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POMPEIA - Na presença do sentido

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j j oo ãã o o aa uu gg uu ss tt o o pp oo mm pp ee ii aa
b i lb i l ê ê t a tt a t ii t st s aa pp ii ee nn z az a
u mu m a a p ra a p r o x io x i mm a ça ç ã o fã o f e ne n o mo m e ne n o lo l ó g ió g i c ac a
a a qq uu ee ss tt õõ ee s e xs e x ii ss tt ee nn c ic i a ia i s s bb áá s is i cc aa ss
PAULUSPAULUS
Este livro é dedicado às pessoasEste livro é dedicado às pessoas
que estque estão ão abertas a um pensamentoabertas a um pensamento
que, sem moralismo, aproxima-seque, sem moralismo, aproxima-se
de valores; sem pieguice, trata dede valores; sem pieguice, trata de
sentimentos; sem leviandade, falasentimentos; sem leviandade, fala
de sonhos; sem ser carrancudo,de sonhos; sem ser carrancudo,
chama à responsabilidade.chama à responsabilidade.
Consideremos, por exemplo,Consideremos, por exemplo,
estas afirmações:estas afirmações:
Ser maduro é ser disponívelSer maduro é ser disponível
para servir; é poder conviver com opara servir; é poder conviver com o
que falta; é ser capaz de renúncia; éque falta; é ser capaz de renúncia; é
desenvolver paciência.desenvolver paciência.
E importante não negar E importante não negar a culpa ea culpa e
é importante tamé importante também o perdão.bém o perdão.
E preciso teimar em manter aE preciso teimar em manter a
capaccapacidade de sonhaidade de sonhar.r.
A vida humana necessita deA vida humana necessita de
significados.significados.
O ser mortal é para ser levado aO ser mortal é para ser levado a
sério em qualquer momento dasério em qualquer momento da
vida.vida.
A realidade não é definida tãoA realidade não é definida tão
objetivamente como objetivamente como parecparece.e.
A questão central da PsicoteraA questão central da Psicotera
pia, mesmo com psicóticos, é lidarpia, mesmo com psicóticos, é lidar
com os significados e com a reintecom os significados e com a reinte
gração gração do sentido da viddo sentido da vida.a.
Tais afirmações movem-seTais afirmações movem-se
numa connuma contramão do fluxo de nossatramão do fluxo de nossa
cultura, que valoriza o poder, acultura, que valoriza o poder, a
pressa, o utilitarismo, a objetividapressa, o utilitarismo, a objetivida
de, a insensibilidade. São essas asde, a insensibilidade. São essas as
mensagens predominantes com asmensagens predominantes com as
quais os jovens rapidamente aprenquais os jovens rapidamente apren
dem a viver. Mas é desejável que elesdem a viver. Mas é desejável que eles
saibam que há outras formas de pensaibam que há outras formas de pen
sar. Aliás, quem tem contato comsar. Aliás, quem tem contato com
 jovens perceb jovens percebe que ee que elesles, , quanquando aindo ain
da não foram totalmente tomadosda não foram totalmente tomados
pelo desencanto ou pela aceitaçpelo desencanto ou pela aceitação doão do
vale-tudo, manifestam o desejo devale-tudo, manifestam o desejo de
acreditar que a vida pode ser pensaacreditar que a vida pode ser pensa
da segundo outros critérios, que ada segundo outros critérios, que a
vida precisa ter svida precisa ter sentidoentido..
Bilê Tatit SapienzaBilê Tatit Sapienza
 Joã João o Augusto Augusto Pompeia, Pompeia, maismais
conhecido como Guto Pompeia,conhecido como Guto Pompeia,
nasceu em São Paulo, em 1948.nasceu em São Paulo, em 1948.
Diplomou-se como psicólogo pelaDiplomou-se como psicólogo pela
PUC-SP, em 1971, onde também lePUC-SP, em 1971, onde também le
ciona desde então, além de atuarciona desde então, além de atuar
como psicoterapeuta.como psicoterapeuta.
A convite do Dr. Solon Spanoudis,A convite do Dr. Solon Spanoudis,
em 1974, participa, com um grupoem 1974, participa, com um grupo
de psicólogos e psiquiatras, dade psicólogos e psiquiatras, da
criação da Associação Brasileira decriação da Associação Brasileira de
Daseinsanalyse, onde vem oferecenDaseinsanalyse, onde vem oferecen
do cursos para profissionais interesdo cursos para profissionais interes
sados nessa formação.sados nessa formação.
 João Augusto Pompeia e Bilê Tati João Augusto Pompeia e Bilê Tatit Sapienzat Sapienza
NA PRESENÇA DO SENTIDONA PRESENÇA DO SENTIDO
Uma aproximação fenomenológicaUma aproximação fenomenológica
a questões existenciais básicasa questões existenciais básicas
PAULUSPAULUS
20042004
e d u ce d u c  A ABBII
São PauloSão Paulo
Ficha Catalográfica elaborada pelaFicha Catalográfica elaborada pela
Biblioteca Reitora Nadir GoBiblioteca Reitora Nadir GouVêuVêa Kfouri - a Kfouri - PUC-SPPUC-SP
Pompeia, João AugustoPompeia, João Augusto
Na presença do sentido: Uma aproximação Na presença do sentido: Uma aproximação fenomenológica a questõesfenomenológica a questões
existenciais básicas / João Augusto Pompeia e Bilê Tatit Sapienza. — Sãoexistenciais básicas / João Augusto Pompeia e Bilê Tatit Sapienza. — São
Paulo : EDUC; Paulus, 2004.Paulo : EDUC; Paulus, 2004.
246 p.; 18 cm246 p.; 18 cm
Bibliografia.Bibliografia.
ISBN ISBN 85-283-85-283-0288-10288-1
1. 1. FenomFenomenologia. enologia. 2. 2. DaseinsanalysDaseinsanalyse. e. 3. 3. Psicoterapia. Psicoterapia. CDCD D D 142.7142.7
I. I. PomPompeia, peia, João João Augusto. Augusto. II. II. Título. Título. 152.1152.1
616.8914616.8914
EDUEDU C - C - EditEditora dora da a PUCPUC -SP-SP
DireçãoDireção
Maria Eliza Mazzilli PereiraMaria Eliza Mazzilli Pereira
Denize Rosana RubanoDenize Rosana Rubano
Produção EditorialProdução Editorial
Magali Oliveira FernandesMagali Oliveira Fernandes
PreparaçãoPreparação
Sonia RangelSonia Rangel
RevisãoRevisão
Tereza Maria Lourenço PereiraTereza Maria Lourenço Pereira
Editoração EletrônicaEditoração Eletrônica
Digital PressDigital Press
CapaCapa
Sara RosaSara Rosa
Realização:Realização:  Waldir Antonio Alves Waldir Antonio Alves
edweedwe
Rua Ministro Godói, 1213Rua Ministro Godói, 1213
05015-001 - São Paulo - SP05015-001 - São Paulo - SP
Tel.: (11) 3873-3359Tel.: (11) 3873-3359
Fax: (11) 3873-6133Fax: (11) 3873-6133
E-mail:E-mail: educ@pucsp.breduc@pucsp.br
Home Page:Home Page: www.pucsp.br/educwww.pucsp.br/educ
Impressão e acabamento PaulusImpressão e acabamento Paulus
<<33 --
PAULUSPAULUS
Rua Francisco Cruz, 229Rua Francisco Cruz, 229
04117-091 - São Paulo - SP04117-091 - São Paulo - SP
TeL: (11) 5084-3066TeL: (11) 5084-3066
Fax: (11) 5579-3627Fax: (11) 5579-3627
E-mail:E-mail: editorial@paulus.com.breditorial@paulus.com.br
Home Page:Home Page: www.paulus.com.brwww.paulus.com.br
SUMÁRIOSUMÁRIO
Arte e existênciaArte e existência.................................................................................................................... .. .. 1717
História História dodos s dedesejsejos......................os........................................................ .................................. 3131
DesfechoDesfecho: : encerramento encerramento de de um um prprococesessoso.................... .................... 5151
Sobre a morte e o morrerSobre a morte e o morrer.............................................................................................. 6969
Culpa e desculpaCulpa e desculpa............................................................................................................... ....... 8787
Tempo da maturidadeTempo da maturidade........................................................................................... 11..... 1199
Uma caracterização da psicoterapiaUma caracterização da psicoterapia................................................ 151533
Psicoterapia e psicosePsicoterapia e psicose ........................................................................................... 17..... 1711
PoPoder der e e brbrinincacarr....................................................................................................... 2................. 20505
PREFÁCIOPREFÁCIO
A realização de quem fala é ser ouvido. Neste senA realização de quem fala é ser ouvido. Neste sen
tido Bilê é, sem dúvida, a realização de quem quer quetido Bilê é, sem dúvida, a realização de quem quer que
entre em diálogo com ela.entre em diálogo com ela.
Uma "escutadora" excepcional,Bilê é também umaUma "escutadora" excepcional, Bilê é também uma
redatora de mão cheia. Tendo acolhido a experiência queredatora de mão cheia. Tendo acolhido a experiência que
se apresenta a ela, é capaz de converter o falado em texse apresenta a ela, é capaz de converter o falado em tex
to com rara propriedade. As linguagens oral e escrita sãoto com rara propriedade. As linguagens oral e escrita são
muito diferentes. Não é fácil converter uma na outra.muito diferentes. Não é fácil converter uma na outra.
Não basta reproduzir o falado no papel: é preciso re-dizer.Não basta reproduzir o falado no papel: é preciso re-dizer.
É isto que Bilê fez com algumas palestras que realizeiÉ isto que Bilê fez com algumas palestras que realizei
nestes últimos doze anos.nestes últimos doze anos.
É para mim muito gratificante trazer, com ela, aoÉ para mim muito gratificante trazer, com ela, ao
público leitor os textos que compõem este livro.público leitor os textos que compõem este livro.
Construídos em co-autoria, estes textos correspondemConstruídos em co-autoria, estes textos correspondem
a palestras feitas para públicos muito diferentes, em moa palestras feitas para públicos muito diferentes, em mo
mentos também diferentes.mentos também diferentes.
Para que o leitor possa ter uma noção do contexto emPara que o leitor possa ter uma noção do contexto em
que estas palestras foram realizadas, segue abaixo uma reque estas palestras foram realizadas, segue abaixo uma re
lação de quando e para quem cada uma delas foi feita.lação de quando e para quem cada uma delas foi feita.
88 N N aa PPrr ees es en ç an ç a ddoo SSeen tn t iid od o
DDeesfsfeechocho: E: E ncencerrrrameamentnto do de e um Pum Prrococeessosso
Palestra proferida na Semana da PsicologiaPalestra proferida na Semana da Psicologia
do Curso de Psicologia dado Curso de Psicologia da UU n in i ss a na n tt o so s ,, em 1990.em 1990.
CCulpa e ulpa e DDeesculsculpapa
Palestra apresentada para pais de adolescentes emPalestra apresentada para pais de adolescentes em
evento promovido pela Associação Brasileira deevento promovido pela Associação Brasileira de
Daseinsanalyse, em 1992.Daseinsanalyse, em 1992.
 A A rrtte e e e EExixi ststêêncinciaa
Palestra apresentada na II Bienal de Santos, em 1992.Palestra apresentada na II Bienal de Santos, em 1992.
UUmma Ca Caracaracteterrii zaçzação ão dda a PPsisi ccooteterrapapiiaa
Palestra apresentada na Faculdade de PsicologiaPalestra apresentada na Faculdade de Psicologia
ddaa UU n in i s a n ts a n t oo ss ,, em 1992.em 1992.
TTeempmpo do da a MMaturatur iidaddadee
Palestra apresentada para psicólogos e psicoterapeutas noPalestra apresentada para psicólogos e psicoterapeutas no
evento "A trajetória humana", promovido pela Associaçãoevento "A trajetória humana", promovido pela Associação
Brasileira de Daseinsanalyse, em 1993.Brasileira de Daseinsanalyse, em 1993.
HH ii stóristóri a da doos Ds Deesesejjosos
Palestra apresentada para adolescentes de 12 a 17 anosPalestra apresentada para adolescentes de 12 a 17 anos
em evento organizado pela Associação Brasileira deem evento organizado pela Associação Brasileira de
Daseinsanalyse, em 1993.Daseinsanalyse, em 1993.
 S Sobobrre e a a MM orortte e e e o o MM oror rreer r 
Palestra apresentada na Semana de PsicologiaPalestra apresentada na Semana de Psicologia
ddaa UU n in i s a n ts a n t oo ss ,, em 1996.em 1996.
PP rr eeff áác ic ioo 9 9 
Psicoterapia e PsicosePsicoterapia e Psicose
Palestra apresentada para Equipe de Paramédicos doPalestra apresentada para Equipe de Paramédicos do
CAISMCAISM - - Santa Casa dSanta Casa de Me Miseriisericórdia de São Paucórdia de São Paulo, em 200lo, em 2000.0.
PPododeer e r e BB rr ii ncncar ar 
Palestra apresentada para psicólogos e psicoterapeutasPalestra apresentada para psicólogos e psicoterapeutas
do Centro de Estudos Fenomenológico-Existencial dedo Centro de Estudos Fenomenológico-Existencial de
Santos, em 2001.Santos, em 2001.
 Jo Joãão o AAuugguussto to PPomomppeieiaa
APRESENTAÇÃOAPRESENTAÇÃO
Neste livro estão, transformadas por mim em texNeste livro estão, transformadas por mim em tex
tos, nove palestras de João Augusto Pompeia. Emboratos, nove palestras de João Augusto Pompeia. Embora
tenham sido feitas para públicos diversos e em épocastenham sido feitas para públicos diversos e em épocas
diferentes, percebemos nelas duas constantes.diferentes, percebemos nelas duas constantes.
Uma delas é a insistência na necessidade de preserUma delas é a insistência na necessidade de preser
vação da capacidade humana de sonhar — este poder esvação da capacidade humana de sonhar — este poder es
tar solto naquela brecha do espaço e do tempo, em quetar solto naquela brecha do espaço e do tempo, em que
algo que ainda não é realidade é realmente vislumbradoalgo que ainda não é realidade é realmente vislumbrado
e desejado. Quando essa capacidade é aniquilada, perde-e desejado. Quando essa capacidade é aniquilada, perde-
se o que é mais peculiarmente próprio do ser humano, ese o que é mais peculiarmente próprio do ser humano, e
se acrescenta à devastação da Terra a devastação do munse acrescenta à devastação da Terra a devastação do mun
do dos homens. E, aqui, esse falar com tanta propriedadedo dos homens. E, aqui, esse falar com tanta propriedade
sobre o sonhar provém de alguém que planta, colhe e re-sobre o sonhar provém de alguém que planta, colhe e re-
planta sonhos, mesmo sabendo que alguns deles morrem.planta sonhos, mesmo sabendo que alguns deles morrem.
A outra é a lembrança de que também é próprio doA outra é a lembrança de que também é próprio do
homem estar sempre às voltas com o significado de tudohomem estar sempre às voltas com o significado de tudo
que lhe diz respeito: seus sonhos, seus sentimentos, suasque lhe diz respeito: seus sonhos, seus sentimentos, suas
ações, suas faltas, o que se aproxima e o que se afasta dele.ações, suas faltas, o que se aproxima e o que se afasta dele.
Ele sempre poderá perguntar: qual o sentido disto?Ele sempre poderá perguntar: qual o sentido disto?
1212 N N aa  PRESENÇA DO SENTIDO PRESENÇA DO SENTIDO
 Já  Já quque e falfalamamos os de de sesentntidido, o, ququal al o o sesentntido ido da da pupublibli
cação destes textos? Por que privilegiar estes temas? Serácação destes textos? Por que privilegiar estes temas? Será
que eles condizem com a nossa época tão objetiva, práticaque eles condizem com a nossa época tão objetiva, prática
e apressada? Parece que não. E exatamente isto é o preocue apressada? Parece que não. E exatamente isto é o preocu
pante: o fato de soarem como deslocadas coisas que sãopante: o fato de soarem como deslocadas coisas que são
essenciais ao ser humano, o não haver lugar para elas.essenciais ao ser humano, o não haver lugar para elas.
As idéias desenvolvidas aqui ganham relevo, peloAs idéias desenvolvidas aqui ganham relevo, pelo
contraste, quando observamos as marcas do nosso tempo.contraste, quando observamos as marcas do nosso tempo.
Vale a pena divagarmos um pouco pensando nelas.Vale a pena divagarmos um pouco pensando nelas.
Faz tempo — antes de a física ter conseguido a fissãoFaz tempo — antes de a física ter conseguido a fissão
nuclear — Rutherford (1871-1937) disse, brincando, quenuclear — Rutherford (1871-1937) disse, brincando, que
qualquer dia algum idiota num laboratório poderia exqualquer dia algum idiota num laboratório poderia ex
plodir o mundo sem querer.plodir o mundo sem querer.
Embora ele tivesse dito isso de brincadeira, essaEmbora ele tivesse dito isso de brincadeira, essa
possibilidade destrutiva passou a ser real quando, em 16possibilidade destrutiva passou a ser real quando, em 16
de julho de 1945, no deserto de Los Alamos, aconteceu ade julho de 1945, no deserto de Los Alamos, aconteceu a
primeira primeira explosão atômica provocada pelo homem.explosão atômica provocada pelo homem.
Nos dias 6 e 9 de agosto do mesmo ano foram jogaNos dias 6 e 9 de agosto do mesmo ano foram joga
das as bombas atômicassobre Hiroshima e Nagasald.das as bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasald.
Em 7 de agosto, o presidente Truman divulgou pelo ráEm 7 de agosto, o presidente Truman divulgou pelo rá
dio que o potencial destrutivo da bomba de Hiroshimadio que o potencial destrutivo da bomba de Hiroshima
era maior que vinte mil toneladas de explosivos. E, aera maior que vinte mil toneladas de explosivos. E, a
partir desse dia, a humanidade sabe que o potencial despartir desse dia, a humanidade sabe que o potencial des
trutivo do homem não tem limites.trutivo do homem não tem limites.
 A A  pr pr eess eenn tt aaçç ããoo 1133
Após a explosão da bomba, os cientistas que estiveApós a explosão da bomba, os cientistas que estive
ram envolvidos em sua concepção e construção viveramram envolvidos em sua concepção e construção viveram
dilemas morais. Era impossível não olhar para o que redilemas morais. Era impossível não olhar para o que re
sultou de pesquisas que, a princípio, estavam no camposultou de pesquisas que, a princípio, estavam no campo
de uma ciência pura.de uma ciência pura.
Em nossos dias, desenvolvem-se também pesquisasEm nossos dias, desenvolvem-se também pesquisas
na área biológica, e aí estão novos problemas éticos ligana área biológica, e aí estão novos problemas éticos liga
dos a dos a questões como, por exemplo, questões como, por exemplo, a reprodua reprodução humanção humana.a.
A sociedade se preocupa com o impacto do progresA sociedade se preocupa com o impacto do progres
so científico e tecnológico sobre os valores bumanos eso científico e tecnológico sobre os valores bumanos e
discute tal assunto. Todos concordam que essa é umadiscute tal assunto. Todos concordam que essa é uma
questão delicada. O poder absurdamente grande de faquestão delicada. O poder absurdamente grande de fa
zer quase tudo, poder que não pára de aumentar, gerazer quase tudo, poder que não pára de aumentar, gera
uma espécie de medo de podermos estar, num futurouma espécie de medo de podermos estar, num futuro
próximo, vivendo num mundo que terá se tornado espróximo, vivendo num mundo que terá se tornado es
tranho para nós ou, até mesmo, sem mundo para viver.tranho para nós ou, até mesmo, sem mundo para viver.
Esta ameaça traz um mal-estar que vai de um certo desEsta ameaça traz um mal-estar que vai de um certo des
conforto até a angústia.conforto até a angústia.
Mas bá uma outra ameaça, igualmente deletéria, queMas bá uma outra ameaça, igualmente deletéria, que
nos pressiona, só que vem mais dissimulada, quase nemnos pressiona, só que vem mais dissimulada, quase nem
é vista como perigo. Não nos causa o mesmo impactoé vista como perigo. Não nos causa o mesmo impacto
que a possibilidade da destruição do planeta ou de toque a possibilidade da destruição do planeta ou de to
parmos, um dia desses, com uns clones meio esquisitos.parmos, um dia desses, com uns clones meio esquisitos.
Essa ameaça não vem dos laboratórios científicos. TraEssa ameaça não vem dos laboratórios científicos. Tra
ta-se de tuna pressão exercida pela necessidade cada vezta-se de tuna pressão exercida pela necessidade cada vez
maior de corresponder ao grande valor atual: a Esperteza.maior de corresponder ao grande valor atual: a Esperteza.
1414 N N aa Presença do SentidoPresença do Sentido
Ser esperto significa: armado de sua lucidez e senSer esperto significa: armado de sua lucidez e sen
so de realidade, determine o que traz lucro de qualquerso de realidade, determine o que traz lucro de qualquer
natureza, prestígio e, sobretudo, poder para você, e cornatureza, prestígio e, sobretudo, poder para você, e cor
ra atrás disso; se precisar, atropele o que e quem estiverra atrás disso; se precisar, atropele o que e quem estiver
na frente, mesmo que seja você próprio, aquele sujeitona frente, mesmo que seja você próprio, aquele sujeito
meio bobo que, às vezes, ainda tem sonhos de poder sermeio bobo que, às vezes, ainda tem sonhos de poder ser
diferente.diferente.
Há lições e regras de esperteza: a vida é uma dispuHá lições e regras de esperteza: a vida é uma dispu
ta diária; não confie em ninguém; finja; não mostre frata diária; não confie em ninguém; finja; não mostre fra
queza; imponha seus direitos; se for preciso, passe porqueza; imponha seus direitos; se for preciso, passe por
cima; almoce-o antes que ele jante você; pense grande,cima; almoce-o antes que ele jante você; pense grande,
isto é, vise obter muito; encurte caminhos para conseguiristo é, vise obter muito; encurte caminhos para conseguir
rápido; seduza; corrompa; seja duro e não se importe se,rápido; seduza; corrompa; seja duro e não se importe se,
com seu jeito, você aniquila os sonhos dos teimososcom seu jeito, você aniquila os sonhos dos teimosos
que insistem em viver em outra sintonia, pois é atéque insistem em viver em outra sintonia, pois é até
 bom  bom quque e eleles es tatammbébém aprm aprenendadam m o o quque e é é a a vvidida.a.
É claro que esse estilo de ser é e sempre foi uma posÉ claro que esse estilo de ser é e sempre foi uma pos
sibilidade humana. Os escritos mais antigos que se cosibilidade humana. Os escritos mais antigos que se co
nhecem contam histórias de espertezas, mas agora issonhecem contam histórias de espertezas, mas agora isso
aparece de um modo exacerbado.aparece de um modo exacerbado.
Interessante é que essa necessidade de ser espertoInteressante é que essa necessidade de ser esperto
não é vista como ameaça, mas sim como uma meta, e todosnão é vista como ameaça, mas sim como uma meta, e todos
nós, em alguma medida, nos envolvemos com essa meta.nós, em alguma medida, nos envolvemos com essa meta.
O resultado, ironicamente, é a desconfiança entre todos,O resultado, ironicamente, é a desconfiança entre todos,
a insegurança geral em que vivemos. Eu sou estimuladaa insegurança geral em que vivemos. Eu sou estimulada
a cultivar a esperteza, mas, obviamente, os outros tambéma cultivar a esperteza, mas, obviamente, os outros também
são, e assim estamos todos nós, como dizemos, na luta.são, e assim estamos todos nós, como dizemos, na luta.
 A A  pr pr eess eenn tt aaçç ããoo 1515
Há espertos de todos os tipos, em todas as profisHá espertos de todos os tipos, em todas as profis
sões e em vários graus; eles podem pertencer a qualquersões e em vários graus; eles podem pertencer a qualquer
nível sodoeconômico e cultural; podem ser analfabetos ounível sodoeconômico e cultural; podem ser analfabetos ou
pós-graduados; podem ser grosseiros ou sutis. Os esperpós-graduados; podem ser grosseiros ou sutis. Os esper
tos conseguem tudo; aliás, eles não toleram frustração.tos conseguem tudo; aliás, eles não toleram frustração.
A confraria dos espertos cria e espalha uma culturaA confraria dos espertos cria e espalha uma cultura
que ensina a importânque ensina a importância de eles sercia de eles serem vencem vencedores - edores - nnããoo
se sabe bem o que eles vencem E o que é mesmo que elesse sabe bem o que eles vencem E o que é mesmo que eles
ganham? Ao vencedor, as batatas, como lemos emganham? Ao vencedor, as batatas, como lemos em QuincasQuincas
Borba,Borba, de Machado de Assis. de Machado de Assis.
A Esperteza não costuma andar sozinha pelo munA Esperteza não costuma andar sozinha pelo mun
do. Ela é amiga da Insensibilidade, e quando as duasdo. Ela é amiga da Insensibilidade, e quando as duas
saem a passeio elas se divertem muito brincando. Hásaem a passeio elas se divertem muito brincando. Há
aquela brincadeira de faz-de-conta em que a Espertezaaquela brincadeira de faz-de-conta em que a Esperteza
diz: "Faz de conta que eu me chamava Sabedoria, tá?". Ediz: "Faz de conta que eu me chamava Sabedoria, tá?". E
a Insensibilidade completa: "Tá, e eu era a princesa Tudo-a Insensibilidade completa: "Tá, e eu era a princesa Tudo-
Me-Toca', tá?". Então, elas falam coisas superinteressantes,Me-Toca', tá?". Então, elas falam coisas superinteressantes,
de tudo um pouco, e há algumas coisas que elas conhecemde tudo um pouco, e há algumas coisasque elas conhecem
 ba bastastantnte e mmesesmmoo. . AAté té ficficam am sesenntitimmenentataisis. . NeNessesses s momo
mentos elas mesmas acreditam no seu jogo. Outras vezes,mentos elas mesmas acreditam no seu jogo. Outras vezes,
é diferente. Elas chamam uma outra amiga, a Violência,é diferente. Elas chamam uma outra amiga, a Violência,
para brincar junto, e aí o jogo fica pesado. O Poder tampara brincar junto, e aí o jogo fica pesado. O Poder tam
 bém  bém é é semsemprpre e mmuiuito to bembem-vin-vindo do nenessssas as brbrinincacadedeirairas,s,
mas, quase sempre, eles não querem a Culpa por perto.mas, quase sempre, eles não querem a Culpa por perto.
Eles a chamam de "Desmancha-Prazer", muito chata essaEles a chamam de "Desmancha-Prazer", muito chata essa
aí. Existe também uma velha que não é convidada, masaí. Existe também uma velha que não é convidada, mas
1616 N N aa PPrr ees es en ç an ç a ddoo SSe ne ntt iid od o
teima em ficar por perto e dizer que está ficando tarde eteima em ficar por perto e dizer que está ficando tarde e
que o jogo uma hora acaba. Eles sabem que o nome dela éque o jogo uma hora acaba. Eles sabem que o nome dela é
Morte: eles olham para outro lado e arrumam uma outraMorte: eles olham para outro lado e arrumam uma outra
 brinc brincadeira, chamadeira, chamada "Não-Quero-ada "Não-Quero-Pensar-NPensar-Nisso".isso".
Bem, esse cenário é o contraponto para os textosBem, esse cenário é o contraponto para os textos
aqui reunidos. Pode ser que, ao lê-los, em alguns moaqui reunidos. Pode ser que, ao lê-los, em alguns mo
mentos, você pergunte: mas em que mundo vive essementos, você pergunte: mas em que mundo vive esse
cara que diz essas coisas? Se isso acontecer, aproveite,cara que diz essas coisas? Se isso acontecer, aproveite,
amplie a questão e pergunte: em que mundo nós estamosamplie a questão e pergunte: em que mundo nós estamos
vivendo?vivendo?
Bilê Tatit SapienzaBilê Tatit Sapienza
ARTE E EXISTÊNCIAARTE E EXISTÊNCIA
Ao ser convidado para falar sobre arte, senti que nãoAo ser convidado para falar sobre arte, senti que não
sei tanto sobre o assunto para fazer uma análise intrínsei tanto sobre o assunto para fazer uma análise intrín
seca do fenômeno artístico. Apesar disso aceitei, pois messeca do fenômeno artístico. Apesar disso aceitei, pois mes
mo não sendo um especialista a arte me toca.mo não sendo um especialista a arte me toca.
Quando falo em obra de arte, faço-o como leigo, comoQuando falo em obra de arte, faço-o como leigo, como
alguém que olha uma tela, tuna escultura e pensa: "Puxaalguém que olha uma tela, tuna escultura e pensa: "Puxa
vida, isto aqui é uma obra de arte"; como alguém que, aovida, isto aqui é uma obra de arte"; como alguém que, ao
ler uma poesia, um romance ou ao assistir a um teatro,ler uma poesia, um romance ou ao assistir a um teatro,
tem vontade de dizer: "Mas isto é assim mesmo, isto étem vontade de dizer: "Mas isto é assim mesmo, isto é
verdade".verdade".
É nessa perspectiva, de alguém que é tocado pelaÉ nessa perspectiva, de alguém que é tocado pela
arte, que me proponho a falar aqui.arte, que me proponho a falar aqui.
Vejo o "ser tocado" pela arte como algo que só podeVejo o "ser tocado" pela arte como algo que só pode
acontecer porque há uma profunda relação entre arte eacontecer porque há uma profunda relação entre arte e
existência.existência.
Que relação é essa? Que é a existência para que posQue relação é essa? Que é a existência para que pos
sa ser mobilizada pela arte?sa ser mobilizada pela arte?
1818 N N aa PPrr ees es en ç an ç a dd oo  S S een tn t iid od o
De acordo com o pensamento de Heidegger, conceDe acordo com o pensamento de Heidegger, conce
 bo  bo a exa exisistêtênncicia coa commo o o o mmododo eso esppeecícífifico dco de ser de ser do hoo hommemem..
É diferente do ser das coisas, do ser dos animais. NesseÉ diferente do ser das coisas, do ser dos animais. Nesse
sentido mais rigoroso, só o homem existe.sentido mais rigoroso, só o homem existe.
E o que é próprio do ser do homem? Para apontarE o que é próprio do ser do homem? Para apontar
essa peculiaridade, vou dizer que o homem é um sonhaessa peculiaridade, vou dizer que o homem é um sonha
dor. Num certo sentido, o que chamo de existência é a condor. Num certo sentido, o que chamo de existência é a con
dição de sonhador do homem.dição de sonhador do homem.
Diferentemente dos animais, o homem é movidoDiferentemente dos animais, o homem é movido
por aquilo quepor aquilo que ainda não é.ainda não é. O que O que ainda não é ainda não é  é expectativa, é expectativa,
projeto, imagem, sonho; mesmo que nunca venha a ser,projeto, imagem, sonho; mesmo que nunca venha a ser,
que permaneça como pura possibilidade, esseque permaneça como pura possibilidade, esse ainda nãoainda não
é é   é exatamente o que permite a possibilidade de ser (se  é exatamente o que permite a possibilidade de ser (se
 já  já fofossssee, , nãnão o seseriria a mmaiais s umuma a ppoossssibibililididaaddee). ). A A foforrça ça mmaioaiorr
dessa perspectiva de futuro pode vir dessedessa perspectiva de futuro pode vir desse ainda não.ainda não.
A existência se situa na abertura do que ainda nãoA existência se situa na abertura do que ainda não
é, na abertura do sonhar. Mas o que ainda não é, a virtua-é, na abertura do sonhar. Mas o que ainda não é, a virtua-
lidade, não aparece para o homem como puro vazio. Elalidade, não aparece para o homem como puro vazio. Ela
se apresenta de alguma forma. Já aparece como a possise apresenta de alguma forma. Já aparece como a possi
 bilid bilidade ade sosonhnhadada, a, quque e pedpede e papara ra vivir r a a sserer. . AlAlguguns ns hoho
mens atentos a isso — artistas — são os que ouvem taismens atentos a isso — artistas — são os que ouvem tais
pedidos e fazem, de puras possibilidades, obras de arte.pedidos e fazem, de puras possibilidades, obras de arte.
Um artista pode escutar o que a pedra lhe fala quandoUm artista pode escutar o que a pedra lhe fala quando
ela ainda não é estátua e transformá-la em obra. Outrosela ainda não é estátua e transformá-la em obra. Outros
homens, também atentos, poderão depois ouvir o que ahomens, também atentos, poderão depois ouvir o que a
estátua vai lhes falar, vai lhes contar das possibilidadesestátua vai lhes falar, vai lhes contar das possibilidades
do mundo.do mundo.
 A A kk tt ee ee E  E  x x iiss tt êênn cc iiaa 1919
Assim, criando ou curtindo a arte, a existência éAssim, criando ou curtindo a arte, a existência é
tocada por ela.tocada por ela.
Algumas poesias, romances ou obras teatrais mosAlgumas poesias, romances ou obras teatrais mos
tram como podemos ser tocados pela obra de arte. Somostram como podemos ser tocados pela obra de arte. Somos
tomados por tramas que são puras possibilidades, quetomados por tramas que são puras possibilidades, que
 jamais  jamais ocoocorrerarreram m e e não não vão vão ococororrer rer "realmente"."realmente".
Essas possibilidades passam aEssas possibilidades passam a sseerr concretamente nas concretamente nas
palavras, nos gestos, e nos falam.palavras, nos gestos, e nos falam.
Quando vamos ao teatro ou ao cinema, o que vaQuando vamos ao teatro ou ao cinema, o que va
mos fazer lá? Vamos a esses lugares ver uma história,mos fazer lá? Vamos a esses lugares ver uma história,
que não importa se aconteceu ou não. Ali estamos dianque não importa se aconteceu ou não. Ali estamos dian
te de pessoas que não dizem ou fazem aquelas coisaste de pessoas que não dizem ou fazem aquelas coisas
"de verdade". Isso me lembra o personagem de um con"de verdade". Isso me lembra o personagem de um con
to de Borges. Ao ser interrogado sobre o que tinha idoto de Borges. Ao ser interrogado sobre o que tinha ido
ver no teatro, ele ingenuamente responde mais ou mever no teatro, ele ingenuamente responde mais ou me
nos assim: "Só sei que lá eu vi umas pessoas que parenos assim: "Só sei que lá eu vi umas pessoas que pare
ciam fazer determinadas coisas, mas não faziam; paciamfazer determinadas coisas, mas não faziam; pa
reciam brigar, mas não brigavam; pareciam morrer, masreciam brigar, mas não brigavam; pareciam morrer, mas
não morriam".não morriam".
Nada no teatro é "de verdade". E, no entanto, quanNada no teatro é "de verdade". E, no entanto, quan
do as pessoas vão a um espetáculo, elas têm um imensodo as pessoas vão a um espetáculo, elas têm um imenso
interesse em tudo o que acontece no palco, como se aquiinteresse em tudo o que acontece no palco, como se aqui
lo tivesse uma importância muito especial; é como se alilo tivesse uma importância muito especial; é como se ali
ocorresse algo que tem o caráter deocorresse algo que tem o caráter de verdade.verdade. Não de uma Não de uma
verdade no sentido lógico, conceituai ou demonstrativo,verdade no sentido lógico, conceituai ou demonstrativo,
mas verdade num sentido mais afetivo. Certas falas oumas verdade num sentido mais afetivo. Certas falas ou
20 20  N N aa PP rr e se se n ç ae n ç a ddoo  S S e n te n t iid od o
ações dos personagens de uma peça ou filme nos tocamações dos personagens de uma peça ou filme nos tocam
imediatamente e nos fazem pensar: "Isto é verdade".imediatamente e nos fazem pensar: "Isto é verdade".
A convicção com que afirmamos isso mostra que, noA convicção com que afirmamos isso mostra que, no
meio de uma situação em que tudo é mentira, ali ondemeio de uma situação em que tudo é mentira, ali onde
tudo é falso, o verdadeiro também se manifesta. E o faz semtudo é falso, o verdadeiro também se manifesta. E o faz sem
a mediação de um processo racional; coloca-se de umaa mediação de um processo racional; coloca-se de uma
forma muito particular, muito imediata e extremamenteforma muito particular, muito imediata e extremamente
efetiva.efetiva.
Algumas coisas que lemos ou vemos no teatro ouAlgumas coisas que lemos ou vemos no teatro ou
no cinema podem marcar várias gerações. Uma obra comono cinema podem marcar várias gerações. Uma obra como
a tragédia de Édipo, escrita por Sófocles, está há 2.500 anosa tragédia de Édipo, escrita por Sófocles, está há 2.500 anos
presente na humanidade. Ela é até hoje capaz de anunpresente na humanidade. Ela é até hoje capaz de anun
ciar — porque não se trata de demonstrar — uma verdade,ciar — porque não se trata de demonstrar — uma verdade,
em meio a uma situação na qual tudo é artificial. A traem meio a uma situação na qual tudo é artificial. A tra
ma é uma possibilidade, mas esse Édipo diz respeito ama é uma possibilidade, mas esse Édipo diz respeito a
cada um de nós.cada um de nós.
Em algumas obras, as palavras têm essa condiçãoEm algumas obras, as palavras têm essa condição
absolutamente fantástica de fazer com que aquilo que eraabsolutamente fantástica de fazer com que aquilo que era
só possibilidade venha a ser alguma coisa e, como tal, vesó possibilidade venha a ser alguma coisa e, como tal, ve
nha ao encontro do homem.nha ao encontro do homem.
Assim, nas palavras de Shakespeare, a possibilidadeAssim, nas palavras de Shakespeare, a possibilidade
de um amor a tal ponto trágico como o de Romeu e Julietade um amor a tal ponto trágico como o de Romeu e Julieta
concretiza-se, apresenta-se a nós, comove-nos e nos fazconcretiza-se, apresenta-se a nós, comove-nos e nos faz
concordar quando ouvimos, no fim:concordar quando ouvimos, no fim:
 A A rr tt ee ee E E  x x iiss tt êênn cc iiaa 2121
FFor or nenevveer r wawas a s a ststory ofory ofmormore e woewoe
TThahan n ththii s ofjs ofj uliuli eet and t and heher Rr R omomeeo.o.11
(Pois nun ca houve uma história mais triste(Pois nun ca houve uma história mais triste
que esta de Julieta e seu Romeu.)que esta de Julieta e seu Romeu.)
Nessa hora dizemos: é verdade.Nessa hora dizemos: é verdade.
A obra de arte é uma coisa que fala ao homem. MesA obra de arte é uma coisa que fala ao homem. Mes
mo naquelas artes como a pintura, a escultura, em quemo naquelas artes como a pintura, a escultura, em que
não estão presentes as palavras, as obras falam.não estão presentes as palavras, as obras falam.
De um modo geral, do ponto de vista heideggeriano,De um modo geral, do ponto de vista heideggeriano,
todas as coisas falam para o homem através da fala dotodas as coisas falam para o homem através da fala do
homem. Mas a obra de arte apresenta um falar especial.homem. Mas a obra de arte apresenta um falar especial.
O falar supõe sempre pelo menos dois interlocuO falar supõe sempre pelo menos dois interlocu
tores. É preciso que alguém ouça e acolha o que é faladotores. É preciso que alguém ouça e acolha o que é falado
para que haja comunicação.para que haja comunicação.
Ora, no caso da obra de arte, há uma comunicaçãoOra, no caso da obra de arte, há uma comunicação
entre o artista e o espectador. O espectador pode nementre o artista e o espectador. O espectador pode nem
estar presente em alguns momentos, mas o artista o temestar presente em alguns momentos, mas o artista o tem
sempre em vista enquanto utiliza o material para realisempre em vista enquanto utiliza o material para reali
zar sua obra. A obra deverá falar para alguém.zar sua obra. A obra deverá falar para alguém.
1.1. Shakespeare ,Shakespeare , W. (1990).W. (1990). Complete works.Complete works. New York, Avenel, New New York, Avenel, New
 Jersey,  Jersey, GramerGramercy cy Books.Books.
2222 N N aa  PRESENÇA DO SENTIDO PRESENÇA DO SENTIDO
Nesse sentido, criar será compor uma obra, cuja falaNesse sentido, criar será compor uma obra, cuja fala
é a própria voz do autor. Oé a própria voz do autor. O artista dizartista diz alguma coisa ao alguma coisa ao
fazer sua obra.fazer sua obra.
Há, entretanto, um outro sentido para a palavra criar:Há, entretanto, um outro sentido para a palavra criar:
o artista cria, não porque quer dizer alguma coisa, maso artista cria, não porque quer dizer alguma coisa, mas
porqueporque ele escutaele escuta alguma coisa que lhe fala. alguma coisa que lhe fala.
Nesse caso, o artista não se põe diante de seu mateNesse caso, o artista não se põe diante de seu mate
rial como quem utiliza objetos para, de certa maneira,rial como quem utiliza objetos para, de certa maneira,
codificar uma mensagem. Não. Ali ele está diante de umcodificar uma mensagem. Não. Ali ele está diante de um
mistério.mistério.
Há uma lenda sobre Michelangelo que nos aproxiHá uma lenda sobre Michelangelo que nos aproxi
ma da compreensão desse mistério.ma da compreensão desse mistério.
Michelangelo deixou uma grande quantidade de esMichelangelo deixou uma grande quantidade de es
culturas sem terminar. Conta-se que, quando lhe pergunculturas sem terminar. Conta-se que, quando lhe pergun
tavam por que parava certos trabalhos, ele respondia quetavam por que parava certos trabalhos, ele respondia que
não podia continuar a esculpir a pedra depois que ela conão podia continuar a esculpir a pedra depois que ela co
meçava a falar com ele. A partir desse momento, ele nãomeçava a falar com ele. A partir desse momento, ele não
podia mais mexer ali; a estátua estava pronta, não impodia mais mexer ali; a estátua estava pronta, não im
portava em que ponto estivesse.portava em que ponto estivesse.
Diz-se que sua experiência mais frustrante ocorreuDiz-se que sua experiência mais frustrante ocorreu
quando ele esculpia Moisés, uma estátua belíssima, comquando ele esculpia Moisés, uma estátua belíssima, com
toda a perfeição de formas do Renascimento. Ao dar ostoda a perfeição de formas do Renascimento. Ao dar os
últimos retoques, a estátua ainda não falava com ele. Seúltimos retoques, a estátua ainda não falava com ele. Se
gundo a lenda, Michelangelo passou a mão no martelo,gundo a lenda, Michelangelo passou a mão no martelo,
possivelmente disposto a destruir essa obra-prima, e gripossivelmente disposto a destruir essa obra-prima, e gri
tou: "Por que você não fala?". Naquele momento, paratou: "Por que você não fala?". Naquele momento, para
 A A rr tt ee ee E  E  x x iiss tt êênn cc iiaa 22 33
ele, aquele bloco de pedra não era nada. Uma esculturaele,aquele bloco de pedra não era nada. Uma escultura
muda é tão-somente um bloco de pedra. A marca do golmuda é tão-somente um bloco de pedra. A marca do gol
pe de martelo está lá no joelho de Moisés, para quempe de martelo está lá no joelho de Moisés, para quem
quiser acreditar na história.quiser acreditar na história.
Conceber o termo criação a partir da escuta do arConceber o termo criação a partir da escuta do ar
tista diante desse misterioso falar permite-nos imaginartista diante desse misterioso falar permite-nos imaginar
a seguinte cena: Michelangelo, diante de um bloco dea seguinte cena: Michelangelo, diante de um bloco de
mármore, pergunta a si mesmo — e ao bloco de mármoremármore, pergunta a si mesmo — e ao bloco de mármore
— que estátua está contida naquele material. Que estátua— que estátua está contida naquele material. Que estátua
aguarda como possibilidade, dentro da pedra, o chegar aaguarda como possibilidade, dentro da pedra, o chegar a
sseerr concretamente por meio de suas mãos? concretamente por meio de suas mãos?
Esse é o mistério da arte. O artista não usa seu maEsse é o mistério da arte. O artista não usa seu ma
terial. Podemos dizer, radicalizando, que o artista é usaterial. Podemos dizer, radicalizando, que o artista é usa
do pelo seu material.do pelo seu material.
O artista escuta a tela em branco, o bloco de márO artista escuta a tela em branco, o bloco de már
more; procura ouvir uma espécie de sussurro, algo muimore; procura ouvir uma espécie de sussurro, algo mui
to tênue que sua sensibilidade permite captar. Quandoto tênue que sua sensibilidade permite captar. Quando
começa a compreender isto que, de dentro das coisas,começa a compreender isto que, de dentro das coisas,
fala por si, ele se dispõe a tornar mais explícita a fala dafala por si, ele se dispõe a tornar mais explícita a fala da
coisa. O que está envolto em mistério, a estátua que estácoisa. O que está envolto em mistério, a estátua que está
encoberta no bloco de pedra ainda não trabalhado, podeencoberta no bloco de pedra ainda não trabalhado, pode
falar ao ouvido do artista. Mas, provavelmente, não falafalar ao ouvido do artista. Mas, provavelmente, não fala
ainda para outras pessoas. O artista coloca-se a serviçoainda para outras pessoas. O artista coloca-se a serviço
da fala da pedra para que ela possa vir a falar para umda fala da pedra para que ela possa vir a falar para um
espectador, para que essa fala se torne mais patente.espectador, para que essa fala se torne mais patente.
 2 2 44 N N aa  PRESENÇA DO SENTIDO PRESENÇA DO SENTIDO
No momento em que o artista ouviu algo desse misNo momento em que o artista ouviu algo desse mis
tério e preocupou-se em torná-lo alcançável para o espectério e preocupou-se em torná-lo alcançável para o espec
tador comum, começa o trabalho de configuração efetivatador comum, começa o trabalho de configuração efetiva
da obra de arte. Nesse instante, a pedra, a tela em branco,da obra de arte. Nesse instante, a pedra, a tela em branco,
as formas do espaço, as cores, os sons do mundo e tantasas formas do espaço, as cores, os sons do mundo e tantas
coisas mais começam a fluir e a contar o que têm paracoisas mais começam a fluir e a contar o que têm para
contar. Enquanto ele pinta, esculpe, escreve, compõe, age,contar. Enquanto ele pinta, esculpe, escreve, compõe, age,
enfim, aquela fala se toma maior e mais vigorosa. A parenfim, aquela fala se toma maior e mais vigorosa. A par
tir de um ponto, o autor acredita que se esgotou o que eletir de um ponto, o autor acredita que se esgotou o que ele
poderia fazer para explicitar a fala escondida da coisa.poderia fazer para explicitar a fala escondida da coisa.
Ele não consegue ir além. A obra de arte está concluída.Ele não consegue ir além. A obra de arte está concluída.
A conclusão, entretanto, só será plena no momentoA conclusão, entretanto, só será plena no momento
em que um espectador também escutar algo ali.em que um espectador também escutar algo ali.
Quando diante de uma escultura, uma tela, umaQuando diante de uma escultura, uma tela, uma
musica, o espectador escuta aquela fala, mesmo sem samusica, o espectador escuta aquela fala, mesmo sem sa
 ber exp ber expliclicititar o que foar o que foi i dditito, elo, ele se sene se sente tote tocacadodo, , mmobobilizilizaa
do, e passa a ter uma relação de respeito para com aquelado, e passa a ter uma relação de respeito para com aquela
obra. Então ele diz, como um elogio: "Isto sim é uma obraobra. Então ele diz, como um elogio: "Isto sim é uma obra
de arte!". Pois esta é uma coisa que fala. Não é a fala dode arte!". Pois esta é uma coisa que fala. Não é a fala do
artista, mas a fala daquilo que o artista possibilitou queartista, mas a fala daquilo que o artista possibilitou que
fosse fosse compartilhcompartilhado.ado.
Numa perspectiva fenomenológica daquilo que seNuma perspectiva fenomenológica daquilo que se
dá como se dá, a experiência mostra que a obra de artedá como se dá, a experiência mostra que a obra de arte
pode dizer coisas diferentes para pessoas diferentes, podepode dizer coisas diferentes para pessoas diferentes, pode
me falar coisas diversas, conforme o momento. Pode meme falar coisas diversas, conforme o momento. Pode me
dizer muito ou não dizer nada. Mas quando ela não me dizdizer muito ou não dizer nada. Mas quando ela não me diz
 A A rr tt ee ee E E  x x iiss tt êênncc iiaa 2255
nada, isso não quer dizer que ela não fale. Se aquilo for arte,nada, isso não quer dizer que ela não fale. Se aquilo for arte,
alguma coisa falará ali para um interlocutor.alguma coisa falará ali para um interlocutor.
A obra de arte não é algo em que "penduro algunsA obra de arte não é algo em que "penduro alguns
conteúdos meus" para, em seguida, ficar satisfeito porconteúdos meus" para, em seguida, ficar satisfeito por
ser essa obra capaz de sustentar a mensagem que eu coser essa obra capaz de sustentar a mensagem que eu co
loco ali. Diante da obra, também não se trata de tentarloco ali. Diante da obra, também não se trata de tentar
descobrir o que o artista quis dizer.descobrir o que o artista quis dizer.
Talvez tenhamos de permanecer na pergunta: "O queTalvez tenhamos de permanecer na pergunta: "O que
a coisa quis dizer por intermédio do artista que, a serviçoa coisa quis dizer por intermédio do artista que, a serviço
dela, fez esse dizer chegar até mim, que não sou artista?".dela, fez esse dizer chegar até mim, que não sou artista?".
A resposta a essa questão jamais será unívoca. OA resposta a essa questão jamais será unívoca. O
que se espera é que a coisa conte de sua condição de obraque se espera é que a coisa conte de sua condição de obra
de arte.de arte.
No momento em que a obra me toca e me diz algo,No momento em que a obra me toca e me diz algo,
acontece um fenômeno que poderíamos chamar de "reuacontece um fenômeno que poderíamos chamar de "reu
nião". É como se eu, o artista e a coisa estivéssemosnião". É como se eu, o artista e a coisa estivéssemos
reunidos. Há aí uma sensação de harmonia, de compartireunidos. Há aí uma sensação de harmonia, de comparti
lhar com o outro algo que é, de certa forma, misterioso,lhar com o outro algo que é, de certa forma, misterioso,
mas que, pelo trabalho do artista, emergiu e tomou-semas que, pelo trabalho do artista, emergiu e tomou-se
presente para mim, o espectador.presente para mim, o espectador.
Nessa reunião aconchegante vivemos uma experiênNessa reunião aconchegante vivemos uma experiên
cia de intimidade. Diante da obra de arte, o clima de precia de intimidade. Diante da obra de arte, o clima de pre
sença e intimidade parece-nos fazer recordar algo. A pasença e intimidade parece-nos fazer recordar algo. A pa
lavra gregalavra grega aletheiaaletheia nos ajuda a compreender tal momento, nos ajuda a compreender tal momento,
pois ela, além de significar verdade, pode significar tampois ela, além de significar verdade, pode significar tam
 bém  bém recrecorordadar r (p(prerefifixoxo aa  negativoe  negativo e lethe,lethe, esquecimento). esquecimento).
 2 2 66 N N aa PP rr e se se ne nç aç a dd oo  S S een tn t iid od o
Nesse caso, o recordado diz respeito a uma sensação deNesse caso, o recordado diz respeito a uma sensação de
que, ao mostrar-se, a coisa estava presente havia muitoque, ao mostrar-se, a coisa estava presente havia muito
tempo. Tudo se passa como se o artista, eu e a coisa nostempo. Tudo se passa como se o artista, eu e a coisa nos
encontrássemos de novo.encontrássemos de novo.
Essa intimidade de uma reunião acolhedora, vividaEssa intimidade de uma reunião acolhedora, vivida
quando ouvimos a fala daquela obra, nos traz uma senquando ouvimos a fala daquela obra, nos traz uma sen
sação agradável. Descobrimos que estamos reunidos emsação agradável. Descobrimos que estamos reunidos em
harmonia com o artista (e talvez também com os outrosharmonia com o artista (e talvez também com os outros
que são tocados pela mesma obra). É um momento deque são tocados pela mesma obra). É um momento de
encantamento, em que nossa existência suporta os desencantamento, em que nossa existência suporta os des
dobramentos daquilo quedobramentos daquilo que  p poodde e sseerr   e que se realiza atra  e que se realiza atra
vés da fala silenciosa, oculta e misteriosa das coisas dovés da fala silenciosa, oculta e misteriosa das coisas do
mundo.mundo.
A sensação que tenho no contato com uma obra deA sensação que tenho no contato com uma obra de
arte é a de ter crescido um pouco. Lembro-me do quearte é a de ter crescido um pouco. Lembro-me do que
senti diante dasenti diante da Pie táPie tá  de Michelangelo. Antes disso, não  de Michelangelo. Antes disso, não
entendia o porquê daquilo que eu chamava de badala-entendia o porquê daquilo que eu chamava de badala-
ção em torno dessa obra. No momento em que a vi, umação em torno dessa obra. No momento em que a vi, uma
emoção muito forte se apoderou de mim. Cheguei a fiemoção muito forte se apoderou de mim. Cheguei a fi
car constrangido pelas lágrimas que me vieram em púcar constrangido pelas lágrimas que me vieram em pú
 bl blicico. Afao. Afastestei-mi-me um poe um poucuco o papara disra disfafarçrçar e podar e poder peer pensnsarar
no que estava acontecendo. Afinal, o que havia me emono que estava acontecendo. Afinal, o que havia me emo
cionado cionado tantotanto??
Naquela viagem, eu já havia visto e admirado aNaquela viagem, eu já havia visto e admirado a
perfeição das formas em tantas obras de arte, nos mu-perfeição das formas em tantas obras de arte, nos mu-
 A A kk tt ee ee E E  x x iiss tt êênncc iiaa 22 7 7 
seus e fora deles. Quem vê as esculturas de Bernini, porseus e fora deles. Quem vê as esculturas de Bernini, por
exemplo, admira-se da absoluta precisão com que cadaexemplo, admira-se da absoluta precisão com que cada
músculo do corpo é representado, sua contração e seumúsculo do corpo é representado, sua contração e seu
relaxamento exatos, de acordo com a postura. Pois bem,relaxamento exatos, de acordo com a postura. Pois bem,
depois de ver uma porção de estátuas anatomicamentedepois de ver uma porção de estátuas anatomicamente
perfeitas, estava diante de mais uma. Até então, nada deperfeitas, estava diante de mais uma. Até então, nada de
novo. Os detalhes das unhas, os tendões, Ojogo muscunovo. Os detalhes das unhas, os tendões, Ojogo muscu
lar das faces da Nossa Senhora e do Cristo, tudo eralar das faces da Nossa Senhora e do Cristo, tudo era
absolutamente perfeito e proporcional. Mas havia um esabsolutamente perfeito e proporcional. Mas havia um es
cândalo, um "erro": a desproporção entre o tamanho dacândalo, um "erro": a desproporção entre o tamanho da
Nossa Senhora e o tamanho do Cristo morto.Nossa Senhora e o tamanho do Cristo morto.
No primeiro choque, pensei: "Que distorção!". AoNo primeiro choque, pensei: "Que distorção!". Ao
mesmo tempo, intrigava-me o fato de não ter percebidomesmo tempo, intrigava-me o fato de não ter percebido
isso de imisso de imediato. Essa despropediato. Essa desproporção - orção - que com certezaque com certeza
não era casual — fez aparecer para mim a fala daquelanão era casual — fez aparecer para mim a fala daquela
estátua em particular. O que estava ali representado naestátua em particular. O que estava ali representado na
pedra não eram duas figuras, um homem morto no colopedra não eram duas figuras, um homem morto no colo
de uma mulher. Michelangelo havia trazido à tona, dode uma mulher. Michelangelo havia trazido à tona, do
interior de um bloco de mármore, a relação da mãe cominterior de um bloco de mármore, a relação da mãe com
o filho morto — que antes de tudo é filho. Quem estáo filho morto — que antes de tudo é filho. Quem está
morto no colo da mulher é omorto no colo da mulher é o f f iillhh oo   dela. E filho  dela. E filho nunca é nunca é 
grande. Sempre caberá no colo. Para mostrar isso o artisgrande. Sempre caberá no colo. Para mostrar isso o artis
ta pôde desrespeitar as proporções esperadas. Ele foita pôde desrespeitar as proporções esperadas. Ele foi
capaz de fazer um Cristo absolutamente proporcional;capaz de fazer um Cristo absolutamente proporcional;
fez também uma Nossa Senhora proporcional nos mínifez também uma Nossa Senhora proporcional nos míni
mos detalhes. E fez uma desproporção espantosa entremos detalhes. E fez uma desproporção espantosa entre
 2 2 88 N N aa PPrr e se se n ç ae n ç a dd oo  S S een tn t iid od o
o tamanho dessa mulher e o tamanho desse homem, poro tamanho dessa mulher e o tamanho desse homem, por
que não é homem — é filho.que não é homem — é filho.
O que está naquela obra de arte é a acolhida do fiO que está naquela obra de arte é a acolhida do fi
lho morto no colo. Ela fala de uma das grandes paixõeslho morto no colo. Ela fala de uma das grandes paixões
humanas. Fala do vínculo, da vida, da morte, do ganho,humanas. Fala do vínculo, da vida, da morte, do ganho,
da perda, da dor, da dedicação e de muito mais.da perda, da dor, da dedicação e de muito mais.
A fala daquela estátua estendeu-se tanto que ficouA fala daquela estátua estendeu-se tanto que ficou
difícil controlar minha emoção. Distanciei-me por algumdifícil controlar minha emoção. Distanciei-me por algum
tempo e só voltei quando havia menos gente perto. Sentitempo e só voltei quando havia menos gente perto. Senti
que tinha sido tocado por algo que Michelangelo, genial eque tinha sido tocado por algo que Michelangelo, genial e
delicadamente, havia feito surgir de dentro de um blocodelicadamente, havia feito surgir de dentro de um bloco
de pedra.de pedra.
A obra de arte diz respeito a cada um de nós, comoA obra de arte diz respeito a cada um de nós, como
a semente diz respeito à terra. A palavra homem tem aa semente diz respeito à terra. A palavra homem tem a
mesma etimologia de húmus. Húmus é terra, mas nãomesma etimologia de húmus. Húmus é terra, mas não
qualquer terra. É terra fértil. Ouvir a fala da obra é acoqualquer terra. É terra fértil. Ouvir a fala da obra é aco
lher uma semente.lher uma semente.
A peculiaridade da terra fértil é a sua abertura paraA peculiaridade da terra fértil é a sua abertura para
acolher a semente que cai sobre ela. Esse solo recolhe aacolher a semente que cai sobre ela. Esse solo recolhe a
semente para que o grão venha a ser. Pois uma sementesemente para que o grão venha a ser. Pois uma semente
é sempre umé sempre um p pooddeer r sseerr,, uma promessa daquilo que ainda uma promessa daquilo que ainda
não é, mas que poderá ser e chegará a ser quando enconnão é, mas que poderá ser e chegará a ser quando encon
trar a terra fértil. Não será aquilo que a terra possa quetrar a terra fértil. Não será aquilo que a terra possa que
rer que ela seja, mas aquilo que ela mesma, semente, járer que ela seja, mas aquilo que ela mesma, semente, já
traz como poder ser.traz como poder ser.
 A A rr tt ee ee E E  x x iiss tt êênncc iiaa 2299
Ao ouvir a fala da pedra que pelas mãos de MicheAo ouvir a fala da pedra que pelas mãos de Miche
langelo chegoua me dizer algo, em harmonia, reencon-langelo chegou a me dizer algo, em harmonia, reencon-
trei-me com o artista, com os outros homens, com as petrei-me com o artista, com os outros homens, com as pe
dras do mundo, com as coisas do mundo.dras do mundo, com as coisas do mundo.
Acima de tudo, vi a mim próprio de novo como ho-Acima de tudo, vi a mim próprio de novo como ho-
mem, quando aquela semente — lançada em minha diremem, quando aquela semente — lançada em minha dire
ção pelo trabalho cuidadoso de um gênio da escultura —ção pelo trabalho cuidadoso de um gênio da escultura —
caiu sobre mim como em terra fértil. Começou a formarcaiu sobre mim como em terra fértil. Começou a formar
raízes, a ampliar-se num discurso que não mais cessou.raízes, a ampliar-se num discurso que não mais cessou.
Fez com que eu me descobrisse como homem/húmus,Fez com que eu me descobrisse como homem/húmus,
capaz de acolher e dar espaço para uma semente se encapaz de acolher e dar espaço para uma semente se en
raizar, crescer e dizer muito daquilo que uma pedraraizar, crescer e dizer muito daquilo que uma pedra
pode dizer.pode dizer.
Existência e arte relacionam-se de uma forma pecuExistência e arte relacionam-se de uma forma pecu
liar e vigorosa, pois a existência é o modo de ser especíliar e vigorosa, pois a existência é o modo de ser especí
fico do homem, modo de ser que o faz aberto para ofico do homem, modo de ser que o faz aberto para o
sonhar, e, assim, capaz de ouvir a voz das coisas quesonhar, e, assim, capaz de ouvir a voz das coisas que
falam por intermédio da obra. Nós, homens comuns, pofalam por intermédio da obra. Nós, homens comuns, po
demos escutar a fala da obra. Outros, os artistas, pordemos escutar a fala da obra. Outros, os artistas, por
serem mais sensíveis, estão sintonizados com uma falaserem mais sensíveis, estão sintonizados com uma fala
quando ela ainda não passa de um sussurro que umaquando ela ainda não passa de um sussurro que uma
possibilidade lhes envia ainda de longe, e criam a obrapossibilidade lhes envia ainda de longe, e criam a obra
de arte.de arte.
HISTÓRIA DOS DESEJOSHISTÓRIA DOS DESEJOS
Hoje quero estar com vocês nesta conversa de umaHoje quero estar com vocês nesta conversa de uma
maneira muito pessoal, quase como se fosse uma confimaneira muito pessoal, quase como se fosse uma confi
dência, o único modo que vejo para falar de coisas tãodência, o único modo que vejo para falar de coisas tão
significativas para mim. Vou lhes contar uma história.significativas para mim. Vou lhes contar uma história.
É uma história que fala das histórias dos nossos desejos,É uma história que fala das histórias dos nossos desejos,
dos nossos sonhos. Não dos sonhos que temos dormindo,dos nossos sonhos. Não dos sonhos que temos dormindo,
mas daqueles que construímos quando andamos pelamas daqueles que construímos quando andamos pela
praia, quando estamos sozinhos, quando, na cama, espepraia, quando estamos sozinhos, quando, na cama, espe
ramos o sono chegar, nos momentos de recolhimento.ramos o sono chegar, nos momentos de recolhimento.
Nessas horas começamos a criar histórias. Elas expresNessas horas começamos a criar histórias. Elas expres
sam os desejos do nosso coração.sam os desejos do nosso coração.
Falar em desejos me faz recordar uma coisa. QuanFalar em desejos me faz recordar uma coisa. Quan
do me perguntavam o que eu mais desejava na vida, ado me perguntavam o que eu mais desejava na vida, a
resposta mais verdadeira que eu tinha era: "Que os meusresposta mais verdadeira que eu tinha era: "Que os meus
sonhos se realizem".sonhos se realizem".
Sonhamos com coisas muito próximas, pequenas — parSonhamos com coisas muito próximas, pequenas — par
exemplo, o fim de semana ou a viagem que desejamos -,exemplo, o fim de semana ou a viagem que desejamos -,
 3 322 N N aa  PRESENÇA DO SENTIDO PRESENÇA DO SENTIDO
mas sonhamos também com aquelas coisas que parecemmas sonhamos também com aquelas coisas que parecem
muito grandes e mesmo distantes.muito grandes e mesmo distantes.
Entre os grandes sonhos que já tive havia aquele deEntre os grandes sonhos que já tive havia aquele de
criar um mundo melhor, mais bonito. Nas conversascriar um mundo melhor, mais bonito. Nas conversas
com meus amigos víamos o mundo ameaçado, e o noscom meus amigos víamos o mundo ameaçado, e o nos
so sonho era salvar o mundo, como naqueles contos emso sonho era salvar o mundo, como naqueles contos em
que o príncipe, depois de muitas aventuras e dificuldaque o príncipe, depois de muitas aventuras e dificulda
des, salva a princesa.des, salva a princesa.
Em nossos sonhos, vivemos todos os tipos de senEm nossos sonhos, vivemos todos os tipos de sen
sações: algumas estranhas, outras gostosas, e até um cersações: algumas estranhas, outras gostosas, e até um cer
to medo, que aparece quando a realização do sonho seto medo, que aparece quando a realização do sonho se
aproxima.aproxima.
Sentimos facilidade para contar certos sonhos, masSentimos facilidade para contar certos sonhos, mas
há outros que não queremos contar. Estes parecem tãohá outros que não queremos contar. Estes parecem tão
nossos, tão de dentro de nós, que, mesmo sendo tão bonossos, tão de dentro de nós, que, mesmo sendo tão bo
nitos, ou talvez por isso mesmo, temos medo ou vergonitos, ou talvez por isso mesmo, temos medo ou vergo
nha de contar para os outros. Os sonhos de amor talveznha de contar para os outros. Os sonhos de amor talvez
sejam os mais profundos, mais curtidos; chegam a assejam os mais profundos, mais curtidos; chegam a as
sustar e são guardados em segredo. O tema do amor nãosustar e são guardados em segredo. O tema do amor não
se limita a um sonho isolado; ele entra em quase todosse limita a um sonho isolado; ele entra em quase todos
os sonhos. Uma pitadinha de amor torna mais saborosasos sonhos. Uma pitadinha de amor torna mais saborosas
as fantasias.as fantasias.
Há sonhos tão gostosos, tão bons, pelos quais nosHá sonhos tão gostosos, tão bons, pelos quais nos
apaixonamos. Eles se tornam cada vez mais preciosos,apaixonamos. Eles se tornam cada vez mais preciosos,
tesouros escondidos.tesouros escondidos.
H H ii s ts t ó ró r iiaa dd oo ss  D D esese je j o sos 3333
Se os sonhos são bonitos, por que os escondemos,Se os sonhos são bonitos, por que os escondemos,
por que tanta vergonha de falar dos sonhos? Levei muitopor que tanta vergonha de falar dos sonhos? Levei muito
tempo para compreender o porquê disso: é que quandotempo para compreender o porquê disso: é que quando
falamos, quando mostramos nosso sonho, nós nos damosfalamos, quando mostramos nosso sonho, nós nos damos
conta de que, embora já convivamos com ele há muitoconta de que, embora já convivamos com ele há muito
tempo, ele parece algo extremamente frágil. Quanto maistempo, ele parece algo extremamente frágil. Quanto mais
importante é o sonho, mais medo de contar. Parece queimportante é o sonho, mais medo de contar. Parece que
se o outro não o entender, se o outro ficar longe do meuse o outro não o entender, se o outro ficar longe do meu
sonho, este vai desmoronar.sonho, este vai desmoronar.
Os sonhos de amor são muito sensíveis. Quando meOs sonhos de amor são muito sensíveis. Quando me
apaixonava por uma menina, começava a inventar hisapaixonava por uma menina, começava a inventar his
tórias. Sonhava com ela numa praia maravilhosa, pastórias. Sonhava com ela numa praia maravilhosa, pas
seando de barco, andando pelas montanhas. Eu me senseando de barco, andando pelas montanhas. Eu me sen
tia realizado dentro do meu sonho.tia realizado dentro do meu sonho.
Ela era a menina dos meus sonhos, com quem euEla era a menina dos meus sonhos, com quem eu
vivia todas as aventuras. Eu era herói e salvava minhavivia todas as aventuras. Eu era herói e salvava minha
amada dos perigos.amada dos perigos.
Nas histórias que sonhava, eu havia encontrado oNas histórias que sonhava, eu havia encontrado o
melhor de mim. Lá eu colocava tudo que podia imaginarmelhorde mim. Lá eu colocava tudo que podia imaginar
de mais bonito, de mais rico.de mais bonito, de mais rico.
Na hora de ir conversar com a menina, porém, noNa hora de ir conversar com a menina, porém, no
momento em que estava na beirinha de passar para a reamomento em que estava na beirinha de passar para a rea
lidade, tudo se complicava. A cabeça ficava em branco,lidade, tudo se complicava. A cabeça ficava em branco,
a boca secava, sumiam os assuntos, eu tremia, sentia vera boca secava, sumiam os assuntos, eu tremia, sentia ver
gonha, pânico, porque teria de contar para ela um pouaogonha, pânico, porque teria de contar para ela um pouao
 3 344 N N aa PP rr e se se ne nç aç a dd oo  S S een tn t iid od o
do meu sonho, teria de lhe dizer o quanto ela era impordo meu sonho, teria de lhe dizer o quanto ela era impor
tante para mim dentro dos meus sonhos.tante para mim dentro dos meus sonhos.
Se eu era o herói, ela era a heroína, e o que aconteSe eu era o herói, ela era a heroína, e o que aconte
cia no meu sonho se dava porque eu estava muito ligacia no meu sonho se dava porque eu estava muito liga
do a ela. Ela tinha disparado dentro de mim essa vontade,do a ela. Ela tinha disparado dentro de mim essa vontade,
essa capacidade de criar histórias e de me envolver nesessa capacidade de criar histórias e de me envolver nes
sas histórias que são os nossos sonhos.sas histórias que são os nossos sonhos.
Eu tinha também um sonho ruim. Era um pesadelo:Eu tinha também um sonho ruim. Era um pesadelo:
a menina não iria me entender, não estaria ligada ema menina não iria me entender, não estaria ligada em
mim. Aí, eu sentia medo e percebia que meu sonho, quemim. Aí, eu sentia medo e percebia que meu sonho, que
me fazia tão forte, também me fazia muito fraco. O some fazia tão forte, também me fazia muito fraco. O so
nho me fazia ficar enorme dentro dele e pequeno na reanho me fazia ficar enorme dentro dele e pequeno na rea
lidade.lidade.
Quando chegava perto da menina dos meus soQuando chegava perto da menina dos meus so
nhos, eu ia diminuindo, quase virava o Pequeno Polenhos, eu ia diminuindo, quase virava o Pequeno Pole
gar. Outra sensação vinha junto: ela ficava enorme, tãogar. Outra sensação vinha junto: ela ficava enorme, tão
poderosa como se fosse a dona dos meus sonhos, comopoderosa como se fosse a dona dos meus sonhos, como
se ela tivesse ganho toda a força que estava neles. Nasse ela tivesse ganho toda a força que estava neles. Nas
mãos dela, no entendimento dela, na aceitação dela ficamãos dela, no entendimento dela, na aceitação dela fica
vam pendurados todos os meus sonhos. Eu estava navam pendurados todos os meus sonhos. Eu estava na
dependência de ela dizer um sim ou um não, entenderdependência de ela dizer um sim ou um não, entender
o que eu estava falando ou rir de mim.o que eu estava falando ou rir de mim.
Vocês não imaginam como eu tinha medo de que aVocês não imaginam como eu tinha medo de que a
menina dos meus sonhos risse deles. Se ela desse risadamenina dos meus sonhos risse deles. Se ela desse risada
dos meus sonhos, e esse era o meu pesadelo, tudo aquidos meus sonhos, e esse era o meu pesadelo, tudo aqui
lo que eu tinha de mais bonito, de mais forte, de maiorlo que eu tinha de mais bonito, de mais forte, de maior
HiSTóRiAHiSTóRiA ddoo ss DD esese je j o sos 3355
dentro de mim, e que eu havia colocado dentro do sonho,dentro de mim, e que eu havia colocado dentro do sonho,
iria virar fumaça. Parecia que, num passe de mágica,iria virar fumaça. Parecia que, num passe de mágica,
como se fosse uma bruxa, essa menina poderia fazer tudocomo se fosse uma bruxa, essa menina poderia fazer tudo
desaparecer.desaparecer.
Se isso acontecesse, eu ficaria vazio. Sobrariam paraSe isso acontecesse, eu ficaria vazio. Sobrariam para
mim só as coisas que eu não tinha colocado no sonho, asmim só as coisas que eu não tinha colocado no sonho, as
coisas feias, pequenas, quebradas, pois as bonitas teriamcoisas feias, pequenas, quebradas, pois as bonitas teriam
desaparecido. Sobraria só o lixo, o resto. Meu maior medodesaparecido. Sobraria só o lixo, o resto. Meu maior medo
era porque, se a menina dos meus sonhos risse deles, elaera porque, se a menina dos meus sonhos risse deles, ela
os tornaria ridículos. Eu mesmo ficaria com vergonha deos tornaria ridículos. Eu mesmo ficaria com vergonha de
tê-los sonhado, das minhas histórias, de tudo o que eu titê-los sonhado, das minhas histórias, de tudo o que eu ti
nha de melhor. Imaginem então a vergonha que eu terianha de melhor. Imaginem então a vergonha que eu teria
do pior.do pior.
Compreendi o quanto era preciso que ela contribuísCompreendi o quanto era preciso que ela contribuís
se, que pelo menos entendesse o que estava no meu sose, que pelo menos entendesse o que estava no meu so
nho; parecia que minha relação com meus sonhos passavanho; parecia que minha relação com meus sonhos passava
por ela, que dependia da aceitação, da compreensão, dopor ela, que dependia da aceitação, da compreensão, do
envolvimento dela. Mesmo que essa menina não pudesenvolvimento dela. Mesmo que essa menina não pudes
se corresponder àquilo que eu tinha sonhado, que elase corresponder àquilo que eu tinha sonhado, que ela
não me amasse, não me admirasse como eu tinha imanão me amasse, não me admirasse como eu tinha ima
ginado no meu sonho, mesmo que eu tivesse de me deginado no meu sonho, mesmo que eu tivesse de me de
cepcionar, não seria tão difícil, tão assustador quanto secepcionar, não seria tão difícil, tão assustador quanto se
ela ridicularizasse meus sonhos.ela ridicularizasse meus sonhos.
Percebi que meus sonhos poderiam ser destruídosPercebi que meus sonhos poderiam ser destruídos
de uma hora para outra. O que tinha sido fonte de prade uma hora para outra. O que tinha sido fonte de pra
zer, de realização, de entusiasmo, poderia se evaporar ezer, de realização, de entusiasmo, poderia se evaporar e
 3 366 N N aa PP rr ees es en ç an ç a ddoo SSeen tn t iid od o
se transformar numa fonte de vergonha. Por isso, eu tise transformar numa fonte de vergonha. Por isso, eu ti
nha medo, vergonha de ficar tão pequenininho perto denha medo, vergonha de ficar tão pequenininho perto de
uma pessoa que tinha ficado tão grande.uma pessoa que tinha ficado tão grande.
Esses eram meus medos. Mas, enfim, uma hora euEsses eram meus medos. Mas, enfim, uma hora eu
conseguia conversar com a menina. E a menina dos meusconseguia conversar com a menina. E a menina dos meus
sonhos correspondia, também estava ligada em mim, tamsonhos correspondia, também estava ligada em mim, tam
 bém  bém hahavivia a sosonhnhadado o cocommigigo, o, e e eu eu eera ra pepersorsonanagegem m ddasas
histórias dela, como ela era das minhas.histórias dela, como ela era das minhas.
Assim, eu achava que toda a felicidade do mundoAssim, eu achava que toda a felicidade do mundo
tinha entrado para meu sonho, como se a realidade fitinha entrado para meu sonho, como se a realidade fi
zesse parte dele, como se meu sonho não fosse uma coizesse parte dele, como se meu sonho não fosse uma coi
sa frágil dentro de um mundo forte; o mundo era partesa frágil dentro de um mundo forte; o mundo era parte
do meu sonho.do meu sonho.
Nesse momento eu me sentia possuidor de toda aNesse momento eu me sentia possuidor de toda a
força que meu sonho havia despertado, anunciado nasforça que meu sonho havia despertado, anunciado nas
histórias que eu inventara, e me sentia herói sem ter feihistórias que eu inventara, e me sentia herói sem ter fei
to nada. Eu era o herói dos meus sonhos, e eles tinhamto nada. Eu era o herói dos meus sonhos, e eles tinham
podido chegar à realidade pelas mãos, pela concordânpodido chegar à realidade pelas mãos, pela concordân
cia, pela parceria da menina dos meus sonhos.cia, pela parceria da menina dos meus sonhos.
Começava o namoro, uma grande curtição, umaComeçava o namoro, uma grande curtição, uma
história que não era só sonhada, que também era real.história quenão era só sonhada, que também era real.
Tudo ia bem até que uma sensação engraçada começavaTudo ia bem até que uma sensação engraçada começava
a surgir: parecia que eu gostava mais dela quando elaa surgir: parecia que eu gostava mais dela quando ela
estava longe.estava longe.
Quando ela estava longe, eu sonhava com ela. EsQuando ela estava longe, eu sonhava com ela. Es
tando perto, o sonho ficava meio de lado, parecia que astando perto, o sonho ficava meio de lado, parecia que as
H H ii ss tt ó ró r iiaa dd oo ss DD esese je j o sos 33 7 7 
coisas não podiam ser tão bonitas como no sonho. Eracoisas não podiam ser tão bonitas como no sonho. Era
meio esquisito, eu curtia mais os momentos da despedimeio esquisito, eu curtia mais os momentos da despedi
da, da separação.da, da separação.
Que estaria acontecendo? Começava a duvidar seQue estaria acontecendo? Começava a duvidar se
gostava mesmo dela. Ficava com medo de sonhar, porgostava mesmo dela. Ficava com medo de sonhar, por
que parecia que meu sonho me levava para longe da meque parecia que meu sonho me levava para longe da me
nina dos meus sonhos, como um traidor brigando comnina dos meus sonhos, como um traidor brigando com
aquilo que no começo ele tinha dito que desejava, que eraaquilo que no começo ele tinha dito que desejava, que era
namorar a menina dos meus sonhos.namorar a menina dos meus sonhos.
Nesse ponto o sonho começava a se desmanchar. EuNesse ponto o sonho começava a se desmanchar. Eu
 já  já nãnão o sasabibia a se se gogostastava va dedelala, , poporqrque ue ela ela nãnão o era era mmais ais aa
menina dos meus sonhos. Agora ela tinha um nome, eramenina dos meus sonhos. Agora ela tinha um nome, era
Maria, era Joana, era Aninha, era Roberta, ela era umaMaria, era Joana, era Aninha, era Roberta, ela era uma
pessoa real, a pessoa real que tinha desbancado a menipessoa real, a pessoa real que tinha desbancado a meni
na dos meus sonhos, e eu tinha saudade dela.na dos meus sonhos, e eu tinha saudade dela.
Às vezes eu via essa mesma coisa acontecer com aÀs vezes eu via essa mesma coisa acontecer com a
menina dos meus sonhos. Ficava aflito ao sentir que elamenina dos meus sonhos. Ficava aflito ao sentir que ela
se afastava, não estava mais tão envolvida comigo.se afastava, não estava mais tão envolvida comigo.
Foi assim mais de uma vez, e eu comecei a pensar:Foi assim mais de uma vez, e eu comecei a pensar:
"Será que o amor só é gostoso quando é novo e depois"Será que o amor só é gostoso quando é novo e depois
perde a graça?". Passei também a achar que meus soperde a graça?". Passei também a achar que meus so
nhos eram perigosos, pois eles podiam esvaziar aquilonhos eram perigosos, pois eles podiam esvaziar aquilo
que minha realidade permitia que eu vivesse.que minha realidade permitia que eu vivesse.
Percebi outra coisa ainda. Meu sonho se desmanchaPercebi outra coisa ainda. Meu sonho se desmancha
va exatamente porque eu tinha tido a sorte de realizá-lo;va exatamente porque eu tinha tido a sorte de realizá-lo;
mas o sonho realizado não era tão bonito como o sonhado.mas o sonho realizado não era tão bonito como o sonhado.
Esse sonho aos poucos morria.Esse sonho aos poucos morria.
3838 NNA A PRESPRESENÇENÇA A DO DO SSENTENTIDOIDO
Em outras ocasiões, as coisas se passavam de outroEm outras ocasiões, as coisas se passavam de outro
 je jeitoito. . QuQuanando do eu eu me me apaproroxiximmavava a dda a mmenenina ina dodos s memeusus
sonhos para lhe falar dos sonhos que tinha sonhado, dasonhos para lhe falar dos sonhos que tinha sonhado, da
minha paixão, ela ficava constrangida, meio assustada;minha paixão, ela ficava constrangida, meio assustada;
sabia que aquilo não tinha nada a ver, ela estava ligadasabia que aquilo não tinha nada a ver, ela estava ligada
em outra pessoa.em outra pessoa.
Aí, então, eu pensava na sensação de vergonha queAí, então, eu pensava na sensação de vergonha que
teria diante daquele que era o herói dos sonhos da meteria diante daquele que era o herói dos sonhos da me
nina dos meus sonhos. Se ela estava ligada nele, com cernina dos meus sonhos. Se ela estava ligada nele, com cer
teza ele era muito maior que eu, pois senão ela estariateza ele era muito maior que eu, pois senão ela estaria
ligada em mim e não no outro.ligada em mim e não no outro.
Era uma tristeza quando o sonho acabava.Era uma tristeza quando o sonho acabava.
Era muito mais triste, porém, quando a menina dosEra muito mais triste, porém, quando a menina dos
meus sonhos não entendia nada do que eu estava dizenmeus sonhos não entendia nada do que eu estava dizen
do, quando ela achava engraçado, quando olhava parado, quando ela achava engraçado, quando olhava para
mim como se eu fosse um bicho estranho. Além de nãomim como se eu fosse um bicho estranho. Além de não
me amar, ela achava ridículos os meus sonhos. Essa erame amar, ela achava ridículos os meus sonhos. Essa era
a pior situação de todas, a mais doída. Esse sonho instana pior situação de todas, a mais doída. Esse sonho instan
taneamente morria.taneamente morria.
No momento em que o sonho morria, eu vivia umaNo momento em que o sonho morria, eu vivia uma
profunda solidão. Eram inúteis o amor dos outros, a preprofunda solidão. Eram inúteis o amor dos outros, a pre
sença dos outros. Eu estava vazio, um buraco, sem ter comosença dos outros. Eu estava vazio, um buraco, sem ter como
responder ao interesse, ao amor da família, dos amigos.responder ao interesse, ao amor da família, dos amigos.
Isso porque a menina dos meus sonhos tinha se apodeIsso porque a menina dos meus sonhos tinha se apode
rado de tudo aquilo que eu tinha de bom, de tudo aquilorado de tudo aquilo que eu tinha de bom, de tudo aquilo
que eu achava que sabia fazer com o amor das pessoas.que eu achava que sabia fazer com o amor das pessoas.
H H iiss tt ó ró r iiaa ddoo ss DD eesesejj o sos 3399
Mais farde, descobri que não são só os sonhos de amorMais farde, descobri que não são só os sonhos de amor
que, ao morrerem, nos deixam sós. Toda vez que temos umque, ao morrerem, nos deixam sós. Toda vez que temos um
sonho muito precioso, muito curtido, no qual escrevesonho muito precioso, muito curtido, no qual escreve
mos muitas histórias, e esse sonho morre, nós nos senmos muitas histórias, e esse sonho morre, nós nos sen
timos solitários.timos solitários.
Em conversas com as pessoas, percebi que elas, freEm conversas com as pessoas, percebi que elas, fre
qüentemente, sentiam que os sonhos atrapalhavam suasqüentemente, sentiam que os sonhos atrapalhavam suas
vidas. Quando contava algum sonho da minha profisvidas. Quando contava algum sonho da minha profis
são, dos filhos que eu teria um dia, da realização de umasão, dos filhos que eu teria um dia, da realização de uma
família, de um grupo de amigos, elas me diziam: "Vocêfamília, de um grupo de amigos, elas me diziam: "Você
é um bobo que fica fora da realidade; o mundo não é asé um bobo que fica fora da realidade; o mundo não é as
sim, a realidade é muito diferente".sim, a realidade é muito diferente".
Quando as pessoas falavam assim, quando achavamQuando as pessoas falavam assim, quando achavam
ridículos os meus sonhos, eles eram destruídos. Eu meridículos os meus sonhos, eles eram destruídos. Eu me
sentia meio encurralado, como se precisasse concordarsentia meio encurralado, como se precisasse concordar
com elas. De fato, meus sonhos não eram a realidade; meuscom elas. De fato, meus sonhos não eram a realidade; meus
sonhos eram meus sonhos, eram o meu desejo e não a reasonhos eram meus sonhos, eram o meu desejo e não a rea
lidade do mundo.lidade do mundo.
Nesses momentos, eu me encolhia todo e largava dosNesses momentos, eu me encolhia todo e largava dos
meus sonhos, até que um dia passei a pensar: "Por que essameus sonhos, até que um dia passei a pensar: "Por que essa
pessoa tem raiva dos meus sonhos? Por que ela quer quepessoa tem raiva dos meus sonhos? Por que ela quer que
eu pare de sonhar? Por que é tão agressiva comigo quaneu

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