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INSTITUTO SUPERIOR DE TEOLOGIA APLICADA – INTA CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE CURSO DE SERVIÇO SOCIAL FRANCISCO ELIONARDO DE MELO NASCIMENTO ENTRE MURALHA, GRADES E VIVÊNCIAS: UMA ETNOGRAFIA DA RESSOCIALIZAÇÃO NA PENITENCIÁRIA INDUSTRIAL REGIONAL DE SOBRAL SOBRAL - CEARÁ 2015 FRANCISCO ELIONARDO DE MELO NASCIMENTO ENTRE MURALHA, GRADES E VIVÊNCIAS: UMA ETNOGRAFIA DA RESSOCIALIZAÇÃO NA PENITENCIÁRIA INDUSTRIAL REGIONAL DE SOBRAL Monografia apresentada ao Curso de Serviço Social, do Centro de Ciências da Saúde, das Faculdades do Instituto Superior de Teologia Aplicada - INTA, como requisito parcial para obtenção do título em Bacharel em Serviço Social, sob a orientação do Prof. Me. Antônio Diogo Cals de Oliveira Filho. SOBRAL-CEARÁ 2015 Monografia apresentada ao curso de Serviço Social, do Instituto Superior de Teologia Aplicada – INTA. ___________________________________________ Francisco Elionardo de Melo Nascimento Aprovado em___/___/____ _______________________________________________ Professor Ms. Antônio Diogo Cals de Oliveira Filho Orientador _______________________________________________ 1º Examinador(a) Profa. Ms. Francisca Lopes de Souza _______________________________________________ 2º Examinador(a) Profa. Ms. Juliana Magalhães Linhares ________________________________________________ Professora Ms. Francisca Maria dos Santos Coordenadora do Curso Dedico este trabalho em especial aos meus amigos e colegas Agentes Penitenciários, guerreiros e guerreiras do sistema prisional cearense. AGRADECIMENTOS Este trabalho não seria o mesmo nem teria a mesma intensidade se não fosse à contribuição e a paixão de muitas pessoas que passaram e se mantiveram na minha vida. Chegou a hora de olhar para traz e ver como tudo começou, foi uma trajetória difícil e desafiadora, mas também saborosa. Dedico este trabalho em especial aos meus pais, guerreiro e guerreira, que não mediram esforços em suas lutas diárias em tempos de precariedade para educar seus doze filhos. Aos meus irmãos Elizabete, Ermeson, Edvaldo, Elton, Ednaldo, Ednardo, Elane, Elaine, Edilene, Tiago e a minha querida irmã Elizene com que compartilhei muitas angustias, problemas e alegrias na vinda a Sobral. Dizem que irmãos também são escolhidos, pois é Jorge é um irmão que eu escolhi ter. Tivemos uma proximidade desde o primeiro semestre da faculdade, mas a partir do terceiro semestre vieram mais dois irmãos, Laércio e Rosa, juntos compartilhamos muitas dificuldades no decorrer do curso, mas acima de tudo compartilhamos afetos, alegrias, descobertas e preservamos uma amizade que creio que dure um longo tempo, se não a eternidade. Ao meu querido orientador e amigo Diogo Cals, por muitas vezes que lhe procurei para tirar dúvidas ou para compartilhar ―achados‖, por ter me acolhido em um momento de aflição e ter acalmado minha impaciência com o tempo, por ter compartilhado comigo uma pequena parte da sua enorme generosidade e conhecimento. Afirmo com toda sinceridade: MUITO OBRIGADO! Aos meus professores que me iluminaram em toda a trajetória do curso, a minha querida Rita Monteiro que sempre me ilumina com seus conselhos e sua sapiência, ao Felipe Franklin por ter me despertado a doce compulsão por leituras, a Claúdia costa por ter me ensinado como encarar dez atividades juntas de forma consciente, a Isabele Rocha por ter me ensinado a doçura na arte de ensinar, a Raquel Jales pela sua saudosa competência profissional e ética, a Francisca Lopes por sua generosidade, competência e disponibilidade, eis uma pessoa admirável. Por fim, agradeço a direção da PIRS por permitir que a pesquisa fosse realizada, mas também pela disponibilização de informações restritas a instituição. Aos meus queridos Agentes penitenciários que contribuíram com suas entrevistas para o enriquecimento deste trabalho. A todos os envolvidos: MUITO OBRIGADO! ―Propomo-nos a fazer saber o que é a prisão: quem entre nela, como e por que se vai parar nela, o que se passa ali, o que é a vida dos prisioneiros, e igualmente, a do pessoal de vigilância, o que são os prédios, a alimentação, a higiene, como funcionam, se sai dela e o que é, em nossa sociedade, ser um daqueles que saiu.‖ (Manifesto do Grupo de Informações sobre a Prisão – J-M. Domenach, M. Foucalt, P. Vidal-Nequet, Paris, 08.02.1971). A prisão não permite muito tempo para se refletir sobre ela mesma, porque a prisão é o caos, alias, caos é seu próprio sentido e sua própria ordem. (SÀ, 2009, p. 16). RESUMO O objetivo desta pesquisa foi analisar as técnicas e estratégias utilizadas para a ressocialização de presos, a partir da percepção dos Agentes Penitenciários da Penitenciária Industrial Regional de Sobral (PIRS). Analisei o cotidiano dos 53 Agentes Penitenciários, distribuídos em quatro equipes diferentes no período total de 30 dias, sendo realizadas entrevistas semiestruturadas com 6 Agentes. As observações, de matiz etnográfico, que incluíram ações, gestos, palavras e ambiente físico, foram registradas em cadernos de campo. A análise das observações foi realizada de forma reflexiva a partir da Lei de Execução Penal (LEP) e subsidiada por estudos das prisões e das relações grupais no interior do cárcere. A sistematização das análises permitiu inferir que: i) o ambiente das prisões é esquadrinhado por disputas das gangues, tráfico de drogas e precariedade na sua estrutura física; ii) as más condições de trabalho são caracterizadas pela falta de treinamento e equipamentos essenciais para a atuação dos profissionais de segurança e outros no cárcere; iii) a precarização e pauperização do espaço com a fragilidade das estruturas e a falta de profissionais da segurança dificulta a execução das atividades voltadas a ressocialização dos presos; iv) o estado é negligente quanto a oferta de trabalho, capacitação profissional e assistências (educacional, saúde, material, psicossocial e jurídica). A pesquisa revelou a fragilidade na execução das técnicas e estratégias proposta para a ressocialização dos presos, sendo executadas de forma precária e com pequena abrangência, além da inobservância de parâmetros referentes à manutenção e tratamento, previstos na LEP e outros documentos legais (nacionais e internacionais) referentes à normatização do funcionamento dos estabelecimentos prisionais. De fato, A ressocialização é encarada na PIRS como um fator secundário da execução da pena privativa de liberdade. Palavras-Chave: Prisão; Punição; Ressocialização. ABSTRACT The objective of this research was to analyze the techniques and strategies used for the rehabilitation of prisoners, from the perception of Penitentiary Agents of the Industrial Penitentiary Regional Sobral (PIRS). I analyzed the daily lives of 53 Correctional agents, divided into four different teams in total period of 30 days, semi- structured interviews being conducted with 6 agents. The observations of ethnographic hue, which included actions, gestures, words and physical environment were recorded in field notebooks. The analysis of the observations was held reflectively from the Law on Penal Execution (LEP) and subsidized by studies of prisons and group relationships inside the prison. The systematization of analyzes allowed to infer that: i) the environment of prisons is scanned by disputes of gangs, drug trafficking and insecurity in their physical structure; ii) poor working conditions are characterized by a lack oftraining and essential equipment for the work of security professionals and others in the prison; iii) the precariousness and impoverishment of space with the fragility of the structures and the lack of security professionals hinders the implementation of activities aimed at rehabilitation of prisoners; iv) the state is negligent as labor supply, job training and assists (educational, health, material, psychosocial and legal). The survey revealed the weakness in the implementation of techniques and proposed strategies for the rehabilitation of prisoners , running precariously and with little coverage , as well as non-compliance with parameters for maintenance and treatment provided for in the LEP and other legal documents (national and international ) regarding the regulation of the operation of prisons . Indeed, the rehabilitation is seen in PIRS as a secondary factor in the execution of the sentence of deprivation of liberty. Keywords: Prison; Punishment; Resocialization. SUMÁRIO INTRODUÇÃO...................................................................................................11 CAPÍTULO I. METODOLOGIA.......................................................................... 14 1.1 Entrada no campo........................................................................................14 1.2 Procedimentos metodológicos e éticos ...................................................... 19 1.3 Lócus da pesquisa ..................................................................................... 23 1.4 Perfis dos entrevistados ............................................................................. 28 CAPÍTULO II. PUNIÇÃO E ―RESSOCIALIZAÇÃO‖: DESAFIOS HISTÓRICOS E CONSTRUÇÃO DAS PRISÕES NO BRASIL ................................................... 31 2.1 Abordagem histórica sobre as punições: do suplício á reclusão ................ 31 2.2 A constituição das prisões: controle dos corpos e ―ressocialização‖ .......... 33 2.3 Prisões e ―ressocialização‖ no Brasil .......................................................... 37 2.4 Prisões no Ceará ........................................................................................ 41 CAPÍTULO III. OLHARES E VIVÊNCIAS DOS AGENTES PENITENCIÁRIOS: PUNIÇÃO E ―RESSOCIALIZAÇÃO‖ EM QUESTÃO ........................................ 46 3.1 Aspectos sobre a profissão Agente Penitenciário........................................46 3.2 Punições e relações de poder no cotidiano da PIRS...................................52 3.3 Entraves da ressocialização na PIRS..........................................................64 3.3.1 Considerações dos entrevistados sobre ressocialização.........................64 3.3.2 TrabalhoErro! Indicador não definido.....................................................................................................68 3.3.3 Educação escolar......................................................................................70 3.3.4 Assistência à saúde...................................................................................72 3.3.5 Assistência Material...................................................................................73 3.3.6 Assistência religiosa..................................................................................75 3.3.7 Visita Íntima e social..................................................................................76 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................... .......79 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................81 APÊNDICES ..................................................................................................... 78 ANEXOS .......................................................................................................... 89 11 INTRODUÇÃO (...) Tempo virá. Uma vacina preventiva de erros e acertos se fará. As prisões se transformarão em escolas e oficinas. E os homens, imunizados contra o crime, cidadãos de um novo mundo, contarão às crianças do futuro, estórias absurdas de prisões, celas, altos muros, de um tempo superado. (CORALINA, 1983) Pretendemos, neste trabalho, analisar a percepção dos Agentes Penitenciários sobre as técnicas e estratégias para a ressocialização dos presos na Penitenciária Industrial Regional de Sobral - PIRS. Este estudo partiu da complexa conjuntura das prisões brasileiras, em sua maioria, caracterizadas pelas grandes deficiências em sua operacionalização. Superlotação, deterioração das condições de habitabilidade no interior das prisões, precariedade nos serviços, falta de profissionais de segurança, insuficiência nos programas e projetos de educação escolar e trabalho. Destaca-se o descumprimento da Lei de Execução Penal - LEP, normativa das prisões a nível nacional que prevê todos os parâmetros para a manutenção e tratamento das pessoas em situação de encarceramento no Brasil. Vive-se, atualmente, uma complexa conjuntura nas prisões, por se tratar de ―instituições totais‖1 (GOFFMAN, 1974) e designam aspectos de ―instituições completas e austeras‖2 (FOUCALT, 1987). Esta conjuntura destaca o grande número 1 Para Erving Goffman são estabelecimentos fechados em que o seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. Segundo ele, as instituições totais de nossa sociedade podem ser enumeradas em cinco agrupamentos: instituições criadas para cuidar de pessoas que, segundo se pensa, são incapazes e inofensivas (casa para cegos, velhos, órfãos e indigentes); locais estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não-intencional (sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários); instituição organizada para proteger a comunidade contra perigos intencionais, e o bem estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato (cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra, campos de concentração); instituições estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais (quartéis, navios, escolas internas, campos de trabalho, colônias e grandes mansões); e, por último, os estabelecimentos destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como locais de instrução para os religiosos (abadias, mosteiros, conventos e outros claustros) (GOFFMAN, 1974, p. 16-17). 2 Para Foucault (1987) são os espaços prisionais que incidem em fazer da detenção a pena por excelência, induz processos de dominação, característicos de um tipo particular de poder. Assim o trabalho penal é pensado como um mecanismo de adequação, no sentido de transformar o sujeito rebelde, transgressor, irrefletido em uma peça que desempenha seu papel com perfeita regularidade na sociedade capitalista. 12 de indivíduos reincidentes a criminalidade, apontando deficiência em um dos objetivos da pena: ressocializar. A população carcerária brasileira em março de 2014 já chegava a 574.000, desse total segundo o ministro Cezar Peluso cerca de 70% dos presos brasileiros são reincidentes na criminalidade. Em se tratando do estado do Ceará, em dezembro de 2014 o número presos era de 21.320 e segundo o Censo Penitenciário do Ceará realizado entre os anos de 2013 e 2014, apontou que cerca 55,1% dos indivíduos entrevistados eram reincidentesna criminalidade3. Nessa perspectiva, justifica-se uma análise de como se dá a operacionalização das técnicas e estratégias utilizadas para a ressocialização e reinserção dos presos a sociedade, pautados essencialmente pelo trabalho e educação escolar. O estudo justifica-se por tratar de um dos maiores problemas do sistema penitenciário, se não o maior, o grande número de presos reincidentes a criminalidade, mas também por englobar os dois grupos que vivem nestes espaços: presos e Agentes Penitenciários. Os Agentes Penitenciários são responsáveis, no seu dia a dia, por uma dupla e contraditória tarefa: promover, junto com outros funcionários nessas instituições, os meios possíveis de ressocialização e reintegração social daquelas pessoas que cometeram crimes puníveis com a pena de reclusão, e, ao mesmo tempo, manter e preservar a ordem, a disciplina e a própria integridade física, psíquica e moral dos internos que, geralmente habitam e vivem no interior das prisões, em condições desumanas e degradantes (LOURENÇO, 2010, p.13, grifos nossos). Minha aproximação com o tema se deu em 2011 quando pleiteei uma vaga no concurso de carreira para Agente Penitenciário no estado do Ceará. Somente em março de 2013 iniciei o exercício funcional na Penitenciária Industrial Regional de Sobral – PIRS, onde continuo desenvolvendo minhas atribuições como profissional da segurança penitenciária. O Espaço é marcado por entraves comuns a outros estabelecimentos prisionais e engloba características peculiares como: disciplina, baixo quantitativo de profissionais, superlotação, estrutura precária e desassistência tantos aos presos como aos Agentes Penitenciários. 3 Os dados estatísticos terão uma explanação detalhada nos itens 2.3 e 2.4. 13 A pesquisa baseia-se em uma abordagem essencialmente qualitativa, utiliza como procedimentos metodológicos a incursão etnográfica fragmentada na observação participante, diário de campo e entrevista semiestruturada4. Utilizamos como base teórica para o estudo, ora apresentado, as categorias: prisões, punição e ressocialização. Para uma abordagem sobre as prisão e punição, utilizamos Foucault (1987), Foucault (2009), Goffman (1974), Maia et al (2009), Wacquant (2001), Wacquant (2007), Lourenço (2010) e Bauman (2005). Já para a categoria ressocialização utilizamos autores como: Lourenço et al (2013), Gomes (2009), Carvalho (2009) e Coelho (2012). No primeiro capítulo procuramos descrever e caracterizar o espaço e os sujeitos da pesquisa com observações do período da incursão em campo. Inicialmente, Com uma ―descrição densa‖ (GEERTZ, 2008) de como se deu a entrada no campo para a incursão etnográfica e posteriormente, traçando uma abordagem detalhada sobre os procedimentos metodológicos, éticos, caracterização do espaço da pesquisa, impressões do período de coleta de dados e perfil dos entrevistados. No segundo capitulo, nos propomos a resgatar aspectos históricos das punições, da constituição das prisões e da ressocialização caracterizando aspectos e discussões pontuadas por autores que estudam a temática. Inicialmente com uma abordagem histórica sobre as punições (dos suplícios a reclusão) e posteriormente, com constituição das prisões, dos aspectos das prisões brasileiras, dos mecanismos de ressocialização e pontuando características das prisões no estado do Ceará. Já no terceiro e último capítulo, formulamos um debate profícuo acerca da punição e ressocialização na PIRS que se deu a partir da análise dos discursos dos entrevistados, dados oficiais e observações do pesquisador. Nessa perspectiva, elementos constituintes na LEP (trabalho, educação escolar, visita religiosas, assistência material, assistência à saúde e visitas íntima e social) com fins a ressocialização foram elencados nas discussões. Por fim, serão expandidas as conclusões desta pesquisa, construída numa perspectiva antropológica do cotidiano da punição e ressocialização na PIRS, visando fomentar o debate sobre a prisão e seus entraves na ressocialização das 4 Os procedimentos metodológicos serão descritos com riqueza de detalhes no item 1.2. 14 pessoas em cumprimento de pena privativa de liberdade na referida unidade penitenciária. CAPÍTULO I. METODOLOGIA A narrativa é o foro da liberdade e da sanidade. Embate, encontro, exercício de sentimento: sentido no pensamento. (Andréa Martini) 1.1 Entrada no campo Acordei com o barulho titilante do celular e logo levantei para um banho frio. Era chegada a hora de adentrar no campo para a imersão etnográfica. Seria o primeiro dia em campo enquanto pesquisador, haja vista que exerço a função de Agente Penitenciário a pouco mais de dois anos e agora estaria construindo um novo olhar sobe esse ambiente e suas relações: um olhar antropológico5. Munido das percepções e dos percalços enfrentados pelos etnógrafos na entrada do campo de pesquisa levantados por Wagner (2014), onde o antropólogo experiencia de um modo ou de outro seu objeto de estudo; seu universo é carregado de conceitos e definições particulares que foram anteriormente formuladas pela sua própria cultura, suas descobertas só farão sentido se relacionadas aos significados 5 Para Laplatine (2005, p. 25) é importante situar ao leitor sobre os conceitos de etnografia, etnologia e antropologia. O autor estabelece a relação entre ambas citando Lévi-Strauss, afirmando que elas constituem os três momentos de uma mesma abordagem. A etnografia é a coleta direta, e o mais minuciosa possível dos fenômenos que observamos, por uma impregnação duradoura e contínua e um processo que se realiza aproximações sucessivas. Esses fenômenos podem ser recolhidos tomando notas, mas também por gravação sonora, fotográfica ou cinematográfica. A etnologia consiste em um primeiro nível de abstrações: analisando os materiais recolhidos, fazer aparecer à lógica específica da sociedade que se estuda. A antropologia, finalmente, consiste em um segundo nível de inteligibilidade: construir modelos que permitam comparar as sociedades entre si. ‗Seu objetivo é alcançar, além da imagem consciente e sempre diferente que os homens formam do seu devir, um inventário das possibilidades inconscientes, que não existem em número ilimitado‘. Apesar deste trabalho não ser de conclusão de um curso em Antropologia, ele segue uma metodologia de pesquisa antropológica, mas não apenas, trata-se também de um trabalho que se propõe a um olhar antropológico a partir das relações e comportamentos estabelecidos na Penitenciária Industrial Regional de Sobral. Portanto, em alguns trechos o autor se denominará como antropólogo e em outros, como etnógrafo, o que não desvirtua nem a proposta metodológica, tão pouco o olhar (pensar) que o autor se propõe a estabelecer na formulação do texto. 15 de sua cultura, caso contrário, sua teoria poderá representar ―anedotas ou fantasias desenfreadas‖ (WAGNER, 2014, p. 41). Claro, enquanto pesquisador estava ciente do embaraço que causaria no imaginário dos participantes da pesquisa, já que desenvolveria pesquisa no ambiente de atuação que também era meu. Embora compreendesse a dimensão das definições e dos conceitos anteriormente formulados, ou seja, a carga cultural e ideológica formulada a partir do meu olhar como profissional na instituição da pesquisa, logo tentei diferenciar o profissional do pesquisador, seja na escolha da roupa e/ou dos comportamentos. De fato, escolhi uma roupa clara e sapatos de cor assemelhada, logo me distinguiria do uniforme e do coturno essencialmente preto usado pelos Agentes Penitenciários no cotidiano de trabalho no cárcere cearense. De certo passava pouco das 07h, justamente quandose iniciaria a abertura das vivências6. A Penitenciária Industrial Regional de Sobral - PIRS ficava a poucos minutos de minha casa e por isso sairia de moto nesse horário. Após pouco mais de dez minutos avistei a imensa parede de concreto. Era a ―muralha‖, de longe avistada em decorrência de sua dimensão estrutural e do formato de suas guaritas, com pouco mais de quatro metros de altura, o que causava fantasia no (falas da população local) imaginário da população local desde o início de sua construção, denominando o local como Castelo de Greyscow7. Na recepção encontro um colega Agente Penitenciário, que ao me reconhecer, abriu o portão de entrada. Fui recepcionado com um sorriso tímido, meio sem entender o que eu estava a fazer ali tão cedo, haja vista que nesse período estaria de férias da instituição. Adentrei em direção ao alojamento onde de costume os Agentes Penitenciários deixam seus pertences e repousam quando conveniente. Voltando, perguntei ao agente da recepção: Pesquisador: A abertura das vivências já foi iniciada? 6 É o mesmo que alas, caracterizado por espaço de ―lazer‖, área para refeições, banheiro coletivo e as celas. Na PIRS a abertura das celas para o banho de sol inicia pontualmente as 07h30min da manhã, os internos passam o dia no pátio das vivências e no final da tarde são recolhidos nas celas para passarem a noite. O ―ritual‖ de abertura e trancamento acontece diariamente, situação comum em algumas penitenciárias cearenses. Fato que estaria em desacordo com a Lei de Execução Penal – LEP (Lei de nº 7.210/84) que Prevê em seu art. 52, inciso IV o direito ao preso de sair da cela por 2 horas diárias para o banho de sol. 7 Em referência a um seriado dos anos 80, o castelo tem aparência de uma fortaleza de pedras. Segundo uma senhora que visita seu esposo desde a inauguração da PIRS em 2002, afirma que o nome surge no imaginário da população local desde o período de sua construção em decorrência da dimensão estrutural do espaço. Antes da construção da PIRS, os presos eram recolhidos na antiga Cadeia Pública de Sobral, localizada no centro da cidade e com capacidade cinco vezes menor, o local atualmente abriga o 3º Batalhão da Polícia Militar. 16 Agente Penitenciário: Sim. O pessoal já subiu a vivência8. Segui para o interior da unidade, percurso rodeado de grades, alambrados e portões. Até a chegada ao Quadrante 1 - Q19 são no mínimo quatro deles, mas todos apenas encostados sem cadeados. No Q1 após desejar um sonoro ―bom dia!‖ mais uma vez fui indagado pelo Agente plantonista designado a ocupar naquele dia esse posto fixo. Agente Penitenciário: Você vai tirar plantão? Meio desconcertado inicialmente, respondo. Pesquisador: iniciarei minha pesquisa hoje, como havia falado ontem lembra? Agente: ah sim, lembro! Pesquisador: Como está o andamento da abertura das vivências? Agente: Foi iniciada. Peço a ele para fazer o procedimento de vistoria padrão com o detector de metal no meu corpo e sigo meio tímido pelo corredor escuro em direção as vivências. Agora teria trocado as minhas ferramentas habituais de trabalho tonfa10, algema e chaves por caneta e diário de anotações. Embora existisse uma liberação previa quanto ao uso de gravador e câmera fotográfica, preferi não utilizar destes recursos de imediato, pois tais instrumentos de campo poderiam inibir ações dos Agentes Penitenciários em suas atividades rotineiras. Seguindo em direção as vivências por um largo corredor, passo em frente à cozinha e a padaria, alguns internos que desempenham atividades de limpeza no interior da unidade estavam ali sentados em um banco de madeira, prontamente me cumprimentam: Internos: Bom dia Senhor Agente! Pesquisador: Bom dia! 8 O termo ―subiu a vivência‖ é muito utilizado na PIRS em função do relevo do espaço, apresentando elevação contínua com a aproximação das vivências. 9 Ou Q1 é um espaço divisor entre o ambiente interno e externo, espaço de demarcação simbólica e física que estabelece até onde os presos que trabalham nas dependências internas da unidade podem transitar. Local específico onde os presos aguardam os atendimentos técnicos (advogado, assistente social, psicólogo) e de saúde (dentista, médico, enfermagem). Este espaço também caracteriza-se como posto fixo, onde ficam os materiais de trabalho dos profissionais de segurança (algemas, chaves, barras de ferro, tonfas, cadeados e outros) e durante todo o dia fica um Agente Penitenciário de plantão regulando o fluxo de pessoas que entram ou que saem do interior da unidade. 10 De acordo com o dicionário Priberam, é uma arma de origem oriental, composta por um bastão fino e comprido, com uma pega perpendicular a um terço do comprimento, utilizada em algumas artes marciais e também pelas forças de segurança. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/tonfa>. Visualizado em: 31-07- 2015. http://www.priberam.pt/dlpo/tonfa 17 Os internos me olharam meio sem entender o porquê eu estava ali, visto que não estava caracterizado como de costume. Não parei para uma conversa e segui com o objetivo de acompanhar a abertura das vivências. Seguindo no mesmo corredor, agora ficando cada vez mais escuro, ainda com resquícios das marcas de fumaça e cinzas da última rebelião ocorrida no inicio do ano de 201511. O cheiro forte de urina e de fezes de humanos e de gatos e do lixo jogado na parte externa das vivências se misturava em uma mistura já conhecida, e se intensificavam com a aproximação das vivências, era extremamente desagradável, porém, bem familiar. Aos meados do corredor encontro os Agentes Penitenciários terminando a abertura das vivências. De fato aquele ritual já me era rotineiro, sabia todos os procedimento, mas de forma integrante da ação, não como observador da ação, situação difícil que seria comprovada no decorre do período de incursão no campo, posteriormente nas entrevistas e na escrita do texto. Para Wagner (2014, p. 43) o antropólogo de fato ―inventa‖ a cultura que ele acredita estar estudando, no entanto ―essa invenção só se justifica se compreendermos como um processo que ocorre de forma objetiva, por meio de observação e aprendizado, e não como uma espécie de livre fantasia‖. Estava com uma sensação de deslocamento em um espaço habitual; as implicações seriam diferentes de outrora. De longe um colega grita em tom de brincadeira... Agente Penitenciário: Lá vem a CGD12 (risos) encruzetar13 os Agentes com seu relatório. Outro Agente Penitenciário: Ele é aliado dos Direitos Humanos (risos). As afirmações dos colegas me fizeram refletir sobre os entraves que poderia encontrar imerso no campo – pensar de forma acadêmica um processo que eu vivia cotidianamente. Entraves que foram citados no texto de Wagner (2014, p. 44) ―o antropólogo que chega pela primeira vez em campo tende a sentir-se solitário e 11 A rebelião aconteceu por divergências entre vivências rivais (brigas de gangues), os internos da vivência 3B quebraram os portões de segurança com a intenção de enfrentar a vivência 4A (ao lado), encapuzados e armados com cossocos (facas artesanais). Ação que foi frustrada pelos internos da vivência atacada; em defesa colocaram colchões e atearam fogo para impedir a passagem dos presos da 3B. Enquanto isso, com o intuito de conter o massacre, um grupo de Agentes Penitenciários na passarela (piso superior), autorizou os internos coagidos pela ação dos agressores a iniciar uma rota de fuga. Essa se caracterizou com a quebra do muro de contenção, parede de concreto que separa área interna e externa da unidade. Não satisfeitos com a tentativa frustrada do embate, os internos ―rebeldes‖ se dirigiram a vivência 1A, vivência dos trabalhadores e predominantemente de presoschamados ―duzentões‖ (estupradores) em referência ao artigo que corresponde ao crime cometido. De fato mais uma ação foi frustrada pela autorização do diretor adjunto aos internos da 1A em abrir mais uma vez um buraco na parede de contenção entre área externa e interna, tempo suficiente para a entrada dos policiais militares e Agentes Penitenciários na área das vivências a fim de conterem a rebelião. Outras informações a respeito da rebelião serão colocadas no capitulo III. 12 Controladoria Geral dos Órgãos de Segurança Pública e do Sistema Penitenciário do Ceará. 13 Termo muito utilizado no sistema prisional para identificar uma cilada, delator, caboeta. 18 desamparado‖. Relata que embora o pesquisador conheça sobre o campo de pesquisa, ele deva começar do zero. De fato, compartilhar as abstrações da cultura acadêmica nos dar um certo conforto quando não vivenciada em torno de si, que não era meu caso. As desconfianças seriam marcantes no período inicial da pesquisa e elas seriam segundo o autor supracitado, comuns a todos os antropólogos. Me questionei sobre os estranhamentos expressados pelos outros Agentes, sujeitos da pesquisa, no fato de não conseguir entender como um sujeito (o pesquisador) solicita férias do seu trabalho para ficar observando os outros trabalharem, talvez no imaginário deles algo estaria por trás do que o pesquisador afirmava ser uma pesquisa e por isso, inicialmente, de forma sarcástica, mas em tom de brincadeira citaram os dois órgãos que fiscalizam a execução do trabalho no Sistema Prisional cearense. Devo concordar com as proposições feitas por Laplatine (2005) sobre as práticas do distanciamento, não no sentido da distância física, mas de um estranhamento necessário, justificada pelo encontro de culturas provocando a mudança do olhar sobre si mesmo. De fato, presos em nossa cultura não somos apenas cegos ao outro, mas míopes quando tratamos da nossa. A experiência da alteridade nos dar a oportunidade de ver aquilo que nem imaginamos existir, isso devido a nossa dificuldade de fixar nossa atenção no que é familiar, habitual no cotidiano. ―Aos poucos notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente nada de ‗natural‘. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a nós mesmos, a nos espiar‖ (LAPLATINE, 2005, p. 21). Para Wagner (2014) os atrasos, as defesa e outros modos de esquivar-se do pesquisador não são necessariamente hostis. Seria um ―choque‖ natural de uma experiência até então nova, ou um ―distanciamento‖ que pode ser caracterizado pelas formalidades que devam ser expressas e adequadamente empregadas no período inicial da pesquisa. Nesse aspecto, o ―distanciamento‖ dos participantes vai provocar também um ―deslocamento‖ do pesquisador no espaço da pesquisa e impulsioná-lo a ir em busca do seu lugar no campo, fato que para mim se configuraria em quatro etapas, já que o período de incursão no campo se estenderia ao longo de quatro plantões, cada plantão em uma equipe diferente. As interrogações se estenderam ao logo do dia... Como deixar emergir (ser percebido) o pesquisador Elionardo, ao invés Agente Melo? Ou melhor, como 19 estranhar o que era tão familiar? Como relativizar questões que eu julgava como certas e que agora pudessem ser apenas frutos de aproximações sociológicas ou culturais? Como passar confiança aos sujeitos da pesquisa (Agentes Penitenciários) em uma situação até então incomum na PIRS? Embora tivesse esclarecido todos os procedimentos éticos da pesquisa, inclusive o TCLE (Termo de Livre Consentimento Esclarecido) como provar para eles que a pesquisa não trariam riscos significativos aos colaboradores? Fatos agora publicizados, mas que me acompanharam desde escolha do objeto da pesquisa, onde eu me defrontava com o clássico desafio de estranhar o familiar, tanto no sentido que lhe atribui Velho (1982) como no sentido literal: era meu modo de trabalho e a minha formação universitária que estavam sendo, aos poucos, problematizados. (Diário de campo 30/06/2015, grifos meus). 1.2 Procedimentos metodológicos e éticos O interesse em pesquisar as relações estabelecidas no âmbito carcerário foi desenvolvido desde minha nomeação como Agente Penitenciário em março de 2013. Desde então, me instigam questões difusas a respeito das relações estabelecidas no interior do cárcere, sejam elas entre profissionais de segurança14, entre internos ou profissionais e internos. Esta pesquisa tem como objetivo geral analisar como estão sendo executadas as técnicas e estratégias para ressocialização dos internos na PIRS na percepção dos profissionais de segurança. Para essa análise me deterei nas duas categorias analíticas que são os objetivos da pena de prisão: Punir e ressocializar. Torna-se importante ressaltar que nenhuma pesquisa é neutra politicamente, compreende-se que já na escolha do referencial teórico ou na renúncia de determinados autores se está atuando politicamente15. Significa dizer que o 14 Com a lei estadual de nº. 14.966, de 13 de julho de 2011, cria a carreira de Segurança Penitenciária e estabelece as atribuições de seus integrantes, passando os Agentes Penitenciários a ter as seguintes atribuições: atendimento, vigilância, custódia, guarda, escolta, assistência e orientação de pessoas recolhidas aos estabelecimentos penais estaduais. 15 Para Bhabha (1998), os embates de fronteiras acerca da diferença cultural apresentam possibilidades convergentes ou conflituosas. Para ―mostrar como a intervenção histórica se transforma através do processo significante, como o evento histórico é representado em um discurso de algum modo fora de controle. Isto está de acordo com a sugestão de Hannah Arendt de que o autor da ação social pode ser o inaugurador de seu significado singular, mas, como agente, ele ou ela não podem controlar seu significado‖ (p. 34). Nessa perspectiva, torna-se um ―sinal de maturidade política aceitar que há muitas formas de escrita política cujos 20 pesquisador responde a inquietações e análises formuladas a partir de bases contextuais dimensionadas por sua formação acadêmica, vivências cotidianas e interesses políticos. A pesquisa de fato baseia-se em uma abordagem essencialmente qualitativa, utiliza como procedimentos metodológicos a incursão etnográfica fragmentada na observação participante, diário de campo e entrevista semiestruturada. Clinford Geertz em seu clássico ―A interpretação das culturas‖ afirma que a construção de um olhar antropológico é mediada pela efetivação de uma abordagem de campo diferenciada, a etnografia. O autor aborda ainda que praticar etnografia é ―estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante‖ (GEERTZ, 2008, P. 04). Relata ainda, que não são as técnicas e os processos que definem o que é fazer etnografia, mas sim, um tipo de esforço intelectual que ele representa - um risco elaborado para uma ‗descrição densa‘. Fazer uma etnografia é como tentar ler (no sentido de ‗construir uma leitura de‘) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas como exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 2008, p. 07). Enquanto observação participante, uma das maiores dificuldades é a inserção no campo de pesquisa, e em se tratando de pesquisa no âmbito do sistema prisional pode ter dificuldades redobrada por se tratar de uma ―instituição total‖ (GOFFMAN, 1974, p. 17). Para Becker é um processo denso ―conseguir permissão para estudar aquilo que se quer estudar, ter acesso às pessoas que se quer observar, entrevistar ou entregar questionários‖(BECKER, 1999, p. 34). Destaca que essas e outras dificuldades são constantes para os praticantes da observação participante. De fato, os entraves no campo de pesquisa vão além dos destacados. diferentes efeitos são obscurecidos quando se distingue entre o ‗teórico‘ e o ‗ativista‘‖ (46). Isso não significa que os artifícios utilizados na militância sejam pobres em teoria, ou que um texto acadêmico tenha apenas uma discussão teórico-ideológica. Ambos constituem formas de discurso e reproduzem mais do que refletem seus objetos de referência, de certo modo existe um intervalo entre as polaridades, mas também entre as divisões comuns existentes entre teoria e prática política. O que na perspectiva do autor a ―dinâmica da escrita e da textualidade exige que repensemos a lógica da causalidade e da determinação através das quais reconhecemos o ‗político‘ como uma forma de cálculo e ação estratégica dedicada a transformação social‖ (p.48). 21 Vale destacar que a minha ligação profissional com o campo de pesquisa possibilitou uma rápida liberação da pesquisa pela Gestão Administrativa da PIRS16. O maior entreve no início da incursão etnográfica foi em simbolizar um processo também existencial, processo esse carregado de subjetividades inerentes ao meu exercício profissional, de fato eu tentaria deixar por inteiro as percepções do Agente Melo para iniciar processo novo como pesquisador, momento estomacal, esboçado por Roberto da Matta (1974), sobre a relativização de um universo que também é meu, desconstruindo subjetividades até então compartilhadas por mim, como o cotidiano dos Agentes Penitenciários no cárcere. Para Carmen Tornquist (2006, p. 33), a ―antropologia das sociedades urbano-industriais exige um estabelecimento de fronteiras, tênues do ponto de vista geográfico e social, sejam estabelecidas simbolicamente pela pessoa que faz a pesquisa‖, tendo em vista o contato estabelecido com o universo de estudo, sobretudo com as pessoas que transformamos em narrativa, não cessam nunca – posicionam presentes desde o insight do ponto de partida do projeto de pesquisa até o último momento com a finalização da escrita. Destaca ainda. Acredito, no entanto, que, quando estamos envolvidos com nossos nativos (daí o abuso do pronome ‗nosso‘), seja por proximidade geográfica, afetiva, política, geográfica ou simbólica, costuma acontecer o contrário: queremos, em um determinado momento, abandonar o campo, mas, eis que nem sempre este campo – feito de pessoas de carne, osso, idiossincrasias, hormônios, expectativas – não nos abandona. (TORNQUIST, 2006, p. 33) As fronteiras do ponto de vista geográfico e social de fato eram difíceis de serem concretizadas, embora as tentativas e vigilância fossem reafirmadas a todo instante, desde caracterizar-se de forma diferenciada nos aspectos já colocados na descrição do item 1.1, atentando-se a detalhes de cores e roupas utilizadas pelos Agentes Penitenciários; na programação do período de férias, calculadamente programado no período da incursão etnográfica; nas tentativas demasiadas em não esboçar em campo atividade que relacionassem ao desempenho da minha função como Agente Penitenciário, inclusive em solicitações dos internos para compartilhar algum problema como trago a seguir em um trecho do meu diário de campo: 16 Gestão administrativa da PIRS (Diretor, Diretor Adjunto, Gerente Administrativo Chefe de Segurança e Disciplina, e Chefes de Equipes). Embora os tramites de liberação da pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa - CEP tenha demorado cerca de três meses após a submissão do projeto na Plataforma Brasil. 22 As situações me provocavam a todo instante, por vezes não hesitei em ajudar colegas no ―aperreio‖ quando envolvidos em situações embaraçosas devidas ao baixo quantitativo de profissionais de segurança. De certo, em campo eu também tinha regalias que jamais um pesquisador que não fosse integrante da equipe de profissionais teria. Tinha no campo espaço privilegiado nas conversas, embora por vezes insinuosas quanto aos procedimentos éticos da pesquisa, tinha espaço garantido para guardar objetos pessoais no alojamento que de fato também era meu. Compartilhava do almoço, jantar e às vezes do lanche que era servido aos profissionais, além de presenciar fatos, atos, procedimento, depoimentos e ponto de vistas esboçadas de forma ―natural‖ no cotidiano do campo de pesquisa (Diário de campo, 04-07-15). De fato em função do meu papel como profissional da instituição tive acesso a espaços, oportunidade e situações que outros pesquisadores não teriam de fato em detrimento das condições estruturais, ambientais e de segurança no cárcere. A incursão etnográfica teve sistematicamente a presença do pesquisador no campo de forma diária durante o período de doze dias. Nesse período foi realizada a etnografia, a qual correlaciono com a observação participante realizada no cotidiano profissional, ocasionando os dados e reflexões contidas nas anotações no diário de campo. Em doze dias fecha um ciclo de plantões das quatro equipes, correspondendo a cada uma delas o período de 72 horas – relativos há três dias consecutivos. Algumas observações foram durante o período da noite do qual os Agentes Penitenciários ficam com maior disponibilidade para conversas, descanso e outros, já que os internos ficam recolhidos nas celas a partir das 17h. Para as entrevistas semiestruturada foram escolhidos seis dos cinquenta e oito observados. Segundo Triviños (1987, p. 146) a entrevista semiestruturada tem como característica questionamentos básicos que são apoiados em teorias e hipóteses que se relacionam ao tema da pesquisa. Os questionamentos dariam frutos a novas hipóteses surgidas a partir das respostas dos informantes. O foco principal seria colocado pelo investigador-entrevistador. Complementa o autor, afirmando que a entrevista semiestruturada ―[...] favorece não só a descrição dos fenômenos sociais, mas também sua explicação e a compreensão de sua totalidade [...]‖ além de manter a presença consciente e atuante do pesquisador no processo de coleta de informações (TRIVIÑOS, 1987, p. 152). Para a escolha dos entrevistados foram estabelecidos os seguintes critérios: um profissional do corpo de gestão administrativa, um integrante de cada equipe e uma Agente Penitenciária feminina, no total de seis participantes. Dentre os 23 profissionais escolhidos nas equipes plantonistas foi observado o tempo de atuação profissional e participações nas anotações do pesquisador em campo17. Já em relação aos procedimentos éticos, o projeto de pesquisa foi submetido na Plataforma Brasil, e foi analisado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA e sendo aprovado com o número do CAAE: 44925015.5.000.5053. Pode-se obter o parecer do comitê de Ética em Pesquisa (Disponível nos anexos)18. 1.3 Lócus da Pesquisa A Penitenciária Industrial Regional de Sobral - PIRS é uma unidade penitenciária masculina para presos em cumprimento de pena privativa de liberdade em regime fechado, localizada na Rodovia Moésio Loiola de Melo Júnior, s/n KM 3 da CE 040, Jatobá, Sobral – Ceará, a 235 quilômetros de Fortaleza (capital cearense)19. Inaugurada em 22 de Março de 2002, caracterizada como um estabelecimento prisional de ―segurança média‖ e dispõe de uma área total de aproximadamente 15 mil metros quadrados e com cerca de 9 mil metros quadrados de área construída. 17 O critério de escolha de um participante de cada equipe justifica-se pela heterogeneidadedas equipes observadas desde os modos de comportamento á execução das atividades cotidianas. 18 Após aprovação da Plataforma Brasil, foi mantido o anonimato dos participantes da pesquisa, de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde/MS – CNS, nº 466/2012, com suas Diretrizes e Normas que regulamenta a pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil (BRASIL, 2013), que revogou a Resolução n° 196/96. Portanto, os participantes foram informados sobre todos os procedimentos da pesquisa e em seguida, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) (APÊNDICE B). 19 Sobral é uma cidade da região Noroeste do Ceará, sua população está estimada em 201.756 habitantes segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. De acordo com historiadores da Universidade Federal do Ceará, a cidade de Sobral e Icó, foram cidades pioneiras no povoamento e urbanização do Ceará. Durante o século XVIII e meados do século XIX concentravam o maior acervo da Urbanização e da política caracterizados pelo poder econômico. Figura 01 – Localização da PIRS Fonte: Carvalho, 2009 24 A PIRS iniciou sua operação com capacidade total para 492 detentos, distribuídos em 10 vivências. Do total de vagas: 8 vivências com 9 celas coletivas cada, e duas (1A e 1B) com 30 celas individuais cada, totalizando em 6020 celas individuais e 72 celas para seis pessoas. No período da coleta de dados estava abrigando cerca de 670 presos21. 20 A vivência 1B com 30 celas individuais são para presos em caráter disciplinar e de triagem, espaço previsto de acordo com a Lei de Execução Penal (LEP) descritos nos artigos 5 e 59. Nesse espaço, não é permitido nenhum material além do fardamento e dos itens de higiene pessoal (sabonete, toalha, creme dental, escova de dente). Já a outra vivência (1A) é conhecida como a vivência dos trabalhadores, ou seja, todos os internos que desenvolvem alguma atividade laboral na unidade estão localizados nesse espaço. Ela também é conhecida como a vivência dos ―presos de confiança‖. 21 De acordo com o Art. 87 da LEP, a penitenciária destina-se ao condenado à pena de reclusão, em regime fechado. Embora esteja prescrito na lei, no período da pesquisa, a quantidade de presos provisórios era de 256 (38,36%), com isso a quantidade de presos na unidade era variável girando em torno de 630 á 700 internos. Figura 02 – Espaço externo: fachada da PIRS Fonte: arquivos do autor 25 Inicialmente a penitenciária foi administrada por meio de parceria público/privada, em sistema de cogestão22: O Estado era responsável pela direção, enquanto Companhia Nacional de Administração Prisional – CONAP pela operação, fiscalização e logística. Segundo Carvalho (2009) em julho de 2007 a impressa noticiou uma decisão da Justiça Federal estabelecendo prazo de até 28 de março de 22 Segundo Carvalho (2009) a política de terceirização dos presídios do Ceará teve início após a aprovação do projeto de lei nº 51/2000 de autoria da deputada estadual do PSDB Gorete Pereira. Sua implementação provocou um acirrado debate entre os seus defensores e seus críticos, que perdurou durante muito tempo. Os argumentos contrários à política de terceirização de presídios apoiam-se no entendimento de que a responsabilidade pela custódia de presos e o poder de punir, que constituem traços distintivos do Estado Moderno, não poderiam ser transferidos para a iniciativa privada. Com efeito, parlamentares da Esquerda, a Ordem dos Advogados do Ceará (OAB) e Ministério Público Federal (MPF) impetraram ações civis públicas, alegando a inconstitucionalidade da terceirização prisional (nota de rodapé 4, p. 14-15). Figura 03 – Espaço interno: Q1 Fonte: arquivos do autor Figura 04 – Espaço interno: corredor Fonte: arquivos do autor Figura 06 – Espaço interno: vivência 3B (refeitório) Fonte: arquivos do autor Figura 06 – Espaço interno: vivência 3B (celas) Fonte: arquivos do autor 26 2008 para o Estado substituir os agentes de disciplina terceirizados por agentes de segurança aprovados em concurso público no ano de 2006. Situação que de fato se concretizou, desde então o Estado assumiu todas as atividades na unidade prisional. A unidade penitenciária dispõe de setor administrativo, alojamento para os profissionais de segurança, locais para atividades de trabalho, estudo e lazer aos internos, construídos com o objetivo da ressocialização. Os locais de trabalho são: fábrica de móveis (desativada)23, cozinha industrial, padaria24, galpão para instalações de fábricas25 (desativado), lavanderia industrial, trabalhos de manutenção interna e serviços de limpeza. Os locais de estudo e lazer são: escola com 6 salas de aula26, auditório, biblioteca com aproximadamente 2000 livros, sala de informática com 14 computadores (desativado há aproximadamente 4 anos) e quadra de esportes (vôlei, basquete, e futebol) nunca foi utilizada devido ao baixo quantitativo de profissionais de segurança. 23 Nesse espaço funcionou a fábrica de móveis projetados ―Casa Bela‖. Suas atividades foram desenvolvidas no decurso de ano de 2013, cinco presos desenvolviam atividades de trabalho no local. 24 A cozinha e padaria disponibilizam 13 vagas de trabalho para os internos. As atividades são gerenciadas por uma empresa terceirizada (ISM Gomes de Mattos) que é responsável pela alimentação da maioria dos estabelecimentos prisionais do Ceará. Na PIRS, os profissionais desta empresa que desempenham atividades no interior da unidade são: gerente da cozinha, nutricionista, cozinheiro, auxiliar de cozinheiro e transportador. 25 No local funcionou uma unidade de produção da marca Recamond (fábrica de botas), instalada em 2006 empregando no seu quadro 12 internos (Carvalho, 2009). Segundo um Agente Penitenciário mais antigo, lá também funcionou uma fábrica de bolas de futebol. 26 A escola funciona na modalidade Ensino de Jovens e Adultos (EJA), sua coordenação está diretamente ligada ao Centro de Educação de Jovens e Adultos de Sobral – CEJA, cada vivência frequenta a escola em média uma vez por semana durante o período aproximado de 2 horas. A composição da turma corresponde a diferentes níveis de aprendizado escolar, ou seja, alunos nos primeiros passos da alfabetização junto a alunos cursando módulos do ensino médio. Figura 05 – Espaços de trabalho: cozinha Fonte: arquivos do autor Figura 05 – Espaços de trabalho: padaria Fonte: arquivos do autor Figura 05 – Espaços de trabalho: lavanderia Fonte: arquivos do autor 27 A Unidade dispõe de uma estrutura organizacional com profissionais técnicos, gestores administrativos e operacionais. O corpo de técnicos27 é composto por: dois advogados, um assistente social, um psicólogo, um odontólogo, um médico, um enfermeiro e quatro auxiliares de enfermagem. Já a composição de profissionais de segurança e da gestão administrativa são Agentes Penitenciários de carreira, selecionados por concurso público. Os cargos da gestão administrativa na ordem hierárquica são: Diretor, Diretor Adjunto, Gerente Administrativo, Chefe de Segurança e Disciplina e Chefe de Equipe dos Agentes Penitenciários28. Em resposta a recomendação do Ministério da Justiça, os cargos de gestão administrativa das unidades prisionais cearense são todos ocupados por servidores de carreira do sistema prisional29. As atividades de segurança interna e externa das penitenciárias cearenses são responsabilidade dos Agentes Penitenciários30. O total de Agentes Penitenciários é de cinquenta e oito: oito deles assumindo cargos na gestão administrativa, três Agentes femininas exclusivas para as atividades de vistoria das27 Profissionais previstos na LEP (artigos 10 ao 25). 28 Todos os cargos e atribuições estão prescritos no Regimento Geral dos Estabelecimentos Prisionais do Ceará, nos artigos 16 ao 22. 29 São resalvados de acordo com o parágrafo único do art. 18 do Regimento Geral dos Estabelecimentos Prisionais do Ceará dois estabelecimentos: Hospital Geral e Sanatório Penal e do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico que devem ser ocupados por médico, e na falta deste, por outro profissional da área de saúde. 30 De acordo com o art. 7 do Regimento Interno dos Estabelecimentos Prisionais do Ceará, a segurança externa, através de muralha com passadiço e guaritas. Já a segurança interna, seriam todas as atividades previstas de atendimentos aos internos no interior da unidade prisional, ambas de responsabilidade dos Agentes Penitenciários. Figura 06 – Local de estudo: entrada da escola Fonte: arquivos do autor Figura 07 – Local de lazer: quadra poliesportiva Fonte: arquivos do autor 28 visitantes femininas, e os outros cinquenta distribuídos nas quatro equipes31, dos quais são responsáveis por todas as atividades internas da unidade (a escala de horários e atribuições foram descritas no item anterior). Já a segurança externa, em detrimento do baixo quantitativo de Agentes Penitenciários e a falta de condições de materiais de segurança (armamentos: Letais e não letais), ficam sob a responsabilidade do 3º Comando da Polícia Militar. A segurança externa é caracterizada por muralha, ambiente externo, guaritas e passadiço. Embora a PIRS tenha sido projetada para 492 internos, no período da pesquisa a unidade estava com um quantitativo de internos excedente, no total de 670, quase 50% a mais do que a capacidade projetada32. Em sua maioria, jovens de origem urbana, solteiros, negros/pardo, com baixo grau de escolaridade e advindos de grupos sociais economicamente pobres33. Dos 670 internos na unidade apenas 45 (6,72%) deles executam alguma atividade de trabalho todos da vivência 1A, a chamada ―vivência dos trabalhadores‖. As demais vivências: 1B, 2A, 2B, 3A, 3B, 4A, 4B, 5A, 5B vivenciam a ociosidade sem nenhum tipo de ocupação. Durante o dia ficam no pátio das vivências e a noite são recolhidos nas celas. Sob os aspectos gerais observados em campo, podemos citar as condições de higiene e estrutura física da unidade: sujeira (lixo e esgoto) no ambiente externo, fezes de gatos em todo ambiente interno, grande quantidade de gatos e insetos, deterioração na estrutura da área das vivências (o teto do corredor está escorado como hastes de ferro), instalações elétricas e hidráulicas danificadas, sistema de monitoramento (câmeras) desativado, banheiros com sanitários ou bojos quebrados além de outras questões que serão colocadas no capítulo III. 1.4 Perfis dos entrevistados 31 As equipes são nomeadas na sequencia das quatro primeiras letras do alfabeto (A, B, C, D). Os Chefes de Equipes dos Agentes Penitenciários são contabilizados como integrantes em suas respectivas equipes, pois eles revezam nas equipes como os demais profissionais de segurança. Cada equipe dispõe de uma Agente feminina ocupando posto fixo na recepção da unidade durante os plantões. 32 De acordo com dados obtidos no Sistema de Informação Penitenciário – SISPEN, a quantidade de pessoas em cumprimento de pena no estado do Ceará era no total de 20.543, distribuídos nos regimes: aberto 3.013 (14,67%), fechado/condenado 4.226 (20,57%), provisório 10.229 (49,79%), semiaberto 3.075 (14,97%). Os dados relativos ao Sistema Penitenciário Cearense foram disponibilizados pelo Setor de Identificação e Controle de Presos – SICOP da PIRS no dia 02-07-2015. 33 Informações obtidas no SISPEN – Sistema de Informação Penitenciário do Ceará. 29 As entrevistas aconteceram no período compreendido entre 24 á 31 de julho de 2015. Todos os entrevistados (6 no total) são profissionais de segurança (cargo de Agente Penitenciário) aprovados em concurso público em diferentes editais de convocação e todos com exercício profissional na PIRS. Os critérios de escolha dos entrevistados foram citados no item 2.2. O anonimato dos participantes da pesquisa segue os critérios estabelecidos de acordo com a Resolução do Conselho Nacional de Saúde/MS – CNS, nº 466/201234. AGP01 – sexo masculino, 27 anos, solteiro, católico, ensino superior incompleto, afirmou em entrevista fazer uso de bebidas alcoólicas e não ter tido nenhum problema de saúde/psicológico relacionado à função, seu tempo de exercício no cargo é de dois anos e quatro meses. A entrevista foi realizada no dia 24 de julho de 2015, o entrevistado mostrou-se conhecedor dos processos de trabalho da PIRS e segurança nas suas respostas. AGP02 – sexo feminino, 29 anos, divorciada com filho, católica, ensino superior completo, faz uso de bebidas alcoólicas socialmente, afirma não ter tido nenhum problema de saúde/psicológico relacionado à função, seu tempo de exercício no cargo é de dois anos e quatro meses. A entrevista foi realizada no dia 27 de julho de 2015, a entrevistada mostrou concisão e segurança nas respostas. AGP03 – sexo masculino, 30 anos, casado com filho, evangélico, ensino superior incompleto, não faz uso de bebidas alcoólicas, afirma não ter tido nenhum problema de saúde/psicológico relacionado à função, seu tempo de exercício no cargo é de oito anos. A entrevista foi realizada no dia 28 de julho de 2015, o entrevistado mostrou-se apreensivo e confuso nas respostas demorando iniciar as falas após cada pergunta. AGP04 – sexo masculino 23 anos, solteiro sem filho, católico, ensino superior completo, faz uso de bebidas alcoólicas socialmente, afirma não ter tido nenhum problema de saúde/psicológico relacionado à função, seu tempo de exercício no cargo é de dois anos e quatro meses. A entrevista foi realizada no dia 30 de julho de 2015, o entrevistado mostrou-se conhecedor dos processos de trabalho da PIRS, segurança, concisão e consistência nas respostas. 34 Para garantir o anonimato dos participantes, foram colocados em substituição aos nomes dos participantes uma sigla bastante usada no sistema prisional para identificar o Agente Penitenciário (AGP) seguido da numeração referente à ordem de realizações das entrevistas. As informações referentes aos perfis dos participantes da pesquisa foram coletadas durante as respectivas entrevistas no primeiro bloco de perguntas que foi denominado perfil do entrevistado. 30 AGP05 – sexo masculino 35 anos, casado e com filho, sem religião, ensino superior completo, não faz uso de bebidas alcoólicas, afirma não ter tido nenhum problema de saúde/psicológico relacionado à função, seu tempo de exercício no cargo é de seis meses. A entrevista foi realizada no dia 30 de julho de 2015, apesar do pouco tempo no cargo o entrevistado mostrou-se conhecedor dos processos de trabalho da PIRS e diferenciou-se dos outros entrevistados trazendo nas suas respostas situação extremas em relação a alguns aspectos tratados na entrevista. AGP06 – sexo masculino, 40 anos, casado com filhos, católico, ensino superior com especialização, não faz uso de bebidas alcoólicas, afirma não ter tido nenhum problema de saúde/psicológico relacionado à função, seu tempo de exercício no cargo é de dois anos e quatro meses. A entrevista foi realizada no dia 30 de julho de 2015, o entrevistado mostrou-se conhecedor dos processos de trabalho da PIRS, capacidade descritiva e conhecimento da legislação específica ao sistema prisional. Embora o ensino superior não seja requisito para ingresso no cargo de Agente Penitenciário, todos os entrevistados estavam com curso superior em andamento ou concluído nos cursos de filosofia, direito, matemática, geografia e história.31 CAPÍTULO II. PUNIÇÃO E RESSOCIALIZAÇÃO: DESAFIOS HISTÓRICOS E CONSTRUÇÃO DAS PRISÕES NO BRASIL A instituição total é um híbrido social, parcialmente comunidade residencial, parcialmente organização formal. (...) Em nossas sociedades são estufas para mudar pessoas; cada uma delas é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu (GOFFMAN, 1974, p. 22). 2.1 Abordagem histórica sobre as punições: do suplício á reclusão A história das punições foi marcada por períodos distintos nas execuções das penas. Inicialmente, as penas eram voltadas para o corpo e executadas em espaços públicos, geralmente eram caracterizadas pelos suplícios35 e mutilações. O cálculo do sofrimento no suplício, pena corporal, estaria baseado na proporcionalidade entre quantidade de sofrimento e a gravidade do crime cometido. Sua execução teria dois personagens principais: O carrasco e o condenado. Para Foucault (1987), o carrasco seria o responsável pela execução dos suplícios, geralmente nas intervenções físicas com sofrimento corporal caracterizado por espetáculos do terror ao público, 35 Segundo o dicionário Priberam, o suplício seria uma grave punição corporal com tortura e ordenada por sentença; Pena de morte com grande sofrimento moral e/ou físico. Disponível em: <http://www.priberam.pt/dlpo/supl%C3%ADcio>. Visualizado em 15-08-2015. http://www.priberam.pt/dlpo/supl%C3%ADcio 32 aqueles suplícios em que o condenado era arrastado sobre uma grade (para evitar que a cabeça arrebentasse contra o pavimento), seu ventre aberto, as entranhas arrancadas ás pressas, para que ele tivesse tempo de as ver com seus próprios olhos ser lançadas ao fogo; em que era decapitado enfim e seu corpo dividido em postas (FOUCAULT, 1987, p.17). De acordo com Coelho (2012), as torturas eram utilizadas como motivadoras de confissões no ―âmbito privado‖, e as penas como pagamento dos pecados. Neste caso, a igreja protagonizaria a regulamentação dos suplícios como forma de arrependimento e purificação aos pecados cometidos. Com isso, pontua Carrara (2002, p. 53-54): O sentimento inato de vingança privada foi elevado, nas sociedades primitivas, de sua natureza de desejo à altura de um direito: direito exigível, direito hereditário, direito resgatável ao arbítrio do ofendido, direito que por vários séculos foi considerado como exclusivo do ofendido e de sua família. (...) Depois, civilizando-se os homens por obra da religião, assumiu esta direção universal de seus sentimentos. Daí a ideia de que os sacerdotes deviam ser os reguladores da vingança privada. Por isso, uma vez introduzida na penalidade a concepção religiosa, e levados os juízos à forma teocrática ou semiteocrática, o conceito de vingança divina se foi substituindo ao da vingança privada. Para Bitencourt (APUD GOMES, 2009, p. 26) no período em destaque, a pena, enquanto castigo ―era aplicada por delegação divina, pelos sacerdotes, como penas cruéis, desumanas, degradantes, cuja finalidade maior era a intimidação‖ com a finalidade de purificação das falhas cometidas contra Deus. Com a alegação da purificação do corpo, e através de um espetáculo punitivo ao público, o suplício era consumado. Sua característica marcante seria o exercício do poder sobre o corpo do punido, alvo da repressão penal, na qual o sofrimento e a dor eram seus elementos mais marcantes. A confissão pública era essencial e determinante para condenação do infrator. A partir da culpabilização do condenado, a justiça legalizava um ato que antes seria considerado ilegal. A participação do público era decisiva para a legitimidade do ato, tanto como espectadores da ação, como exigindo a execução do infrator; posteriormente fixando na memória e reproduzindo o fato, seria uma tática de prolongamento do suplício mesmo após a morte do infrator. Para Foucault (1987) o poder de punir obedece uma ―economia do castigo calculado‖, pois não obedecem os mesmos critérios determinados para os mesmos crimes ou mesmo gênero de delinquentes, eles obedecem um certo ―estilo penal‖. O 33 autor aponta o suplício como uma vergonha para a justiça tradicional da época e destaca os ‗escândalos‘ como principais motivadores para que ocorressem mudanças ―com os projetos de reforma, nova teoria da lei e do crime, abolição das antigas ordenanças, supressão de costumes‖ (1987, p. 13). De fato, a população começou a se identificar com o sofrimento do apenado, e também intervir no impedimento da atuação da justiça (carrasco) sobre o corpo do supliciado. Segundo Foucault (1987, p.13), ―um fato é certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo‖. O autor afirma que no final do século XVIII os suplícios dariam lugar a outras formas de correção, de fato ocorridas pelas mudanças na legislação e nos objetivos da pena, não seria mais o sacrifício dos condenados, mas sim o exercício arbitrário de invisibilizar através das prisões as práticas de controle da periculosidade dos indivíduos apenados. Neste período, as prisões ganham uma nova utilidade para o exercício da justiça, antes servindo apenas para a custódia dos suspeitos enquanto aguardavam julgamento, e a partir de então, na execução da pena privativa de liberdade. Os suplícios dariam lugar a uma nova forma de punir caracterizada pela submissão do corpo com as formas calculadas de controle das forças, mas também atingiriam outro fator: psicológico/ideológico, na ―arte de punir‖ melhor. Nessa perspectiva, com a utilização das prisões, as penas passaram de castigos para a ―arte das sensações insuportáveis‖: uma ―economia dos direitos suspensos‖. [...] um exército de técnicos veio substituir o carrasco, anatomista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães, os psiquiatras, os psicólogos, os educadores; por sua simples presença ao lado do condenado, eles cantam a justiça o louvor de que ela precisa: eles garantem que o corpo e a dor não são objetos últimos de sua ação punitiva (FOUCAULT, 1987, p. 16). Sob uma nova perspectiva de pena, as prisões deixaram de servir apenas para custódia dos delinquentes e assumiram o papel de uma nova configuração de punição. Agora a punição englobaria os corpos e o psíquico e seria traçada por uma série de deficiências em sua funcionalidade. Nas palavras de Foucault (1987, p. 208), conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa 34 quando não inútil. Entretanto, não ―vemos‖ o que pôr em seu lugar. ―[...] ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão‖. 2.2 A constituição das prisões: controle dos corpos e ressocialização A pena privativa de liberdade surge em substituição a penas infamantes e degradantes referendadas pelos suplícios. Ela configurou uma nova finalidade para a prisão e determinou uma ressignificação nos arcabouços jurídico, numa perspectiva não de punir menos, mas sim, de ―punir melhor‖. De acordo com Foucault (1987, p.97), [...] sobe a humanização das penas, o que se encontra são todas essas regras que autorizam, melhor, que exigem a ―suavidade‖, como uma economia calculada do poder de punir. Mas elas exigem também no ponto de aplicação desse poder que não seja mais o corpo, como o jogo ritual dos sofrimentos excessivos, das marcas ostensivas no ritual dos suplícios; que seja o espírito ou antes um jogo de representações e de sinais que circulem discretamente, mas na alma dizia Mably. A partir de então, inicia-se o desenvolvimento das penas privativas de liberdade com a criação e a construção de prisões para a ―correção‖ dos apenados. O processo de repartir indivíduos fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los,tirar deles o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codificar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem lacunas, formar em torno deles um aparelho completo de registros e anotações (FOUCAULT, 1987). Foucault considera que a forma de aprisionar para ―corrigir‖, opera uma ideia paradoxal, bizarra, sem fundamento ou justificação alguma ao nível do comportamento humano com origem nessa prática. Destaca que essa ideia de uma penalidade que procura corrigir aprisionando é uma ideia policial, nascida paralelamente à justiça, fora da justiça, em uma prática de controles sociais ou em um sistema de trocas entre a demanda do grupo e o exercício do poder (FOUCAULT, 2009, p. 99). 35 Segundo Oliveira (2002), John Howard, Jeremias Bentham e Césare Beccaria bradaram contra a vergonha das prisões, procuraram definir a pena numa perspectiva útil, de maneira que o encarceramento só se justificaria se produzisse algum benefício ao apenado e não apenas retribuição de um mal por outro mal. A partir de suas reflexões originaram os regimes penitenciários clássicos desenvolvidos de maneira mais concreta a partir do século XIX, embasados em sistemas diferenciados de reeducação. Para SILVA (2009) A criação dos sistemas penitenciários teve papel importante na história da punição, especialmente no que se refere a pena de prisão. Nesse aspecto, três deles esboçam importância para os estudos atuais: o sistema de Filadélfia ou Belga; o sistema de Auburn e o sistema Inglês ou Progressivo36. O sistema de Filadélfia consistia no isolamento celular absoluto, permitindo apenas o passeio isolado do sentenciado em um pátio circular, sem trabalho ou visitas, permitindo-se, apenas, a leitura da Bíblia como estímulo ao arrependimento. O sistema de Auburn foi criado nos EUA, na cidade que recebe este mesmo nome, em 1818. Suas características eram além do trabalho em comum o silêncio absoluto. Em um momento inicial os presos deviam trabalhar em suas celas, passando posteriormente ao grupo, porém os detentos não podiam falar entre si, somente com os agentes carcerários, com a devida licença e em voz baixa. O sistema Progressivo 37 é criado no decurso do século XIX, impõe-se definitivamente a pena privativa de liberdade, que continua sendo a espinha dorsal do sistema penal atual. A essência deste regime consiste em distribuir o tempo de duração da condenação em períodos, ampliando-se em cada um os privilégios que o recluso pode desfrutar de acordo com sua boa conduta e o aproveitamento demonstrado do tratamento reformador. Nesta época surge a preocupação com a ressocialização do condenado, estimulando-os ao bom comportamento para a reinserção na vida em sociedade (SILVA, 2009, p.41-45, Grifos meus) 38 . Para o Foucault, as instituições carcerárias se estabelecem em uma rede de saberes que funciona como tecnologias de “controle do corpo e de controle da 36 Para Silva (2009, p. 41), não se pode confundir sistema penitenciário e regimes penitenciários que dentre outras maneiras de se distinguirem um deles é a maneira concernente a execução. De primeiro, é preciso esclarecer que os sistemas penitenciários não se confundem com os regimes penitenciários, posto que, enquanto aqueles ―representam corpos de doutrinas que se realizam por meio de formas políticas e sociais constitutivas das prisões‖ estes são as formas de administração das prisões e os modos pelos quais se executam as penas, obedecendo a um complexo de preceitos legais ou regulamentares. 37 O Brasil adaptou o Sistema Progressivo de acordo com suas peculiaridades. Assim, de acordo o artigo 33 do Código Penal, lei 2848/40, os regimes da pena são determinados pelo mérito do sentenciado, e em fase inicial, pela quantidade (período de reclusão) e pela reincidência. São três os regimes de cumprimento das penas privativas de liberdade: regime fechado, com execução em estabelecimento de segurança máxima ou média; regime semiaberto, regimes de cumprimento das penas privativas de liberdade: regime fechado, com execução em estabelecimento de segurança máxima ou média; regime semiaberto, com a execução em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; regime aberto, com a execução em casa de albergado ou estabelecimento adequado. 38 Para uma análise detalhada da história dos sistemas penitenciários ver: Silva, 2009 (dissertação de mestrado). 36 alma‖. Elas trazem consigo um processo de ―regulação social‖, incidindo em uma preocupação de regulação em especial de uma população específica com tipos particulares de pessoas, essas são evocadas e controladas dentro do complexo "poder-saber". O controle do corpo é feito pelos funcionários, através da disciplina, normas e pela materialidade da instituição, tornando ―o corpo dócil através do controle de suas forças‖ (FOUCAULT, 1987, p. 28), enquanto o controle da alma é feito por ―campos de saberes‖ (FOUCAULT, 1987) diferenciados, são exemplos a psicologia, a psiquiatria e a pedagogia. O autor destaca a estrutura das prisões, o panóptico39, como facilitadora da disciplina, utilização dos corpos e apropriação do tempo do apenado. Para Coelho (2012) a prisão traria em sua lógica a pena privativa de liberdade, essa teria uma função educativa como prevenção geral. Mas em sua prevenção especial, traria duas finalidades: a primeira, simplesmente pela segregação do indivíduo delinquente, privando-o das condições materiais de cometer outros crimes. E segunda seria a ―ressocialização‖, reforma moral ou psicológica nos indivíduos que cumpriram pena privativa de liberdade. Para Julião (2009) as pesquisas sobre o sistema prisional ainda dimensionam uma limitação no que diz respeito ao conceito de ressocialização. Nessa perspectiva, afirma que o conceito de ressocialização é nativo do sistema penitenciário. Ainda segundo o autor supracitado, nos principais dicionários de Língua Portuguesa, ressocialização é definido como ato ou efeito de ressocializar. Já ressocializar é tornar a socializar. O vocábulo também tem a seguinte definição em um dicionário de sociologia: [o contrário de dessocialização], é o processo pelo qual o indivíduo volta a internalizar as normas, pautas e valores — e suas manifestações — que havia perdido ou deixado. Toda dessocialização supõe ordinariamente uma ressocialização, e vice-versa. O termo ressocialização se aplica especificamente ao processo de nova adaptação do delinquente à vida normal, a posteriori de cumprimento de sua condenação, promovido por agencias de controle ou de assistência social. Esta visão da ressocialização do delinquente parte do pressuposto de que se deu, no delinquente, um período prévio de sociabilidade e convivência 39 Segundo o dicionário Priberam, é um modelo de prisão ou torre de observação, idealizado para que os vigilantes possam observar facilmente todas as partes do edifício ou recinto, sem serem observados. Disponível em: < http://www.priberam.pt/panotipco>. Visualizado em: 31-08-2015. http://www.priberam.pt/panotipco 37 convencional, a qual nem sempre é assim (IBÁÑEZ, 2001, 143 e 144 apud JULIÃO, 2009, p. 67). A partir do pressuposto que ressocializar tenha como significado - socializar novamente implica dizer que o interno volte à sociedade disposto a aceitar e seguir as normas e as regras sociais. Diante disso, é importante entender, em primeiro lugar, o que vem a ser socialização para depois refletir sobre o (re)socializar. Segundo o dicionário Aurélio, socialização significa: [...] ato de pôr em sociedade; extensão de vantagens particulares, por meio de leis e decretos, à sociedade inteira; desenvolvimento do sentido coletivo, da solidariedade social e do espírito de cooperação nos indivíduos associados; processo de integração
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