS BEZERRA NETO, Luiz. Avanços e retrocessos na educação rural no Brasil. 2003. 221 f. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação – Campinas, 2003. BRASIL, Panorama da Educação do Campo. Brasília: INEP/MEC, 2007. BRASIL, Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo. Brasília: MEC/SECAD, 2002. BRASIL, Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Brasília. Diário Oficial da União, Brasília, 23 dez. 1996. Seção I, p. 27.8333-27.84I. BRASIL, Referências para uma Política Nacional de Educação do Campo. Brasília: MEC/SECAD, 2003. CALAZANS, Maria Julieta Costa. Para compreender a Educação do Estado no meio rural. In: THERRIEN, Jacques e et. al (Org.). Educação e escola no campo. Campinas: Papirus, 1993. CASAGRANDE, Nair. A pedagogia socialista e a formação do educador do campo no século XXI: as contribuições da Pedagogia da Terra. 2007. 293 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Educação – Porto Alegre, 2007. LEITE, S. C. Escola rural: urbanização e políticas educacionais. São Paulo: Cortez, 2002. LEX, A. Biologia Educacional. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1973, 14ª Edição. MARTINS, Fernando José. Organização do trabalho pedagógico e Educação do Campo. In: ALMEIDA, Benedita; et al. (Orgs.). Educação do Campo: um projeto de formação de educadores em debate. Cascavel: EDUNIOESTE, 2008. MARTINS, S. de J. Os camponeses e a política no Brasil. 5ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1995. SANTOS, Clarisse Aparecida dos. Educação do campo e políticas públicas no Brasil: a instituição de políticas públicas pelo protagonismo dos movimentos sociais do campo na luta pelo direito à educação. 2009. 109 f. Dissertação (Mestrado em Educação do Campo) – Universidade de Brasília, Faculdade de Educação – Brasília, 2009. 18
Compartilhar