Buscar

A_metafisica_de_Aristoteles_(versao_corrigida)

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 17 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 17 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 17 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

2
FILÓSOFOS NA SALA DE AULA
VOL. 3
PARA LER
ARISTÓTELES 
HEGEL
TOMÁS DE AQUINO
WITTGENSTEIN
HUME
HEIDDEGER
Vinícius de Figueiredo (org.) 
Marco Zingano, Alfredo Storck, Fernão de Oliveira Salles, 
Paulo Roberto de Araújo, João Vergílio Cuter, André Duarte
Berlsndis & Vérfecchia Editores
A metafísica de Aristóteles
Marco Zingano
O que há no mundo? O que constitui sua mobília? Para responder a estas perguntas é preciso investigar o que faz com que algo seja — legítima ou ilegitimamente — considerado um ser. A amplitude da questão nos deixa de início perplexos: o ponto, uma casa, os animais, Deus, o verde desta parede, o tamanho de um lápis, a coragem de um homem: tudo isso, em algum sentido, é; mas como seria possível um estudo que investigasse todas essas coisas sob a tutela de uma mesma disciplina?
A reflexão filosófica grega teve como eixo central a busca de uma resposta a esta questão. As disputas filosóficas da Antiguidade giraram em torno da questão do ser: ti to on, "o que é aquilo que é?". Platão (428/7-348/7 a.C.) descreveu tais controvérsias como semelhantes a uma gigantomachia (Sofista 246a), a batalha decisiva entre os gigantes e os deuses que decide, na mitologia grega, o destino do universo. De um lado estavam aqueles para os quais o que existe são os corpos; do outro, os que, como Platão, ponderavam que a realidade é antes o abstrato, não o que é materialmente objeto de percepção pelos sentidos, mas sim o que é apreendido pelo intelecto. Aristóteles não é o primeiro filósofo grego a ter-se preocupado com tal questão, mas é certamente quem, ao sistematizar as respostas apresentadas e ao investigar as dificuldades em que cada uma caía, aprofundou de modo inigualável este tipo de estudo, de modo a delimitar, ao proceder assim, uma ciência própria, um campo distinto de argumentação, a saber, o que nós hoje chamamos de metafísica. Aliás, o nome da disciplina, "metafísica", se origina do próprio título que recebeu a obra de Aristóteles, Metafísica.1
A filosofia foi sempre uma arena de debates e não é de se esperar encontrar um consenso definitivo a respeito de seus temas. Aristóteles não desconhecia este aspecto querelante do discurso filosófico, mas esperava, com seus argumentos, pôr ordem nos debates no intuito de os dirigir a um caminho seguro, livre das aporias2 e dificuldades em que se enredaram os seus predecessores. Sua ideia central era que a questão pelo ser somente seria domesticada se fosse substituída por uma nova questão: o que é a substância. No quadro geral das propostas metafísicas, Aristóteles é assim o primeiro a propor uma doutrina da substância como teoria geral do ser, e talvez seja o pensador mais firme na defesa de que a substância é a noção central nas incessantes disputas sobre o que é o ser. Em uma passagem em que claramente apresenta sua posição, escrita quando se preparava a apresentar os traços centrais da disciplina metafísica, Aristóteles escreve:
"Pois bem, o que no passado e no presente foi sempre objeto de investigação e sempre objeto de dificuldades, o que é o ser, é isto: o que é a substância (quanto a isto, uns dizem que há uma única, outros que há mais do que uma, e uns dizem que é em número limitado, outros que é em número ilimitado); por esta razão nós devemos' investigar sobretudo, primeira e, por assim dizer, unicamente o que é o ser concebido deste modo."3
O que é, porém, a substancial Em que medida tal noção poderia solucionar os impasses que cercavam a investigação sobre o ser? Responder a estas questões é apresentar em suas grandes linhas o que é a filosofia aristotélica em seu lance metafísico.
Um surgimento laborioso
Aristóteles nasceu em 384/3 a.C. na cidade de Estagira, então já sob influência da Macedônia; ele falecerá aos 62 anos, em 322 a.C., em Caleis, na ilha de Eubeia, após ter fugido de Atenas por medo das represálias contra as pessoas que eram tidas por simpáticas à causa macedônia, logo após a morte de Alexandre, ocorrida em 323. Aristóteles foi para Atenas bem jovem, por volta de 367, para ingressar na escola de Platão, a Academia, onde ficou por cerca de vinte anos. Quando da morte de Platão, em 347, Aristóteles vai para Assos, em companhia de alguns outros companheiros da Academia; três anos depois, vai para a cidade de Mitilene, na ilha de Lesbos, onde conhece o jovem Teofrasto, que o sucederá na direção de sua escola. É durante esse período que realiza muitas das observações que encontramos em seus tratados de biologia. De lá, em 342, vai para a corte macedônia em Pela, onde atua como preceptor de Alexandre por cerca de três anos. Terminado o preceptorado, passa alguns anos em sua cidade natal, após os quais, por volta de 335, retorna enfim a Atenas e abre uma escola, o Liceu, onde leciona por treze anos, até refugiar-se em Caleis, cidade em que falece no ano seguinte.
Os anos iniciais do filósofo Aristóteles foram com Platão, mas logo ele demonstra uma atitude filosófica contrária ao platonismo. Para Platão, a variedade de ser era reduzida a uma perspectiva de graus de realidade. De um lado, havia as Ideias, paradigmas naturais, apreendidos unicamente por intelecto, que eram pura, eterna e cristalinamente o ser (a Ideia de homem era, para Platão, o que é mesmo ser homem, de modo eterno, perfeito e cristalino); de outro, a meio caminho entre o que é puro ser e o não-ser absoluto, havia as coisas sensíveis, que tinham um grau atenuado de realidade, comparável à sombra de algo (no exemplo dado, são os homens concretos, Sócrates, Platão, cada um sendo um homem, mas nenhum sendo precisamente o que é ser homem, nem pura nem eternamente). A cena inaugural do aristotelismo, a tese em torno da qual vai construir-se a reflexão aristotélica do ser - que ele jamais abandonará -, inscreve-se de imediato no antípoda da perspectiva platônica dos graus de ser: para Aristóteles, ao contrário, o ser é multívoco, ele se dá originalmente em diferentes tipos, irredutíveis uns aos outros ou a algo fora deles. Esta multivocidade do ser é sua refração irrevogável; não há, para Aristóteles, como reduzir tudo o que é a um tipo só, repondo a diversidade sob a forma de uma diferença quantitativa de realidade (isto é, a doutrina platônica dos graus de ser, em uma chave claramente reducionista). O ser se diz de muitos modos, como repete Aristóteles ao longo de sua carreira, e esta dispersão originária leva ao fracasso toda tentativa de reduzir os tipos de ser a um único modo, por mais que possa variar em graus.
O gesto filosófico que inaugura a atitude aristoté​lica é a afirmação da pluralidade dos tipos de ser. No lugar de um ser, Aristóteles coloca diferentes gêneros supremos de ser, que, repito, são irredutíveis uns aos outros ou a algo fora deles. Há um detalhe importan​te aqui. Aristóteles nunca diz que o ser é ou existe de muitos modos (uma tal afirmação aparecerá somente mais tarde, em um escrito de seu discípulo Teofrasto); ele escreve sempre que o ser se diz de muitos modos. A refração do ser se opera mediante sua enunciação, no que Aristóteles chama de "figuras da predicação", ta schêmata tês katêgorias, e que nós chamamos hoje sim​plesmente de "categorias" (observe-se que, na expressão de Aristóteles, o termo katêgoria refere-se à predicação). A dispersão originária do ser só pode ser apreendida mediante as formas predicativas (ou categoriais) em que se reflete. Listar, então, as figuras da predicação ou categorias segundo Aristóteles, equivale a apresentar os gêneros supremos do ser.
Quais são estas categorias? Em duas passagens, uma no tratado chamado ele próprio de Categorias e outra em um texto redigido muito provavelmente no final de seu período na Academia, os Tópicos, Aristóteles fornece uma lista de dez categorias: a substância, a qualidade, a quantidade, a relação, o onde, o quando, a posição, o estado, o agir e o sofrer. Os exemplos que fornece não eliminam as dúvidas quanto às últimas categorias, a res​peito das quais não se tem uma ideia muito clara do que quer Aristóteles. A substância é homem, cavalo; qualida​de:branco, erudito; quantidade: de dois ou três côvados; relação: duplo, metade, maior; onde: no Liceu, no mercado; quando: ontem, no ano passado; posição: reclinado, sen​tado; estado: com sapatos, armado; agir: cortar, queimar; sofrer: ser cortado, ser queimado. Surpreende ver, em uma lista que deveria nos fornecer os gêneros supremos do ser, os tipos últimos aos quais podemos recorrer, exemplos como reclinado ou sentado para a "posição" ou, ainda mais surpreendente, com sapatos ou armado para o "estado". A lista pareceu exótica demais, pelo menos quanto aos seus últimos membros. Na verdade, estes últimos exemplos são bem mais significativos do que parecem à primeira vista. A razão é que caracteri​zam propriedades da língua grega que se refletem nas estruturas predicativas, e era isso o que Aristóteles que​ria captar. O verbo grego tem três vozes: ativa, passiva e média. A voz ativa está representada pela categoria de agir: cortar e queimar. Por sua vez, ser cortado e ser queimado, exemplos da categoria de sofrer, estão na voz passiva. A voz média indica uma ação que o sujeito faz na qual ele mesmo é o objeto da ação ou que a ação é feita em proveito próprio (o que corresponde à nossa estrutura pronominal, como em contentar-se com pouco). A categoria da posição corresponde a esta voz, pois seus exemplos estão na voz média (reclinado e sentado: em grego, anakeitai e kathêtai). Ainda, o verbo grego possui três aspectos: um pontual (o aoristo), outro inceptivo (o radical do presente) e um terceiro permansivo (o radical do perfeito). Ora, os exemplos da categoria do estado estão justamente no perfeito: com sapatos (em grego: hupodedetai) e armado (em grego: hôplistai). Estes dois últimos exemplos, que parecem ser os mais recalcitrantes, ilustram a preocupação de Aristóteles em apreender as estruturas predicativas e gramaticais pelas quais o que é, é dito (ainda que de modo marcadamente paroquial, pois intimamente ligado ao uso do grego clássico).
Não é, contudo, necessário defender a lista intei​ra; de fato, Aristóteles parece disposto a corrigi-la. Já nos Segundos analíticos I 22, ele enumera somente oito categorias, deixando de lado posição e estado; na Metafísica IV 7, Aristóteles reúne o agir com o sofrer, fazendo delas uma só rubrica. Na mesma obra, no livro VII 4, Aristóteles enumera seis categorias: substância, qualidade, quantidade, onde, quando, aparentemente agrupando todas as demais sob a rubrica agora de movimento. Um pouco antes, em VI 2, ele havia citado as mesmas cinco primeiras e acrescentado "e outra, se houver" (1026a36). Um ponto, entretanto, Aristóteles não está disposto a revisar: para ele, qualquer que seja o número de categorias, o fato é que esse número é limitado. Não é possível, na perspectiva aristotélica, afirmar que há um número ilimitado de categorias, como se o ser se perdesse em incontáveis tipos. Para Aristóteles, embora possamos discordar acerca do número das categorias, devemos todos concordar que este número é determinado.
Há outro detalhe, de notável importância para o destino da metafísica. Quando está escrevendo tex​tos como as Categorias, os Tópicos ou a Ética eudêmia, Aristóteles não tem como reunir esta diversidade de tipos ou gêneros supremos de ser sob um mesmo pris​ma, de modo que ele não pode fazer apelo a uma ciên​cia que trate de tudo o que é enquanto é.4 Tudo a que o jovem Aristóteles pode apelar, ao propor o lance inicial de sua reflexão sob a forma da multivocidade do ser, é uma tese da dependência natural de todas as outras categorias à categoria da substância. Valendo-me do vocabulário das Categorias, toda qualidade está em uma substância, assim como as outras categorias estão em alguma substância; se a substância for destruída, tudo o mais será destruído, mas cada categoria permanece irre​dutível às outras, inclusive à da substância. Mais ainda, o espectro da dispersão ronda igualmente cada uma das categorias. A qualidade, por exemplo, é dita de quatro modos: disposição, capacidade natural, afecção ou forma, cada um destes modos figurando à parte inteira como qualidade. O mesmo ocorre no interior da categoria da substância. Aristóteles distingue entre os indivíduos, que ele então nomeia de substâncias primeiras, e o que é dito destas substâncias primeiras, mas que não estão nele (como ocorreria com as outras categorias). Por exemplo, do indivíduo Sócrates é dito que ele é homem; homem é, então, substância segunda. Das substâncias segundas, umas são mais próximas dos indivíduos (as espécies: no caso, homem), outras são mais distantes (os gêneros: no caso, animal), e a substância segunda é tanto mais substância quanto mais próxima estiver da substância primeira.
Tudo isso parece estranho e não se vê com cla​reza em que sentido "branco" está no indivíduo, enquanto "homem" não é inerente a ele, mas é dito dele. Contudo, há um elemento ainda mais estranho. Quando Aristóteles examina a categoria da substância, no tratado das Categorias, ele nos diz que toda substân​cia deve responder aos seguintes critérios: (i) nenhuma substância é inerente a outra coisa (3a7-32); (ii) tudo o que é dito dela o é univocamente (3a33-b9); (iii) a subs​tância designa um algo determinado (3bl0-23); (iv) não há contrário da substância (3b24-32); (v) a substância não é suscetível de graus (3b33-4a9) e (vi) ela pode receber contrários (4al0-bl9). Há muito o que dizer sobre cada ponto, pois, à exceção de (iv), todos eles serão reformulados na Metafísica, e não raras vezes drasticamente.5 Importa-me agora examinar somente (vi). A característica (vi) é dita ser por excelência a marca da substância, a saber, o fato de admitir contrários. O que é surpreendente nesta afirmação é que, se é isto o próprio da substância, então não é possível haver uma substância de outra natureza a não ser física ou corpórea. A razão é que uma substância de outra natureza não pode ser senão, no aristotelismo, uma substância que não sofre nenhuma mudança, que é eternamente o que ela é, e isto implica que uma tal substância não pode receber contrários. Se pudesse receber contrários, então ela sofreria mudanças; se sofre mudanças, então é de mesma natureza que a substância sensível. Uma substância de outra natureza está assim excluída do campo da substancialidade tal como ele é instituído pelo tratado das Categorias.
Limitar o campo da substancialidade à substância apta a receber contrários não é em si nada grave, desde que não se aceitem, ao mesmo tempo, substâncias de outra natureza. Ora, ao que tudo indica, em nenhum momento de sua carreira intelectual Aristóteles deixou de afirmar a existência de substâncias de outra nature​za. Ao contrário, uma peça importante de seu sistema consiste justamente na afirmação forte que há substân​cia outra que a sensível, sem o que, para Aristóteles, não é possível garantir a existência eterna e ordenada do universo. O sentimento de estranheza que muitos comentadores tiveram, em diversas épocas, a respeito do tratado das Categorias talvez se deva em boa parte ao fato de esse tratado propor uma análise regional, contrariamente ao que propõe a Metafísica, que, como se sabe, propõe uma ciência única do ser, que investiga tudo o que é enquanto é. Por que Aristóteles limitou-se a uma investigação regional? Provavelmente porque, no período em que escreveu as Categorias, Aristóteles não tinha como fundar uma doutrina geral do ser. Em outros termos: ao Aristóteles desta época estava inter​ditado todo sonho de uma metafísica. Resta-lhe como consolo mapear cada uma das diferentes regiões do ser. O tratado das Categorias realiza um destes mapeamen​tos ao examinar o domínio da substância sensível.
É tentador pensar que a mesma situação ocorre com o livro XII da Metafísica. Como se sabe, o livro Metafísica contém partes que foram redigidas independentemente (a mais fácil de ser reconhecida é o livro V, um tipo de glossário dos diversos sentidos de alguns termos de rele​vância filosófica). Para muitos comentadores, o livro XII é mais um tratado redigido à parte, a saber, um tratadosobre a natureza da substância não sensível. Também é comumente aceito pela maioria dos comentadores que o livro XII foi redigido no início da carreira filosófica de Aristóteles, possivelmente em época próxima à da redação do tratado das Categorias. Levando tudo isso em conta, não é sem interesse observar que, depois de ter dito no livro XII que há três tipos de substância - a móvel, que por sua vez se divide em corruptível (os seres sublunares) e incorruptível (os corpos celestes), e a imóvel, isto é, a que não sofre nenhuma mudança -, Aristóteles escreve que:
"a física é a ciência daquelas [da substância móvel corruptível e da móvel incorruptível], pois ambas têm movimento, enquanto uma outra ciência investiga esta [a substância imóvel], se nenhum princípio for comum a eles."6
Se nenhum principio for comum a eles: o condicional está presente, mas a resposta bem poderia ser que não há nenhum princípio que lhes seja comum. Se for assim, então o livro XII faria como que contrapeso às Categorias: enquanto um faz análise regional do sensível, o outro se isola na investigação parcelar do não sensível. Enquanto as Categorias investigariam as condições de existência da substância sensível, o atual livro XII da Metafísica mapearia o domínio das substâncias de outra natureza, os primeiros motores, um e outro procedendo à parte no tocante aos princípios do ser, pois em nenhum haveria a perspectiva de um princípio comum a ambos.
Parece-me que, efetivamente, o livro XII da Metafísica compartilha com as Categorias este ambiente de separa​ção, mas há um detalhe que os distingue, pois o livro XII da Metafísica tem, por assim dizer, uma pretensão a mais. Em XII 4, Aristóteles indica que todos os seres têm os mesmos princípios por analogia. Não se trata ainda, porém, de princípios comuns às substâncias sensíveis e às não sensíveis. Como Aristóteles volta a enfatizar em XII 5, o exame limita-se à unidade de princípio entre as substâncias sensíveis. E isto de dois modos. Em primeiro lugar, os princípios das substâncias e os das outras cate​gorias não são os mesmos, a não ser por analogia, como é o caso para o relativo e para a qualidade, que são os exemplos dados em 5 1071a30 (uma relação de analo​gia exige identidade somente da relação e não dos itens que constituem a relação: o que A é para B, C é para D – podendo A, B, C e D serem muito distintos entre si). Em segundo lugar, e mais importante, isso vale também no interior das substâncias. Esse ponto é claro no que toca à forma, à matéria e à privação, os três princípios mencionados em XII 4 que seriam comuns a todas as substâncias sensíveis somente por analogia (por exem​plo, a matéria seria para um homem o seu corpo, para uma casa os tijolos, as telhas, o cimento). A eles, porém, Aristóteles acrescenta um quarto, o princípio movente ou o primeiro motor, to prôton kinoun, mencionado um pouco antes em XII 3. Por enquanto, se trata do primei​ro motor no domínio sensível: neste movimento (por exemplo, o movimento deste livro), o primeiro motor é meu braço que o empurra. A seu respeito, no entanto, uma relação se abre com o domínio não sensível, pois, como é dito expressamente em XII 4 1070b34-35, à parte de todos os primeiros motores sensíveis, encontra-se o Primeiro Motor de tudo, e tudo abarca agora ambos os domínios, pois Aristóteles está fazendo referência ao Primeiro Motor no sentido da substância não sensível que preside o inteiro universo. O Primeiro Motor condi​ciona a posição dos outros motores imóveis; todos eles, por sua vez, delimitam o lugar e a direção em que rodam eternamente as esferas celestes; o movimento das esferas condiciona as mudanças climáticas principais do mundo sublunar7 e estas, por sua vez, dão o ritmo para os outros movimentos. Daqui Aristóteles pode afirmar que tudo está suspenso ao Primeiro Motor, na famosa frase de XII 7 1072bl3-14: a um tal princípio estão suspensos o univer​so e a natureza, e isto inclui novamente sensíveis e não sensíveis. O livro XII da Metafísica introduz, assim, uma ordem entre todas as substâncias, as sensíveis e as não sensíveis, o que conecta o todo, uma perspectiva ausente nas Categorias.
Há, portanto, um todo, e não uma cacofonia; porém, a solução de continuidade entre um domínio e outro impede o estabelecimento expresso de princípios comuns, ainda que tudo esteja suspenso ao Primeiro Motor. Embora conectados, ambos os domínios per​manecem isolados. Aristóteles permanece sem uma metafísica, isto é, permanece sem uma doutrina comum a tudo o que é; tudo o que pode fazer são investigações regionais, estudos parcelares, como o do tratado das Categorias sobre a substância sensível e o do livro XII da Metafísica sobre a substância não sensível. É isto, porém, sustentável? Seguramente não, e há mesmo sinais que Aristóteles estava consciente deste fracasso já ao redigir o livro XII da Metafísica. Com efeito, o quarto princípio presente nas substâncias sensíveis, o princípio movente, vale também para a substância não sensível, pois é ela o princípio de movimento para todas as coisas. A unidade analógica da forma, matéria e privação no domínio sensível vê-se assim estendida inevitavelmente à substância de outra natureza quando é introduzido o princípio do movimento. De modo ainda mais grave, o preço de aceitar a separação entre os domínios é que um domínio seguiria o princípio de não contradição,8 ou o de terceiro excluído, enquanto o outro poderia recusá-los. Ora, em sentido inverso, o livro IV da Metafísica, lá onde Aristóteles enfim anuncia uma metafísica ou doutrina geral do ser, pretende estu​dar "os elementos e os princípios dos seres", e por isso ele entende "os elementos e os princípios de todos os seres". Por esta razão ele se dirige às "primeiras causas do ser enquanto tal", os quais devem valer igualmente - e necessariamente - para a substância sensível e para a não sensível. Entre estes princípios se encontram justamente o princípio de não contradição, o princípio mais seguro de todo ser, e o do terceiro excluído. O que falta ao livro XII é precisamente esta perspectiva unifi​cadora da substancialidade, a despeito de sua busca de conexão do mundo; na verdade, o livro XII da Metafísica parece compartilhar ainda com o tratado das Categorias o insulamento do ser, a despeito de postular uma cone​xão entre as partes. Em ambos é questão de substância, e muita, mas sempre de modo regional: em um, há o exame do sensível; no outro, há o exame do não sen​sível. Em nenhum há a perspectiva de uma metafísica, a ciência do ser enquanto tal que anuncia com toda pompa o livro IV da Metafísica.
O que se passou entre a época da redação do trata​do das Categorias e do livro XII de nossa atual Metafísica e o momento em que Aristóteles anuncia com entusias​mo no livro IV da mesma Metafísica a existência de uma ciência do ser enquanto tal? O que ocorreu é que, nesse meio tempo, Aristóteles descobriu um modo de unifi​car a dispersão originária do ser sem voltar ao padrão platônico dos graus de ser. Ao conseguir uma unidade do ser que preserve sua refração nas categorias ou gêne​ros supremos e irredutíveis do ser, Aristóteles sente-se novamente à vontade para propor uma ciência única do ser, a metafísica de que antes não dispunha. E o que é extraordinário nesta história é que Aristóteles descobriu esse modo de unificar o ser em um lugar inusitado. Para vermos isso, será preciso voltar aos estudos aristotélicos sobre a ética.
Nos textos de Aristóteles que a tradição nos legou, encontram-se três tratados sobre a ética: a Grande moral,a Ética eudêmia e a Ética nicomaquéia. Há ainda muita controvérsia sobre a ordem destes textos, tanto mais que há três livros comuns entre a Ética eudêmia e a Ética nicomaqueia. Não posso examinar em detalhes esta questão aqui, mas há um consenso que a Grande moral (assim chamada em função do tamanho excepcional de seus dois livros) partilha em grande parte do ambiente conceituai da Ética eudêmia, que muito provavelmente foi escrita antes da Ética nicomaqueia, que é assim o texto maduro dasreflexões de Aristóteles sobre a moral. O que me importa assinalar aqui é que estes dois tra​tados têm ambos um exame do fenômeno humano da amizade, para o qual apresentam soluções bem dis​tintas. Em ambos, porém, todos os casos de amizade são referidos a três tipos básicos, a amizade segundo a virtude, segundo o prazer e segundo a utilidade. Não há, entre eles, um gênero comum do qual seriam as espécies (como animal é o gênero comum para homem, lobo e ganso), pois eles não têm uma definição comum. A questão que Aristóteles se coloca então é a seguinte: são todos estes tipos de fato amizade, ou somente um deles é realmente amizade, os outros não sendo pro​priamente amizade, mas algum outro fenômeno similar que ocorre entre os homens? A resposta de Aristóteles é que todos os três tipos são de fato amizade, sem que se possa reduzi-los a um dentre eles ou a algo comum exterior a todos os três. Para poder pensar estes três tipos que são distintos e que ao mesmo tempo são todos amizade, Aristóteles concebe1, na Ética eudêmia, uma relação nova, que ele nomeia de relação focal (em grego: pros hen legesthai, "ser dito com referência a um único"), segundo a qual há uma amizade primeira, a amizade segundo a virtude, à qual as outras duas fazem referência, sem por isso, no entanto, se reduzirem a ela. Todas são amizade, cada uma ao seu modo, mas há uma amizade primeira à qual toda outra deve fazer referência em sua definição mesma. Deste modo, tendo rejeitado a existência de uma definição comum a todos os tipos de amizade (o que corresponderia a um gênero da amiza​de), Aristóteles, com sua nova relação focal, evita simul​taneamente duas dificuldades: (i) o de negar a natureza de amizade aos dois tipos distintos da amizade segundo a virtude e (ii) o de tomar cada modo de amizade como inteiramente distinto dos dois outros.
A solução para o problema da amizade, na Ética eudêmia, consistia, assim, em colocar a amizade segun​do a virtude em uma posição privilegiada de modo que, em suas próprias definições, os dois outros tipos viessem a fazer referência a esta amizade (que passava, então, a funcionar como amizade primeira). O proble​ma, no entanto, é que não se vê por que, em suas pró​prias definições, os dois outros tipos de amizade devam fazer referência à amizade segundo a virtude, erigindo-a assim em amizade primeira. O próprio Aristóteles deu-se conta do fracasso de sua tentativa, pois, quando volta a examinar o problema da unidade dos três tipos de amizade na Ética nicomaqueia, ele não mais faz apelo à noção de unidade focal, mas propõe uma noção bem conhecida, a de semelhança, para agrupar os três tipos na mesma classe de amizade: os três tipos assemelham-se uns aos outros, ainda que a amizade segundo a virtude volte a ter uma posição privilegia​da, desta vez em função da completude de seu objeto. Aristóteles abandona, assim, a noção de relação focal para explicar os três tipos de amizade. No entanto, esta noção de relação focal não será abandonada por intei​ro. Com efeito, podemos ver que, em certo momento de sua carreira intelectual, Aristóteles passa a aplicar a noção de relação focal ao problema da unidade dos gêneros supremos do ser. Aqui esta noção mostrará toda a sua fecundidade e graças a ela Aristóteles se sen​tirá finalmente capaz de propor uma ciência única do ser, a metafísica do ser enquanto tal, que reconhece, ao mesmo tempo, a clivagem originária do ser em suas diferentes e irredutíveis categorias.
Uma ciência sem nome?
Quando aplicada ao ser, a relação focal permiti​rá domesticar a dispersão originária das categorias. Nenhuma categoria, incluindo a substância, é o ser inteiro, mas todas elas fazem referência a uma dentre elas, a substância, que passa então a funcionar como ponto focal de referência. A qualidade é qualidade de uma substância; a quantidade é quantidade de uma substância; a relação é uma relação entre substâncias e assim por diante. Na definição de cada categoria há uma remissão à substância. Sem reduzir os outros gêneros supremos a um só tipo, mantendo, por conseguinte, a refração originária do ser, Aristóteles dispõe agora de um mecanismo para referir tudo o mais a uma única categoria, a da substância. Quando, no livro IV da Metafísica, Aristóteles anuncia enfim a consecução da ciência metafísica, ele imediatamente escreve que:
"O ser se diz de muitos modos, mas se diz em relação a um termo único c única natureza, e não de modo equí​voco; ao contrário, assim como todo são é dito em relação à saúde, um por conservar a saúde, outro por a produzir, outro por ser sintoma da saúde, outro porque é capaz de a receber, e todo médico é dito com referência ã medicina (pois um é dito médico por possuir a medicina, outro por​que é nascido favoravelmente a ela, outro porque é obra da medicina, assim como os outros termos que concebemos ditos de modo similar a estes), assim também o ser se diz de muitos modos, mas todos eles em relação a um único princípio: uns são ditos ser porque são substâncias, outros porque são afecções da substância, outros porque são um caminho para a substância, ou destruições, privações, qualidades, causas produtivas ou geradoras para a substância ou do que é dito relativamente da substância, ou são negações de uma delas ou da substância; por esta razão dizemos inclusive que o não ser é não ser." 9
No livro VII da Metafísica, que o próprio Aristóteles designa como o "tratado da substância",10 Aristóteles volta a mostrar, no primeiro capítulo, ao retomar as lições do livro IV, que a cisão do ser nas diversas categorias está agora domesticada pela relação focal, de sorte que:
"É evidente que cada uma das categorias é mediante a substância, de modo que a substância é o ser primeiro [to prôtôs on] e não um ser, mas o ser sem outra qualificação."11
A expressão cunhada por Aristóteles aqui, to prôtôs on, certamente não é gratuita. Platão havia proposto como divisa de sua doutrina dos graus de realidade a expressão to ontôs on, "o ser real", para caracterizar suas ideias; Aristóteles opõe a este mote o seu próprio lema, "o ser primeiro", com o qual caracteriza a substância no interior das outras categorias. Na medida em que a subs​tância passa a ocupar este lugar privilegiado, Aristóteles reivindica consequentemente a possibilidade de estabe​lecer uma ciência única do ser sob a forma de uma dou​trina focal da substância. Com efeito, ele escreve que:
"É possível investigar com base em uma ciência única não somente o que e dito de um termo único, mas também o que é dito relativamente a uma única natureza, pois em certo sentido estes últimos também se dizem de um único termo." 12
O que é dito de um termo único constitui a ciência genérica do ser aos moldes da empreitada platônica; o que é dito relativamente a uma única natureza é a nova proposta aristotélica de uma ciência não redutivista de tudo o que é enquanto é. Aristóteles passou assim um certo momento de sua carreira intelectual sem metafísica, pois não via como domesticar a retração originária do ser sem a reduzir a um só tipo; agora, ele vê novamente como possível uma ciência de tudo o que é, pois ela é capaz de preservar a difração do ser graças à relação focal. Convém fazer uma ressalva aqui. A substância ocupa o lugar privilegiado e é, portanto, o ser primeiro, mas as outras categorias não se perfilam em ordem e sim se organizam em torno dela (daí a felicidade da expressão relação focal para traduzir o termo grego pros hen legesthai). Não há uma categoria segunda, depois uma terceira, depois uma quarta e assim até a última, que seria o último vestígio de ser; todas as outras categorias estão em um mesmo plano, pois remetem à substância estabelecendo uma mesma relação de centralidade focal. A relação focal aplicada ao ser por Aristóteles não é uma relação travestida de ordem ou graus; ela é uma relação metafisicamente inovadora que almeja substituir toda pirâmide do ser por uma noção apta a preservar a singularidade da refração origi​nária do ser em seus gêneros supremos ou categorias.
No entanto, nemtudo está resolvido. Por certo, a metafísica agora é possível, na medida em que a ciên​cia do ser é transmutada em doutrina da substância. Porém, como havíamos visto, a refração do ser invadia também cada uma das categorias, que se viam todas dispersas em diferentes tipos. No caso da substância, que se torna central agora, o tratado das Categorias distinguia entre substâncias primeiras (os indivíduos aptos a receber os contrários, isto é: as substâncias corpóreas) e substâncias segundas (a espécie e o gênero, que são ditos da primeira). Mais importante ainda, o tratado das Categorias confinava-se ao domínio da substância sensível, ao passo que o livro XII da Metafísica, escrito muito possivelmente em época próxima, abordava a substância de outra natureza (que Aristóteles chama de Primeiro Motor). A metafísica foi tornada possível pela domesticação focal da refração originária do ser, o que unifica focalmente as categorias, mas só se torna viável se houver um meio de unificar também, internamente à categoria da substância, os modos de ser substancial.
Tenho falado até agora sobre a possibilidade da metafísica, mas é tempo já de observar que o nome mesmo desta disciplina - metafísica - não está presente em Aristóteles. Reza a história que o termo metafísica nasceu de modo acidental: tendo sido perdidas, as obras de Aristóteles teriam sido "redescobertas" e editadas no séc. I a.C. por um erudito, Andrônico de Rodes, que as compilou em uma edição similar à nossa atual. Andrônico, após ter publicado os tratados de física (sempre segundo esta história, que remonta à Antiguidade), deparou-se com certo número de tratados que giravam sobre temas seme​lhantes e os reuniu em um livro que, por falta de nome, intitulou de tá meta tá phusika, "livros após a física": deste modo teria surgido o termo metafísica, hoje para nós tão natural para designar certo tipo de investigação conceituai. É desconcertante, como dizia Kant, que um termo tão apropriado tenha nascido de modo tão fortuito. Talvez, no entanto, esta história não esteja bem contada e o termo não seja de origem bibliotecária tão gratuita. Contudo, o que é importante observar aqui é que o próprio Aristóteles não usa tal termo. Quando se refere não aos tratados isolada​mente (quando utiliza vários nomes: tratado da substância, como vimos, para o livro VII, tratado das diversas acepções para o livro V, e assim por diante), mas ao que está fazendo ao longo destes tratados, Aristóteles se vale basicamente de duas expressões: filosofia primeira ou ciência do ser enquanto tal" Problemas de nome raramente são sem importância; em nosso caso, por trás desta dupla denominação há um verdadeiro problema filosófico. Com ,efeito, a filosofia primeira designa a ciência que, por contraste com a física, ou filosofia segunda, tem por objeto a substância imóvel, a qual não pode receber contrários ou, nos termos aristotélicos precisos, o Primeiro Motor, puro ato,14 causa última de todo o universo. Ela tem assim por objeto o ser no sen​tido eminente do termo: o ser que é eterno, que não sofre nenhuma mudança, em forte contraste com as substân​cias sensíveis, que são perecíveis e sofrem continuamente mudanças. Por outro lado, por ciência do ser enquanto tal Aristóteles concebe o estudo de tudo o que é, incluindo substâncias sensíveis e não sensíveis. Não é claro, então, qual é o objeto desta ciência agora tornada possível: o ser no sentido eminente do termo, isto é, o ser eterno, mas que é somente um dos tipos de ser (a saber, a substância não sensível), ou bem o ser enquanto .é, ou seja, tudo o que é na medida em que é, incluindo substâncias sensí​veis e não sensíveis.
Nos termos modernos, trata-se de saber se a metafí​sica aristotélica é uma teologia (ciência do ser supremo, isto é, o Deus aristotélico) ou uma ontologia (ciência do ser enquanto tal, ou seja: de tudo o que é: Deus, homem, verde, pôr-do-sol, ponto, piolho, sarna e assim por diante). Viu-se aqui uma tensão no pensamento de Aristóteles que ele não conseguiu resolver: embora seu projeto visasse a elaborar uma ciência de tudo o que é, incluindo substâncias sensíveis e não sensíveis, seu sistema estava finalmente marcado por influências (provavelmente platônicas) tais que o resultado é uma ciência particular, a ciência do ser no sentido eminente, ou teologia. Esta tensão seria constitutiva do próprio projeto metafísico aristotélico, de modo a marcá-lo defi​nitivamente. Werner Jaeger (1888-1961), um importante estudioso da filosofia aristotélica, teve um papel decisivo a este respeito no início do século 20: com base em suas análises, passou-se a ver em Aristóteles um sistema tenso, que lentamente evoluiu de uma metafísica platônica a uma perspectiva empírica por assim dizer isenta de metafísica, mas da qual não consegue desvencilhar-se inteiramente. Outras interpretações foram propostas, e não é evidente tomar posição por uma ou por outra, pois todas exploraram pontos de tensão e conflito no interior do sistema aristotélico. No tocante à metafísica, todas tinham um ponto em comum: o reconhecimento de uma tensão entre o aspecto teológico e o aspecto ontológico no coração mesmo do projeto metafísico aristotélico. Foi abandonada assim de modo definitivo a visão até então predominante de um Aristóteles que era monolítico, que propunha um sistema que ou bem ficava em pé integral​mente, ou ruía por inteiro.
Ciência parasita
As relações entre filosofia primeira (ou teologia) e ontologia (ou ciência do ser enquanto tal) estão apresen​tadas em uma passagem da Metafísica, que cito a seguir. A passagem não é clara e por isso mesmo permite diferentes interpretações. Antes, porém, de analisá-la, convém lem​brar que Aristóteles divide o campo do ser e, consequen​temente, o das ciências teóricas em três domínios: o da substância sensível, o da substância não sensível ou imóvel e o da substância imóvel, mas separável somente mental​mente, aos quais correspondem, respectivamente, a ciên​cia física, a teologia e a matemática. O objeto matemático, por não ter existência independente (pois o que existe não são círculos, mas objetos circulares), pode ser deixado de lado; o problema consiste, portanto, em estabelecer uma relação entre a substância imóvel e a sensível e, consequen​temente, entre a teologia e a física. Eis o texto:
"Se, então, não existir nenhuma outra substância além das que são naturalmente constituídas, a física será a filo​sofia, primeira; se houver uma substância imóvel, ela será substância primeira e a ciência que trata dela será a filoso​fia primeira, e será universal porque primeira." 15
Para Aristóteles, é preciso postular a existência da substância imóvel para que seja garantida a eternidade ordenada do movimento das substâncias sensíveis. Ele não duvida que haja uma substância imóvel que fun​cione como garantia final do movimento; ele escreve mesmo que o universo inteiro está suspenso a esta subs​tância. O que surpreende é que ele diz que a ciência que trata da substância imóvel é universal porque, primeira. Alguém poderia esperar que dissesse que é primeira porque universal, visto que todo universal é primeiro. No entanto, o que diz é o contrário: é universal porque primeira. Uma interpretação que ainda hoje é frequentemente proposta consiste em dizer que, dado que a substância imóvel (o Primeiro Motor) é ato puro, sem qualquer nódoa de imperfeição ou movimento, ele é o paradigma ou modo cristalino de ser, impondo assim um padrão com base no qual podemos aferir a maior ou menor realidade das outras substâncias em função de sua proximidade ou distância da substância imóvel. Esta interpretação é tentadora, mas tem um defeito que, a meu ver, a inviabiliza: ela supõe um sucedâneo aristotélico da teoria platônica dos graus de ser sob a forma de um ser puro, integral, que estaria no topo da pirâmide, que desceria de modo gradual até o ínfimo ser. Além do mais, tal solução vai de encontro a um princípio que, primeiramente formulado no tratado das Categorias, Aristóteles não parece disposto a abandonar, a saber,que nenhuma substância é mais substância do que qualquer outra.
Penso que se deva propor outra interpretação: a subs​tância imóvel é primeira, a substância sensível é segunda e, consequentemente, a ciência que trata da substância imóvel é filosofia primeira e a que trata da substância sensível é filosofia segunda. O fundamento desta ordem é uma relação de prioridade baseada em uma característica extrínseca do que tem maior ou menor honra ou que é objeto maior ou menor de louvor. Este é, aliás, o modo mais tênue de superioridade que Aristóteles reconhece, o qual não implica um viés ontológico, pois se acomoda aos seus itens sem introduzir uma relação de geração ou de dependência entre eles quanto à existência, embora não deixe de estabelecer uma relação de anterioridade. Pelo menos é isto o que nos diz a versão que fornece o livro XI desta passagem, que aparece inicialmente em VI 1:
"É evidente, portanto, que há três gêneros de ciências teóricas: física, matemática, teologia. O gênero teórico é melhor do que o prático e o produtivo, e dos gêneros teóri​cos a ciência que é nomeada por último [isto é: a teologia] é melhor do que as outras, pois ela concerne ao que é mais digno de louvor entre os entes e cada ciência é dita superior ou inferior em função de seu objeto próprio." 16
Há duas vantagens ao se sugerir esta solução. Primeiro: não há mais resquícios da doutrina de graus de realidade embutida na consecução proposta por Aristóteles entre as ciências a partir da ordem entre seus objetos próprios. Segundo: podemos levar a sério a pos​sibilidade aventada por Aristóteles segundo a qual, se não houver uma substância de outra natureza, então a física seria a filosofia primeira. De fato, para Aristóteles, há fortes razões para se postular a existência de uma subs​tância imóvel (pois sem ela ele não pensava ser possível a existência eterna e ordenada do movimento). Contudo, se for possível garantir a existência eterna e ordenada do movimento sem fazer apelo a uma substância de outra natureza, então o campo inteiro da substancialidade se restringe ao dos corpos e das substâncias sensíveis. O postulado de uma substância eterna, imóvel, ato puro, o Deus de Aristóteles não é uma admissão gratuita, mas uma necessidade, aos seus olhos, para salvaguardar o movimento ordenado; se, porém, não for preciso apelar a esta substância, Aristóteles parece seriamente disposto a abandonar sua teologia em proveito da simples física.
Uma relação tênue de prioridade, porém, pode eli​minar os riscos de dispersão que do ser se infiltravam no interior da própria categoria de substância? É pouco provável. De fato, Aristóteles sabe que é preciso algo mais, e parte importante do que se propõe a fazer em seu livro Metafísica consiste justamente em preencher esta brecha. Partindo do exame da substância sensível (os corpos), a respeito dos quais todos estão de acordo que são substâncias (inclusive os platônicos, ainda que decla​rem que os corpos têm realidade atenuada), Aristóteles distingue entre a forma de um corpo e sua matéria.17 Para uma substância sensível, nenhuma forma pode exis​tir separadamente; ela é separável somente pela razão, jamais quanto à existência. No entanto, a forma, assim destacada, é elevada à posição de substância primeira, em claro contraste com a matéria, pois a definição de um objeto, segundo a Metafísica, é uma fórmula que exprime o que é propriamente este objeto, ou seja, que enuncia sua forma, e nesta fórmula não figuram elementos materiais. Por sua vez, a matéria de uma substância sensível pode ser substância unicamente em potência (não havendo em Aristóteles uma doutrina da matéria pura). A forma dos corpos sensíveis ganha assim primazia metafísica e uma certa espessura ontológica (embora Aristóteles evite sempre todo dualismo graças à sua perspectiva hilemorfista18). Ora, se houver uma substância não sensível, ela o será aos moldes da forma, com a diferença, crucial, que não será somente separável, mas será propriamente separada, isto é, existirá independentemente de qualquer matéria (e por isso mesmo será incapaz de sofrer qualquer mudança, dado que a matéria é o lugar da mudança). No que con​cerne ao vocabulário de que se serve, Aristóteles se refere à forma de uma substância sensível como chôriston, "separável", mas à da substância não sensível como kechôrismenê, "separada". 19 Mediante esta estratégia, Aristóteles estabelece um terreno comum entre substância sensível e substância não sensível: o domínio da forma, que, sempre imanente a um corpo no domínio natural, se revela puro ato na teologia, e isto sob os auspícios de uma ontologia que não sofre nenhuma ruptura.20
Que lição tirar de tudo isso? A meu ver, a principal lição é que, aos olhos de Aristóteles, à ciência que se estabe​lece como filosofia primeira cabe como apêndice o ônus de examinar as condições de substancialidade e, deste modo, apoiar racionalmente suas reivindicações. Se a teologia for filosofia primeira, então caberá a ela, além de estudar seus princípios próprios, também a tarefa de justificar a extensão do campo da substancialidade para além do domínio das substâncias sensíveis e corpóreas. Se a física for filosofia primeira, então caberá desta vez a ela, além .do estudo dos corpos que têm em si mesmos a origem de movimento e repouso segundo seus princípios próprios, também a tarefa de justificar a restrição do campo da substancialidade unicamente às substâncias sensíveis e corpó​reas. Nem uma nem outra evitaria assim a tarefa metafísica de vasculhar o campo do ser e estabelecer as condições e critérios da substância. E tanto em uma como em outra a investigação metafísica surge como um elemento parasita, um apêndice necessário para legitimar as reivindicações que uma dada ciência teórica faz para se alçar ao posto de filosofia primeira com base na notoriedade de seu obje​to. Com efeito, após dizer que a teologia como filosofia primeira é universal porque primeira em VI l, Aristóteles acrescenta o seguinte:
"Caberá igualmente a esta disciplina investigar sobre o ser enquanto tal, sobre o que é e sobre suas propriedades enquanto ser." 21
Moral da história: a metafísica é ineludível, incontornável, mas i sempre um apêndice, um tipo de investiga​ção parasita que se acopla à ciência que se alça à posição primeira na tentativa de legitimar suas reivindicações.
O domínio do metafísico
Investigação parasita, acoplada à ciência que se alça à filosofia primeira, o que vislumbra o metafísico quan​do vasculha com seu olhar seu domínio apendicular? Aqui também vemos um contraste forte entre Platão e Aristóteles. Pela dialética platônica, o filósofo alça-se ao topo da pirâmide do real e de lá vislumbra a inteira planície do ser: ele conhece cada coisa porque conhece tudo o que é ao conhecer o ser na sua expressão mais pura e concentrada. Para Aristóteles, o que vê o filósofo é uma paisagem muito depurada, um arcabouço vazio que precisa ainda ser preenchido pelas cores do mundo. Uma doutrina geral do ser enquanto tal não nos diz nada sobre o que é precisamente cada coisa. Para isso, precisa​mos nos voltar a cada ciência particular e às suas defini​ções próprias. A metafísica limita-se a esclarecer os traços mais gerais que têm de ser satisfeitos por tudo aquilo que é, sem ser capaz de dizer o que cada coisa é.
Cabe, com efeito, à metafísica mostrar que o prin​cípio de não contradição é o princípio mais seguro de todos: nada do que é pode ser e não ser sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo. No entanto, a não ser raramente (em argumentos por absurdo), o princípio de não contradição não entra como premissa própria de uma demonstração (ainda que funcione como regra para toda dedução). Igualmente, o metafísico mostra que tudo o que é, é uno: ser e unidade são transcategoriais. Isso, porém, nada diz da natureza precisa de cada coisa. Ainda, ele mostra que, quando se diz algo de algo, há sempre um substrato do qual se predica ou bem uma propriedade acidental, em um registro de heterogeneidade, ou uma propriedade essencial, sob a formade uma certa relação de identidade. O que sabe o metafísico? O metafísico sabe o que pode ser a mobília do mundo. Ele transita na fronteira, lá onde é preciso delimitar o que é ser e o que não pode figurar como ente. O metafísico vive nesta zona tênue; é por certo o fecho da abóbada, mas por isso mesmo o metafísico habita uma região etérea onde o ar é rarefeito.
No livro III da Metafísica, Aristóteles lista uma série de dificuldades e aporias com as quais tem de lidar o metafísico. É real o mais geral ou o mais particular? Os princípios valem para tudo ou são parcelares e regio​nais? O que é elemento de algo é igualmente princípio dessa coisa? A linha tênue que traça o metafísico é repleta de controvérsias, a partir das quais algo entra para o domínio genuíno, abrigando-se sob uma categoria ou gênero supremo, ou, inversamente, é expelido desse domínio. O filósofo, porém, não ocupa o território que ele próprio delimita. Quem ocupa este território é ou bem o teólogo (se existir uma substância não sensível), ou bem o cientista natural (se houver somente substân​cias sensíveis). Estes últimos unicamente nos fornecem a mobília do mundo, as cores da vida, na medida em que investigam os princípios próprios de seus objetos. Porém, eles só ocupam um território repleto de objetos porque tal território foi demarcado pelo metafísico: nisto reside simultaneamente a grandeza e o caráter tênue da tarefa metafísica segundo Aristóteles.
Indicação de leituras
Quando se estuda um filósofo, vale sempre a mesma regra: ler os textos próprios, penetrando deste modo no contínuo diálogo que a humanidade tece lentamente com sua própria história. No entanto, é sempre útil valer-se de comentadores, e isso é particularmente verdadeiro no caso de Aristóteles: mesmo Avicena, que viveu entre 980 e 1037 de nossa era e foi ele próprio um filósofo, confessou ter lido tantas vezes a Metafísica que chegou a decorá-la, mas só passou a compreendê-la quando leu o comentário de Al-Farabi, filósofo árabe de uma geração anterior a ele (infelizmente, o comentário de Al-Farabi foi perdido).
A tradução completa das obras de Aristóteles está sendo publicada em língua portuguesa na Biblioteca de Autores Clássicos (Lisboa: Casa da Moeda), sob a direção de Antônio Pedro Mesquita. Espera-se que em breve se tenha a primeira tradução direta do grego da Metafísica. Algumas traduções diretas do grego estão disponíveis, entre as quais as dos Cadernos de Tradução da Unicamp, onde Lucas Angioni tem publicado uma série delas. Teve início recentemente a tradução comentada das obras de Aristóteles: no início de 2008 foi editada a Ética nicomaqueia 1.13 - III.8, sob meus cuidados (Aristóteles - Tratado da virtude moral. São Paulo: Odysseus, 2008). Quanto aos comentários, o célebre livro de Werner Jaeger, Aristóteles - fundamentos para a história de seu desenvolvimento, publicado em 1923, permanece ainda uma referência fundamental (há uma edição mexicana: Aristóteles: base para Ia historia de su desarrollo intelectu​al. México: Fondo de Cultura Econômica, 2000), bem como o comentário geral que David Ross publicou neste mesmo ano, sob o título simples de Aristóteles (há uma edição portuguesa: Aristóteles. Lisboa: Dom Quixote, 1987). Muita coisa foi publicada desde então, e muita coisa boa, das quais convém citar o estudo feito por Ingmar Düring em 1966 e, em uma versão abreviada, em 1968, sob o título sempre simples de Aristóteles, por conta da amplitude do estudo (há uma tradução espanhola: Aristóteles — exposición y interpretación de su pensamiento. México: Unam, 1990). Em particular sobre a Metafísica, organizei uma coletânea de artigos que marcaram os últimos cem anos de debates acadêmicos sob o título de Sobre a metafísica de Aristóteles - textos • selecionados (São Paulo: Odysseus, 2005). No ano de 2008 foi publicada a tese de Lucas Angioni sobre o livro VII da Metafísica (As noções aristotélicas de substância e essência. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008), que decerto alimentará por bom tempo as discussões acadêmicas sobre o assunto. Um estudo sobre o tempo (mais próprio à física, mas que trata também de temas tipicamente metafísicos) foi publicado por Fernando Puente (Os sentidos do tempo em Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2001). Há também muitas histórias da filosofia, algumas das quais especializadas na história da filosofia grega: todas são úteis. Cito em particular a História da filosofia antiga de G. Reale (5 vols. São Paulo: Loyola, 1993-95) e o livro de Marilena Chauí: Filosofia (São Paulo: Ática, 2000). Ganha-se muito ao consultar estas obras, mas sempre cum grano salis, pois a volta às fontes nunca deve ser substituída por uma história da filosofia, por melhor que ela seja.
NOTAS:
1.
Por conta mesmo desta origem comum, vou convencionalmente escrever "Metafísica" quando me referir à obra que porta este título "metafísica" quando me refiro à disciplina que tomou corpo a partir desta obra. Nas citações da Metafísica de Aristóteles, fornecerei sempre a numeração da paginação da edição Bekker, publicada na primeira metade do século 19, que funciona hoje como referência universal para todas as traduções e citações por ter sido a primeira edição crítica das obras de Aristóteles.
2.
Ver Glossário: aporia.
3. Metafísica VII 1028b2-7. Todas as traduções de trechos aqui apresentados são do autor do capítulo.
4. Introduzo aqui o bem conhecido vocabulário aristotélico reduplicativo: uma ciência de tudo o que é enquanto é. Esta reduplicação significa que a metafísica não está preocupada em investigar, por exemplo, o homem a título de certo tipo de animal (um bípede implume capaz de falar), pois isto é objeto da biologia, mas somente sob a consideração de ser algo ou existir de certo modo. A particularidade de sua existência em relação aos demais entes não é alvo da metafísica, mas somente a atribuição a ele de alguma entidade ou existência.
5. Sucintamente: (i) o critério de inerência nas Categorias apoia-se na distinção entre ser dito de e estar em, que será abandonado depois por ser uma distinção sem fundamento natural; (ü) Aristóteles intro​duzirá posteriormente a distinção entre predicação essencial e aci​dental, a propriedade de transitividade valendo para a primeira pelo fato de ela envolver um certo tipo de identidade; (iii) a noção de algo determinado indica, no tratado das Categorias, exclusivamente os indivíduos, mas ela será reavaliada e descolada da de indivíduo, pois, na Metafísica, a forma também é algo determinado, e a forma não é um indivíduo; (v) nas Categorias, a espécie é mais substância que o gênero por estar mais próxima do indivíduo; na Metafísica, todo discurso de graus de ser desaparecerá, sendo substituído pela distinção de ato e potência.
6. XII l 1069a36-b2.
7. No sistema aristotélico, há uma distinção importante entre o mundo sublunar, isto é, nosso mundo, cuja matéria é composta em última instância, segundo Aristóteles, de terra, água, ar e fogo, e o mundo dos corpos celestes, dito supralunar, cujos corpos são constituídos de uma única matéria, o éter. Enquanto os corpos formados por água, terra, ar e fogo são todos passíveis de deslocamento no espaço, crescimento, alteração qualitativa e geração e corrupção (apresentam, portanto, todas as formas de mudança), os corpos constituídos de éter sofrem unicamente a mudança de lugar, e esta é ainda a mudança mais perfeita, pois é circular, e o movimento circular é considerado o deslocamento perfeito, visto que o ponto de partida e o de chegada são o mesmo.
8. Ver Glossário: princípio de não contradição; princípio do ter​ceiro excluído.
9. Metafísica IV 2 1003a33-bl0.
10 Na Metafísica VII12 1037b10, Aristóteles refere-se a este livro pelo
título de "tratado da substância"; mais adiante, em X 2 1053018, o
denomina de "tratado da substância e do ser", que pode ser entendi​
do também como "tratado da substância, isto é, do ser".
11. VII l 1028a29-31.
12. Metafísica IV 2 1003bl2-15.
13. Aristótelesusa uma única vez, no livro VI l da Metafísica, o termo teologia, que designa a mesma ciência ali caracterizada como filosofia primeira (a expressão ocorre uma segunda vez no livro XI 7, mas este capítulo é justamente um tipo de resumo ou reapresentação de VI 1). Em duas outras obras (Do cm I 8 277b10 e Do movimento dos animais 6 700b9), ele usa a expressão filosofia primeira com a intenção de se referir em particular ao que está sendo tratado no livro XII da Metafísica. Por outro lado, a expressão ciência do ser enquanto tal é empregada nos livros IV 1-2 e VI l (bem como em XI 3 e 7, que resumem respectivamente IV 1-2 e VI 1). 
14. 
Ver Glossário: ato / potência.
15.
VI 1 1026ª27-31.
16.
Metafísica XI 7 1064b1-6.
17.
A forma de um corpo é o que faz com que ele seja uma determinada coisa, por exemplo: homem e não cavalo, ao passo que a matéria individualiza cada indivíduo no interior de uma mesma espécie (por exemplo, a coloração da pele dos cavalos nos permite distinguir um cavalo dos outros).
18.
O termo provém do grego e significa que toda substância sensível é um composto de matéria (hulê, em grego) e forma (eidos ou morphê).
19.
Não é, aliás, a única mudança de vocabulário. A forma da substância sensível é dita eidos, enquanto o Primeiro Motor nunca é referido como eidos, mas sim como energeia, "ato puro", que é sinônimo de entelecheia, por vezes simplesmente transliterado em "enteléqueia" e que designa o que se revela completo ou realizado. Esta variação terminológica nem sempre é rígida (certas formas de substâncias sensíveis, como a alma dos seres vivos, são caracterizadas explicitamente como entdecheiaí), mas tem raízes em uma tese ontológica. Eidos designa duas coisas: (a) a forma das substâncias sensíveis, mas também (b) a espécie ou tipo (como as espécies naturais: o homem, o cedro e assim por diante). A título de espécie, eidos está inextricavelmente envolvido com. elemen​tos materiais, pois a definição de uma espécie animal, por exemplo, envolve a menção de certo número de funções e de suas respectivas partes orgânicas que a realizam, uma espécie podendo distinguir-se de outra não por realizar funções diferentes, mas pelos órgãos pelos quais realizam as mesma funções (como sabiás e curiós). No entanto, para justamente encontrar uni terreno comum entre a substância sensível e a substância não sensível, Aristóteles precisou, na Metafísica, excluir da forma (de uma substância sensível) toda referência à matéria; deste modo, o estudo da substância sensível prepara o caminho ao estudo da substância não sensível, como relembra Aristóteles no início de Metafísica VII 17. Contudo, uma tal exclusão não se mostra viável do ponto de vista da realização da forma nas espécies naturais. Este problema, que está na base das tensões que vão se gerar entre a metafísica e a biologia de Aristóteles, permite-nos ver por que Aristóteles é especialmente cauteloso em sua terminologia aqui.
20.
Neste sentido, é importante insistir na cesura conceituai que há entre o tratado das Categorias e o livro Metafísica. Costuma-se apresentar a doutrina aristotélica com base no vocabulário das Categorias: a substân​cia primeira seria o indivíduo, a substância segunda seria a espécie ou o gênero. Nas Categorias, convém ressaltar, vigora urna tese reducionista forte: tudo ou bem é inerente ao indivíduo (as outras categorias estão na substância primeira) ou é dito do indivíduo (á espécie e o gênero são ditos da substância primeira). Ora, a Metafísica introduz modificações consideráveis neste esquema. Em primeiro lugar, a distinção entre estar em e ser dito de desaparece; em seu lugar há a fórmula dizer algo de algo, que pode ser interpretada sob a forma de uma certa identidade (predicação essencial) ou de uma atribuição propriamente dita (predicação acidental). O gênero, por sua vez, é por inteiro expelido do campo da substancialidade: nenhum gênero pode ser substância. Além. disso, Aristóteles introduz a distinção entre matéria e forma na análise do composto (o indivíduo) de tal modo que doravante é a forma que é substância primeira, e não mais o indivíduo. As consequências destas modificações não podem ser analisadas em detalhe aqui, mas já fica suficientemente claro que a tese metafísica da Metafísica não entra na roupagem terminológica do tratado das Categorias.
21.
Metafísica VI l 1026a31-32. Nesta passagem, penso que o pri​meiro kai não está coordenado com os dois últimos (no que sigo a pontuação adotada por Jaeger): o ponto não é que caberá a esta disciplina investigar (a) o ser enquanto tal, (b) o que é e (c) quais são suas propriedades, mas sim que caberá igualmente a esta disciplina (além de seus temas próprios) investigar sobre o ser enquanto tal, e investigar sobre o ser enquanto tal equivale a investigar (a) o que é e (b) quais são suas propriedades.

Continue navegando