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Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional Maria Heloísa Aguiar da Silva Os professores vivem tempos difíceis e paradoxais. Apesar das críticas e das desconfianças em relação às suas competências profissionais, exige-se-lhes quase tudo. Temos de ser capazes de pensar nossa profissão. Antonio Nóvoa Começando o diálogo Refletir sobre a docência no Ensino Superior é um desafio que acompanha a expansão quantitativa desse nível de escolaridade. Assistimos, na última década do século XX, a um crescimento vertiginoso das vagas nas univer- sidades. O sonho de se graduar em um curso universitário tornou-se uma realidade para um número cada vez maior de pessoas. Essa nova realidade gerou um aumento da demanda para o Ensino Su- perior que o levou a profissionalizar o seu corpo docente quanto ao aspecto pedagógico. Aqui pretendemos apresentar algumas questões para a reflexão sobre esse desafio profissional que se apresenta a um pós-graduado, ou seja, pre- parar-se para a docência universitária. Há uma representação muito negativa em relação à atividade profis- sional do professor, gerando inclusive uma rejeição à docência. Por que isso acontece? O que caracteriza a docência no Ensino Superior? O que a diferencia da docência na educação básica? Responder a essas questões iniciais é o objeti- vo central dessa aula. Para tanto, será necessário trilhar alguns caminhos. Docência no Ensino Superior 10 Ser professor universitário: ambiguidades e conflitos O que é ser professor? Se buscarmos uma definição objetiva, encontraremos descrições como “professor é aquele que ensina”. No dicionário, é possível obter a seguinte de- finição: “aquele que professa ou ensina uma ciência, uma arte, uma técnica, uma disciplina, um mestre” (HOUAISS, 2008). Segundo uma definição legal, professor é o profissional habilitado a lecionar. Contudo, se fizermos a mesma pergunta a alguns professores a partir da mesma questão, obteremos outros tipos de respostas tais como: “professor é aquele que prepara o amanhã”, “um eterno sofredor”, “um abnegado”, “um ser paciente”, entre outras. Se indagarmos os alunos, é possível obter respostas como: “aquele que se compraz em nos reprovar”, “aquele que nos prepara para a vida”, “aquele que trabalha muito e ganha pouco”. Cabe fazer aqui uma primeira distinção: temos diferentes respostas para uma única questão. Por que isso acontece? Em primeiro lugar, é preciso dis- tinguir definição e representação. No dicionário, encontramos definições para diversos tipos de palavras, ou seja, encontramos o significado dos termos, “aquilo que são”. Por isso, os si- nônimos da palavra professor indicam um caminho, uma compreensão do significado da profissão docente. Porém, a discussão ficará limitada se nos ativermos apenas a essa defini- ção. Para avançarmos um pouco mais nessa discussão, devemos compreen- der o sentido das representações, isto é, “modos de ver” a profissão docente, que são baseados em interpretações de vivências e experiências. Isso signi- fica dizer que a maneira como eu compreendo uma determinada questão depende das experiências que tive, do lugar que ocupo na sociedade, das influências que recebo. Por isso encontramos representações diversas sobre a docência, tanto positivas como negativas. O cuidado a ser tomado é não substituir a representação pela definição e compreender a representação no seu contexto de produção. A docência possui uma definição objetiva e clara que explica o sentido da ação docente. Mas é necessário compreender também os diferentes modos de ver essa profissão e entender como isso in- terfere na sua imagem social. Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional 11 Segundo Arroyo (2000), a profissão docente se constitui também como um ofício construído artesanalmente, a partir de experiências concretas. Tornamo-nos professores no exercício cotidiano da docência. Não nascemos prontos para o exercício do magistério, nem predestinados a sermos profes- sores, como muitos já acreditaram. No curso superior, recebemos as primeiras orientações para o exercício profissional, mas essa formação se complementa no cotidiano da sala de aula. Ao exercemos o nosso ofício, construímo-nos como profissionais. A ação docente ultrapassa os limites da sala de aula e interfere na nossa con- dição humana, marcando-nos profundamente como pessoas e profissionais porque Somos professores, somos professoras. Somos, não apenas exercemos a função docente. Poucos trabalhos e posições sociais podem usar o verbo ser de maneira tão apropriada. Poucos trabalhos se identificam tanto com a totalidade da vida pessoal. Os tempos de escola invadem todos os outros tempos. (ARROYO, 2000, p. 27) Contudo, isso também gera um desconforto, pois há que se buscar um equilíbrio que permita construir o distanciamento necessário. Há, hoje, uma vasta literatura (ARROYO, 2000; NÓVOA, 1995b; ESTEVE, 1999) que aponta para a existência de uma crise de identidade entre os professores. O que ca- racteriza essa crise? É facilmente identificado um quadro atual de insatisfação profissional, gerado pelos baixos salários, a violência, a indisciplina e o este- reótipo depreciativo em relação à docência. Segundo Nóvoa (1995b), essa crise está associada à sobrecarga de traba- lho que, atribuída ao professor, ultrapassa a ação pedagógica de sala de aula, a relação de ensino e aprendizagem e passa a exigir o desempenho de tarefas burocráticas tais como o preenchimento de fichas, relatórios, entre outras. Isso leva o professor a um afastamento do cerne do seu trabalho (que deve ser essencialmente criativo e autônomo), conduzindo-o a uma situação para- doxal, uma vez que seu trabalho se torna alienado. Assim sendo, ele fica im- possibilitado de refletir sobre sua ação, que se torna mecânica e repetitiva. A crise de identidade dos professores, objeto de inúmeros debates ao longo dos últimos vinte anos, não é alheia a esta evolução que foi impondo uma separação entre o eu pessoal e o eu profissional. A transposição dessa atitude do plano científico para o plano institucional contribui para intensificar o controle sobre os professores, favorecendo o seu processo de desprofissionalização. (NÓVOA, 1995b, p. 15) A profissionalização docente continua como um processo a ser conquis- tado, pois essas situações transformam o docente em um mero executor, de- sempenhando uma ação técnica e não reflexiva. Contudo, o autor nos indica uma saída ao buscar no próprio significado do termo crise uma possibilidade de superação. Devemos entendê-la “na sua acepção original (krisis = decisão), Docência no Ensino Superior 12 assumindo-a como um espaço para tomar decisões sobre os percursos de futuro dos professores” (NÓVOA, 1995a, p. 23). Seria este um momento de reflexão sobre os rumos dessa profissão nesse início de século, em que tantos desafios se colocam à sociedade. É comum ouvirmos afirmações que caracterizam este momento, o da virada do milênio, como a “era do conhecimento”, a “sociedade da informação”. Essas afirmações baseiam-se, antes de tudo, no acesso que temos a uma quantidade sem fim de informações com uma velocidade sem comparações em qualquer outro período do desenvolvimento da humanidade. Isso gera uma nova demanda para a escola como a instituição reconhecida socialmente como aquela que tem por finalidade educar e, por consequência, também há uma nova de- manda para o professor, que viabiliza essa missão da escola. Contudo, a competência desse profissional está sempre em cheque. Por muitas vezes, o professor é visto como o bode expiatório de todos os proble- mas educacionais. Isso destaca sua importância, porém por vias tortas. Ao mesmo tempo em que encontramos imagens idealizadas desse profissional como um “salvador da humanidade”, também nos deparamos com imagens que o depreciam. Apresenta-se então mais um elemento dessa crise de identidade: quem somos nós? Voltoà pergunta que nos persegue: quem somos? Dominando competências mudaremos a imagem? Um ponto de partida para responder estas perguntas poderia ser este: somos a imagem que fazem do nosso papel social, não o que teimamos ser. Teríamos de conseguir que os outros acreditem no que somos. Um processo social complicado, lento, de desencontros entre o que somos para nós e o que somos para fora. Entre imagens e autoimagens. É frequente lamentar que não somos socialmente reconhecidos. Mas como se constrói o reconhecimento social de uma profissão? Repito, seria um bom ponto de partida: somos a imagem social que foi construída sobre o ofício de mestre, somos as formas diversas de exercer esse ofício. Sabemos pouco sobre nossa história. Nem nos cursos normais, de licenciatura e pedagogia nos contaram quanto fomos e quanto não fomos. O que somos? (ARROYO, 2000, p. 29) Segundo Arroyo, responder a essa questão seria um bom ponto de par- tida para entendermos os rumos dessa profissão. Para isso, o autor faz uma distinção entre imagens e autoimagens, ou seja, o que somos para os outros (imagens) e o que somos para nós (autoimagens). As representações (imagens) acerca da profissão são diversas e históri- cas, são modelos construídos nos mais diferentes espaços, são heranças que carregamos. O professor é obrigado, muitas vezes, a conviver com imagens negativas acerca da sua profissão e isso tem gerado um sentimento de rejeição à do- Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional 13 cência. Pesquisas apontam para uma crescente tendência de abandono da profissão e diminuição do ingresso dos jovens nos cursos de licenciatura, que correspondem à formação inicial para a docência. Vejamos a reportagem abaixo, resultado de uma pesquisa realizada pelo Ministério da Educação (MEC) em 2003: Apagão na educação – professor foge da sala de aula (ARCE, 2003) MEC identifica falta de 250 mil profissionais nas escolas do país. Baixos salários e más condições de trabalho são apontados como causas. Sem merenda, sem infraestrutura e sem o ingrediente principal: pro- fessor. Um levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais do Ministério da Educação (Inep/MEC) identificou a falta de 250 mil professores de 5.ª a 8.ª séries e de Ensino Médio nas escolas de todo o país, prejudicando cerca de 23 milhões de estudantes. As áreas mais carentes são física e química, que daqui a dez anos ainda terão um déficit de 40 mil profissionais. Em muitas disciplinas, como matemática, não faltam vagas no Ensino Superior para formar professores habilitados, porém os recém-formados aposentam o diploma e preferem outros em- pregos. Baixos salários e condições de trabalho desestimulantes são os problemas que afugentam os mestres. Estamos à beira de um apagão nas escolas, classifica o secretário de Educação Média e Tecnológica do MEC, Antônio Ibañez, comparando a situação do ensino à crise de fornecimen- to de energia elétrica que assolou o país em 2001. De acordo com o estudo, para atender a demanda atual são necessários 235 mil professores no Ensino Médio e 476 mil nas turmas de 5.ª a 8.ª séries, num total de 711 mil docentes. Mas nos últimos anos formaram-se 457 mil profissionais nos cursos de licenciatura, que habilitam professores para o magistério. Com isso, o déficit é de cerca de 254 mil professores, quase 90 mil deles apenas para língua portuguesa. As vagas têm sido preenchidas de forma precária, com professores não habilitados para a função e proce- dentes de outras áreas, sem a formação necessária para ensinar, como os engenheiros que assumem as aulas de física, matemática e química sem conhecimentos de didática. Além disso, os professores chegam a trabalhar nos três turnos para suprir a demanda. Docência no Ensino Superior 14 Podemos observar que em 2003 se desenhava um quadro caótico em re- lação ao futuro da docência em nosso país. Como reverter esse quadro? As políticas públicas se ocupam de ações de formação docente para suprir essa demanda, tais como cursos a distância, contratação emergencial de profis- sionais de outras áreas, entre outras. Porém, é necessário pensar sobre os mo- tivos que geram essa crise e não se ater a situações que visam atingir apenas as consequências. O professor universitário goza de um status profissional um pouco di- ferenciado, uma vez que, em geral, essa seria a sua segunda profissão. Na graduação, ele obtém um título profissional – dentista, advogado, engenhei- ro – e, após concluir uma pós-graduação, torna-se também um professor universitário. Em uma sociedade em que a educação ainda é tratada como um privilé- gio, ter mais de um título profissional, obtido no ensino superior, confere ao seu portador um respeito intelectual, gerando assim o status profissional di- ferenciado em relação ao professor da Educação Básica. Contudo, o professor universitário não está imune à desvalorização profissional do docente, assim passando a viver, uma ambiguidade. Ele está sujeito a todas as dificuldades e angústias dessa profissão e acrescenta-se ainda o fato de, muitas vezes, não se sentir preparado para o exercício da docência universitária. Cinema e literatura: desvelando o estereótipo depreciativo Precisamos compreender o que tem levado a esse processo de rejeição da docência. A história da profissão docente está associada a diferentes ima- gens, que oscilam entre a grandiosidade e a mitificação, de um lado, e o des- prezo e depreciação de outro. Essas imagens são de diferentes maneiras, construídas a partir das expe- riências e vivências que se colocam diante de nós pelas mais diversas vias. São modelos construídos socialmente que passam a configurar nosso modo de ver a profissão. Muitas vezes, ouvir de um aluno expressões como: “Nossa, você não parece uma professora!”, remetemo-nos a uma reflexão sobre qual parâmetro esse aluno usou para chegar à conclusão de que alguém parece ou não uma pro- Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional 15 fessora. Ele partiu de um modelo, uma representação. Essas representações estão presentes na música, nas novelas, nos comerciais de TV, na literatura, no cinema, entre outros. O cinema e a literatura serão aqui usados como exemplos de construção e divulgação de imagens acerca da profissão docente. Quantos personagens de filmes ou livros que conhecemos são professores? Inúmeros. Podemos lem- brar com facilidade da melodia que tocava ao fundo no filme Ao Mestre com Carinho, que influenciou gerações inteiras e ainda é uma referência presente. Em geral, no cinema e na literatura as imagens de professores são ma- niqueístas: ora é o carrasco, autoritário, sarcástico, que se compraz das difi- culdades de seus alunos; ora é o herói, salvador da humanidade, abnegado, totalmente dedicado. Esses filmes e livros contribuíram para que nós construíssemos imagens acerca do que é ser um bom ou um mau professor. Como professores, nosso imaginário é perpassado de imagens metafóricas, [...] funcionando como elementos de adesão ou de rejeição, que configuram distintos modelos profissionais. A linguagem metafórica está impregnada de projetos educativos, sendo utilizada para demarcar posições e para definir atitudes face à profissão. Desde as metáforas mais agressivas do domesticador ou do escultor, até as metáforas mais doces do companheiro ou do jardineiro, eis um imenso universo de imagens que nos permite contar todo o passado e todo o presente dos professores. (NÓVOA, 1995b, p.13) O uso dessas metáforas contribui para a fixação de modelos a serem re- produzidos, sendo comum ainda hoje se referir ao professor como “escultor”, “jardineiro”, entre outras. Dom, sacerdócio, abnegação e vocação são caracte- rísticas muito associadas à imagem do professor, sendo reforçadas pela litera- tura e pelo cinema. Vamos observar alguns exemplos dessas manifestações. Cecília Meireles, educadora, jornalista e poeta formou-se pela EscolaNormal, no Rio de Janeiro em 1917. Em 1923, ela escreve Criança Meu Amor1, em que demonstra sua preocupação com a infância. Porém, em um dos seus “Mandamentos”, destaca-se a figura da professora: I – Devo amar a escola como se fosse meu lar. II – Devo amar e respeitar a professora, como se fosse minha mãe. III – Devo fazer dos meus colegas meus irmãos. [...] 1 Criança Meu Amor é um livro de literatura infantil publicado em 1924, quando a autora tinha apenas 23 anos. O livro foi adotado nas escolas do Rio de Janeiro, Pernambuco e Minas Gerais nas décadas de 1920 e 1930. Docência no Ensino Superior 16 II – Durante o dia todo, a professora pensa em mim, pensa no que sou, pensa no que hei de ser. Ela deseja ver-me instruído e bom; e para isso trabalha. Não conhece cansaço, porque não tem tempo de descansar. Não conhece doenças, porque não pode adoecer. Quem zelaria por nós? Não conhece diversões. Que tempo de se divertir, se ela vive pensando em nós, se ela vive para nós, unicamente para nós! A professora é a minha proteção e o meu guia. Devo amá-la e respeitá-la como se fosse também minha mãe. (MEIRELES, 1924, p. 68) A professora apresentada neste trecho é abnegada, não tem vida própria, é quase um ser superior, afastada das situações terrenas. Essa professora, to- talmente entregue aos seus alunos, era cultuada nos “Mandamentos”. Em seu livro Coração: diário de um aluno, Edmundo de Amicis (1997) des- creve seus professores. Observemos a diferença ressaltada entre o professor e a professora: [...] o nosso professor é alto, sem barba, com os cabelos grisalhos e compridos, tem uma ruga na testa; tem a voz grossa, e olha-nos fixamente, um depois do outro, como para ler- -nos no íntimo; e nunca ri [...] É sempre a mesma, pequena, com o seu véu verde em volta do chapéu, vestida modestamente, com um penteado simples, pois não lhe sobra muito tempo para adornar-se; está um tanto mais descorada do que no ano passado, com alguns cabelos brancos, e uma tosse que não a deixa nunca [...]. (AMICIS, 1997, p. 10, 17) O professor é descrito como uma figura severa, sisuda, forte, enquanto a professora aparece como pessoa frágil, de vestes modestas, além de adoen- tada. São muitos os exemplos desta oposição de gêneros na construção de imagens de professores. Assim, as noções de sacerdócio, dom e abnegação anunciadas anterior- mente estão presentes em uma memória sobre a profissão docente. Em grande medida, isso pode ser explicado pelo viés religioso, pois a própria terminologia advém da Igreja. Contudo, isso adquire um sentido ainda mais forte quando se refere fundamentalmente às mulheres. Como explica o estu- dioso da área: A partir de então passam a ser associadas ao magistério características tidas como “tipicamente femininas”: paciência, minuciosidade, afetividade, doação. Características que, por sua vez, vão se articular à tradição religiosa da atividade docente, reforçando ainda a ideia de que a docência deve ser percebida mais como um “sacerdócio” do que uma profissão. Tudo foi muito conveniente para que se constituísse a imagem das professoras como “trabalhadoras dóceis, dedicadas e pouco reivindicadoras”, o que serviria futuramente para lhes dificultar a discussão de questões ligadas a salário, carreira, condições de trabalho etc. (LOURO, 1997b, p. 450) Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional 17 Ainda hoje, o magistério é uma profissão majoritariamente ocupada por mulheres, quadro que se reflete no cinema e na literatura que contam as his- tórias de normalistas e mestres. No cinema, observamos a ênfase do mito do professor-herói. Há alguns filmes, em geral hollywoodianos, em que se narra a história de um professor chegando a uma escola, em geral localizada em um gueto norte-americano, em que con- vivem todos os estereótipos de exclusão social, tais como indivíduos negros e hispânicos, a violência, a gravidez na adolescência, dentre outros. Ao longo da narrativa, esses filmes mostram que a força e a determinação dos profes- sores – que muitas vezes são rígidos – “salva” a todos, dando um novo rumo à vida dos alunos. Cabe ressaltar que, se o filme retratar uma professora, muitas vezes ela conquista a classe com a ternura. Ao final, depois de vencer todos os contratempos, o professor sai vitorioso, um verdadeiro herói. Contudo, ao sairmos das salas de cinema e nos depararmos com a reali- dade, percebemos que as mudanças não ocorrem de forma mágica, como se fosse apenas uma questão de determinação. O mito do professor-herói tem colaborado para a construção de uma onipotência entre os professores, fa- zendo-os acreditarem que são responsáveis por todas as mudanças da socie- dade. Ao não conseguirem realizá-las, por causa das condições reais impostas pelo exercício de sua própria profissão, eles desenvolvem um sentimento de impotência e frustração. O que é o burnout A crise de identidade vivida atualmente pelos professores tem sido levada a situações extremas, tal como o desenvolvimento da síndrome de burnout, cada vez mais comum entre esses profissionais. Esse distúrbio se caracteriza pela desmotivação, ou melhor, pela “perda do brilho” e pela desistência pro- fissional, como veremos a seguir. A síndrome do burnout (CANTONE, 2006) O termo burnout é uma composição de burn = “queima” e out = “exte- rior”, sugerindo assim que a pessoa com esse tipo de estresse consome- -se física e emocionalmente, passando a apresentar um comportamento agressivo e irritadiço. Docência no Ensino Superior 18 Tal síndrome se refere a um tipo de estresse ocupacional e institucional com predileção para profissionais que mantêm uma relação constante e direta com outras pessoas, principalmente quando esta atividade é con- siderada de ajuda (médicos, enfermeiros, professores). A síndrome de burnout é definida como uma reação à tensão emocio- nal crônica gerada a partir do contato direto, excessivo e estressante com o trabalho. É caracterizada pela ausência de motivação ou desinteresse; mal-estar interno ou insatisfação ocupacional que parece prejudicar, em maior ou menor grau, a atuação profissional de alguma categoria ou grupo profissional. É apresentada como formas de condutas negativas, como por exem- plo, a deterioração do rendimento, a perda de responsabilidade, atitudes passivo-agressivas com os outros e perda da motivação, onde se relacio- nariam tanto fatores internos, na forma de valores individuais e traços de personalidade, como fatores externos, na forma das estruturas organiza- cionais, ocupacionais e grupais. Podemos dizer que é uma resposta ao es- tresse ocupacional crônico. A síndrome de burnout pode trazer sérias con- sequências não só do ponto de vista pessoal bem como institucional; é o caso do absenteísmo, da diminuição do nível de satisfação profissional, aumento das condutas de risco, inconstância de empregos e repercussões na esfera familiar. Alguns autores a definem como uma das consequências mais marcan- tes do estresse profissional, onde se destacam a exaustão emocional, ava- liação negativa de si mesmo, depressão e insensibilidade com relação a quase tudo e todos (até como defesa emocional). Inicialmente, a síndrome foi observada em profissionais que estavam predominantemente em contato interpessoal mais exigente, tais como médicos, psicanalistas, carcereiros, assistentes sociais, comerciários, professores, atendentes públicos, enfermeiros, funcionários de departa- mento pessoal, telemarketing e bombeiros. Atualmente as observações já se estendem a todos profissionais que interagem de forma ativa com pessoas, que cuidam e/ou solucionam problemas de outras pessoas, que obedecem técnicas e métodos mais exigentes, fazendo parte de organi- zações de trabalho submetidas a avaliações. Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional 19 Entre os fatores aparentemente associados ao desenvolvimento da sín- drome de burnout está a pouca autonomia nodesempenho profissional, problemas de relacionamento com as chefias, problemas de relaciona- mento com colegas ou clientes, conflito entre trabalho e família, senti- mento de desqualificação e falta de cooperação da equipe. A síndrome de burnout se difere do estresse; envolve atitudes e condu- tas negativas com relação aos usuários, clientes, organização e trabalho, enquanto o estresse apareceria mais como um esgotamento pessoal com interferência na vida do sujeito e não necessariamente na sua relação com o trabalho. Ao longo do desenvolvimento da história da profissão, temos convivido com inúmeros paradoxos. De um lado, discursos que glorificam a profissão, sempre bem representados no cinema. Em contrapartida, encontramos ima- gens depreciativas que apresentam o professor como o bode expiatório de todos os problemas educacionais. Esse excesso de missão, aliado às inúmeras desconfianças em relação ao docente, leva muitos professores a desenvolve- rem essa doença profissional. Isso exige do docente um momento de refle- xão sobre o seu futuro profissional. Memória, autobiografia e histórias de vida Como uma possibilidade concreta de pensar sobre a profissão docente, alguns teóricos têm desenvolvido o método autobiográfico de formação con- tinuada que consiste em refletir sobre o processo pelo qual ele se tornou pro- fessor, ou seja, sobre o desenvolvimento de seu próprio processo identitário. O professor é estimulado a pensar sobre a sua trajetória escolar como aluno e posteriormente como professor, buscando suas influências, identi- ficando suas escolhas e refletindo sobre elas. A questão fundadora deve ser “Como eu me tornei o professor que eu sou hoje?”. Essa questão o remete a outra, anterior: “Que professor eu sou?” Para responder a tais questões, ele deve refletir sobre suas práticas, a in- tencionalidade do ato educativo, seus valores, suas crenças, ou seja: o seu de- senvolvimento profissional está associado ao seu desenvolvimento pessoal. Docência no Ensino Superior 20 Esse movimento ganhou força no Brasil a partir dos anos de 1990, muito influenciado por produções europeias como a do destacado educador portu- guês Antonio Nóvoa (1995b). O uso que esse autor faz de algumas narrativas de professores e de certos relatos autobiográficos permite que se compreen- da como o professor pode construir sua autoimagem influenciado pelos anos de exercício de magistério. Como afirma este autor, essa espécie de balan- ço deve ser feita por todos os professores para que compreendam sob uma perspectiva mais ampla a lógica que há subentendida em todo seu processo de formação. Portanto, em sua obra, Nóvoa (1995b) nos convida a pensar sobre as nossas próprias questões e propõe a construção de um profissional reflexivo, que rejeita as metáforas identitárias a que muitos docentes se submetem. Para descobrirem quem realmente são, os professores não devem buscar amparo em um discurso de valorização profissional de outras épocas. De acordo com as palavras do educador português: A defesa de uma maior autonomia do professorado não se baseia numa qualquer visão nostálgica da profissão docente, isto é, numa tentativa de reconquista de um qualquer “paraíso perdido”. Bem pelo contrário, esta defesa é uma aposta de futuro, que anuncia o fim de um ciclo na história da profissão docente, um ciclo marcado pela subordinação do professorado a outras instâncias e a outros grupos sociais. (NÓVOA, 1991, p. 528) De acordo com essa passagem, nota-se que para a construção da identi- dade docente não basta ir em busca do suposto “paraíso perdido”, mas sim identificar em um passado recente um momento de valorização profissional. Para o autor, não devemos separar o eu pessoal do eu profissional. Devemos sim observar como eles se influenciam mutuamente: “diz-me como ensinas, dir-te-ei quem és”. E vice-versa. Podemos dizer então que o método autobiográfico é: instrumento de reconstrução da identidade individual; lugar de lutas e conflitos; maneira de ser e estar na profissão; construção da memória social da categoria; instrumento de análise e reflexão; proposta de intervenção para rever a prática docente. Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional 21 Ao trabalharmos com relatos pessoais escritos por professores ao pensa- rem sobre sua trajetória escolar e refletir sobre as influências recebidas, en- contramos alguns traços em comum. Vejamos abaixo. Aspectos positivos: leva a compreender a matéria; amizade; extrapola o ensinar conteúdos; confiança; exemplo; influência no curso universitário. Aspectos negativos: traumas; humilhações; não ensina bem; gosta ou não gosta da disciplina. Observamos assim que nossas experiências escolares nos marcam profun- damente como pessoas e como profissionais. Pensar sobre essas questões pode ser um bom caminho para a superação da tão propalada crise de iden- tidade docente. Para finalizar, vamos apreciar a leitura de uma reflexão tão pessoal escrita por Paulo Freire, renomado educador brasileiro, que tão bem ilustra o método autobiográfico aqui discutido. O texto faz parte de uma coletânea de peque- nos textos do autor, escritos no decorrer de 1992 ou proferidos em palestras e publicados sob a forma de livro, cujo título é Política e Educação (FREIRE, 2001). São textos reflexivos, que retratam a experiência política-pedagógica do autor. Docência no Ensino Superior 22 Texto complementar Ninguém nasce feito: é experimentando-nos no mundo que nós nos fazemos Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo aos poucos, na prática social de que tomamos parte (FREIRE, 2001, p. 79) Não nasci professor ou marcado para sê-lo, embora minha infância e adolescência tenham estado sempre cheias de “sonhos” em que rara vez me vi encarnando figura que não fosse a de professor. “Brinquei” tanto de professor na adolescência que, ao dar as primeiras aulas no curso então chamado de admissão no Colégio Osvaldo Cruz do Recife, nos anos 1940, não me era fácil distinguir o professor do imaginário do professor do mundo real. E era feliz em ambos os mundos. Feliz quando puramente sonhava dando aula e feliz quando, de fato, ensinava. Eu tinha, na verdade, desde menino, um certo gosto docente, que jamais se desfez em mim. Um gosto de ensinar e de aprender que me empurrava à prática de ensinar que, por sua vez, veio dando forma e sen- tido àquele gosto. Umas dúvidas, umas inquietações, uma certeza de que as coisas estão sempre se fazendo e se refazendo e, em lugar de inseguro, me sentia firme na compreensão que, em mim, crescia de que a gente não é, de que a gente está sendo. Às vezes, ou quase sempre, lamentavelmente, quando pensamos ou nos perguntamos sobre a nossa trajetória profissional, o centro exclusivo das referências está nos cursos realizados, na formação acadêmica e na experiência vivida na área da profissão. Fica de fora como algo sem im- portância a nossa presença no mundo. É como se a atividade profissional dos homens e das mulheres não ti- vesse nada que ver com suas experiências de menino, de jovem, com seus desejos, com seus sonhos, com seu bem-querer ao mundo ou com seu desamor à vida. Com sua alegria ou com seu mal-estar na passagem dos dias e dos anos. Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional 23 Na verdade, não me é possível separar o que há em mim de profissional do que venho sendo como homem. Do que estive sendo como menino do Recife, nascido na década de 1920, em família de classe média, acos- sada pela crise de 1929. Menino cedo desafiado pelas injustiças sociais como cedo tomando-se de raiva contra preconceitos raciais e de classe a que juntaria mais tarde outra raiva, a raiva dos preconceitos em torno do sexo e da mulher. Como não perceber, por exemplo, que de minha formação profis sional faz parte bom tempo de minha adolescência em Jaboatão, perto do Recife, em que não apenas joguei futebol com meninosde córregos e de morros, meninos das chamadas classes menos afortunadas, mas também com eles aprendi o que significava comer pouco ou nada comer. Atividades 1. Segundo Antonio Nóvoa (1995b), os professores vivem uma crise de identidade. Explique essa afirmação. 2. O que caracteriza um professor universitário? Por que ele goza de um status profissional diferenciado em relação ao professor da educação básica? Pense sobre estas questões e elabore uma breve reflexão so- bre o assunto. Docência no Ensino Superior 24 3. Relato autobiográfico: Pense no percurso de sua escolaridade. Pense em um professor marcante, positiva ou negativamente, e escreva sobre ele. Nesta atividade, você deve escrever um breve relato sobre sua traje- tória escolar e refletir sobre as influências que recebeu e as marcas deixadas na sua vida pessoal e profissional. Dicas de estudo Esses três filmes narram histórias docentes, a partir dos quais você poderá compreender melhor o mito do professor-herói abordado nesta aula. SOCIEDADE dos Poetas Mortos. Direção de Peter Weir. Abril Vídeo. EUA, 1989. (129min.). MENTES perigosas. Direção de John N. Smith. EUA, 1995. (99min.). O PREÇO de um desafio. Direção de Ramon Menendez. EUA, 1988. (102min.). Representações sobre a docência: a construção da identidade profissional 25 Docência no Ensino Superior Maria Heloísa Aguiar da Silva Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém. Por isso é que, do ponto de vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo transitivo-relativo. Verbo que pede um objeto direto – alguma coisa – e um objeto indireto – a alguém. Paulo Freire Ação docente e a construção de competências Independentemente de todas as representações sobre a profissão docente, podemos afirmar que uma competência fundamental para o professor é saber ensinar. Logo, isto é algo que se aprende e esse aprendizado se dá nos cursos de formação docente e também no exercício profissional. Saímos dos cursos universitários com a certificação de estarmos qualificados profissionalmente. Contudo, é no exercício da docência, na prática da sala de aula, que nos torna- mos professores. Estamos constantemente nos fazendo e refazendo. Torna-se imperioso, portanto, pensar sobre esse processo. Refletir sobre as competências que precisamos desenvolver para tornar a nossa ação pe- dagógica mais eficiente, assim possibilitando aos nossos alunos um ensino de qualidade. A epígrafe desta aula nos apresenta importantes elementos para uma re- flexão inicial. “Não há docência sem discência”, ensinou-nos Paulo Freire. A relação entre ensino e aprendizagem é estabelecida sempre entre sujeitos, ou seja, pessoas dotadas de vontade, que interagem e participam ativamen- te do processo. Quando eu ensino, também aprendo; e quando aprendo, também ensino. O aluno não é um objeto, não é um ser passivo no qual o Docência no Ensino Superior 28 professor deposita todo seu conhecimento: ele é um sujeito que quer ou não quer aprender. Assim sendo, temos de aprender a conviver, desde o início, com o sen- timento de insucesso, tanto nosso como o de nossos alunos. Freud costu- mava dizer que o magistério é uma profissão impossível, pois se exprime na influência de um sujeito sobre outra pessoa. Perrenoud (1997) nos leva a refletir sobre a complexidade dessa profissão, uma vez que “nas profissões que trabalham com pessoas o sucesso nunca está assegurado, e é necessário, pelo contrário, aceitar uma fração importante de semifracassos ou fracassos graves” (PERRENOUD, 1997, p. 176). Portanto, podemos perceber o grau de exigência do magistério para com aquele que opte por exercê-lo – exigente de uma formação rigorosa e contí- nua e de um compromisso ético, visto que essa é uma profissão cujo objeto de trabalho é um ser humano em desenvolvimento. A formação de professores deve assumir esses desafios e desenvolver um processo formativo atualizado, flexível, que forneça ferramentas para que o futuro profissional saiba lidar com situações complexas e imprevistas: Ensinar significa, por vezes, reagir “com grande precisão” perante situações imprevistas e “sair delas” sem muitos prejuízos. Significa no melhor dos casos tirar partido do imprevisto para atingir o fim desejado. Ensinar significa agir rapidamente, com urgência, face a uma situação complexa, mal conhecida. (PERRENOUD, 1997, p. 107) Competências para ensinar: desafios profissionais Se a educação dos seres humanos pouco a pouco tornou-se mais complexa, o mesmo deverá acontecer à profissão docente. Francisco Imbernón Ao findar o século XX, alguns desafios se colocaram para a escola. Falava- -se em novas maneiras de ensinar e aprender, exigindo-se uma reconfigura- ção do papel da escola e, por consequência, do professor. O século XXI herdou esse desafio e o aprofundou. Esse movimento é pro- vocado pelo acelerado desenvolvimento tecnológico que nos coloca diante de um volume de informações nunca visto antes. Não há mais espaço para a antiga imagem do professor como dono do saber. Docência no Ensino Superior 29 É nesse novo cenário que emerge a importante discussão sobre a cons- trução de competências: “afinal, vai-se à escola para adquirir conhecimentos, ou para desenvolver competências?” (PERRENOUD, 1999, p. 7). Para ambas as coisas. Para desenvolver competências, ancoramo-nos em conhecimentos. Então, o que muda, afinal? A construção de competências exige uma nova postura diante do conhe- cimento, assim modificando a prática educativa. Da questão “que aluno quero formar?”, chegamos à questão “que professor forma esse aluno?”. O conceito de competência adquire força e importância no Brasil a partir da década de 1990, no bojo das reformas educacionais. Há uma vasta litera- tura a esse respeito, não se limitando apenas à área educacional, pois esse debate está presente também nas empresas. Desse modo, devemos enten- der o significado desse conceito: São múltiplos os significados da noção de competência. Eu a definirei aqui como sendo uma capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles. Para enfrentar uma situação da melhor maneira possível, deve-se, via de regra, pôr em ação e em sinergia vários recursos cognitivos complementares, entre os quais estão os conhecimentos. (PERRENOUD, 1999, p.7) Ao agirmos eficazmente na solução de uma situação complexa, mobiliza- mos uma série de competências. Para tanto, recorremos a diversos recursos, tais como conhecimentos, saberes e experiências anteriores. A vida nos de- safia a agir dessa maneira. Não podemos interromper nossos afazeres a todo instante para buscar respostas nos livros, por exemplo. Abordagem por competência De uma forma geral, a escola ensina de maneira fragmentária e nós absor- vemos os conteúdos também desse modo, visto que muitas disciplinas não dialogam entre si. A proposta pedagógica da abordagem por competências questiona o modo tradicional de ensinar, pois caso a escola ensine seu aluno apenas a memorizar e repetir conhecimentos, esse jovem não conseguirá apresentar respostas novas diante de situações não previstas no modelo, ou seja, o conhecimento escolar corre o risco de ser necessário apenas na escola, na realização das avaliações. Portanto, podemos dizer de uma maneira geral que a abordagem por competências pretende favorecer o desenvolvimento de uma aprendi- zagem significativa que tenha uma correspondência com a realidade, e para isso exige o desenvolvimento da capacidade de resolução de Docência no Ensino Superior 30 problemas, de invenção, pois “toda normalização da resposta provoca um enfraquecimento da capacidade de ação e reação em uma situação com- plexa” (PERRENOUD, 2002, p. 11). Competênciasdocente Todo esse processo de inovação pedagógica acaba por se refletir na ativi- dade do professor, pois desse profissional será exigido o papel que vai além do mero transmissor de conhecimentos: ele precisará dar subsídios aos seus alunos para que desenvolvam suas respectivas competências. Já é sabido pelos professores que, para que possam bem desempenhar sua função, é necessário que possuam, pelo menos, três competências: domínio dos saberes a serem ensinados; domínio teórico e prático dos processos de ensino e aprendizagem; capacidade para gerir situações complexas. No entanto, Perrenoud (1996) nos apresenta um referencial com dez novas competências que devem contribuir para redesenhar a ação docente. O autor tomou como base um referencial adotado em Genebra para a formação de professores no ano de 1996. Esse trabalho transformou-se no livro Dez Novas Competências para Ensinar: convite à viagem. Nessa obra, Perrenoud dedica um capítulo a cada competência, explicando-as em profundidade. São elas: organizar e dirigir situações de aprendizagem; administrar a progressão das aprendizagens; conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação; envolver os alunos em sua aprendizagem e em seu trabalho; trabalhar em equipe; participar da administração da escola; informar e envolver os pais; utilizar novas tecnologias; enfrentar os deveres e os dilemas éticos da profissão; administrar sua própria formação continuada. Docência no Ensino Superior 31 Cada competência aqui apresentada se desdobra em outras, ampliando esse quadro. Devemos entender esse esforço de Perrenoud (1999) como uma proposta de reorientação da formação de professores, de forma a sempre inovarem sua ação pedagógica, formando alunos com cabeças bem-feitas e não simplesmente com cabeças bem cheias de conteúdo, sem saberem refle- tir acerca do mundo ao redor. Para compreendermos melhor as novas competências docentes (PER- RENOUD, 1999), nesta aula optamos por dividi-las em três categorias: competências relativas ao cotidiano da sala de aula (do 1.o ao 4.o item da lista); competências relativas à gestão (do 5.o ao 7.o item); competências relativas à formação continuada do professor (do 8.o ao 10.o item). Competências relativas ao cotidiano da sala de aula No primeiro bloco, o autor apresenta novos sentidos para as ações coti- dianas do professor, mostrando toda a complexidade do processo de ensino e aprendizagem. Segundo o autor, a aula deve extrapolar os limites físicos da sala e o professor deve ser capaz de gerir situações de aprendizagem, uma vez que a aula só se concretiza na sua relação com a aprendizagem. Isso sig- nifica dizer que ser professor não é “dar aulas”, mas sim propiciar situações de aprendizagem aos alunos. A avaliação também é vista de outra maneira por Perrenoud (1997) na medida em que vai acontecer de maneira processual, cabendo ao professor administrar a progressão das aprendizagens e não medir a quantidade de co- nhecimento que o aluno acumulou. A ação pedagógica deve ocorrer em um ambiente bastante heterogêneo. A sala de aula é um espaço marcado pela diversidade. Nesse sentido, a postura do professor deve ser inclusiva, favorecendo a convivência e o respeito mútuo. Como decorrência dessas questões, deve-se buscar a formação do aluno para a autonomia, possibilitando-lhe o desenvolvimento de projetos pes- soais. Para tanto, é necessário tratá-lo como sujeito da sua aprendizagem. Docência no Ensino Superior 32 Competências relativas à gestão A partir desse grupo de competências, pode-se observar a ênfase de Per- renoud (1997) no papel do docente como gestor, indicando a necessidade desse profissional desenvolver competências que vão além da sala de aula, mas que, no entanto, repercutem diretamente nas atividades ali desenvolvidas. O trabalho docente deve ser sempre coletivo, agrupando professores e demais participantes da equipe escolar, assim como a comunidade que é ser- vida pela escola. Portanto, devemos desenvolver competências de organiza- ção, coordenação, mediação e mobilização, entre outras. Competências relativas à formação continuada do professor Dessas competências, é importante destacar aqui a necessidade de o do- cente refletir continuamente sobre os desafios postos ao seu exercício pro- fissional. Essas competências passam pelas questões das novas tecnologias como ferramenta fundamental do trabalho pedagógico; pelos dilemas éticos da profissão, visto que trabalhamos com seres humanos em formação; e chegam à necessidade e à responsabilidade de professor administrar a sua própria formação continuada. Formação inicial e continuada: a busca da autonomia intelectual Não basta que uma peça de vestuário esteja bem cortada, que tenha cores bonitas e um tecido agradável. É necessário que resista à lavagem! A primeira aula pode “lavar” o professor recentemente saído da escola normal de todas as suas ilusões e ambições. Isso significa que a sua formação não teve em conta as condições efetivas da prática, que lhe falamos de uma escola que não existe. Philippe Perrenoud As inovações educativas deste início de século exigem a formação de um profissional consciente de seu papel, capaz de gerir situações complexas. Isto significa dizer que a formação de professores é hoje um grande desafio para a educação de qualidade. Docência no Ensino Superior 33 Para compreendermos melhor o tema de formação de professores, traba- lharemos com dois conceitos que se complementam: formação inicial e for- mação continuada. A formação inicial é aquela realizada no Ensino Superior, fornecendo ao aluno – futuro professor – as bases para o seu exercício profissional. Trata-se de um momento importante do desenvolvimento desses futuros profes sores, pois é nesse tempo em que adquirem os primeiros conhecimentos que cons- tituirão a base para o exercício da docência. Um equívoco facilmente cometido nos cursos de formação inicial dos pro- fessores é a tentativa de passar ao aluno todo o conhecimento considerado necessário para o bom desempenho da docência. Contudo, isso é impossível, pois uma parcela desse conhecimento só será desenvolvida na prática, no exercício cotidiano da docência, na sala de aula real, com alunos reais. Devemos então pensar com cuidado na frase de Perrenoud (1997) que afirma que o primeiro dia de aula pode “nos lavar” de todos nossos sonhos e expectativas. Sendo um momento crucial no desenvolvimento profis sional do docente, a formação inicial deve ser pensada com cautela, deve ser organizada de modo mais realista, articulando teoria e prática – que são indissociáveis. Uma vez que a formação inicial não é absoluta, completa, ela deve se or- ganizar a partir de escolhas conscientes, definindo prioridades na formação dos professores. Deve basear-se em situações cotidianas e refletir sobre as angústias e anseios comuns ao professor iniciante. A formação de professores tem recebido um grande destaque entre os estudiosos da educação e planejadores das políticas públicas em educação. Boa parte dos problemas educacionais é interpretada como resultado da má qualidade na formação docente, fato destacado por Perrenoud: Aparentemente, quase todas as críticas do sistema escolar são concentradas no mesmo bode expiatório: a formação de professores, que é considerada curta, inadequada, inadaptada, insuficiente, antiquada. Mas ela não merece nem este excesso de honra, nem esta indignidade! (PERRENOUD, 1997, p. 94 [grifo do autor]) Devemos considerar a importância do debate em torno da formação de pro- fessores, contudo sem identificá-lo como a solução para todos os problemas educacionais. A formação deve ser repensada e reorientada à sua medida. Docência no Ensino Superior 34 No Ensino Superior, esse problema torna-se mais candente na medida em que o professor universitário pertence a, no mínimo, duas categorias profis- sionais. Por exemplo: ele pode ser um engenheiro e um professoruniversitá- rio do curso de engenharia. No entanto, a formação técnica e a experiência como engenheiro não são os únicos elementos que tornam o dito profissional um professor universitário. Ele também precisa contar com uma formação pedagógica que lhe permita ensi- nar de uma maneira eficaz, sem prejudicar a aprendizagem dos seus alunos. É comum, por parte dos alunos, críticas evidenciando a deficitária forma- ção pedagógica do professor universitário. Frases como: “ele é um ótimo ad- ministrador, mas não sabe ensinar” – são ouvidas quando se busca conhecer as principais queixas dos alunos universitários. Isso nos coloca diante de um grande desafio que é a formação continuada dos professores, incluindo os universitários, que geralmente começam a le- cionar após terem passado pela pós-graduação. Sabe-se que pouco chega a ser ensinado sobre a ação docente a esse profissional, que acaba de se tornar um pós-graduado e que está em vias de encarar pela primeira vez o ambiente de sala de aula como professor acadêmico. A formação pedagógica tardia desse profissional decorre de que o próprio foco da pós-graduação – e, muitas vezes, de todo o seu curso de formação – não está voltado para a ação educativo-formativa. Ele não visa formar outros professores que possam transmitir o conhecimento da área. O foco de cursos que não propriamente o das licenciaturas é o de, transmitir o conteúdo para que seja aplicado na prática. Como uma alternativa àqueles que fizeram tais cursos e desejam lecionar o conhecimento que apreenderam ao longo de sua trajetória acadêmica, há a formação continuada de docentes, um importante estágio de desenvolvi- mento profissional. Permite aos diferentes professores articularem os conhecimentos básicos advindos da sua formação inicial com o exercício da docência. Por isso, não basta ser um excelente cardiologista: é preciso saber ensinar esses conheci- mentos aos seus alunos, futuros cardiologistas. Devemos entender que a formação continuada se dá a partir do exercício profissional, refletindo sobre ele. Está baseada essencialmente nos seguin- tes pressupostos: Docência no Ensino Superior 35 reflexão sobre a prática; análise das práticas, gestos cotidianos da profissão; relação entre teoria e prática; pensar em um saber que emerge da prática docente; aprender com os pares de modo colaborativo. Prática reflexiva e a profissionalização docente Se queremos um aluno crítico reflexivo, é preciso um professor crítico reflexivo. José Carlos Libâneo Muito se tem falado sobre os desafios da educação para o século XXI. Em transformação acelerada, a sociedade exige um indivíduo capaz de refletir sobre suas ações, deixando de agir mecanicamente, como um autômato. Es- pera-se que essa capacidade para a reflexão seja desenvolvida na escola, de modo que forme indivíduos autônomos. No Ensino Superior, esse desafio é apresentado como a necessidade de formar profissionais competentes, capazes de gerir situações complexas e apresentar respostas inovadoras. Assim sendo, o desafio de formar esse novo profissional implica a reorganização dos procedimentos de ensino e apren- dizagem, bem como um repensar da formação docente, pois – como nos alertou Libâneo – um professor que não reflete sobre sua ação tampouco formará um aluno capaz de refletir. Formar professores para a reflexão significa questionar modelos de forma- ção docente ancorados no treinamento ou na simples assimilação de conhe- cimentos novos, pois isso desvaloriza a experiência docente uma vez que não concebe o mestre como um produtor de conhecimento. Ele constrói novos co- nhecimentos cotidianamente, sendo seu trabalho intelectual e criativo. Assim, para que o professor possa contribuir para o desenvolvimento da autonomia intelectual de seus alunos, é necessário que seja reconhecido como tal. Ademais, os cursos tradicionais de formação de professores desconside- ravam a continuidade do processo formativo, não valorizando a experiência docente. O conhecimento acumulado pelos profissionais deveria ser apenas renovado ou substituído. Docência no Ensino Superior 36 A prática reflexiva é uma postura a ser desenvolvida, alçando os profes- sores ao papel de produtores de conhecimento e não de meros executores: A noção de professor reflexivo baseia-se na consciência da capacidade de pensamento e reflexão que caracteriza o ser humano como criativo e não como mero reprodutor de ideias e práticas que lhe são exteriores. É central, nesta conceitualização, a noção do profissional como uma pessoa que nas situações profissionais, tantas vezes incertas e imprevistas, atua de forma inteligente e flexível, situada e reativa. (ALARCÃO, 2004, p. 41) Somente o professor capaz de refletir sobre suas ações poderá formar um aluno reflexivo. Esse processo valoriza a prática de sala de aula como um espaço de construção de conhecimento – sem, contudo, desmerecer a teoria. Vale notar que a atividade de reflexão deve ser desenvolvida desde a for- mação inicial do docente – a qual deve, portanto, fornecer instrumentos ao indivíduo para que continue sua aprendizagem mesmo após ter terminado seus cursos na universidade. É necessário pensar em outras maneiras de formação continuada, que não se restrinjam a cursos. A realização de grupos de estudo nos locais de traba- lho, o desenvolvimento de projetos, as reuniões pedagógicas, entre outros exemplos, demonstram que é possível formar-se continuamente refletindo sobre a própria prática profissional. Por isso, faz-se necessário que a escola propicie um ambiente reflexivo e pense sobre si mesma e sobre sua missão, tornando-se também uma institui- ção que reflita sobre seu papel e função: O professor não pode agir isoladamente na sua escola. É neste local, o seu local de trabalho, que ele, com os outros, seus colegas, constrói a profissionalidade docente. Mas se a vida dos professores tem o seu contexto próprio, a escola, esta tem de ser organizada de modo a criar condições de reflexividade individuais e coletivas. A escola tem de se pensar a si própria, na sua missão e no modo como se organiza para a cumprir. Tem, também ela, de ser reflexiva. (ALARCÃO, 2004, p. 44) Assim, podemos afirmar que a prática reflexiva não deve ser episódica e nem casual, mas um método permanente que valorize os saberes emergidos da prática pedagógica. Observa-se então um caminho a ser trilhado para que se alcance uma for- mação de excelência para o aluno. O aluno reflexivo será formado por um professor reflexivo em uma escola reflexiva. Esta é, portanto, uma formação que busca a coerência ao ser expressa em ações conjuntas e coordenadas. O resultado final de tal processo deve ser uma mudança na aprendizagem do aluno, mas para que isso ocorra é fundamental que todos os envolvidos Docência no Ensino Superior 37 pensem sobre sua missão. Segundo Isabel Alarcão (2004, p. 79), ou a “escola é uma comunidade reflexiva, ou então, é um edifício sem alma”. Assim, o papel da instituição educativa é colocado em evidência: é ela que vai propiciar ou não espaços para a reflexão. Texto complementar A prática reflexiva como domínio da complexidade (PERRENOUD, 2007) O conceito é conhecido desde as obras de Schön. Entretanto, apesar dos trabalhos mais centrados na formação de professores, persiste uma confusão entre: por um lado, a prática reflexiva espontânea de todo ser humano que enfrenta um obstáculo, um problema, uma decisão a tomar, um fracasso ou qualquer resistência do real ao seu pensamento ou a sua ação; por outro lado, prática reflexiva metódica e coletiva que os profissionais usam durante o tempo em que os objetivos postos não são atingidos. Um sentimento de fracasso, de impotência, de desconforto, de sofri- mento desencadeia uma reflexão espontânea para todo ser humano e também para o profissional. Mas este último também reflete quando está bem, uma vez que haver-se com situações desconfortáveis não é seu único motor; suareflexão é alimentada também pela vontade de fazer seu trabalho de modo mais eficaz e ao mesmo tempo o mais próximo possível de sua ética. Num “ofício impossível”, os objetivos raramente são atingidos. É pouco frequente que todos os alunos de uma classe ou de um estabelecimento dominem perfeitamente os saberes e as competências visados. Por isso, no ensino, a prática reflexiva sem ser permanente não poderia se limi- tar à resolução das crises, de problemas ou de dilemas atrozes. É melhor imaginá-la como um funcionamento estável, necessário em “velocidade de cruzeiro” e vital em casos de “turbulência”. Docência no Ensino Superior 38 Outra diferença muito importante: um profissional reflexivo aceita fazer parte do problema. Reflete sobre sua própria relação com o saber, com as pessoas, o poder, as instituições, as tecnologias, o tempo que passa, a cooperação, tanto quanto sobre o modo de superar as limitações ou de tornar seus gestos técnicos mais eficazes. Enfim, uma prática reflexiva metódica inscreve-se no tempo de traba- lho, como uma rotina. Não uma rotina sonífera; uma rotina paradoxal, um estado de alerta permanente. Por isso, ela tem necessidade de disciplina e de métodos para observar, memorizar, escrever, analisar após compre- ender, escolher opções novas. Pode-se acrescentar que uma prática reflexiva profissional jamais é inteira- mente solitária. Ela se apoia em conversas informais, momentos organizados de profissionalização interativa em práticas de feedback metódico, de análi- se do trabalho, de reflexão sobre sua qualidade, de avaliação do que se faz. A prática reflexiva até pode ser solitária, mas ela passa também pelos grupos, apela para especialistas externos, insere-se em redes, isto é, apoia-se sobre formações, oferecendo os instrumentos ou as bases teóricas para melhor compreender os processos em jogo e melhor compreender a si mesmo. Por que seria necessário inscrever a atitude reflexiva na identidade pro- fissional dos professores? Responderei inicialmente: para liberar os pro- fissionais do trabalho prescrito, para convidá-los a construir suas próprias iniciativas, em função dos alunos, do campo, do meio ambiente, das par- cerias e cooperações possíveis, dos recursos e das limitações próprias do estabelecimento, dos obstáculos encontrados ou previsíveis. Admite-se, certamente, que a parte do trabalho prescrito decresce, em princípio, num processo de profissionalização. Resta compreender por que essa parte deveria decrescer no ofício do professor. Uma parte dos sistemas educativos ainda aposta numa forma de proletarização do ofício do profes- sor classificando os professores no que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) chamou de “prestação de serviços”. Podem-se enunciar três argumentos em favor da profissionalização. As condições e os contextos de ensino evoluem cada vez mais de- pressa, fazendo com que seja impossível viver com as aquisições de uma formação inicial que rapidamente se torna obsoleta e que Docência no Ensino Superior 39 seja mais realista imaginar que uma formação contínua bem pensa- da dará novas receitas quando as antigas “não funcionarem mais”; o professor deve tornar-se alguém que concebe sua própria prática para enfrentar eficazmente a variabilidade e a transformação de suas condições de trabalho. Se se quer que todos alcancem os objetivos, não basta mais ensinar, é preciso fazer com que cada um aprenda encontrando o processo apro- priado. Esse ensino “sob medida” está além de todas as prescrições. As competências profissionais são cada vez mais coletivas no âmbito de uma equipe ou de um estabelecimento, o que requer sólidas compe- tências de comunicação e de conciliação, logo, de regulação reflexiva. A atitude e a competência reflexivas apresentam várias facetas. Na ação, a reflexão permite desvincular-se da planificação inicial, corrigi- la constantemente, compreender o que acarreta problemas, descentrali- zar-se, regular o processo em curso sem se sentir ligado a procedimentos prontos, por exemplo, para apreciar um erro ou punir uma indisciplina. A posteriori, a reflexão permite analisar mais tranquilamente os acon- tecimentos, construir saberes que cobrem situações comparáveis que podem ocorrer. Num ofício em que os problemas são recorrentes, a reflexão se desen- volve também antes da ação, não somente para planificar e construir os cenários, mas também para preparar o professor para acolher os impre- vistos e guardar maior lucidez. Talvez caiba sublinhar a forte independência desses diversos momen- tos. A “reflexão na ação” tem claramente por função: construir a memória das observações, questões e problemas que são impossíveis de serem examinados em campo; preparar uma reflexão mais distanciada, do profissional, sobre o seu próprio sistema de ação e seu habitus. Sem entrar aqui na questão dos processos de formação pela prática re- flexiva (estudo de caso, análise de práticas, discussões, escrita clínica, por exemplo), cabe sublinhar que ela exige vários tipos de capitais: Docência no Ensino Superior 40 de saberes metodológicos e teóricos; de atitudes e de uma relação autêntica com o ofício e com o real; competências que se apoiam sobre esses saberes e atitudes, permi- tindo mobilizá-los em situação de trabalho e aliá-los à intuição e à improvisação, como na própria prática pedagógica. Os saberes metodológicos incluem a observação, a interpretação, a aná- lise, a antecipação, mas também a memorização, a comunicação oral e escrita e até mesmo o vídeo, uma vez que a reflexão nem sempre se de- senvolve em circuito fechado nem no imediato. Insistirei sobre os saberes teóricos: o bom senso apoiado sobre capacidades de observação e de ra- ciocínio permite um primeiro nível de reflexão. Para ir mais longe, importa sempre dispor de uma cultura em ciências humanas, tanto didática como transversal. Em certos casos, o domínio dos saberes a ensinar é crucial, se este falha, alguns problemas não podem ser colocados. Por exemplo, a interpretação de alguns erros de compreensão é esclarecida pela história e pela epistemologia da disciplina. Atividades 1. Realize uma entrevista com um professor universitário guiando-se pelo roteiro abaixo. Analise as respostas obtidas tendo em vista as discussões desenvolvidas durante essa aula sobre formação docente. Essa atividade pode ser realizada em grupo ou individualmente, a cri- tério dos alunos. Depois, recomenda-se que os alunos tenham tempo suficiente para discutirem entre si as conclusões a que chegaram rea- lizando tal atividade. Roteiro para entrevista 1. Dados pessoais (nome, idade, grau de formação, ano de conclu- são, série e disciplina que leciona). 2. Questões: a) O que o levou a escolher esta profissão? Que influências recebeu? Docência no Ensino Superior 41 b) Fale sobre sua formação inicial. c) Você sente necessidade de continuar estudando? Comente. d) A escola pode ser um espaço de formação continuada para os professores? Comente. e) Por que muitos professores não continuam seus estudos, não buscam aperfeiçoamento? Docência no Ensino Superior 42 Docência no Ensino Superior 43 2. Leia atentamente o texto abaixo e reflita sobre o seu significado abor- dando as dificuldades do professor iniciante. Não basta que uma peça de vestuário esteja bem cortada, que tenha cores bonitas e um tecido agradável. É necessário que resista à lavagem! A primeira aula pode “lavar” o professor recentemente saído da universi- dade de todas as suas ilusões e ambições. (PERRENOUD, 1997, p. 100) 3. Comente o texto abaixo e reflita sobre o equívoco da separação entre pensar e executar na prática pedagógica do professor. A noção de professor reflexivo baseia-se na consciência da capacidade de pensamento e reflexão que caracteriza o ser humano como criativo e não como mero reprodutor de ideias e práticas que lhe são exteriores. É central, nessa conceitualização, a noçãodo profissional como uma pessoa que nas situações profissionais, tantas vezes incertas e imprevistas, atua de forma inteligente e flexível, situada e reativa. (ALARCÃO, 2004, p. 41) Docência no Ensino Superior 44 4. Elabore uma reflexão pessoal (que pode incluir menção a alguma ex- periência vivida) sobre os seus principais anseios e suas expectativas em relação à docência universitária. Reflita sobre como a formação continuada pode auxiliá-lo na superação das dificuldades iniciais. Dica de estudo Em sua obra Vidas de Professores, Antonio Nóvoa (1995b) nos mostra com profundidade o modo como a docência toma um espaço signifi- cativo na vida do professor. A presente obra pretende chamar a aten- ção para as vidas dos professores, que constituíram, durante muitos anos, uma espécie de “paradigma perdido” da investigação educacio- nal. Hoje sabemos que não é pos sível separar o eu pessoal do eu pro- fissional, sobretudo numa profissão fortemente impregnada de valores e de ideais e muito exigente do ponto de vista do empenhamento e da relação humana. Como descreve Jennifer Nias: “O professor é a pessoa; e uma parte importante da pessoa é o professor”. Docência no Ensino Superior 45 Avaliação de aprendizagem: representações e concepções Isilda Louzano Perez O saber referente ao ato de avaliar é suscetível de contribuir para afastar representações inadequadas. Charles Hadji A avaliação é um tema cuja abordagem é de fundamental importância no contexto do ensino-aprendizagem. Portanto, não se pode pensar em avalia- ção sem contextualizá-la nas dimensões da instituição, do projeto de ensino, das relações entre professor e aluno, das formas de ensinar ou dos modelos de aprender. A avaliação de aprendizagem tem uma existência concreta e está em diálogo com todos os demais componentes do processo educativo, sendo por eles definida e os influenciando, concomitantemente. Os processos referentes à avaliação não podem ser entendidos apenas como instrumentos que fornecem resultados por meio de uma escala de notas ou de conceitos. Tais processos devem ser entendidos a partir da lógica dos processos de ensino-aprendizagem. Desse modo, avaliar é sempre um compromisso com a aprendizagem do aluno. Ou em outras palavras, “no espaço escolar, não deveria a atividade de avaliação ser construída, antes de tudo, como uma prática pedagógica a serviço das aprendizagens?” (HADJI, 2001, p. 9). Para entendermos o que significa avaliar, é necessário que se respondam as seguintes perguntas: Para que se ensina? Como se aprende? Em que contextos são realizados o ato de ensinar e o ato de aprender? Docência no Ensino Superior 48 Como criamos convicções sobre a avaliação? Por que nos pautamos em determinados modelos? Por que os validamos na prática cotidiana da sala de aula? De onde procedem as nossas crenças sobre o significado da avaliação da aprendizagem? Objetivamente, o que se quer perguntar é: Como construímos nossas representações sobre o ato de avaliar? Entendamos representações como as imagens mentais a que somos re- metidos quando pensamos sobre a avaliação e seus processos: imagens que povoam e desenham o nosso imaginário pedagógico. É importante que tenhamos clareza sobre os elementos que se fazem presentes na construção das nossas representações sobre a avaliação para que possamos aprender a lidar com eles. Como diz Hadji (2001), é necessário compreender para agir. Convicções sobre a avaliação: representações e concepções No tocante à avaliação, o desenho de nosso imaginário pedagógico se constitui a partir de nossas experiências como alunos que já fomos ou que ainda somos, como profissionais que praticam a avaliação a partir da nossa vivência social cotidiana. Como alunos, somos submetidos à lógica avaliativa de nossos professores. As concepções e representações de nossos professores em relação ao ato de avaliar determinam o processo de avaliação a que eles nos submetem. Se a lógica for a da avaliação-resultado, a importância recai sobre uma nota final, garantidora de uma classificação. Se a lógica for a da avaliação a serviço da aprendizagem, a importância recai sobre o desenvolvimento do processo, com as intervenções e adequações necessárias para a sua correção rumo ao sucesso. Em qualquer dos casos, tendemos a enxergar a avaliação a partir da histó- ria que construímos ao longo de nossas vidas. Avaliação de aprendizagem: representações e concepções 49 E, quando falamos da construção das representações, não aludimos – ex- clusivamente – à avaliação no sentido estrito da “realização de provas”, mas ao julgamento que vem antes disso. Além disso, é comum que os professores sejam influenciados por co- legas em relação ao desempenho de uma turma ou de alguns alunos, particularmente: – O Fulano está em sua turma neste ano? Nossa! Você vai sofrer um bocado. Ele é indisciplinado, desinteressado, não completa as tarefas, não estuda, parece que quer apenas o diploma... Muitas vezes, observações dessa natureza são suficientes para que o pro- fessor que ainda não conhece a turma se influencie e, antes até de ter contato com seus alunos, já tenha construído uma imagem sobre eles. A profecia autorrealizadora (OLIVEIRA, 2007) Acreditando ser fruto da sua experiência profissional, já no primeiro dia de aula, o professor se diz capaz de fazer previsões individuais para cada um de seus alunos. E como se estivesse munido de uma bola de cristal, determina quase sempre sem errar, o futuro escolar daquelas crianças. Começa aí uma das práticas mais perigosas – e mais comuns – que se desenvolvem na escola: a da chamada profecia autorrealizadora. Por meio do prognóstico do professor, a profecia se realizará sem que a criança possa intervir, pois o desejo do professor se manifestará no re- lacionamento desigual com seus alunos, de forma que seu julgamento inicial se caracterize no final do ano letivo. O fenômeno da profecia autorrealizadora foi revelado e estudado por dois pesquisadores norte-americanos, Robert Rosenthal e Lenore Jacob- son, em 1964, quando foi concluído que as expectativas do professor tem um efeito poderoso sobre o desempenho escolar de uma criança. Aos alunos considerados “capazes”, será oferecido maior atenção, maior oportunidade de participação, maiores estímulos. Os outros, os “incapa- zes”, desestimulados vão inevitavelmente participar cada vez menos das aulas, mostrando-se alheios ou passando a chamar a atenção por sua indisciplina ou falta de interesse. Docência no Ensino Superior 50 Originada pelos preconceitos do professor, a profecia, portanto, é an- terior ao contato com a criança. O meio social imputou imagens de um aluno idealizado e que o professor procura dentre alguns sinais historica- mente valorizados pela escola, tais como: os mais limpinhos, mais bem- vestidos, mais branquinhos... Todo esse conjunto de informações pautará o trabalho e o envolvimento individual do professor com seus alunos. Na verdade, as profecias autorrealizadoras reforçam a ideia de que os alunos tendem a nos dar como resposta o que esperamos deles. Sem que disso tenhamos clareza, favorecemos a produção do fracasso escolar por meio de um pré-julgamento destituído de qualquer análise ou acompanha- mento lógico. Tais profecias são elaboradas não apenas devido à influência que recebe- mos externamente: nós mesmos nos predispomos a atitudes preconceituo- sas quando julgamos nossos alunos pela forma como se vestem, pela classe social de que provêm ou pela forma como falam. Um professor pode, por exemplo, criar a imagem mental de que alunos carentes, vindos de famílias socialmente desfavorecidas, sem boa aparência ou sem boa condição material, não podem aprender bem. É a sinalização para o fracasso. Em relação a isso, Philippe Perrenoud (2000, p. 22) adverte que: O fracasso escolar não é a simples tradução “lógica” de desigualdades tão reais quanto naturais. Não se pode, pura e simplesmente,compará-lo a uma falta de cultura, de conhecimento ou de competências. Essa falta é sempre relativa a uma classificação, ela própria ligada a formas e a normas de excelência escolar, a programas, a níveis de exigência, a procedimentos de avaliação. No processo de construção de representações, o cognitivo – entendido como a “capacidade para aprender” – confunde-se com a produção das de- sigualdades e das diferenças existentes na sociedade. Via de regra, aquele que não aprende é o pobre, o excluído, o que não “se iguala” à maioria do grupo. Novamente é Perrenoud (2000, p. 22) que nos auxilia nessas reflexões quando diz que [...] a explicação dá um passo decisivo, quando se percebe que as diferenças e as desigualdades extraescolares – biológicas, psicológicas, econômicas, sociais e culturais Avaliação de aprendizagem: representações e concepções 51 – não se transformam em desigualdades de aprendizagem e de êxito escolar, a não ser ao sabor de um fundamento particular do sistema de ensino, de sua maneira de tratar as diferenças. Temos, portanto, que em si mesmas as diferenças e desigualdades não devem ser vistas como elementos de distinção cognitiva: será assim se o próprio sistema escolar e seus agentes fizerem com que isso efetivamen- te, ocorra. Perrenoud (1999) cita o que a socióloga Viviane Isambert-Jamati afirma sobre o aluno fracassado: “O aluno que fracassa é aquele que não adquiriu no prazo previsto os novos conhecimentos e as novas competências que a ins- tituição, conforme o programa, previa que ele adquirisse” (ISAMBERT-JAMATI apud PERRENOUD, 1999, p. 25). Voltamos, então, à ideia das profecias autorrealizadas: o professor pode produzir fracasso ou êxito dependendo do foco de seu olhar e das expectati- vas que elabora acerca de seus alunos. Um desdobramento dessas atitudes de pré-julgamento são os encami- nhamentos que a escola propõe aos alunos que não revelam o rendimento esperado. É possível que em determinadas situações esses encaminhamen- tos sejam necessários; mas, de maneira geral, o que ocorre é a inquestiona- bilidade da prática pedagógica, da compreensão do que é ensinar e do que é aprender. Não se discute o fato de que as intenções podem ser as melhores, mas não proporcionam os resultados almejados. Como pergunta Phili- ppe Perrenoud (2007, p. 73), “Por que intenções louváveis não operam os milagres esperados?”. O sucesso na aprendizagem precisa ser visto pela ótica da gestão peda- gógica, sem que descuidemos, no entanto, da dimensão antropológica, isto é: das relações que os sujeitos estabelecem na escola, seja a partir de grupos, das aulas e/ou das relações entre professor e aluno. Assim, olhando para o quadro descrito, fica claro que a avaliação do de- sempenho do aluno é muito mais do que aplicação de instrumentos, aferição de conteúdos e atribuição de notas. Partindo do principio de que os estudantes são seres distintos, que apre- sentam modelos particulares de aprendizagem e que percorrem caminhos Docência no Ensino Superior 52 individuais de construção do conhecimento, é oportuno dizer que a docência exige do professor muito mais do que o simples respeito às diferenças de seus alunos. Estas não podem ser vistas sob o prisma da tolerância ingênua. Vamos explicar melhor com as palavras de Perrenoud: As diferenças entre alunos? Não as respeito, considero-as”: essa fórmula pode chocar aqueles que confundem respeito às pessoas e não-intervenção. “Respeitar”, diz o dicionário [...], é “não atacar, considerar como digno de ser conservado, preservado; não destruir, não modificar”. O simples respeito às diferenças, por mais humano que seja, poderia levar aos mesmos impasses da desigualdade, da indiferença às diferenças, e transformá-los em desigualdade de aprendizagem e de êxito escolares. (PERRENOUD, 2000, p. 118) Abordagem da avaliação no contexto da aprendizagem Para entendermos onde se insere a avaliação no contexto da aprendiza- gem, vamos retomar o seguinte questionamento: “No espaço escolar, não deveria a atividade da avaliação ser construída, antes de tudo, como uma prática a serviço das aprendizagens?” (HADJI, 2001, p. 9). Trata-se de abordar a avaliação como a possibilidade de localizar o aluno no seu aprendizado; de fazer com que ele – não por recriminações e sim por meio de ferramentas de êxito – desenvolva-se, aprimorando cada vez mais o seu desempenho; ainda, de levá-lo a reconhecer seu próprio erro como uma forma de aprendizagem e de informação, medida capaz de direcionar o pro- cesso educativo para o sucesso. Esse posicionamento pode ser compreendido por muitos como um modelo ideal, difícil de ser atingido. Ainda que os professores se esforcem para direcionar o processo de avaliação nesse sentido, há um longo caminho a ser percorrido para o estabelecimento de uma verdadeira cultura da avalia- ção. Segundo Dolors Quinquer (2003, p. 15), “para incorporar novas concep- ções, é muito importante a influência que pode exercer a equipe educativa que avalia, assim como a ‘cultura’ criada na escola”. De fato, a tarefa não é fácil mesmo se consideramos os entraves impostos pelas convicções que se cristalizam, como se abordou na primeira parte deste texto: a forte presença das representações construídas ao longo da história Avaliação de aprendizagem: representações e concepções 53 pessoal e profissional dos professores e as interferências do próprio sistema educacional dificultam a aplicação de uma cultura da avaliação em prol da aprendizagem. Há, ainda, fortes marcas da avaliação tradicional que se realiza como um confronto, como exercício de poder, como instrumento de seleção, consti- tuindo-se em um entrave no processo de construção de saberes e competên- cias dos alunos. Para Charles Hadji (2001, p. 15), “a avaliação em um contexto de ensino tem o objetivo legítimo de contribuir para o êxito do ensino, isto é, para a construção de saberes e competências pelos alunos”. Por outro lado, sobre a avaliação como prática de poder, Juan Miguel Batalloso (2003, p. 49) reforça que “as práticas rotineiras da avaliação não são unicamente ações orientadas por conceitos de valor, mas, sobretudo, atos fundamentados no uso e abuso do poder”. Porém, considerar a avaliação como parte do processo de aprendiza- gem não pode se reduzir a um ideal perseguido por alguns: é preciso buscar uma prática avaliativa que, efetivamente, encaminhe-se para o sucesso da aprendizagem. Nesse sentido, faz-se necessária uma revisão que passe por um debate mais amplo, refletindo sobre: O que ensinar? Como selecionar os conteúdos de ensino? Como buscar possibilidades de constatar o que os alunos não estão aprendendo satisfatoriamente? Como enfrentar os descaminhos que se estabelecem no percurso de ensinar e aprender? São questões que se dirigem, sobretudo, para o caráter multidimensional da avaliação, isto é, para suas relações com os demais elementos que consti- tuem o processo educativo – do projeto educacional à prática da sala de aula. Pensar e realizar a avaliação comprometida com a aprendizagem implica rever e compreender as próprias convicções, buscar novos modelos explica- tivos e, principalmente, ter disposição para a mudança da prática – tanto pe- Docência no Ensino Superior 54 dagógica quanto avaliativa. A cultura da avaliação requer, portanto, o conhe- cimento e a compreensão de diferentes lógicas de avaliação por parte dos docentes. A seguir, apresentamos uma dessas lógicas, sustentada na ideia da avaliação normativa. Avaliação normativa: características da avaliação classificatória Antes de iniciar a discussão sobre a avaliação normativa, é importante que se analise o quadro abaixo e se observe o ensino e suas dimensões: ENSINO COMO, QUANDO E O QUE AVALIAR COMO ENSINAR O QUE ENSINAR QUANDO ENSINAR As formas como se estabelecem as relações entre o que, como e quando avaliar são definidas pelas concepções que se tem sobre a avaliação. Para
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