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INTRODUÇÃO À BÍBLIA [Clique em ÍNDICE] William Barclay Tradutor e digitador: Carlos Biagini Título original: INTRODUCING THE BIBLE The Bible Reading Fellowship Edición Conjunta De Casa Unida De Publicaciones. S. A. Apartado Posta197-Bis 06000 México, D. F. México. Introdução à Bíblia (William Barclay) 2 WILLIAM BARCLAY (1907-1978) obteve o Mestrado em Artes e o Doutorado em Divindades na Universidade de Glasgow, Escócia, e na Universidade de Marburgo, Alemanha. Por muitos anos foi ministro da Trinity Church of Scotland, Igreja Trindade da Escócia. Comunicou as cadeiras de Divindades e Crítica Bíblica na Universidade de Glasgow. Como expositor da Bíblia alcançou uma grande popularidade na Grã- Bretanha, por sua inigualável habilidade para combinar a erudição e exemplos que têm a virtude de esclarecer incógnitas não resolvidas por uma grande maioria de estudiosos. De William Barclay também apareceram em português: O Novo Testamento comentado, Palavras Gregas do Novo Testamento, A Carne e o Espírito. Em Introdução à Bíblia, o Dr. William Barclay propõe ao leitor submergir-se nesse mundo maravilhoso de história, literatura e sabedoria, que é a Bíblia. A intenção é ajudar o leitor a descobrir as riquezas que a Bíblia encerra para sua vida. O autor dá testemunho do valor da Bíblia como livro inspirado estabelece uma guia confiável para o estudo como os textos bíblicos alcançaram a posição de Escritura Sagrada, e explica a importância e a situação dos livros Apócrifos. Mas, acima de tudo, o Dr. William Barclay apresenta a Bíblia como a palavra de Deus que não perde sua vigência com o passar do tempo Para o Dr. Barclay o estudo bíblico constitui um das provocações mas desafiantes em nossos dias Por um lado, o ativismo ocidental arrasa com o tempo destinado à meditação, por outro, a Bíblia foi livro de cabeceira mas não obsoleto, de estudo sério e constante. Este escrito surge em resposta a essa provocação e é desejo do autor aplainar o caminho às pessoas que não têm estudos de teologia. Introdução à Bíblia (William Barclay) 3 ÍNDICE APRESENTAÇÃO ORAÇÕES PARA O ESTUDO BÍBLICO PREFÁCIO CAP. I - UM LIVRO ANTIGO CAP. II - DESENVOLVIMENTO DO ANTIGO TESTAMENTO CAP. III - DESENVOLVIMENTO DO NOVO TESTAMENTO CAP. IV - OS APÓCRIFOS CAP. V - COMO ESTUDAR A BÍBLIA CAP. VI - O LIVRO INSPIRADO BIBLIOGRAFÍA Introdução à Bíblia (William Barclay) 4 APRESENTAÇÃO A Bíblia, que da Reforma do século XVI deixou de ser o livro de uns poucos para converter-se no Livro para todos, é paradoxalmente um livro relativamente desconhecido. Embora seja o livro que mais tem sido se traduzido e difundido, há aspectos de seu conteúdo e de seu transformar histórico que, até agora, foram a província dos especialistas. A literatura que em torno da Bíblia se gerou através dos séculos, embora vasta e altamente informativa, não esteve ao alcance do leitor médio. Tal é o caso, por exemplo, dos estudos que sobre o desenvolvimento histórico do texto e cânon da Bíblia existem: não se têm escrito pensando no leitor médio da Bíblia, nem buscaram responder às interrogantes que esse mesmo leitor médio se expõe como resultado de uma leitura cuidadosa da Bíblia. Portanto, bem recebido é um livro como Introdução à Bíblia, do Dr. William Barclay, que definitivamente deve preencher um notável vazio na literatura portuguesa sobre texto e cânon da Bíblia. Em suas páginas, o autor conduz o leitor até as mais remotas origens do texto bíblico, e o faz com magistral simplicidade pedagógica. Nos seis capítulos que integram este livro, o leitor se informa a respeito do desenvolvimento histórico do Antigo Testamento, a partir da Reforma do rei Josias (621 a.C.) e até o Concílio da Jâmnia (90d.C). Igualmente o leitor pode seguir o rastro da história do Novo Testamento, dos primeiros escritos do apóstolo Paulo (49-62 d.C.) até a Epístola de Atanásio (367 d. C.). Um tema que tem ocupado os eruditos bíblicos, e preocupado aos crentes simples, é o da presença no cânon bíblico dos chamados Livros Apócrifos, ou Deuterocanônicos. O autor aborda o tema com singular erudição e clareza, sinalizando abertamente os problemas que esta questão expõe e manifestando, ao mesmo tempo, seu próprio sentir, que é resultado de sua própria reflexão e avaliação destes livros e da evidência histórica. Introdução à Bíblia (William Barclay) 5 O Dr. William Barclay é amplamente conhecido na Grã-Bretanha e no mundo como expositor da Bíblia, o mesmo que como escritor e radiodifusor. Seu evidente interesse pela comunicação o levou a combinar a erudição com a simplicidade, de modo que seu estilo é ao mesmo tempo informativo e ameno. No presente livro, expressa sua convicção de que a Bíblia deve ser não só lida mas também estudada. "A Bíblia", diz-nos, "é um livro difícil, porque provém de diferentes linguagens e civilizações e aborda os temas mais acidentados... Como toda obra suprema, recebemos mais da Bíblia quanto mais esforço investimos nela". A versão em português de Introdução à Bíblia contribui grandemente para destacar o claro estilo do original inglês. Esperamos que os leitores da Bíblia em nossos países de portuguesa desfrutem da leitura deste livro, e que a informação que aqui está recolhida os conduza a um maior e mais profundo conhecimento da Bíblia e do Senhor da Bíblia. Tradução e adaptação para a BIBLIOTECA TEOLÓGICA, vol. 4. Carlos Biagini Introdução à Bíblia (William Barclay) 6 ORAÇÕES PARA O ESTUDO BÍBLICO A oração do salmista era: “Abre meus olhos, e olharei as maravilhas de sua lei” (Sl. 119:18). Ó Deus e Pai Nosso: Ao estudar Tua palavra, abre nossos olhos e ilumina nosso entendimento. Conceda que nossa mente possa conhecer Tua verdade e nosso coração possa sentir Teu amor. E logo confirma e fortalece nossa vontade para que saiamos para viver o que aprendemos, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Amém. Ó Deus, Ajuda-nos a estudar Tua palavra. Não só para saber mais de nosso bendito Senhor, mas também para conhecê-Lo. Não só para aprender a respeito dEle, senão para nos encontrarmos com Ele. Que não só cresçamos em conhecimento, mas também o nosso amor aumente. Que não só O amemos com o coração, mas também Lhe obedeçamos com a vida. De tal modo que, ao conhecê-Lo, e amá-Lo, e obedecê-Lo, possamos também dizer: Para mim o viver é Cristo. Isto o pedimos confiados em Teu amor. Amém. Introdução à Bíblia (William Barclay) 7 PREFÁCIO Começo agradecendo ao Companheirismo de Leitura Bíblica e à Associação Internacional de Leitura Bíblica por me haver outorgado o privilégio e a responsabilidade de escrever este livro. Levo treze anos de dar classes de Bíblia numa congregação e vinte e cinco na universidade, e, por isso, agradeço a oportunidade de pôr por escrito as coisas, como creio que são, e de escrever algumas técnicas de estudo bíblico. Vivemos numa época particularmente favorável ao estudo bíblico. Nunca antes existiram tantos e tão bons materiais auxiliares de estudo. Durante muito tempo se escarneceu dos teólogos por causa da nebulosa linguagem que os caracterizava. É um fato que muitos deles escreviam só para impressionar seus colegas. Mas existe hoje o desejo fresco de comunicar a teologia ao leigo, mais que ao erudito na matéria. Existe um maior desejo de comunicar-se, como há tempo não o houve. Além disso, existe hoje, e isto é mais importante, a disposição de sentar-se para estudar juntos, o que é algo inusitado. Hoje vemos a católicos e protestantes estudar juntos a Bíblia. Há nova simpatia entre conservadores e liberais, entre fundamentalistas e radicais. Ninguém abandona sua posição ou convicção, mas todos estão dispostos a juntar-se para conversar, mesmo quando não estejam de acordo. E não faltaram ocasiões emque o diálogo lhes permitiu descobrir que não estão tão distanciados como criam estar. Eis aqui uma nova situação que oferece um grande potencial. Agostinho Birrel costumava dizer que cada estudante deveria ler obrigatoriamente obras com as quais estivesse em total desacordo Igualmente, o estudo bíblico é mais proveitoso num grupo misto, onde há grande variedade de pontos de vista, que numa piedosa reunião de mentes afins. Os desacordos podem ser o melhor estímulo para o pensamento e a motivação para novas descobertas, visto que mal Introdução à Bíblia (William Barclay) 8 poderemos estar seguros numa posição que ainda não tivemos que defender. Outra nova atitude no público consiste em ver a Bíblia como livro de estudo e não de simples leitura. Nosso venerável sistema de ler um capítulo diário, e só lê-lo, tem caído em desuso. E nosso clássico grito de guerra, de que o melhor intérprete da Bíblia é a própria Bíblia, não pode mais ser aceito. A Bíblia é um livro difícil, porque provém de diferentes linguagens e civilizações e aborda os temas mais acidentados. Por isso, deve aproveitar-se toda ajuda que facilite seu estudo. Como toda obra suprema, recebemos mais da Bíblia quanto mais esforço investimos nela. Este livro não tem o propósito de ganhar adeptos à minha maneira de pensar, mas sim de ajudá-los a pensar. É meu desejo e oração que estas páginas capacitem o povo a entender melhor a Bíblia, a amá-la mais, e a que por meio dela possa encontrar-se mais claramente a Jesus Cristo. William Barclay Universidade do Glasgow, Escócia. Introdução à Bíblia (William Barclay) 9 CAPÍTULO I UM LIVRO ANTIGO O título do primeiro capítulo da Confissão de Fé de Westminster é "Das Sagradas Escrituras". No próprio princípio deste documento básico para a Igreja da Escócia estabelece-se que os livros da Bíblia "foram dados por inspiração de Deus como nossa regra de fé e prática". Segue explicando a confissão que a autoridade das Escrituras "depende totalmente de Deus" e são, portanto, "a palavra de Deus". Acrescenta mais adiante que "nas Escrituras se expressa todo o conselho de Deus sobre tudo o que é necessário para sua própria gloria, a salvação do homem, a fé e sua prática, ou, pode deduzir-se delas por boa e necessária consequência, e às quais nada se deve acrescentar em nenhum tempo embora sejam novas revelações do Espírito ou simples tradições humanas", e que as Escrituras constituem a última corte de apelações em toda controvérsia religiosa. Tal é a posição que se dá à Bíblia. Desde o primeiro momento esta se destaca por uma posição extraordinária. A Bíblia começou a ser escrita faz uns três mil anos e sua parte mais recente foi escrita faz uns mil e oitocentos anos, não obstante isso, a Igreja a reconhece como sua autoridade definitiva e inapelável. Em certo sentido, tal posição da Bíblia é única. É verdade que existem ainda livros muito antigos, mas nenhum deles é visto como autoridade definitiva e inapelável. Nossos médicos já não nos aplicam tratamentos segundo Galeno ou Hipócrates; os arquitetos deixaram que lado as diretrizes do Vitrúvio; os agricultores esqueceram os ditames de Varrão; e os astrônomos já não se guiam pelos estudos de Ptolomeu. Estas obras continuam ainda sendo lidas, mas como etapas, não como a meta do caminho; são interessantes, e são lidas como curiosidades, mas não como autoridades. Entretanto, embora a Bíblia tem livros mais Introdução à Bíblia (William Barclay) 10 antigos que qualquer de tais obras, para o cristão continua sendo a regra suprema de fé e prática. Em outro sentido, existem certos paralelos. Enquanto houver quem leia poesia, haverá quem lê Homero; enquanto houver quem estuda filosofia, haverá quem estuda Platão e Aristóteles; enquanto houver quem se interessa na ética da "boa vida", haverá aqueles que buscam a Epicteto e a Marco Aurélio; enquanto houver quem ama a beleza, haverá quem esquadrinha os estatutos de Praxiteles. As coisas não se descartam simplesmente por serem antigas. Muitos produtos da antiguidade encontram-se entre as mais valiosas posses da humanidade. Não obstante, não há livro que pretenda ter a autoridade absoluta que a Bíblia reclama para si; nenhum outro livro declara, como a Bíblia, que não há nada mais que lhe acrescentar, como o afirma a Confissão de Fé de Westminster. O que, pois, de especial tem este livro? 1. A Bíblia possui tal beleza intrínseca que, à margem de outras coisas, tão somente isso a transforma numa obra imortal da literatura. Com apenas repassar umas breves linhas a pessoa sente encolher-lhe o coração perante o encanto de suas palavras: As muitas águas não poderiam apagar o amor, nem os rios, afogá-lo; ainda que alguém desse todos os bens da sua casa pelo amor, seria de todo desprezado (Ct. 8:7). Saul e Jônatas, queridos e amáveis, tanto na vida como na morte não se separaram! Eram mais ligeiros do que as águias, mais fortes do que os leões (2Sm 1:23). Então, o rei, profundamente comovido, subiu à sala que estava por cima da porta e chorou; e, andando, dizia: Meu filho Absalão, meu filho, meu filho Absalão! Quem me dera que eu morrera por ti, Absalão, meu filho, meu filho! (2Sm. 18:33). Introdução à Bíblia (William Barclay) 11 Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus. Falai ao coração de Jerusalém, bradai-lhe que já é findo o tempo da sua milícia, que a sua iniquidade está perdoada (Is. 40:1-2). Jamais terão fome, nunca mais terão sede, não cairá sobre eles o sol, nem ardor algum, pois o Cordeiro que se encontra no meio do trono os apascentará e os guiará para as fontes da água da vida. E Deus lhes enxugará dos olhos toda lágrima (Ap. 7:16-17). Seria fácil encher a metade deste livro com passagens semelhantes. Cada um de nós tem suas próprias passagens e versículos com sua inescapável beleza, estampados indelevelmente na memória. Se fosse apenas questão de beleza, a Bíblia teria já direitos indisputáveis à grandeza. Coleridge opinava que o estudo constante da Bíblia livraria a todos de cair na vulgaridade de estilo. Não importa qual seja a fé que se professe ou não professe, ninguém pode pretender ter adquirido uma sólida educação até ter lido este monumento literário. Longino, retórico grego, escreveu uma das obras cimos de crítica literária, intitulada Do Sublime. Para o Longino, a suprema qualidade do escritor era a sublimidade. Uma moeda que cai ao solo costuma deixar escapar um tinido, que denuncia a qualidade de sua liga metálica; Longino expressou de maneira inimitável que o sublime é o retintim da alma. Ainda o mundo não encontrou outro livro que possua a sublime qualidade da Bíblia. Certamente a Bíblia é credora à grandeza por sua beleza indiscutível. Mas, em certo sentido ao menos, isto catalogaria a Bíblia como um luxo e não como uma das necessidades essenciais da vida. Assim que para nos explicar a singularidade que a Bíblia reclama que temos que ir para além da beleza. Introdução à Bíblia (William Barclay) 12 II. A Bíblia é indispensável como texto de história. Seu fundo são os movimentos históricos dos grandes impérios do Oriente Médio: Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma. Sem a Bíblia a história do Oriente Médio careceria de importantes dados. Certo, a história para os judeus não corresponde ao conceito que dela tem o historiador profissional. Na história bíblica se mede a estatura dos personagens pela obediência ou desobediência a Deus. Por exemplo, do rei Asa diz-se que aos olhos de Jeová "fez o que era reto" (1Rs 15:11), e do rei Jeorão que "fez o que era mau" (2Rs 3:2). A Onri de Samaria são dedicadas apenas umas quantas linhas, para dizer que fez o que era mau aos olhos do Senhor (1Rs 16:25-28); entretanto, a história secular vê a Onri como um dos reis mais destacados, politicamente falando. O historiador bíblico dedica mais tempoem nos falar de Elias e Eliseu que ao fundo dos acontecimentos de impacto mundial. Às manobras do rei Acabe para apoderar-se da vinha de Nabote é dedicado todo um capítulo (1Rs 21). Tudo isto é certo, mas sem os historiadores e profetas do Antigo Testamento nosso conhecimento histórico do Oriente Médio ficaria incompleto. Como texto da história a Bíblia ocupa um lugar proeminente Mas é preciso repetir que isto não basta. A Bíblia não se ocupa só do tempo, mas também da eternidade. Assim que devemos ir para além a fim de ver no que reside sua singularidade. III. Do ponto de vista linguístico, a Bíblia tem primordial importância. Constitui o monumento supremo do hebraico clássico; ali se encontra toda sua primitiva literatura nacional, e toda a literatura hebraica. Ainda mais importante do ponto de vista linguístico, é que o Novo Testamento vem a ser o único exemplar escrito no grego popular que se falou durante o primeiro século. Abordaremos o tema mais adiante, mas brevemente adiantaremos alguns detalhes. Quando Introdução à Bíblia (William Barclay) 13 Alexandre Magno conquistou o mundo antigo, levou consigo a língua grega que, obviamente, não podia ser o grego clássico da Idade de Ouro. Tratava-se de um dialeto simplificado chamado Koiné, ou seja o grego comum, que normalmente não teria espaço na literatura helênica. O único caso existente do Koiné escrito é o Novo Testamento. Os linguistas gregos chegaram a afirmar que, se o Novo Testamento chegasse, por alguma razão, a perder seu valor religioso, seguiria não obstante sendo uma das obras mais importantes da linguística universal. Isto, novamente, é insuficiente. Embora haja um livro que seja o paraíso dos linguistas, isso não garante que sirva de entrada a um paraíso superior. IV. A Bíblia é indispensável como tesouro de sabedoria ética. A antiguidade contava com um gênero literário denominado Literatura Sapiencial. Tratava-se de sabedoria prática, capaz de ensinar ao homem a triunfar na vida honestamente. O livro de Provérbios é o exemplo perfeito: onde quer que a seja lido, encontra orientação prática para a vida, escrita em estilo vivaz e inesquecível. Filho meu, não rejeites a disciplina do SENHOR, nem te enfades da sua repreensão. Porque o SENHOR repreende a quem ama, assim como o pai, ao filho a quem quer bem. Feliz o homem que acha sabedoria, e o homem que adquire conhecimento; porque melhor é o lucro que ela dá do que o da prata, e melhor a sua renda do que o ouro mais fino. Mais preciosa é do que pérolas, e tudo o que podes desejar não é comparável a ela. O alongar-se da vida está na sua mão direita, na sua esquerda, riquezas e honra. Os seus caminhos são caminhos deliciosos, e todas as suas veredas, paz (Pv. 3:11-17). Vai ter com a formiga, ó preguiçoso, considera os seus caminhos e sê sábio. Não tendo ela chefe, nem oficial, nem comandante, no estio, prepara o seu pão, na sega, ajunta o seu mantimento. Ó preguiçoso, até quando ficarás deitado? Quando te levantarás do teu sono? Um pouco Introdução à Bíblia (William Barclay) 14 para dormir, um pouco para tosquenejar, um pouco para encruzar os braços em repouso, assim sobrevirá a tua pobreza como um ladrão, e a tua necessidade, como um homem armado (Pv . 6:6-11). Dificilmente errará o caminho quem oriente sua vida com os provérbios. Quanto ao Novo Testamento, Paulo sempre termina suas cartas oferecendo conselhos extremamente práticos, e até os não cristãos costumam dizer que, se aceitássemos e praticássemos os ensinos do Sermão da montanha, teríamos o céu na terra. Não há dúvida de que a Bíblia constitui uma guia incomparável a uma vida melhor, e uma mina inesgotável de bons conselhos. Infelizmente, a vida nos ensina que os bons conselhos por si mesmos não melhoram ninguém. Se assim fosse, faz muito que seríamos perfeitos. Se quisermos descobrir o caráter único da Bíblia, não devemos nos conformar com a afirmação de que a Bíblia é uma fonte incomparável para nos ensinar a viver bem. V. Aproximamos-nos mais à questão medular quando afirmamos que a Bíblia é um livro excepcionalmente eficaz. A. M. Chirgwin incluiu em seu livro The Bible in Modern Evangelism (A Bíblia na evangelização atual), um capítulo ao que intitulou "Lucros", do qual extraímos os seguintes casos No Brasil vivia um senhor Antônio de Minas, a quem seu amigo vinha importunando para que comprasse uma Bíblia. Por fim a comprou, mas ali mesmo jurou que a queimaria tão logo chegasse a sua casa. Na casa o fogo estava apagado; mas em seu afã de queimar a Bíblia tornou a acendê-lo. Antes de lançar a Bíblia ao fogo, abriu-a para facilitar a combustão. Por um momento ficou aberta no Sermão da montanha. Seu Introdução à Bíblia (William Barclay) 15 olhar deteve-se ali. As palavras tinham algo magnético. Perdeu a noção do tempo, e leu e leu durante toda a noite. Amanhecia quando, posto em pé, declarou: "Creio". Um nova-iorquino de uma gang acabava de sair do cárcere e se encaminhava para reunir-se com sua antiga turma para planejar um ataque. Ao chegar à Quinta Avenida aproveitou a oportunidade para "surrupiar" um transeunte. Escapuliu-se até o Parque Central para examinar o despojo e, para seu desencanto, encontrou-se sendo um flamejante possuidor de um Novo Testamento. Como sobrava tempo livre, começou a lê-lo despreocupadamente: mas logo a leitura o absorveu. Horas depois compareceu perante seus comparsas, cantou-lhes o que acabava de ler, e ali mesmo rompeu com eles e com seu passado criminal. Um colportor atravessava à meia-noite um bosque siciliano quando foi assaltado por um facínora com arma na mão. O assaltante lhe ordenou acender uma fogueira e queimar os livros que levava. O vendedor de Bíblias pediu permissão para ler em alta voz fragmentos dos livros antes de queimá-los. Começou com o Salmo 23, seguiu com a história do Bom Samaritano, e logo com o Sermão da montanha. De outra Bíblia leu o hino do amor. Em cada caso o bandoleiro comentava: "Este é um bom livro: não o queimaremos. Dá-me aqui". Finalmente, não foi queimado um único livro, embora o salteador os levou todos. Anos depois, ambos voltaram a encontrar-se. O ex-salteador de caminhos era agora um ministro de Jesus Cristo. "Graças aos seus livros", ele disse ao colportor. Esta é uma amostra mínima do que a Bíblia pode fazer. Aqui temos um livro poderoso, operante, eficaz e dinâmico. Este dado nos aproxima mais ao seu segredo. Se um livro operar mudanças assim, então pode ser qualificado com toda justiça como único. Introdução à Bíblia (William Barclay) 16 VI. Aqui chegamos ao miolo da questão; ao porquê de este livro antigo continuar sendo sempre pertinente e poderoso. A Bíblia é quase a única coisa imutável. As leis e os costumes mudam, e em certa medida muda também a moral. Por exemplo, nas primeiras páginas do Antigo Testamento não aparece objeção alguma à poligamia patriarcal. Em parte a religião mesma muda também. Por exemplo, a religião judia se baseava-nos sacrifícios sangrentos, mas isso já não faz parte de nossa religião. A única coisa invariável são as relações pessoais. Enquanto a gente siga sendo gente, as relações pessoais seguirão sendo as mesmas. O amor e o ódio, a lealdade e a traição, a amizade e a inimizade permanecem sempre. Sobre isto é o que trata a Bíblia: das relações entre homem e homem, entre homem e mulher, mas sobretudo, entre o homem e Deus, e entre Deus e o homem. Por isso a Bíblia é antiga e moderna ao mesmo tempo. Vejamos um exemplo, simples e encantador: Jacó teve que servir sete anos para que Labão lhe permitisse casar-se com sua filha. " Assim, por amor a Raquel, serviu Jacó sete anos; e estes lhe pareceram como poucos dias, pelo muito que a amava" (Gn. 29:20). Histórias e situações como estas jamais passarão na moda, enquanto houver homens e mulheres. A Bíblia permanece sempre nova porque não se enfoca apenasem leis, regras e regulamentos, mas principalmente em homens e mulheres, e em suas relações mútuas e em suas relações com Deus. A Bíblia é o livro do amor dos uns pelos outros. e do amor por Deus o qual é eterno. VII. Isto nos leva a última e suprema razão que faz da Bíblia um livro único e sempre indispensável. A esta razão teremos oportunidade de voltar repetidamente. Só na Bíblia podemos encontrar a Jesus Cristo. Virtualmente, não existe outra fonte de informação sobre a vida, palavras e ensinos de Jesus. Sem a Bíblia só contaríamos com recursos vagos e opiniões abstratas, o que está intimamente relacionado com nosso ponto anterior. Só em Cristo e através de Cristo, as relações com nossos Introdução à Bíblia (William Barclay) 17 semelhantes são relacionamentos de amor. Só nEle e por meio dEle podemos ter relacionamento com Deus. Sendo tão antiga, a Bíblia é sempre aplicável porque trata das imutáveis relações pessoais entre os homens, entre o homem e a mulher, e entre os homens e Deus. É sempre indispensável porque nela encontramos o retrato da única pessoa no céu e na terra em quem tais relações alcançam sua perfeição. VIII. Concluiremos com algo expresso pela Confissão de Fé de Westminster, com a qual começamos. Depois que a confissão deixou estabelecido que a Bíblia contém tudo o que é necessário para nossa salvação, acrescenta: "Entretanto nossa persuasão e completa convicção de que sua verdade é infalível e sua autoridade divina, provêm da obra interior do Espírito Santo, quem dá testemunho ao nosso coração com a palavra divina e por meio dela". E acrescenta: "reconhecemos que é necessária a iluminação interna do Espírito de Deus para a compreensão salvífica de tudo o que se revela em Sua palavra" A doutrina dos judeus sobre o Espírito era muito singela mas abrangia tudo. Para eles o Espírito tinha duas funções: revelar a verdade de Deus aos seres humanos e capacitá-los a reconhecer essa verdade. Assim que, para entender e apropriar-se totalmente do significado da palavra de Dias, os homens necessitam que o Espírito habite em seu coração. Isto significa simplesmente que a leitura bíblica deve ir sempre unida à oração. Bem faremos em nos aproximar à Bíblia com a oração do George Adam Smith nos lábios: Deus todo-poderoso e misericordioso, que deste a Bíblia como revelação de Teu grande amor aos homens, e de Teu grande poder e vontade de nos salvar. Concede-nos que seu estudo não seja em vão por causa da dureza e despreocupação de nosso coração, mas sim por meio dela sejamos confirmados no arrependimento, animados na esperança, fortalecidos para o serviço, e saturados com o verdadeiro conhecimento de Teu filho Jesus Cristo. Isto o pedimos confiados em Teu amor. Amém. Introdução à Bíblia (William Barclay) 18 CAPÍTULO II DESENVOLVIMENTO DO ANTIGO TESTAMENTO Começaremos a estudar o processo de integração até o ponto em que a Bíblia ficou completa. Dito tecnicamente, estudaremos a formação do cânon das Escrituras. O cânon das Escrituras é a lista de livros aceitos pela Igreja Cristã como sua regra escrita de fé: é a lista dos livros "oficiais" da Igreja, e que a Igreja considera como autoridade definitiva para a relação de sua própria história e para a formação de sua vida e doutrina. A palavra cânon em si é muito interessante. Provém da voz semítica kaneh, cano. Um cano reto pode servir de regra para traçar linhas retas. Por isso cânon veio para significar regra, embora não para traçar linhas retas, senão para levar uma vida reta. O cânon vem a ser a regra que serve para determinar o que é o correto em qualquer circunstância. A regra tem também tem marcas para medir as linhas que traça, o que confere outro significado à palavra cânon. Tais marcas ou gradações se convertem numa lista Por exemplo, o cânon da missa é a lista daqueles a quem se lembra na missa. O cânon das Escrituras é, pois, a lista dos livros que a Igreja reconhece como sua autoridade Mas uma lista, neste sentido e uso, contém livros aos quais algo lhes foi feito: foram incluídos na lista, mas estes mesmos livros afetam a tudo o mais: tornam-se a regra para julgar todas as coisas. De modo que, a Igreja foi a que definiu o cânon ou livros da Bíblia. A Igreja existiu muito antes de que existisse a Bíblia; em tal sentido, pode afirmar-se que não foi a Bíblia a que fez a Igreja, mas foi a Igreja que fez as Escrituras. A Igreja primitiva carecia de Novo Testamento, Introdução à Bíblia (William Barclay) 19 pois estava ocupadíssima em escrevê-lo. Por outro lado, os livros bíblicos não são volumes comuns que sofrem passivamente o que lhes possa suceder. São obras ativas, com poder para guiar e dirigir a vida e a obra da Igreja. Estudemos como se integrou a lista de livros que a Igreja reconhece como autoridade, e que logo se tornaram os documentos fundamentais da fé cristã. Se na atualidade pedirmos uma Bíblia numa livraria receberemos um só volume: um livro. Mas ao abri-lo encontraremos várias listas de livros do Antigo e do Novo Testamento. Normalmente se adjudicam 39 livros ao Antigo Testamento e 27 ao Novo, para um total de 661ibros. Isso quer dizer que, ao comprar um exemplar da Bíblia, estamos na realidade adquirindo toda uma biblioteca dentro de duas capas. E se investigarmos com algum detalhe esta biblioteca portátil, acharemos que para escrevê-la foram requeridos, pelo menos, mil anos e que seus livros foram sendo redigidos nos dias do mundo antigo, da remota Babilônia até a Roma dos Césares. Se tivéssemos vivido então, jamais teríamos cometido o erro de ver a Bíblia como um só livro, pela simples razão de que o próprio livro, tal como hoje o conhecemos, ainda não existia. Na antiguidade, as obras literárias se escreviam em rolos. Nosso livro atual, primeiro chamado codex ou códice, veio aparecendo para o segundo século de nossa era. Os livros do Antigo Testamento foram escritos em couros; os do Novo Testamento começaram a ser escritos em papiros manufaturados com cana do rio Nilo. Este cana é uma variedade de junco que chega a crescer em maior altura que um homem e é mais grosso que um punho humano. A polpa do junco se cortava em lâminas que se acomodavam cruzadas ao longo sobre outras colocadas em longitude, eram umedecidas, calcadas, e logo se poliam com pedra pedra-pomes, até que ficava uma substância Introdução à Bíblia (William Barclay) 20 de cor café parecida com o papel. A palavra Bíblia procede do vocábulo grego biblos. No princípio chamava-se biblos ao junco para papiro. Logo o próprio papiro foi chamado biblos. Depois biblos chegou a significar o rolo de papiro já escrito, até que se fixou o nome de biblos para designar o livro. O papiro pode durar indefinidamente se for conservado seco, embora vá ficando cada vez mais quebradiço. O papiro não era barato. Cortava-se em folhas de 25 x 20 cms. As folhas mais comuns custariam o equivalente a US$ 0.03 dólares e as mais finas a US$ 0.15 dólares cada uma. Os preços poderiam parecer baixos, mas é preciso considerar que o salário do trabalhador equivalia a uns US$ 0.06 dólares diários. As folhas de papiro se uniam até formar uma banda longa à qual se aderia um rolo de madeira em cada extremo. Ao ir lendo, a tira se desenrolava com uma mão e se enrolava simultaneamente com a outra As colunas de escritura tinham de 6.2 a 7.5 centímetros de largura. Durante o período intermediário que vai desde o desaparecimento do rolo à aparição do livro ou códice, os livros eram imprimidos em papiro. Mas o comum era escrever em pele de bezerro, também conhecida como virtulina charta. O pergaminho tinha tomado seu nome de Pérgamo, seu principal centro manufatureiro, e por isso também era chamado pergaméné carta. O papiro e o pergaminho têm a vantagem de ser muito duráveis, mas em conjunto representavam uma dupla desvantagem para os antigos: I. O rolo não podia ser usado sem ser desenrolado.Portanto, o rolo não podia ter mais de 9 metros de comprimento, onde quase não caberia, digamos, o evangelho de Lucas, ou o de Mateus, ou Atos dos Apóstolos. Por isso era impossível para os antigos conceber a qualquer dos dois testamentos bíblicos como um só livro. O Antigo ou o Novo Testamento Introdução à Bíblia (William Barclay) 21 teriam representado toda uma coleção muito custoso de rolos escritos. Ainda na primeira etapa do códice teriam sido necessários três ou quatro volumes para conter o Novo Testamento devido ao tipo de encadernação Para os antigos, a Bíblia era toda uma biblioteca, e eles estavam conscientes disso. II. A segunda desvantagem eram os altos custos do papiro e do copiado. A unidade de medida para o trabalho copiado era o stichos (stichoi no plural). Se o stichos teria sido contado como uma linha, não seria possível pagar, pois ficaria ao arbítrio do copista a quantidade de palavras que copiaria numa linha. O stichos tinha como base o hexâmetro típico de Homero, que constava de 16 sílabas. Portanto, o pagamento ao copista se calculava em stichoi. Há um manuscrito do Novo Testamento que data do século VI, chamado o Códice Claramontano, que anota o número de stichoi de cada livro. Por exemplo, Mateus tem 2.600, Lucas 2.900, Atos 2,600, Romanos 1.040, Colossenses 251, 2 João 20, e Apocalipse 1.200. O imperador Diocleciano fixou a tarifa por decreto. Segundo isto, copiar 100 stichoi custava entre 20 e 25 denários, aproximadamente uns US$ 0.06 dólares, ou seja US$ 1.65 dólares por cada cem linhas copiadas. Copiar um exemplar de São Mateus, por exemplo, custaria US$ 40.00 dólares mais o custo de papiro. Estes custos tão elevados se mantiveram assim até a aparição da imprensa. Só até então apareceu a Bíblia num só volume. O qual significou que antes disso só contadas pessoas podiam possuir a Bíblia completa. Vejamos agora como se formou a biblioteca divina do Antigo Testamento até tomar sua forma atual. Os judeus dividiam seus textos sagrados em três seções: a Lei, os Profetas e os Escritos. Tal classificação se remonta ao ano 180 a.C. Jesus Ben Siraque escreveu originalmente no hebraico um livro sapiencial que hoje conhecemos como Eclesiástico. Quarenta e oito anos Introdução à Bíblia (William Barclay) 22 depois seu neto, então vivia no Egito, traduziu-o ao grego considerando que era obra valiosa e digna de ampla difusão. No Prólogo que lhe escreveu faz referência aos ensinos da Lei, os Profetas e sucessores. Repete a referência à Lei e aos Profetas e "aos outros livros de nossos pais". A Lei é constituída pelos cinco primeiros livros do Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo. Levítico, Números e Deuteronômio, conhecidos também como o Pentateuco, que em grego significa cinco rolos. Os Profetas são divididos em duas seções. Primeiro, os Profetas Anteriores, que abrangem os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. contavam-se como quatro livros, pois 1 e 2 de Samuel e 1 e 2 de Reis consideravam-se um livro cada um. Nós vemos estes livros como históricos, mas para os judeus eram proféticos, devido em parte porque tratam a respeito de grandes profetas como Elias e Eliseu e, em parte, porque para os judeus Deus se revela na história tanto ou mais que nas palavras humanas. Em seguida colocava-se a seção de Profetas Posteriores: Isaías, Jeremias, Ezequiel e os doze chamados profetas menores: Oseias, Joel, Amós, Obadias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, e Malaquias. O nome de menores não se deve a que sejam considerados inferiores ou menos profetas, mas ao fato de que suas profecias são menos extensas que as dos três primeiros. E visto que os doze menores sejam classificados como um só livro, os Profetas Posteriores eram contados também como quatro. Os Escritos são na realidade uma coleção miscelânea que se classificava de diversas maneiras. Uma delas incluía, primeiro, três livros poéticos: Salmos, Provérbios e Jó; segundo, os cinco megilloth (rolos), cada qual relacionado com um dos grandes festivais judeus, Introdução à Bíblia (William Barclay) 23 como segue: o Cantar dos Cantares, alegorizado até relacioná-lo com a libertação do Egito, associava-se com a Páscoa e era lido no oitavo dia da festa. Rute se relacionava com o Pentecostes (ou seja a celebração da colheita de frutos), por tratar-se de um idílio durante a temporada de colheitas; lia-se no segundo dia do Pentecostes. Lamentações era lido em 9 de Abe, aniversário da destruição do templo de Salomão. Eclesiastes era lido no terceiro dia da Festa dos Tabernáculos, quando se comemorava a peregrinação pelo deserto: Durante esta celebração o povo abandonava seus lares e viviam ao ar livre, em choças de ramagens. A leitura do Eclesiastes tinha como objetivo enfatizar que se devia lembrar a Deus no meio da prosperidade material. O livro de Ester era lido na Festa de Purim, a que servia de razão e justificação. Estes cinco megilloth eram os únicos Escritos que se liam na sinagoga, e só nas celebrações mencionadas. Terceiro, havia um livro profético, o de Daniel. Finalmente vinham dois livros históricos, Esdras-Neemias considerados um só e Crônicas. Todos estes livros contavam como 24 para os judeus, cifra a que chegavam porque os classificavam assim: cinco livros da Lei; quatro livros dos Profetas Anteriores (1, 2 Samuel e 1, 2 Reis contavam como dois livros); quatro livros dos Profetas Posteriores (considerando os 12 como um); onze livros dos Escritos (Esdras-Neemias e os dois de Crônicas vistos como um só livro) . Agora detalharemos como foi que adquiriram caráter de Escritura cada uma destas três seções do Antigo Testamento. Introdução à Bíblia (William Barclay) 24 A Lei, para o judeu, era e continua sendo o mais importante do mundo; é o eixo do culto na sinagoga e a essência de toda verdadeira religião. A palavra lei não é a mais adequada em nosso idioma, porque tem uma conotação extremamente legalista. Mas a Lei judaica vai muito além das regras, regulamentações, proibições e mandamentos. Torah é como se chama no hebraico, e significa instrução mais que lei. A Torah vem sendo essa instrução que Deus comunica aos homens e que, ao obedecê-la estes, permite-lhes encontrar vida neste mundo e no vindouro. Sustentavam os judeus, que a Lei tinha sido criada antes do próprio mundo, e que Deus tinha consultado a Lei antes de criar o mundo. Afirmavam que com o advento pleno do reino de Deus os Profetas e os Escritos feneceriam, mas a Lei permaneceria para sempre. Sustentavam, além disso, que Deus tinha entregue literalmente e de própria mão toda a Lei a Moisés, e que ao principiar cada dia Deus apartava um tempo para estudar a Lei. Tinham o propósito de que a infância judaica "gravasse em sua alma" a Lei. Desde a infância eram instruídos nela, e foram muitos os judeus que preferiram morrer antes que perjurar dela, pois a consideravam nada menos que a própria palavra de Deus. A Lei, pois, era o centro de tudo; e embora o resto das Escrituras ocupava um lugar proeminente, contudo as tinham como um simples comentário da Lei. Esta er lida versículo por versículo, primeiro no hebraico, e logo era traduzido ao idioma da congregação. Como chegou a ocupar a Lei uma posição tão elevada? A seguir trataremos de reconstruir este processo. E embora seja uma reconstrução mais que fatos comprovados, ajusta-se aos fatos e é aceita pela maioria dos eruditos veterotestamentários. Existe um ponto de partida com relação à Lei, e bem dramático por certo. A religião judaica encontrava-se em condição bastante lastimosa. Depois que morreu o bom rei Ezequias, sucederam-no Manassés e Amom, os quais eram pouco menos que pagãos (1Rs 21) E cujos Introdução à Bíblia (William Barclay) 25 reinados combinados se prolongaram durante mais de meio século, deixando ao judaísmo em seu mais sob nível. Então, no ano 621 a.C.; subiu ao trono ojovem Josias e fez o reto aos olhos de Jeová". Entre outras coisas, Josias iniciou a reparação e reconstrução do abandonado Templo, e foi então quando o sacerdote Hilquias encontrou o livro da Lei na Casa do Senhor. Quando o rei e o povo leram a Lei, foram movidos ao arrependimento e à reforma, e foi assim como este livro veio a ser para eles a palavra mesma de Deus (1Rs 22- 23). Indiscutivelmente tratava-se do livro do Deuteronômio escrito por um profeta e sacerdote nos lôbregos dias de Emanasse e Amom, quando não havia liberdade de expressão, e o escondeu no Templo para que a seu tempo fora encontrado. Aqui se inicia o movimento inteiro. Por assim dizer, é a primeira vez que se canoniza um livro e se transforma em palavra de Deus para o povo de Deus. Além disso, foram recuperados outros fragmentos da Lei que se acrescentaram à coleção e foram tidos em alta estima. Entre eles estava a mais antiga exposição da Lei, também conhecida como o livrinho da Aliança, em Êxodo 34. Recuperaram, além disso, o próprio livro da Aliança, quer dizer, as condições que o povo havia aceito quando Deus o tomou como Seu povo e lhes prometeu que Ele seria o seu Deus. Isto se encontra em Êxodo 20:22-23:33, e em sua forma atual se remonta por ano de 900 a.C. Posteriormente, em meados do século VI a.C. foi acrescentada outra grande seção. A própria essência do judaísmo se acha na expressão; "Santos sereis, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo" (Lv. 19:2). Assim surgiu o chamado Código de Santidade. A expressão "santo". neste sentido significa "diferente". Deus é o ser excelsamente diferente, o absolutamente diferente, como também tem sido chamado. O povo de Deus, do mesmo modo, deve ser diferente: não viverá como o resto das Introdução à Bíblia (William Barclay) 26 nações, e aceitará o fato de que é um povo destinado a ser diferente. E o sumário da vida diferente que deve levar, encontra-se no Código de Santidade em Levítico 17-26. Aqui temos, pois, as grandes seções da Lei; a voz de Deus que agora chega de maneira mais completa e direta ao Seu povo. Trata-se do antigo livrinho da Aliança. e1libro da Aliança mesmo (Deuteronômio) e o Código de Santidade. Gradualmente vai-se integrando a Lei. Aqui é onde convém destacar algo que já vai emergindo, e é que não houve ninguém que se assentou a escrever intencionalmente um livro das Escrituras. Os livros que logo se formaram nas Escrituras, durante anos e séculos tinham vindo fortalecendo e ajudando o povo. Através das centúrias tinham demonstrado ser, nem mais nem menos, a palavra de Deus; por seus próprios méritos tinham estabelecido seu próprio direito a ser reconhecidos como a palavra de Deus à humanidade. O que depois constituiu as Escrituras não era nada novo para então, mas sim o tempo lhes tinha dado sua identidade como tais. Mas no Pentateuco temos algo mais que leis e instrução. Todo o material da Lei contido no Pentateuco está localizado dentro do contexto de uma narração que parte da criação do mundo até a entrada à terra prometida. Dentro desta narração sucedem alguns fenômenos extremamente interessantes. Ao estudá-la, descobrimos que se trata de um verdadeiro composto procedente de diversas fontes. Tradicionalmente é considerada como obra de Moisés, mas dali a pouco fica claro que houve outros participantes em seu desenvolvimento. A lista dos reis de Edom, que aparece em Gênesis, vem prolongada pela seguinte expressão: "São estes os reis que reinaram na terra de Edom, antes que houvesse rei sobre os filhos de Israel." (Gn. 36:31). Saul foi o Introdução à Bíblia (William Barclay) 27 primeiro rei de Israel, e viveu séculos depois de Moisés; pelo que mal poderia este fazer referência a rei algum de Israel. Gênesis 14:14 conta que Abraão perseguiu os seus inimigos "até Dã". Mas Dã não recebeu este nome até o tempo dos Juízes, depois da época de Moisés. Em Gênesis 21:34 e 26:14-18 menciona-se os filisteus, mas estes não aparecem senão muito tempo depois de Moisés, ao redor do 1200 a.C. A maior abundância, Deuteronômio 34:1-8 narra a morte de Moisés. E é extremamente improvável que Moisés tenha relatado sua própria morte! Assim como é indubitável que Moisés foi o grande legislador de Israel, é indisputável também que nos primeiros cinco livros do Antigo Testamento "colocou a mão" mais alguém que o próprio Moisés. Encontramos neles mais de uma narrativa e de um escritor. Há outros indícios de que se trata de uma narrativa com acrescentados. Frequentemente se acham duas narrações do acontecimento. Há duas crônicas da fundação de Berseba, uma relacionada com Abraão e outra com Isaque (Gn. 21:31 e 26.:33). Há duas histórias de como Betel obteve seu nome: segundo uma, Jacó a nomeou a caminho de Padã-Arã; segundo a outra, quando voltava de Padã-Arã (Gn. 28: 19; 35:15). Relata-se de duas maneiras a expulsão de Agar e Ismael: numa, o fato sucede antes do nascimento da criança (Gn 16:6-16); e na outra, depois do nascimento de Ismael (Gn 21:9-21). Há duas versões da história da criação. Numa, o homem é criado ao terminar todo o processo criativo, quando o mar e os continentes, as plantas, os animais e as aves já tinham sido criados. Segundo esta versão o homem e a mulher foram criados simultaneamente (Gn. 1). Na outra (Gn. 2), o homem é criado no princípio do processo, logo o jardim, os animais e as aves, e logo a mulher é feita da costela do varão. Introdução à Bíblia (William Barclay) 28 No relato do dilúvio se entretecem duas histórias sobre a arca. Numa delas entram sete casais de cada animal; na outra entram um par de cada um (Gn. 7:2-3; 7:8-9). Ao longo do Gênesis podem perceber-se duas versões, duas fontes e dois relatos lado a lado. O compilador do último formato é tão honesto, tão respeitoso de suas fontes, que quando conta com duas delas inclui ambas. Agora, em algumas ocasiões nota-se algo mais nesta compilação. O hebraico tem duas palavras para designar a Deus: Elohim e Iahweh ou Yahweh. A última tem grande interesse e importância, pois é similar à palavra Jeová, que é sua forma mais comum. No original hebraico não existem letras vocais, só consoantes; não foi senão até muito depois quando se acrescentaram pequenos sinais vocálicos sob as consoantes para indicar a pronúncia adequada. O nome de Deus se representa com as quatro consoantes hebraicas YHWH, que os judeus jamais se atrevem a pronunciar, por considerar que o nome de Deus é muito sagrado para ser articulado. Existe também a palavra Adonai, que significa Senhor. Os judeus tomaram as vogais de Adonai, e as anexaram às quatro consoantes sagradas YHWH de onde obtiveram a forma Jeová. Assim que a palavra Jeová compõe-se das letras YHWH soletradas com as vogais hebraicas da palavra Senhor, mas a forma genuína é Iahweh (Yahweh), impronunciável por ser tão sacrossanta. Nas versões inglesas do Antigo Testamento, Elohim é traduzido simplesmente como Deus, mas YHWH é traduzido Senhor, em versais e versaletes. Como em Gênesis 2:4-5.6. Ao examinar cuidadosamente estes antigos manuscritos, encontramos que em algumas seções se chama Deus, Jeová ou Jeová Deus, conforme proceda no original do Elohim ou Iahweh. Por exemplo, no princípio da Bíblia, no primeiro relato da criação, provém de Elohim e se chama Deus (Gn. 1:1- Introdução à Bíblia (William Barclay) 29 3), conquanto no segundo relato da criação é mencionado como Jeová Deus (Gn. 2:4-24). No relato da arca, onde os animais entram em casais simples, o mandato é dado por Deus (Elohim) (Gn. 7:9), e em que entram sete casais (7:1-2), por Jeová. De modo que, no princípio da Bíblia encontramos duas fontes entretecidas, numa das quais chama-se a Deus Elohim e em outra em que se chama Iahweh, que se traduz respectivamente como Deus e Jeová. Com o tempo, ambas as fontes chamam a Deus Jeová, Senhor, pois na fonte quecomeça chamando Elohim a Deus, achamos o conhecido relato em que Moisés descobre que Deus Se chama Jeová ("Eu sou aquele que sou". Ex. 3:13-16), que é a lição que Moisés recebe no misterioso incidente da sarça incandescente (Êx. 3:1-6). Fica, pois, de relevo que a Lei, o Pentateuco, não surgiu por geração espontânea. Levou-se séculos para gerá-lo. Constitui a essência destilada da voz de Deus à humanidade - de palavra e fato – através dos tempos. Aqui se concentra a voz de Deus em seu percurso pelos séculos: primeiro o livrinho da Aliança, seguido do livro maior da Aliança; logo Deuteronômio, logo o Código de Santidade, e finalmente o relato dos atos de Deus pelos homens, compilado por dois escritores distintos. Posteriormente tomam forma e se entretecem ambos os relatos com tal honestidade que nada se omite nem se muda; e, finalmente, culmina nessa maravilhosa amálgama de lei e história que, para os judeus, continua sendo a palavra de Deus, sem paralelo na terra. Mas fica pendente responder: Quando deixou a Lei de ser um simples livro maravilhoso para converter-se nas Escrituras? Quando deixou de ser um livro para converter-se na Bíblia? O que equivale a perguntar: Quando a seção mais antiga da Bíblia começou a ser considerada definitivamente como a palavra de Deus? Há três indicações que nos ajudam a fixar tal data. Introdução à Bíblia (William Barclay) 30 I. Uma das grandes datas foi quando se traduziu ao grego o Antigo Testamento, crônica que deixamos para o Capítulo IV. No momento nos interessa somente a data em que apareceu a Septuaginta, que é como foi chamada a tradução grega do Antigo Testamento. Indubitavelmente trata-se de uma data importante. A esfera do Antigo Testamento ficou limitada só aos hebreus enquanto se manteve nesse idioma, mas quando foi traduzido ao grego converteu-se na posse de todo o mundo. A tradução teve lugar durante o reinado de Ptolomeu II, chamado Filadelfo, que reinou no Egito do ano 285 aos 246 a.C. A princípio só se traduziu a Lei, a única coisa que os judeus contemporâneos consideravam Escritura Sagrada. Isto nos permite asseverar que para o ano 270 a.C. a Lei certamente era considerada Escritura. Poderíamos remontar-nos ainda mais atrás? II. Até o dia de hoje, os samaritanos não aceitam como Escritura todo o Antigo Testamento, mas unicamente a Lei, o Pentateuco. O que significa que se segregaram do resto da nação quando a Lei era já Escritura, mas ainda não o era o resto do Antigo Testamento. Tal separação teve lugar aproximadamente no ano 400 a.C. Portanto, já para esta data a Lei era considerada como a palavra de Deus. III. Lendo Neemias 8-10, achamos que o escriba Esdras lê ao povo "o livro da Lei", e que o povo o aceita como a Lei de Deus e como lei para suas vidas. O qual sucedeu à volta do exílio. Daí em diante, os judeus seriam para sempre o Povo do Livro, e esse livro seria o livro da Lei. Isto também sucedeu pelo ano 400 a.C. Tudo indica que a Lei converteu-se em Escritura e ficou estabelecida como a palavra de Deus aos homens quatrocentos anos antes que Jesus viesse ao mundo como homem. Podemos, pois, dar por sentado, que a Lei, o Pentateuco, ou os primeiros cinco livros do Antigo Testamento, foram considerados como Escritura desde ano 400 a.C. Introdução à Bíblia (William Barclay) 31 Durante quase 2.400 anos os homens acharam a palavra de Deus nos livros da Lei. E deve haver algo excepcional num livro que guiou a humanidade durante séculos e milênios. Lembremos agora que começamos a história da formação do Antigo Testamento apontando que os judeus o dividiram em três seções: a Lei, os Profetas e os Escritos. Já vimos como a Lei foi compilada e se converteu em Escrituras para o ano 400 a.C., assim que agora concentraremos nossa atenção nos Profetas. Embora já vimos que para o judeu a Lei era sem comparação a parte mais importante das Escrituras, para a maioria dos atuais eruditos bíblicos os Profetas ficariam acima da Lei. Para a maioria de nós talvez constituam a coisa mais preciosa do Antigo Testamento, com exceção dos Salmos. Vejamos como os Profetas chegaram a ser também a palavra de Deus. Conforme vimos, os Profetas foram divididos em Anteriores e Posteriores. Os Anteriores compreendem os livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. Desconhece-se absolutamente quem escreveu estes livros. Nem sequer lhes foram adjudicados títulos tradicionais, tais como se adjudicaram a Moisés todos os livros da Lei. Mas a tradição judaica credita a Josué como o autor do livro deste nome, a Samuel como autor dos livros de Juízes e Samuel, e a Jeremias como autor dos livros dos Reis. Segundo o cômputo judaico, estes quatro livros foram terminados entre os séculos VI e V a.C. Poderia parecer estranho que se classifique como livros proféticos os compreendidos por nós entre os livros históricos, mas para isso existem duas razões. Primeira, estes livros falam dos grandes profetas que agiram antes de aparecerem os profetas literários; os profetas não literários, como Samuel, Natã, Elias e Eliseu, certamente dirigiram material profético. Segundo, os judeus levavam a história muito a sério. Consideravam que os eventos históricos revelavam nada menos que Introdução à Bíblia (William Barclay) 32 Deus em ação; para eles, a história era o cenário da atividade de Deus, e criam que Deus falava mediante os eventos históricos, os quais demonstravam a veracidade da mensagem profética. A história, enfim, para eles era a voz de Deus que, através das centúrias, proclama que o bem espera os justos e aos ímpios os espera o desastre. Parecia-lhes perfeitamente natural considerar profética à história, pois a viam como uma manifestação do governo de Deus. Ao considerar os Profetas Posteriores, os grandes nomes proféticos, é conveniente ter em mente um esquema cronológico enquanto os lemos, e conhecer o fundo histórico de seus escritos. Os primeiros destes profetas foram Amós e Miqueias, que apareceram a meados do século VIII, quando se aproximava a invasão da Palestina pelos assírios, e quando o reino de Samaria foi destruído para sempre em 722 a.C. Ambos os profetas sublinham a nota que do princípio ao fim constituirá a mensagem profética e o próprio coração de sua mensagem. Tal mensagem se sintetiza na bem conhecida expressão: proclamação do monoteísmo ético. O que significa isto? Comecemos pela palavra monoteísmo. O homem creu em Deus de três maneiras. A primeira delas se conhece como politeísmo. Polloi, em grego, significa muitos: theos, Deus ou um deus. Assim que politeísmo é a palavra que descreve a religião que tem muitos deuses. Este tipo de religião foi praticada pelos antigos gregos e romanos, e incluía Zeus, Apolo, Ateneu e Afrodite, entre outros deuses. É a fase dos muitos deuses. Segundo, o henoteísmo é a etapa em que se crê num só deus válido para um grupo, mas sem excluir os deuses dos demais. Considerava-se que cada país tinha um deus cuja influência se limitava ao território nacional, e ninguém negava que os deuses de outros países fossem Introdução à Bíblia (William Barclay) 33 igualmente reais e poderosos dentro de sua esfera de influência. Isso o compreendeu Jefté quando perguntou aos amonitas: "Não é certo que aquilo que Quemos, teu deus, te dá consideras como tua possessão? Assim, possuiremos nós o território de todos quantos o SENHOR, nosso Deus, expulsou de diante de nós" (Juí. 11:24). Aqui podemos notar que Yahweh era o único Deus para os hebreus, sem prejuízo de que Quemos fosse igualmente real para os amonitas. Nesta etapa cada nação tinha o seu próprio deus, e era o único verdadeiro para eles, mas isso não negava nenhum direito aos deuses de outras nações. Por último está a fé monoteísta: só há um Deus de todos os seres humanos; Deus deste universo e de qualquer outro universo existente ou por existir. Esta foi a mensagem inicialdos profetas: há um Deus e só um, e Israel deve ser-lhe fiel. Coisa nada fácil. Visto que cria-se que cada nação possuía seu próprio deus, quem chegava a um país estrangeiro levava. por assim dizê-lo, seu próprio deus e lhe construía ali um santuário. Isto foi o que sucedeu com Salomão, quando Israel se converteu em grande potência política: vieram as alianças estrangeiras que, com frequência, eram afiançadas casando o rei de um país com uma princesa do país aliado. Isso fez Salomão, e as princesas estrangeiras trouxeram os seus próprios deuses e deusas, contaminando assim a verdadeira religião com tantas crenças falsas (1Rs. 11:1-8). O monoteísmo parece algo perfeitamente natural na atualidade; mas naqueles dias constituía uma grande descoberta, que cabia aos profetas preservar. Mas estes grandes profetas não só ensinavam o monoteísmo, mas também o monoteísmo ético. Atualmente religião e moralidade andam de mãos dadas. Mas, por estranho que pareça, na antiguidade iam de mãos dadas religião e imoralidade. Citaremos três exemplos. Na antiguidade, Introdução à Bíblia (William Barclay) 34 quando alguém fundava uma cidade, levantava os primeiros alicerces e seus portais sobre o corpo sacrificado de seu próprio filho (1Rs. 16:34), No culto do deus Moloque se sacrificavam crianças (2Rs. 23:10). O culto de Baal era um culto à fertilidade; considerava-se que os baalins faziam crescer as sementes e maturavam as vinhas. Viam o sexo como a mais potente fonte de fertilidade. Por isso se somavam aos templos de baales muitas sacerdotisas que eram realmente prostitutas consagradas. O ato sexual, realizado com elas, constituía um ato de adoração. Estas "sacerdotisas" eram as prostitutas cúlticas condenadas por Oseias (4:14) . Os profetas tiveram que ensinar as pessoas que nem o mais elaborado ritual do mundo pode substituir a castidade pessoal, a justiça social e o amor para com o homem e para com Deus. A profecia de Amós foi considerada como "um clamor de justiça social", e um dos versículos bíblicos mais citados é o de Miqueias (6:6-8) onde se diz que Deus não quer sacrifícios senão que façamos justiça, amemos a misericórdia e nos humilhemos perante Ele. Isto constitui atualmente parte de nossa religião, mas foram sensacionais descobertas em tempos dos primeiros profetas. Foram eles os grandes monoteístas éticos, cujo tema era que há um só Deus, e que os verdadeiros sacrifícios são a castidade, a misericórdia e a fidelidade. No mesmo século VIII a.C. surgem dois dos grandes profetas antigos, que trazem consigo suas próprias ideias predominantes. Vimos que o grande clamor de Amós e Miqueias é sua insistência na justiça social. Mas Oseias é, acima de tudo, o profeta do amor. Ao falar de Deus, Oseias fala de si mesmo. Deus lhe ordenou tomar uma mulher da rua. fazê-la sua esposa, e tratá-la com amor. Mas ela abandonava o lar e voltava para sua vida passada; cada vez que ela voltava para casa, o profeta a recebia com um amor que jamais se deu por vencido. Oseias apresentava um argumento vivo: Se um homem pode amar assim, quanto mais pode Deus amar? Introdução à Bíblia (William Barclay) 35 Vimos, pois, a Miqueias e Amós com seu enfoque na justiça social e a Oseias com sua ênfase no amor. Mas ainda falta um dos grandes profetas do século VIII. O livro de Isaías conta com três seções, a primeira das quais, capítulos do 1 a139, pertence ao mesmo período. Isaías foi um aristocrata, amigo de reis, e a nota dominante de sua mensagem é a santidade. "Santo, santo, santo, é o SENHOR dos Exércitos" (Is. 6:3). Isaías sempre confronta os homens com o Deus santo, e sempre insiste em que nada pode substituir a justiça e o amor. Toda a cadeia de sacrifícios, novilúnios, sábados e preces são inúteis em si mesmas: Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas (Is. 1:10-17). De modo que, cada um dos grandes profetas do século VIII tem seu tema dominante: Amós e Miqueias, a justiça social; Oseias, o amor; Isaías, a santidade. Ao lê-los é muito conveniente ter em mente o tema pessoal de cada um. Nos séculos VII e VI a.C. houve outro grupo de profetas que proclamaram a palavra de Deus à luz do momento que viviam, sempre interpretando seu momento histórico à luz do propósito de Deus. No ano 627 a.C., Sofonias viu na invasão cita proveniente do Este, o princípio do juízo que Deus tinha preparado para os assírios, moabitas, filisteus e também para Judá. Interpretou-a como advertência de que o Dia do Senhor estava perto. Simultaneamente, Naum ocupava-se em predizer graficamente a queda de Nínive. No momento pareceu como se Deus fosse intervir espetacularmente na história, mas o que sucedeu foi que surgiu outra grande potência: Babilônia. É então quando Habacuque questiona por escrito a causa da tardança de Deus, ao ver que as tiranias não faziam mais que suceder umas após outras. Introdução à Bíblia (William Barclay) 36 Surgiram então dois dos maiores profetas, que descobriram o que teria que resgatar a religião judaica do colapso. Coube a Jeremias viver a queda de Jerusalém às mãos dos babilônios, no ano 586 a.C., enquanto que Ezequiel viveu com o povo o exílio em Babilônia, onde sonhava com uma nova ordem das coisas no futuro. Mas a maior contribuição que forneceram ambos os profetas foi estabelecer que a religião não só é de caráter nacional, mas também pessoal, e ainda mais que isso. Resulta-nos atualmente difícil compreender que precisaram transcorrer vários séculos para que o indivíduo emergisse como tal. Com antecedência, os seres humanos não se viam como indivíduos, mas sim como membros de um grupo, quer fosse a tribo, a família ou a nação a que pertenciam. Bom exemplo disto encontramos no Antigo Testamento em relação ao pecado de Acã. Apesar de que Deus tinha ordenado a destruição de todo o despojo na guerra com Jericó, Acã reservou algo para si. As consequências resultaram desastrosas para toda a nação Quando se descobriu que Acã era o culpado, tomaram junto com "seus filhos, suas filhas, seus bois, seus asnos, suas ovelhas, sua tenda e tudo o que tinha" e tudo isto foi destruído totalmente (Js. 7:1-26). O castigo recaiu sobre o grupo e não só sobre o indivíduo Na Austrália podemos ainda encontrar algo semelhante. Os aborígenes australianos são considerados entre os grupos mais primitivos que restam no mundo. Não faz muito ainda, se fosse perguntado a um deles seu nome, respondia com o nome de sua tribo: "Pertenço a tal tribo. ..." Quando alguém se vê como parte de um grupo, ao sobrevir um desastre nacional também se vem a rivalidade a fé. Mas quando se descobre que a relação com Deus não depende da pertinência a um grupo, senão de que se é uma pessoa, então a relação individual com Deus prevalecerá acima de todo conflito ou catástrofe coletiva Isto é precisamente o que descobriram Jeremias e Ezequiel: que o indivíduo Introdução à Bíblia (William Barclay) 37 está com relação a Deus não por ser judeu mas por ser pessoa. Foi assim como descobriram a religião pessoal que, como toda grande descoberta, foi algo simples mas como poucos, de suma importância. Surgiu por então o novo poderio persa, sobre o qual a segunda seção de Isaías tem algo extraordinariamente importante a dizer. Esta seção abrange os capítulos do 40 ao 55. Ciro, o caudilho persa, não só não tinha intenção de libertar os judeus do jugo babilônio, mas também é improvável que tivesse ouvido falar de Yahweh, ou que lhe desse alguma importância em caso de que assim teria sido. Mas Ciro ocupava um lugar no plano e propósito de Deus, e Deus Se refere a ele dizendo que "Ele é meu pastor e cumprirá tudo o que me apraz". Deus ungiu a Ciro e o toma pela "mão direita" (Is 44:28; 45:1). Ciro teria que libertar os judeus. Embora não o soubesse, ele era só um instrumento nas mãos de Deus. Eis aqui uma verdadeirafilosofia da história: toda a história está nas mãos de Deus, e até quem jamais tenha ouvido falar de Deus pode, sem o saber, ser servo e instrumento dEle. Com uma fé assim qualquer um pode enfrentar o mundo. Nesta porção de Isaías encontramos a figura do Servo Sofredor, que tanto influiria no pensamento neotestamentário e até no do próprio Jesus. A figura do Servo Sofredor culmina em Isaías 53, onde este é ferido por nossas rebeliões e moído por nossos pecados (v. 5). O perfil completo do Servo Sofredor encontra-se nos chamados Quatro Cânticos do Servo (Is 42:1-4: 49:1-7; 50:4-9; 52:13–53:12). Observe-se que os verbos-chave de Isaías 53, até o versículo 10, estão no tempo pretérito. É porque descrevem a alguém que o profeta sabe que sofreu, mais que alguém que devia vir. É verdade que às vezes o profeta estava tão seguro de seu anúncio que se referia a Ele como algo já efetuado, embora Isaías 53 não deveria ser lido dessa maneira. Introdução à Bíblia (William Barclay) 38 Segundo Isaías 53, quem é aquele que sofre? Esta pergunta sempre tem fascinado e evitado os eruditos. Parece-me que quem melhor trata o tema é C. R. North, em seu livro The Suffering Servant in Deutero-Isaiah (O Servo Sofredor em Deutero-Isaías) North relata que S. R. Driver, eminente estudioso do Antigo Testamento, pensava escrever um comentário sobre Isaías, mas desistiu de fazê-lo perante o emaranhado labirinto de interpretações que existem em torno do servo. Será este servo o próprio Isaías, quem segundo a tradição judaica sofreu o martírio e foi sepultado na tumba de um criminoso? Assim parece tê-lo pensado o eunuco etíope (At 8:34). Ou se referirá a Jeremias, quem se vê a si mesmo como "manso cordeiro, que é levado ao matadouro" (Jr. 11:19)? Ou será Joaquim descrito pela tradição judaica como aquele que se entregou a Nabucodonosor em sacrifício para salvar Jerusalém da destruição (2Rs. 24:8-20)? Ou, em vez disso, refere-se a Zorobabel, quem depois de jogar papel preponderante no exílio desaparece misteriosamente da narração (Ag. 1:1, 12, 14; 2:21-23; Zac. 4:6-10)? Ou, é o Servo a própria nação de Israel, que sofre em redenção por seus pecados e os do mundo? Não sabemos. Mas o que sabemos, sem lugar a dúvida, é que a figura do Servo Sofredor se realizará absolutamente em Cristo. Em todo o Novo Testamento Jesus vai sendo identificado com o Servo Sofredor (At. 3:13; 3:26; 4:27,30: 8:26-35; Mt. 8:14-17; 12:14-21; Lc. 22:37; 2Co. 5:21; 1Pe. 1:19; 2Pe. 22:25). Nenhuma figura do Antigo Testamento se acha tão incrustada no Novo, como esta do Servo Sofredor do Segundo Isaías. Encontramos, depois que Assíria e Babilônia passam à história, que uma nova potência mundial aparece no cenário. Trata-se da Pérsia, a quem cabe a vez de dominar os acontecimentos. Para os judeus isto se reveste de grande importância, pois os persas lhes permitiram retornar a Jerusalém depois do cativeiro em Babilônia. E a fins do século VI e Introdução à Bíblia (William Barclay) 39 durante o século V se apresentam Ageu e Zacarias, animando-os a reconstruir o Templo em ruínas e a tratar de restaurar a glória perdida. Também se encontra ali Obadias, quem recrimina a Edom porque permaneceu indiferente perante a escravidão dos judeus. Além disso, está Joel, quem anima o povo em momentos difíceis, assim como Malaquias os estimula a restaurar o ardor de uma fé que tinham deixado esfriar. Quando a devoção decaiu, o povo tratou de substituir a Deus com cultos inferiores e ofertando o mais barato e comum ao seu alcance (Ml. 1:6-14). E quando o desânimo e o desespero reinam., Malaquias trata de avivar em seus corações o fogo da devoção. Resta mencionar o livro do profeta Jonas. Embora pequeno, é um dos mais grandiosos do Antigo Testamento, porque demanda dos judeus o abandonar seu exclusivismo. Chama-os a levar a palavra de Deus aos gentios, a alegrar-se quando eles também aceitam a mensagem de salvação, e a crer que mesmo Nínive pode ser salva igualmente, se ela se arrepender. No Antigo Testamento Jonas é o livro missionário por excelência e, talvez, um dos últimos, pois provavelmente data do século IV a.C. Agora nos cabe perguntar quando foi que os livros proféticos deixaram de ser meras joias da literatura devocional para fazer parte das Escrituras. I. Cabe aqui a mesma observação que fizemos a respeito de outros livros do Antigo Testamento. Muito antes de que fossem parte integral da Escritura já eram conhecidos, utilizados e amados. Já tinham demonstrado o seu poder para iluminar a mente, e para consolar e fortalecer o coração, o que lhes valeu um lugar nas Escrituras. Introdução à Bíblia (William Barclay) 40 Foi durante o exílio quando as obras dos profetas chegaram a ser conhecidas e amadas, em virtude de duas razões: anunciaram a sorte que aguardava o pecador, o desobediente e aquele que abandona o caminho de Deus para seguir seus próprios caminhos. Isto se cumpriu ao pé da letra e agora o povo conhecia de sobra o que esperava a uma nação que desatendia a voz de Deus. Cumpriu-se o anúncio dos profetas, mas a mensagem profética não terminou ali. Assim como tinham proclamado uma mensagem de condenação para o desobediente proclamavam também outra mensagem de esperança para o penitente. E os judeus estavam convencidos de que assim como se cumpriu a condenação, também veriam realizar a esperança. Em seu livro How to Read the Bible (Como ler a Bíblia), F. C. Grant assinala o processo seguido pela mensagem profética: a) Seus pecados estão por encontrar você: é seguro que a justiça lhe sobrevirá ... logo. b) Embora o castigo de Deus seja severo, Ele continua preocupado por aqueles a quem castiga, pois o Seu propósito não é aniquilar, mas antes, salvar. c) Nesta última hora, antes de que o juízo o alcance, arrependa-se! Se você o fizer, Deus suspenderá a ameaça de castigo e restaurará ao seu favor. d) Deus, quem certamente conhece tudo o que tem que passar, sabe também que há de sobreviver um pequeno remanescente de arrependidos, à maneira do toco de uma árvore. Destes brotos ele poderá levantar de novo a nação ou família da Aliança, que tenha escolhido. Ou seja, que a mensagem profética se compunha de ameaça e promessa em partes iguais, de catástrofe e resgate de meia-noite e amanhecer. Os judeus, pois, liam e estudavam os profetas e deles recebiam fortaleza; sabiam que se tinham razão quanto ao juízo, tinham Introdução à Bíblia (William Barclay) 41 também razão quanto à anunciada restauração. Nos dias de maior tribulação acharam esperança profética. II. Mas houve outro fator que contribuiu para outorgar lugar destacado a esta literatura profética. Era considerada um grande exemplo de uma voz que tinha sido silenciada para sempre. Já não havia quem dissesse: "Assim diz o Senhor". Como dizia nostalgicamente o Salmista: "Já não vemos os nossos símbolos; já não há profeta; nem, entre nós, quem saiba até quando" (Sl. 74:9). Pelo menos na época de Zacarias, já se considerava um enganador a quem pretendia ser profeta: "Quando alguém ainda profetizar, seu pai e sua mãe, que o geraram, lhe dirão: Não viverás, porque tens falado mentiras em nome do Senhor; seu pai e sua mãe, que o geraram, o traspassarão quando profetizar" (Zc. 13:3). E até nos Apócrifos se lê: "Foi esta uma grande tribulação em Israel, qual não tinha havido desde o dia em que não mais aparecera um profeta no meio deles" (1Mc 9:27, Bíblia de Jerusalém). E acrescenta, à eleição de Simão como príncipe e sumo sacerdote, que isso era "até que surgisse um profeta fiel" (1Mc. 14:41, BJ). Esperariam, pois, "à espera de que viesse algum profeta que se pronunciasse a esse respeito" (1Mac. 4:46, BJ). A princípios do século IV a.C. os profetas já pertenciam ao passado esplendoroso, cuja voz se apagou para sempre, o que lhes outorga uma grandeza inigualável. III. Sóé possível deduzir a partir de quando as profecias eram consideradas parte das Escrituras. No segundo livro dos Macabeus 2:13, diz-se que Neemias "tinha reunido uma biblioteca e posto nela os livros dos reis, dos profetas e os de Davi e as cartas dos reis sobre as ofertas". Sempre foi parte da tradição judaica que Esdras teve grande participação na formação da coleção escriturística. Embora simples tradição, bem poderia ser que para então, 400 a.C., os escritos proféticos estivessem já colecionados e organizados. Introdução à Bíblia (William Barclay) 42 Há, entretanto, algo que nos poderia dar uma pista razoável. Evidentemente o livro de Daniel é profético, pois prediz o futuro. O estranho é que os judeus nunca o classificaram entre os livros proféticos, mas sim entre os Escritos. Isto indicaria que Daniel apareceu quando a lista dos profetas foi enclausurada, pois de outra maneira ele teria sido incluído nela. Visto que o livro de Daniel deve datar-se para o ano 165 a.C, poderíamos assumir como provável que, para então, já se tinha fechado a lista de nomes dos profetas. De modo que, existe a possibilidade de que os profetas tenham sido considerados como Escritura ao redor do ano 200 a.C. O Antigo Testamento foi integrando-se lentamente e ganhando a aceitação irrefutável por causa de ser muito evidente sua inspiração. Para o ano 400 a.C. a Lei já era considerada Escritura Sagrada e provavelmente para o ano 200 a.C. os Profetas formavam par com a Lei. Só resta que vejamos como alcançaram a mesma posição os Escritos e neles focaremos agora nossa atenção. Vimos que os Escritos constavam de onze livros: Salmos, Provérbios, Jó, Eclesiastes, Cantar dos Cantares, Rute, Lamentações, Ester, Esdras-Neemias, Crônicas e Daniel. Os Escritos não constituem um grupo unificado e homogêneo como os da Lei e os Profetas. Mais parece uma coleção miscelânea que se chegou a ver como livros isolados. Nunca alcançaram a posição dos outros dois grupos. Alguns se liam em algumas ocasiões especiais na sinagoga mas não de maneira regular e sistemática como a Lei e os Profetas. Quando os judeus falavam de suas Escrituras tinham em mente a Lei e os Profetas. Cristo declarou que não tinha vindo para destruir a Lei e os Profetas, e sim para cumpri-los (Mt. 5:17), sustentou que a Lei e os Profetas residem no princípio de fazer aos outros como queremos que nos façam a nós (Mt 7:12). A Lei e os Profetas antecediam a vinda do Reino (Lc. 16:16), foram precisamente Moisés e os Profetas os que Cristo explicou e Introdução à Bíblia (William Barclay) 43 interpretou a caminho de Emaús (Lc. 24:27), e são eles os que se leem na sinagoga (At. 13:15). Se alguma outra seção for acrescentada às Escrituras no Novo Testamento, essa seção é a Lei, os Profetas e os Salmos (Lc. 24: 44). Nos Escritos há um pouco de tudo. Em How Came the Bible? (Como Veio a Bíblia?), E. J Goodspeed os divide assim: Discussão filosófica da religião: Jó e Eclesiastes; Lamentos: Lamentações; Cantos de amor: Cantares; Relatos: Rute e Ester; História sacerdotal: Crônicas. Em How to Read the Bible (Como ler a Bíblia), F. C. Grant distingue neles: Poesia: Jó, Salmos, Cantares e Lamentações; Sabedoria: Eclesiastes e Provérbios; Narrações: Ester e Rute; Profecia: Daniel; História: Esdras- Neemias e Crônicas. Os Escritos constituem a literatura religiosa de toda uma nação, e nela foram ganhando seu lugar, não como um todo, mas sim ocupando seu lugar um por um. Mas antes teríamos que nos perguntar como é que alcançaram a categoria de Sagradas Escrituras. Vimos visto que a partir do século IV a.C. os judeus tinham a convicção de que a voz de Deus havia cessado. O que equivaleria a dizer que qualquer livro posterior a Esdras não tinha possibilidade de incorporar-se às Escrituras por estar fora do período considerado de inspiração direta. Os rabinos chegaram a uma conclusão bastante estranha a este respeito Introdução à Bíblia (William Barclay) 44 Se o autor de um livro era conhecido, mas se sabia que o que tinha escrito caía fora do período de inspiração, então sua obra não podia ser incluída na lista de Escritura Sagrada. Isto sucedeu com o livro Eclesiástico, que é um livro formidável e cuja omissão do cânon foi lamentada por muitos. Foi escrito por Jesus Ben Siraque, ao redor do ano 180 a.C. e traduzido ao grego por seu neto em 132 a.C. Tanto o autor como a data eram conhecidos, e portanto foi eliminado do cânon. Por outro lado, os rabinos sustentavam que se o livro era de autor desconhecido e tinha suficiente validez religiosa para aspirar ao cânon, então podia ser-lhe lhe atribuído qualquer das figuras consagradas dentro do período de inspiração. Em consequência, visto que ninguém sabia quem tinha escrito Rute, foi atribuído a Samuel, Lamentações a Jeremias, Provérbios e Eclesiastes a Salomão, Jó a Moisés, Cantares a Salomão (ou pelo menos ao período de Ezequias). Todos os Salmos se adjudicaram a Davi, mesmo quando a metade do livro diz muito claramente: "Aqui terminam as orações de Davi, filho de Jessé" (Sl 72:20). Esdras e Neemias foram atribuídos a Esdras, quem adquiriu uma posição única na tradição judaica. Os rabinos afirmavam que "A Torah foi esquecida por Israel até que Esdras veio de Babilônia e a restabeleceu". Acrescentavam que, se a Lei já não tivesse sido dada por Moisés, Esdras teria sido o indicado para recebê-la. Já retomaremos o lugar de Esdras na tradição. Realmente foi muito afortunado que os rabinos judeus tenham encontrado a maneira de preservar estes livros, pois de outra maneira poderiam ter desaparecido. Agora assomamos ao processo que conduziu a que estes Escritos fossem reconhecidos como Escrituras canônicas, e logo os consideraremos um por um. Há cinco evidências fragmentárias que se combinam para nos proporcionar a data. Introdução à Bíblia (William Barclay) 45 I. Já mencionamos a citação em 2 Macabeus 2:13, que fala da biblioteca fundada por Neemias e de como colecionou os livros sobre os reis, os profetas e os escritos de Davi. Se for possível considerar esta data como histórica, então podemos afirmar que Neemias começou a colecionar os Salmos e assim pôs a base para essa seção das Escrituras que depois foi conhecida como os Escritos II. Também fizemos referência ao prólogo que escreveu o neto de Jesus Ben Siraque quando traduziu ao grego o livro escrito por seu avô. Em tal prólogo faz menção aos grandes e ricos tesouros de instrução e sabedoria transmitidos pela tradição, incluindo a Lei e os Profetas e os livros de seus seguidores. Fala de como seu avô tinha estudado a Lei, os Profetas e os livros de nossos antepassados. Fala da Lei, os Profetas, e outros livros. Nunca emprega o termo de Escritos para designá-los, mas é evidente que para ele havia uma adição à Lei e os Profetas, quer dizer, uma terceira seção das Sagradas Escrituras. III. Deste modo mencionamos que Lucas 24:44 fala de que Jesus, depois da Ressurreição, explicou aos Seus discípulos o que a Lei, os Profetas e os Salmos diziam dEle. IV. No livro apócrifo 4º. de Esdras, que nas edições dos livros apócrifos aparece como 20 de Esdras, há um relato (Capítulo 14) extremamente fictício da obra de Esdras. Para então já se perdeu a Lei e Esdras tinha sido designado por Deus para restaurá-la. Segundo este relato, Esdras foi levado a um campo, junto com outros cinco homens, e ali lhe deu de beber, numa cálice, um líquido que ardia como fogo. Durante quarenta dias e quarenta noites, Esdras ditou sem parar aos cinco escribas até completar noventa e quatro livros. Então, segue a lenda, o Altíssimo lhe disse: "Publica os vinte e quatro livros que escreveu primeiro e deixa que todos os leiam, sejam dignos ou não de lê- los. Mas conserva os setenta que escreveu por último, para dá-los aos Introdução à Bíblia (William Barclay) 46 sábios de seu povo". Certamente,
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