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3INT - PIAUÍ - O vírus soberano

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O vírus soberano 
DONATELLA DI CESARE 
 
Scanner térmico nos aeroportos, controles sobre o território, quarentena para os possíveis 
infectados e, em seguida, máscaras, medidas preventivas, lavagem frequente das mãos… 
Será o suficiente? O medo da contaminação se torna palpável. Seria melhor evitar lugares 
públicos, trancar-se no espaço da intimidade doméstica, onde o temível coronavírus, o 
inimigo invisível, que tem um nome tão soberano, dificilmente conseguiria penetrar. 
 
Algumas pessoas argumentam que sejam atávicas as pulsões que levam a erguer barreiras, 
a construir muros, que sejam naturais tanto o medo do estrangeiro, isto é, a xenofobia, 
quanto o medo de tudo o que está do lado de fora, ou seja, a exofobia, tão peculiar à época 
da globalização. Mais um passo adiante, e acaba-se também por considerar natural o 
racismo – uma tese que circula aqui e ali, sem ser estancada por algumas simples 
objeções. E o racismo é realmente um vírus poderosíssimo. Mas a pulsão securitária seria, 
de fato, completamente natural, e a política nada teria a ver com isso? 
 
Nos debates sobre a democracia, discute-se como defendê-la, reformá-la, melhorá-la, sem 
colocar em discussão nem suas fronteiras nem, muito menos, o vínculo que a mantém 
unida em tais fronteiras: a fobia do contágio, o medo do outro, o terror por aquilo que lhe 
é exterior. Esquece-se que existem diferentes modelos, até mesmo opostos, de 
democracia. O nosso está cada vez mais distante do modelo grego, ao qual também 
gostamos de nos referir. Hoje é impossível ignorar os gravíssimos limites da pólis: a 
exclusão das mulheres da vida pública, a desumanização dos escravos. No entanto, para 
os cidadãos gregos, o modelo político implicava envolvimento e participação. 
 
Ao contrário, é o modelo da não exposição que se impõe na modernidade, a partir da 
democracia dos Estados Unidos, isto é, o modo ocidental e ocidentalizado que irá, mais 
tarde, tomar conta de tudo. Pessoas, corpos, opiniões devem poder existir, mover-se e 
expressar-se, sem serem tocados, sem serem inibidos, forçados e interditos por uma 
autoridade externa. Até que isso não seja realmente algo a se evitar. Esse modelo negativo 
é um sistema de imunidade que vai além da política e se estende ao governo das vidas 
humanas em seus múltiplos aspectos. É um sistema de direitos vistos como garantias e 
seguranças. A liberdade também é entendida negativamente, ou seja, não no cerne da 
expansão e da criação, mas sim no da salvaguarda e da proteção. Se ao cidadão grego 
interessava a partilha do poder público, ao cidadão da democracia imunitária interessa, 
antes de tudo, sua própria segurança, desfrutada no nicho privado e gentilmente concedida 
pela autoridade política. Por isso, garantia e liberdade se confundem. Esse é, talvez, o 
mais grave limite do liberalismo. 
 
À medida que esse modelo se impôs, aumentaram as exigências e as solicitações de 
imunidade. O noli me tangere, “não me toques”, é a tácita palavra de ordem que inspira 
e guia a batalha pelos direitos, na qual se acredita ver o rosto da civilização e do progresso. 
Cidadãs e cidadãos clamam por respeito à integridade, garantia de imunidade. 
 
Para entendermos isso basta pensarmos na mudança dos paradigmas político, moral e 
psíquico, para os quais o pater familias, o terrível pai patrão, agora parece desacreditado. 
Aposentando-se o pai, uma crise infinita de autoridade é desencadeada, o poder paternal 
é substituído pela tutela do Estado. Como se sabe, esse é um terreno fértil para 
reacionários e nostálgicos que, com suas elucubrações crepusculares, imaginam que 
podem restaurar o paradigma político da paternidade autoritária. Porém, o Estado 
moderno, essa máquina fria e impassível, não ama nem odeia. Simplesmente – como 
ensinou a biopolítica – faz viver e deixa morrer de forma administrativa. 
 
Do mesmo modo, para entendermos a complexidade do processo em curso e observarmos 
todos os resultados da imunização, é necessário dizer que, ao lado do intangível, isto é, o 
corpo do cidadão inscrito na democracia liberal, admite-se sem problemas o abandono de 
uma parte da humanidade à sua própria sorte. É a separação entre a esfera fechada do 
mundo ocidental, na qual foi se edificando o sistema do capital, da técnica, do conforto, 
e a hinterlândia1 sem fim da miséria, as periferias planetárias do desconforto e da 
desolação. Nestes locais vivem, ou melhor, sobrevivem os perdedores da globalização, e 
ali não chega o sistema de garantias e de segurança. Seria melhor, aliás, manter-se a uma 
distância segura dos contaminados, que poderiam ser fonte de doença e causa de contágio. 
Essa outra humanidade (mas serão realmente “humanos”?) estará inexoravelmente 
exposta a guerras, genocídios, fome, doenças, desnutrição, exploração sexual e novas 
formas de escravidão. 
 
Deseja-se inclusão e direitos para todos. O que acontece, no entanto, é exatamente o 
oposto: uma não inclusão sistemática. De um lado, os intangíveis; de outro, os 
contaminados. De um lado, os que têm garantias e são preservados; de outro, os que estão 
expostos. Imunização de alguns, exposição de outros. Assim funciona a democracia 
imunitária, de acordo com essa dupla via, tornada mais sólida e testada pela experiência 
totalitária: quanto mais se multiplicam os benefícios e garantias para quem está dentro, 
tanto mais cresce o abandono dos excluídos. 
 
Aos dispositivos de controle, proteção e prevenção em nosso mundo correspondem a 
desordem, a desolação, a ininterrupta produção de forças naturais no outro mundo. A 
vacinação infantil terá surtido efeitos no continente africano, os quais, porém, foram 
quase apagados por novas pandemias não controladas, como a da Aids. Ao corpo 
intangível da criança ocidental se opõem as hordas de crianças errantes às margens das 
metrópoles ou nas periferias do planeta. Se vão ao encontro de infecções selvagens, não 
serão elas próprias selvagens? No fundo, o cidadão imunizado acredita que o abandono 
dos excluídos está relacionado à incivilidade deles. 
 
É errado falar, como fazem muitos, de indiferença, porque significa reduzir a uma escolha 
moral do indivíduo o que é uma questão eminentemente política. Além disso, significa 
despolitizar a questão. E não se trata apenas de racismo – essa também é uma 
simplificação. Trata-se, sobretudo, de insensibilidade afetiva com muita razão de Estado. 
 
Não se deve, obviamente, acreditar que a imunização seja válida em todos os lugares e 
para todos. As dinâmicas do poder atuam dentro da democracia imunitária. Basta 
pensarmos no corpo das mulheres que correm o risco de abusos e de discriminações em 
todos os lugares, não só no local de trabalho. Assim, o corpo de um morador de rua detido 
em uma delegacia de polícia é tudo menos intangível. 
 
 
1
 Hinterlândia provém do alemão Hinterland, cujo significado é “terra de trás”. O termo é usado para 
designar as regiões de um país que ficam longe da costa e, por extensão, estão afastadas de um centro 
metropolitano. Pode também se referir a lugares menos desenvolvidos de um continente ou de um país. (N. 
do T.) 
No entanto, o importante é que o processo de imunização faz do corpo (e da mente) de 
cada cidadão uma fortaleza a ser protegida e isolada. As formas de aversão se 
multiplicam, o movimento de retrair-se se torna espontâneo, a fobia do contato é a norma. 
Exatamente porque está obcecado por ameaças, o cidadão da democracia imunitária não 
tem dificuldade em aceitar decretos de emergência, mesmo os muito graves, como os 
emitidos na Europa, onde nações inteiras estão agora sob prisão domiciliar. Em suma, é 
esse cidadão – e aqui reside a novidade – que se entrega como paciente a uma nova 
democracia médico-pastoral. 
 
Política e medicina, direito e saúde, áreas heterogêneas, se sobrepõem e se confundem na 
democracia imunitária. A ação política tende a assumir modalidade médica, enquanto a 
prática médica se torna politizada. Aqui tambémo nazismo fez escola – por mais 
escandaloso que seja lembrá-lo na democracia atual. Os exemplos seriam muito 
numerosos. Neste momento (meados de março), na Itália, país que se encontra em 
quarentena total, os que falam em público são quase exclusivamente médicos ou 
especialistas, especialmente virologistas, que tomam as decisões mais drásticas, como, 
por exemplo, proclamar uma “zona vermelha” ou “zona protegida”. Os políticos ficaram 
completamente em segundo plano. 
 
O cidadão-paciente, para quem a experiência do outro é no fundo vedada, é às vezes 
dominado por uma nostalgia obscura da massa. Ele quase que gostaria de mergulhar nela 
novamente para emancipar-se de toda a negatividade da fobia de contato. Isso acontece 
algumas vezes, no entanto, de maneira sutilmente regulamentada, em estádios ou em 
concertos. No mais, está acostumado a telas e filtros; com triste resignação aceita até 
mesmo os efeitos paradoxais da imunização, incluindo uma grande quantidade de doenças 
autoimunes que afetam o corpo hiperprotegido. 
 
A angústia do contato prevalece. Procura-se ficar fechado no espaço da intimidade 
doméstica. Esse espaço tranquilizador, repleto aqui e ali de telas através das quais se olha 
o mundo protegido, jamais pareceu tão indispensável. O cidadão-paciente, o insensível e 
imperturbável espectador do mundo, não responde mais ao regime político do qual faz 
parte, e não o desdenha, pelo contrário, ele busca o efeito narcótico da imunização. É 
consciente de viver seu lugar no mundo sob condição anestésico-democrática, enquanto 
em outros lugares a dor, a fome, a doença, o contágio são destino e fato. A disparidade 
entre imunes e contagiosos, protegidos e indefesos, que desafia toda ideia de justiça, 
nunca foi tão midiaticamente marcante, tão descaradamente óbvia. 
 
Entretanto, a anestesia do cidadão imunizado, a baixa intensidade de suas paixões 
políticas, também é sua maldição. Não apenas porque a narcose democrática favorece a 
visão impassível do espetáculo mundial, que provoca, quando muito, curiosidade. Mas, 
sobretudo, porque a insensibilidade afetiva se distancia de qualquer horizonte 
comunitário. Onde há imunização, não há comunidade. O filósofo Roberto Esposito 
explicou bem, limitando, no entanto, o vínculo da comunidade ao medo da morte. Hoje 
é, porém, um medo muito mais evasivo, amplo e incerto, que coagula de tempos em 
tempos a comunidade em um “nós” fantasmático. 
 
A vida parece sufocada no movimento por uma alternativa violenta: ou a ameaça de sofrer 
uma agressão ou a exigência de se defender, aliás, de prevenir o ataque. É a vida marcada 
por alarmes, protegida por sistemas antifurtos, portas blindadas e trancas de segurança, 
entrincheirada em condomínios cercados por muros e monitorados por câmeras, a vida 
fechada em bairros vigiados por seguranças e perscrutados até mesmo por rondas de 
moradores. 
 
O medo cresce e se torna o temor obscuro do outro, no qual, como se por mágica, 
confluem diferentes preocupações e ansiedades. Pode-se falar de uma cultura do medo 
cuidadosamente instilada, que favorece o consenso político. O que é, portanto, o medo 
que caracteriza as democracias imunitárias? Não se trata de uma emoção espontânea. É, 
antes, a sugestão difundida de um perigo onipresente, o hábito à ameaça, o sentido de 
uma extrema insegurança – até do terror. 
 
Ao contrário do que se acredita, a psicopolítica não é uma novidade de nossos tempos. Se 
o medo domina os ânimos, então com o medo é possível dominar os ânimos alheios. Foi 
Maquiavel quem transformou o medo em uma categoria política, percebendo sua estreita 
ligação com o poder. Para o príncipe, é uma arte difícil incuti-lo veladamente a fim de 
manter intacta a soberania; ele deve evitar que esse sentimento se transforme em ódio e 
leve o povo à revolta. 
 
O medo percorre toda a modernidade até o século XX, o século do terror total, geralmente 
confundido com a tirania, que ainda distingue amigos de inimigos. O poder totalitário, 
por outro lado, é o vínculo férreo que funde todos em um; não é um instrumento de 
governo, mas o próprio terror a governar, enquanto devora o povo, isto é, seu corpo, e já 
contém os germes da autodestruição. 
 
E hoje? O terror se tornou uma atmosfera. Exerce o seu influxo deixando que, em sua 
aparente ausência, cada cidadão seja uma presa do medo que o atinge, que corrói os laços 
sociais, provocando passividade do espírito e depressão. Desastres da globalização, 
catástrofes ecológicas, incerteza econômica e precariedade parecem fenômenos 
inevitáveis. Em nome das leis de ferro da economia, o Estado de segurança abandona o 
cidadão a alguns imprevistos, o expõe a alguns perigos, para se encarregar de outros; 
assim, deixa emergir uma hierarquia dos medos em que dispõe seu plano de segurança. 
O liberalismo é a ideologia desse abandono. A promessa de proteção é limitada e traz 
consigo a ameaça de abandono. 
 
Nunca se efetiva uma advertência direta, porque os riscos parecem vir do exterior. O 
Estado de segurança ameaça e tranquiliza, exalta o perigo e promete proteção – uma 
promessa que não pode cumprir. Porque a democracia pós-totalitária requer o medo e 
sobre ele se funda. Eis o círculo perverso. Suspense e tensão se alternam em uma vigília 
permanente, em uma insônia policial, que gera pesadelos, distrações e alucinações. 
 
A palavra-chave da governança neoliberal poderia ser fobocracia, do grego phóbos, 
medo, e krátos, poderoso, valoroso, forte. É o domínio do medo, o poder exercido por 
meio da emergência sistemática, do alarme prolongado. Difunde-se o medo, transmite-se 
ansiedade, fomenta-se ódio. Ameaças imaginárias são sugeridas, perigos reais 
amplificados. A confiança desaparece, a incerteza prevalece. O medo perde a direção e 
irrompe em pânico. 
 
Acendem-se e apagam-se surtos de apreensão coletiva, o estresse é induzido 
intermitentemente, sem nenhuma estratégia e sem propósitos claros, a não ser a clausura 
imunitária de uma comunidade passiva, colapsada e despolitizada. Assim, o “nós” 
fantasmático se submete temporariamente à emergência e aos seus decretos. 
É impossível não pensar aqui no “estado de exceção”, esse paradigma de governo por 
meio do qual se lê o mundo de hoje, como o delineou o filósofo Giorgio Agamben. O 
paradigma permanece válido. Por outro lado, é agora uma prática diária: os 
procedimentos democráticos são suspensos por disposições tomadas no cerne da 
emergência. Um decreto aqui, um decreto ali: assim, cidadãs e cidadãos acabam aceitando 
“medidas” que deveriam garantir sua segurança, mas que, de fato, limitam fortemente sua 
liberdade. 
 
No entanto, o “estado de exceção” parece um paradigma ainda muito associado ao século 
XX e não mais suficiente para explicar um mundo tão complexo quanto o atual, 
globalizado, onde o medo passou a desempenhar um papel político decisivo. A fobocracia 
caracteriza a soberania atual que – em sua versão discriminatória anti-imigrantes ou anti-
índios – não é uma mera reedição do antigo nacionalismo. É um fenômeno novo: alavanca 
o medo do outro, o alarme do que vem de fora, a ansiedade da precariedade, o desejo de 
ser imune a ele. Mas essa fobocracia tem uma presa provisória e, por sua vez, corre o 
risco de ser destituída e destronada, como acontece atualmente com o coronavírus, o vírus 
soberano que escapa de qualquer controle. 
 
Assim, o governante que brinca com o fogo do medo acaba sendo queimado por ele. 
Enquanto acredita que está administrando o ódio aos poucos, gerenciando devidamente o 
medo, tudo lhe escapa das mãos. O fobocrata, que gostaria de governar sob a bandeira do 
estado de exceção, é por sua vez governado por aquilo que se torna ingovernável. É essa 
inversão contínua que nos atinge, impressiona. 
 
A democracia imunitária é, portanto, uma forma inédita de governança, na qual a política, 
reduzida à administração, por um lado, se submete aos ditames da economia planetária, 
por outro, se autossuspende abdicando da ciência, que se imagina objetiva, verdadeira,decisiva. Como se a ciência fosse neutra e imparcial, como se ela não estivesse há muito 
tempo estritamente ligada à técnica, altamente tecnicizada. 
 
Falar de fobocracia não significa, de forma alguma, compartilhar a conspiração 
generalizada. Acreditar no complô significa aceitar uma visão quase mágica da história, 
na qual, com uma nítida divisão entre o bem e o mal, tudo pode ser levado a uma única 
causa. Quanto mais o cenário histórico parece complexo – como em nossos dias – tanto 
mais aumenta o desejo de encontrar uma explicação definitiva para fazer alavancar as 
emoções. Assim como circularam ideias sobre a chamada “substituição étnica” dos povos 
europeus por africanos, um mito forjado pelo ideólogo de extrema direita Alain de 
Benoist, do mesmo modo circulam agora lendas, fomentadas em grande parte pelo 
controverso cientista Shiva Ayyadurai, segundo as quais o coronavírus seria fruto de uma 
conspiração internacional para trazer vantagens às empresas farmacêuticas. 
 
Diante da complexidade, escolhe-se o atalho da simplificação. A conspiração é a pedra 
angular do populismo político. Isso pode ser exemplificado pela posição 
seminegacionista assumida inicialmente por Donald Trump, que depois se revelou 
patética e grotesca. Entre paranoia e suspeita, o conspiracionista não se limita a uma fuga 
para seus deslumbramentos e quimeras. Caso identifique as forças obscuras em cujas 
mãos o mundo caiu, é com a intenção de combatê-las; ele reivindica para si o papel da 
vítima, constrói o inimigo absoluto. Essa visão, que agora também está à esquerda, 
promove – é importante destacar – a política bélica da reação, favorece a direita radical, 
que, não por acaso, encontra-se no auge. 
Os Estados-nação, mesmo os das democracias populares, muitas vezes seduzidos pela 
soberania, não apenas ergueram muros, como também recorreram ao medo para governar 
em um cenário complexo como o da globalização. O coronavírus mostra todos os limites 
dessa governança, que se revela, de súbito, impotente. Isso não quer dizer que o regime 
fobocrático chegará ao fim. Muito pelo contrário. O medo continuará sendo a alavanca à 
qual, cada vez mais, a governança, desorientada e desalojada, irá recorrer. Hoje é 
impossível prever os efeitos sanitários, econômicos, políticos e sociais desse cenário 
devastador e sem precedentes criado pelo coronavírus. A pergunta que muitos se fazem 
é: o coronavírus vai acelerar a crise do capitalismo ou, ao contrário, será usado para uma 
restrição autoritária? 
 
A pandemia, como foi definida, não é uma questão planetária. As respostas das diferentes 
potências são frequentemente conflitantes. São evidentes até mesmo as tentativas de tirar 
proveito da situação atual. Que medida cruel cada nação está aplicando aos segmentos 
mais frágeis de sua sociedade? Com que critérios combate a crise sanitária? Potências que 
visam a hegemonia são, em média, jovens, acostumadas com a morte que pontualmente 
encontram na guerra, inclinadas a recorrer à crueldade, antes de tudo em relação a si 
mesmas, e geralmente a transferir para o exterior um mal-estar que nasce em sua 
intimidade. Estados Unidos, Rússia ou Irã, pelo menos até o momento, tentam administrar 
a emergência ocultando a realidade, contando com a injustiça de sua sociedade, antídoto 
natural contra os danos causados pelo coronavírus. A menos, é claro, que os efeitos da 
epidemia se tornem colossais e levem a uma mudança de atitude. No geral, a China, em 
sua reação ao coronavírus, pareceu uma nação semirrica, atenta à qualidade de vida – algo 
que uma década atrás seria impensável. Isso significa que o país renunciou ao primado 
global? 
 
Embora tenha se atrasado na reação à pandemia, com medidas iniciais ineficazes e depois 
soluções drásticas, a Itália decidiu proteger a saúde da população mesmo à custa da 
estabilidade econômica. O enorme esforço de uma quarentena coletiva, porém, corre o 
risco de ser frustrado se os outros países europeus não implementarem medidas iguais e 
permitirem que pessoas infectadas cheguem à Itália. Justamente esse vírus soberano, que 
circunda as fronteiras, revela todos os limites da soberania. Sem solidariedade entre os 
povos, para além de qualquer governança fobocrática, a catástrofe poderá ser enorme. 
 
Donatella Di Cesare é filósofa e professora na Universidade de Roma La Sapienza. É autora de 
Terror e Modernidade e Estrangeiros Residentes 
 
Tradução de Davi Pessoa 
 
Revista Piauí, Abril de 2020

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