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Arnauld_Berthoud_-_A_História_do_Pensamento_Econômico_e_Sua_Herança_Filosófica

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Arnaud Berthoud
Econômica, nº 3, pp. 63-74, junho 2000
A História do Pensamento
Econômico e sua herança filosófica
Arnaud Berthoud*
V. II N. 3 JUNHO pp. 63-74
Para que nos interessemos pela história do pensamento econô-
mico, Ø preciso que acreditemos que as CiŒncias Econômicas estªo
impregnadas por seu próprio passado de uma certa forma que explici-
tarei adiante e a qual chamo de herança. Esta herança faz de nós filósofos.
Tomo esta idØia a R. Heilbroner (1971), cuja obra sobre os Grandes
Economistas tem como título original The worldly philosophers, isto
Ø, os filósofos do mundo, do mundo aqui de baixo ou do mundo
material. Reconhecemos a herança desses filósofos do mundo enquanto
nós mesmos formos filósofos. Responderei tambØm mais diretamente
à pergunta referente à herança que constitui a parte filosófica das CiŒn-
cias Econômicas. Mostrarei que a herança que recebemos e transmitimos
como historiadores do pensamento econômico tem por essŒncia uma
pergunta e nªo uma resposta. A pergunta Ø a seguinte: que lugar o
desejo do rico e a piedade do pobre ocupam na vida política de nossas
sociedades e em relaçªo aos riscos de guerra civil ou de tirania?
Qualquer estudo sobre o desenvolvimento da CiŒncia Econô-
mica me parece estar inscrito em quatro dimensıes diferentes, muito
freqüentemente com um privilØgio concedido a uma ou a outra: o
estudo dos textos, a história dos fatos, a anÆlise, a doutrina. Eu as
apresento aqui nesta ordem, sem me interessar por suas relaçıes mœtu-
as. Esta apresentaçªo tem por objetivo mostrar a parte filosófica das
CiŒncias Econômicas.
* Arnaud Berthoud Ø filósofo e professor no Doutorado de Economia da Universi-
dade de Lille e no Doutorado de Economia da Universidade de Nanterre, Paris-X,
França. Esse texto, inØdito, foi gentilmente cedido aos Editores para publicaçªo na
revista Econômica. Traduçªo: Angela Ganem. Revisªo tØcnica: Ricardo Tolipan.
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Estudo dos textos – Aqui, considero o trabalho que consiste
em exumar textos desconhecidos ou em apresentar numa ordem nova
uma sØrie de textos conhecidos. Traduçªo, preparaçªo de ediçªo, reabi-
litaçªo de um texto esquecido, composiçªo de uma biografia intelectual,
simples “releitura” à luz de um conceito recente: o que dÆ um carÆter
particular a esta dimensªo depende do conceito de autor. Os textos
antigos sªo estudados como textos de autor para medir uma autoridade.
Por exemplo, a respeito de Ricardo: as discussıes entre J.H. Hollander
(1910), Cannan (1917), Sraffa (1951) e H. Biaujeaud (1988). Os dois
primeiros afirmam uma evoluçªo do pensamento de Ricardo – da teo-
ria do valor-trabalho à teoria marshaliana dos custos de produçªo,
considerando as diferentes ediçıes dos Princípios; os dois œltimos afir-
mam, ao contrÆrio, a permanŒncia de uma idØia, quaisquer que sejam
os textos – teoria do valor-trabalho para Sraffa, uma teoria intermedi-
Æria entre custos de produçªo e valor-trabalho para H. Biaujeaud.
História dos fatos – O historiador do pensamento econômico
pode assinalar que fato fundamental, em um tempo e um lugar deter-
minados e numa escala mais ou menos grande, polariza a atençªo de
um economista sob a forma de um problema prÆtico para o qual Ø
preciso trazer urgentemente uma soluçªo passível de argumentaçªo
junto a um pœblico esclarecido, justificando uma intervençªo sobre
variÆveis particulares. Mas o historiador do pensamento econômico
pode tambØm descrever como tal conjunto de enunciados reflete as
condiçıes particulares de uma sociedade, de uma classe ou de uma re-
giªo – quer estas condiçıes sejam políticas, morais, psicológicas ou
traduzam por si mesmas leis naturais demogrÆficas, físicas, climÆticas,
etc. Fica claro que esta alternativa rigorosa, na sua forma pura, entre o
enunciado ativo enquanto soluçªo de um problema e o enunciado pas-
sivo enquanto expressªo de uma vida social, nªo se encontra
provavelmente em nenhuma História do Pensamento Econômico. No
entanto, ela compartilha de modo visível as vertentes da abordagem
histórica. Um exemplo sobre o mercantilismo: de um lado Keynes
(1969, p. 349), considerando as propostas mercantilistas como solu-
çıes históricas para os problemas particulares em funçªo de regras
precisas e com o objetivo de uma açªo: “Num tempo em que as autori-
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dades nªo podiam agir diretamente... as entradas dos metais preciosos
eram os œnicos meios... [para] realizar investimentos...”; do outro lado
Marx, que vŒ no mercantilismo a refraçªo de uma Øpoca e na “brutali-
dade inocente” ou na “barbÆrie” de suas propostas, a inovaçªo decisiva
do modo de produçªo que se instala. “O mercantilismo divulga com
uma violŒncia ingŒnua o segredo da produçªo burguesa” (1965, 1/420).
No primeiro caso, a história Ø marcada pelo acaso; Keynes pra-
tica uma Arte de exceçªo; a Economia Política Ø tratada como um
conjunto acabado de argumentaçıes ligadas umas às outras de maneira
bastante vaga; o historiador revela uma liçªo. No segundo caso, a his-
tória depende de leis; a argumentaçªo reflete suas condiçıes de exercício;
a Economia Política Ø tratada como uma ideologia; o historiador apre-
senta um exemplo. Nos dois casos, o que domina esta dimensªo e lhe
proporciona unidade específica Ø o conceito de história.
AnÆlise – O economista encontra nos textos antigos argumen-
taçıes obscuras, complexas, confusas ou implícitas, cuja significaçªo e
relaçıes de coerŒncia podem ser estimadas, restabelecendo-se explicita-
mente as condiçıes desprezadas. HÆ quatro direçıes possíveis.
Primeira direçªo: os princípios sªo admitidos pelo historiador.
Eles asseguram uma deduçªo correta, mas os resultados só valem em
condiçıes menos gerais do que as condiçıes propostas ou supostas
implicitamente pelo autor. Um exemplo encontra-se nos apŒndices I e
L dos Princípios, de A. Marshall, consagrados ao exame da teoria dos
preços de produçªo de Ricardo: “... nisso ele tem talvez razªo”, diz
Marshall a propósito da hipótese dos rendimentos constantes que, a
seus olhos, legitima a confusªo dos períodos do tempo em Ricardo, o
que traz como conseqüŒncia a pouca importância da demanda na de-
terminaçªo do preço de equilíbrio; e conclui: “... mas ele comete o
erro de nªo declarar explicitamente o que faz...” (1966, p. 671).
Segunda direçªo. Os princípios sªo considerados confusos pelo
historiador. A deduçªo tambØm. Mas podemos distinguir neles uma
parte que pode ser aperfeiçoada e uma parte que nªo pode. Exemplo: a
opiniªo de Sraffa (1952) sobre a teoria do padrªo de medida de Ricardo
– esta pode ser aperfeiçoada em relaçªo à questªo “valor e repartiçªo”,
mas em relaçªo à questªo “valor e crescimento”, nªo Ø possível.
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Terceira direçªo. Os princípios sªo incoerentes aos olhos do
historiador. A deduçªo tambØm o Ø. Nada pode salvÆ-la. Exemplo:
Walras (1952) pensa que a teoria inglesa – ou ricardiana – da taxa de
juros Ø imperfeita, sem correçıes possíveis.
Quarta direçªo. Os princípios sªo falsos. A deduçªo Ø coerente.
Os resultados sªo falsos à medida que eles nªo sªo abordados
empiricamente. Exemplo: a apreciaçªo feita por Keynes (1969) sobre
Ricardo e a ortodoxia ricardiana no fim do capítulo 3 da Teoria geral.
Acontece que a interpretaçªo analítica do pensamento de um
autor mobiliza, por parte de seu historiador, vÆrias direçıes ao mes-
mo tempo, sem que a distinçªo seja claramente marcada. Keynes
concebe Ricardo como um caso particular de uma teoria mais geral, o
que supıe um acordo sobre os princípios e um desacordo sobre as
condiçıes de validade da deduçªo – primeira direçªo – e, por um outro
lado, ele considera Ricardo como um autor cujos princípios sªo falsos,
mesmo queeles possam, em certas condiçıes particulares, assumir a
aparŒncia da verdade – quarta direçªo. Entªo, segundo o próprio
Keynes, hÆ uma tendŒncia entre os historiadores a abordar primeira-
mente o seu pensamento de acordo com a segunda direçªo. Por um
lado, o bom Keynes aperfeiçoÆvel e eventualmente integrÆvel numa
teoria mais geral; por outro lado, o mau Keynes demasiadamente obs-
curo ou incoerente para ser salvo.
O carÆter específico desta dimensªo analítica, qualquer que seja
a direçªo tomada, Ø determinado pela noçªo de coerŒncia lógica. Sua
aplicaçªo – como qualquer outra aplicaçªo de uma das quatro dimen-
sıes – mantØm com a doutrina uma relaçªo sobre a qual convØm fazer-se
aqui uma observaçªo. Nªo hÆ anÆlise alguma do pensamento de um
autor que nªo implique em uma certa intuiçªo doutrinal por parte de
seu historiador. É esta intuiçªo que une o historiador ao seu autor.
Ela se traduz pela aceitaçªo ou pela rejeiçªo dos princípios – defini-
çıes, postulados ou axiomas. AliÆs, a interpretaçªo analítica se exprime
numa correlaçªo dos princípios e dos resultados da deduçªo, mas nªo
decide sobre o valor dos princípios como tais. A adesªo aos princípios
de Ricardo nªo Ø para Marshall ou Sraffa um efeito de sua anÆlise. A
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reabilitaçªo pós-keynesiana do mercantilismo nªo Ø a conseqüŒncia
lógica das críticas analíticas da teoria ortodoxa do valor.
Doutrina. Nesta dimensªo, o historiador faz confrontos entre
uma teoria econômica e outras formas de pensamento oriundas de
disciplinas afins ou da cultura que as cerca. Confronto sobre os princí-
pios e as formas de raciocínio; comparaçªo dos mØtodos de validaçªo
dos resultados; pesquisa de influŒncias; atualizaçıes de estruturas co-
muns. Aqui o campo Ø vasto. Walras considera o pensamento
econômico antes dele em seu distanciamento de uma Economia política
pura tomada por “uma ramificaçªo da matemÆtica” ou por “uma ciŒn-
cia físico-matemÆtica”. A Escola Histórica Alemª analisa o pensamento
econômico dos períodos passados por sua fidelidade ao mØtodo histó-
rico. Os autores do sØculo XIX sªo estudados em sua relaçªo com o
positivismo antimetafísico – Schumpeter, Joan Robinson. A tradiçªo
neowalrasiana e a teoria socialista seriam duas espØcies de um mesmo
construtivismo – Hayek ...
Esta quarta dimensªo Ø menos heteróclita do que parece. A
cada vez, a intençªo Ø efetivamente a mesma. Mergulhando a teoria
econômica num meio cultural, científico ou doutrinal no sentido ge-
ral de idØias influentes, trata-se de fazer vir à tona as aderŒncias a
conceitos nªo-econômicos da teoria estudada e de enunciar as condi-
çıes que tornam inteligíveis a singularidade de sua apariçªo, de sua
construçªo e de sua recepçªo. O conceito que determina a particulari-
dade desta dimensªo Ø, neste sentido, uma categoria da modalidade,
possibilidade, necessidade.
Esta classificaçªo requer vÆrias observaçıes. Os exemplos o
mostram; a maioria dos grandes autores mediu o alcance de suas teses e
princípios, argumentaçıes e conclusıes, em referŒncia a um ou a vÆri-
os autores anteriores e segundo uma dimensªo privilegiada. Assim
sendo, o pensamento econômico do passado constitui para cada autor
o que se pode chamar de uma reserva de sentido. Hahn se pesquisa
atravØs de Hicks. Hicks se vŒ atravØs de Keynes e Walras. Keynes
atravØs de Marshall, Malthus ou Montesquieu. Marshall atravØs de
Stuart Mill e Ricardo. Ricardo atravØs de A. Smith. AtØ mesmo Walras
se considera o herdeiro de uma tradiçªo e situa a economia matemÆtica
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numa filiaçªo. HÆ aí algo estranho que rompe manifestamente com as
formas de “ciŒncia sem assunto” ou de “discurso sem autor”, nas quais
se situam facilmente as disciplinas matemÆticas ou experimentais.
É preciso compreender bem esta noçªo de herança. Fazendo-se
passar momentaneamente por um historiador, o economista nªo pre-
para o momento seguinte em que ele elabora sua tese. Uma herança
nªo Ø um meio de produçªo. As teorias econômicas do passado nªo
constituem um material œtil. A história do pensamento econômico
nªo Ø um serviço entregue à disciplina. Trata-se de algo muito mais
profundo de que nªo daríamos conta, supondo-se a relaçªo de
exterioridade que liga trabalhadores diferentes numa divisªo do traba-
lho entre a prÆtica da história do pensamento econômico e a elaboraçªo
de uma teoria nova.
Como fazer entªo para perceber esse elo da ciŒncia econômica
com o seu passado, essa idØia de filiaçªo e de herança ou o testemunho
reiterado pelos maiores pensadores de que os textos do passado sªo
uma reserva de sentido? Ampliemos por um instante o campo de re-
flexªo. A maioria das ciŒncias experimentais associa às teorias passadas
a idØia de uma caducidade adquirida pelos efeitos da experimentaçªo.
Daí vem a idØia segundo a qual a unidade e a divisªo da disciplina sªo
marcadas por pequenas ou grandes rupturas e a idØia de uma afirmaçªo
do progresso da disciplina pela rejeiçªo do passado. A filosofia, ao
contrÆrio, ignora o sentido de uma teoria ultrapassada; ela associa às
teorias do passado, de preferŒncia, a idØia de uma perenidade que leva
cada leitor de autores antigos a refazer a espantosa experiŒncia. Ainda
em outro patamar, encontra-se a matemÆtica, sem ruptura tØcnica,
impedindo a ciŒncia econômica de se envolver sempre mais numa es-
pØcie de eterno presente e sem relaçªo interna e subjetiva de leitor e
autor, isto Ø, sem autoridade. TambØm em outro patamar, a História
Ø penetrada de temporalidade a ponto de faltar espaço a-temporal para
se estabelecer uma lógica ou montar um dispositivo experimental e
sair verdadeiramente de sua forma primitiva de narrativa. Onde ficam
os economistas? Eles sªo seguramente mais do que historiadores de
fatos, de problemas ou de soluçıes econômicas. Eles tŒm sua lógica
atemporal e sua anÆlise objetiva com a estrutura rígida da formalizaçªo
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clÆssica e neoclÆssica. Eles podem tambØm reivindicar formas rudi-
mentares de experimentaçªo imaginÆria por tratamento estatístico e
formas reais de experiŒncia histórica, para se apoiar no modelo hipotØ-
tico-dedutivo das ciŒncias da matØria. Mas eles tŒm tambØm seus grandes
autores, sempre citados, cujos textos alimentam leituras subjetivas atra-
vØs do tempo, à maneira da filosofia, das disciplinas culturais ou da
idiografia – e que os proíbem de entrar serenamente e de uma vez por
todas na idade positiva da ciŒncia. A história do pensamento econômico
sob todas as suas perspectivas, inclusive a perspectiva analítica, faz da
ciŒncia econômica, pelo menos por um lado, uma disciplina baseada
na tradiçªo e uma teoria baseada na autoridade.
Este Ø o aspecto que constitui a parte filosófica da CiŒncia Eco-
nômica. Quando o economista se volta para um autor do passado,
como A. Smith faz longamente pela primeira vez no Livro IV da
Riqueza das naçıes, ele se torna filósofo – um “worldly philosopher”,
como diz Heilbronner, qualquer que seja a dimensªo privilegiada de
sua intervençªo. Mesmo Walras Ø filósofo na Economia política pura
quando ele se volta em seu texto para a Escola Inglesa ou para Böhm-
Bawerk. Se a Economia política pura fosse efetivamente como ele
pretende, apenas uma ramificaçªo das ciŒncias exatas colocada sob a
œnica autoridade do Tratado do entendimento e sem relaçªo de filiaçªo
orgânica com o passado, compreenderíamos que, a seus olhos, Ricardo
ou Böhm-Bawerk estªo errados; nªo compreenderíamos porque Ø im-
portante para ele dizer que Ricardo ou Böhm-Bawerk estªo errados.
Compreenderíamos a crítica. Nªo compreenderíamos porque a crítica
se faz. Isso Ø a filiaçªo. Aceitar ou recusar a herança Ø declarar para a
geraçªo seguinte, como para si mesmo, que a autoridade da Razªo a
serviço daciŒncia se divide com uma outra autoridade – qualquer que
seja o nome que se lhe dŒ, a tradiçªo, os Pais, os textos fundadores ... É
a isso tambØm que devemos chamar de parte filosófica da CiŒncia Eco-
nômica.
Que herança Ø essa, entªo, que faz de nós, historiadores do pen-
samento econômico, filósofos do mundo? Eu gostaria agora de sugerir
que essa herança tem por essŒncia uma pergunta que diz respeito ao
lugar do rico e do pobre nas sociedades políticas. Esta pergunta apare-
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ce de forma geral quando descrevemos o aspecto sob o qual se apresen-
ta o debate entre CiŒncias Econômicas e filosofia política nos tempos
modernos. Para apresentar este debate, Ø preciso partir da seguinte
idØia. Hoje, nªo medimos a fragilidade das sociedades políticas apenas a
partir das duas ameaças opostas da guerra civil e da tirania, que anunci-
am uma e outra seu desaparecimento. Efetivamente, esta medida Ø
comum a toda filosofia política desde a Antigüidade grega. Mas, basea-
do nestas duas medidas, nós concebemos os efeitos do œnico fracasso
da mesma razªo. Que razªo? Isso depende dos autores: razªo social e
jurídica ou razªo instrumental e tØcnica, das quais as CiŒncias
Econômicas dªo sucessivamente por privilØgio o bom ou o mau exem-
plo. Assim sendo, podemos dizer que a característica do debate entre
ciŒncias econômicas e filosofia política nos tempos modernos estÆ pre-
cisamente ligada ao fato de que a filosofia política convoca as CiŒncias
Econômicas como um testemunho privilegiado do bom ou do mau
uso da razªo.
Comecemos pelas acusaçıes, tomando como exemplos os acu-
sadores mais mordazes. Existem duas formas, correspondentes aos dois
pólos opostos da guerra civil e da tirania. Primeira acusaçªo. Faço
meus os termos de A. Comte e de Durkheim. A CiŒncia Econômica Ø
uma teoria do elo mercantil que acentua exclusivamente o seu carÆter
mecânico. Neste caso, a ciŒncia econômica produz anomia. Ela Ø uma
escola de anarquia ou de dissoluçªo política. A razªo política Ø moral.
A CiŒncia Econômica introduz nas sociedades modelos tirados de ou-
tro lugar. Com isso, ela se torna metafísica. Aos olhos da razªo social,
ela Ø a expressªo de uma profunda confusªo entre política e tØcnica.
Segunda acusaçªo. Uso aqui os termos de Rousseau e de Tocqueville.
A CiŒncia Econômica Ø uma teoria da acumulaçªo ou do enriqueci-
mento, cujas liçıes se pretende que valham para todas as sociedades.
Neste caso, a ciŒncia econômica apaga o acaso, a história e as particula-
ridades dos povos. Ela situa a vida política sob o modelo de uma ordem
natural. Esta utopia alimenta a idØia de uma inutilidade do Direito.
Com isso, ela Ø tirânica. Efetivamente, a Razªo política se exprime
num direito construído ou induzido e nªo no simples decalque de leis
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naturais. A CiŒncia Econômica introduz nas sociedades a idØia de uma
confusªo entre governo dos homens e administraçªo das coisas.
É verdade que A. Comte e Durkheim nªo sªo substituíveis
entre si e que eles nªo visam os mesmos economistas. Mas tanto um
quanto o outro identificam a parte negativa da Economia Política que
eles conhecem com uma teoria do valor e do mercado, e Ø em relaçªo à
anarquia ou ao pólo da dissoluçªo do corpo político pela guerra civil
que eles condenam a teoria do mercado. É verdade tambØm que
Rousseau e Tocqueville se opıem em diversos pontos. Mas eles se
entendem quando denunciam a utopia tirânica, segundo eles represen-
tada pela fisiocracia.
Duas rØplicas igualmente divididas entre os dois pólos da guer-
ra civil e da tirania opıem-se a essas acusaçıes. A teoria do mercado Ø
anÆrquica e insensata? Pelo contrÆrio, ela Ø a tese do suave comØrcio –
Montesquieu; a escola do cÆlculo da maior felicidade para a maioria –
Bentham, J.S. Mill; a escola da racionalidade – J. Rawls. A seu modo,
ela dÆ continuidade à filosofia do contrato, à apologia da tecnologia
social e do Estado-artífice, para as quais o que provoca a desrazªo e estÆ
na origem das guerras civis sªo, ao contrÆrio, todas as superstiçıes
alimentadas pelas autoridades morais e religiosas– Hobbes, Spinoza.
A macroeconomia do circuito Ø autoritÆria ? Pelo contrÆrio,
seu âmago Ø liberal. Ela recusa, em nome de uma regulaçªo natural que
se impıe como norma mediante todos, a regulaçªo do Estado que Ø
arbitrÆria, perdulÆria e sempre excessiva – A. Smith. Mais ainda, as
sociedades sªo livres por sua economia. A razªo prÆtica que se impıe a
toda política tem como forma a racionalidade econômica – Mises. A
reproduçªo da instituiçªo que se encontra na base de nossas liberdades
Ø o efeito espontâneo de seu próprio funcionamento e da aplicaçªo
por cada um de sua razªo econômica – Hayek. A ciŒncia econômica de
tradiçªo smithiana e fisiocrÆtica, livre de seus desvios walrasianos e
socialistas, Ø a melhor defesa para um Direito de espírito construtivista,
despótico e totalitÆrio – ainda Hayek.
Desde jÆ, podemos ouvir o economista ortodoxo bradar que
este combate de idØias nªo Ø o seu e que ele se encontra numa situaçªo
de perfeita neutralidade em relaçªo à filosofia e sua atençªo com a fra-
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gilidade das sociedades políticas. O economista, dirÆ ele, se preocupa
com as necessidades bÆsicas, a alimentaçªo, o vestuÆrio e a habitaçªo.
Ele se ocupa com conseqüŒncia e modØstia dos homens, considerados
segundo seu œnico desejo de melhorar a sua própria condiçªo. Ele es-
tuda as condiçıes e as regras de realizaçªo desses desejos. Ele estabelece
assim uma arte e uma ciŒncia das riquezas cujos efeitos nªo tŒm nada a
ver com as formas de anarquia ou de tirania.A filosofia engana-se no
objeto. Ela considera a CiŒncia Econômica sob o aspecto do uso ideo-
lógico de seu discurso. Ela nªo vŒ o economista em açªo. Ela nªo o
compreende como ele mesmo se compreende, com seu terreno pró-
prio semelhante ao jardim de Cândido, segundo a expressªo de A.
Hirschman (1977, p. 104) ao se referir a A. Smith.
A CiŒncia Econômica nªo Ø, ou melhor, nªo Ø mais, uma ciŒn-
cia política ou “uma Economia Política”. Ela prepara somente as
condiçıes de uma vida política, na qual, no sentido negativo, os graus
de opulŒncia nªo decidem a melhor forma de governo e na qual, no
sentido positivo, a misØria corrói ou interdita as instituiçıes e as
regulaçıes sociais. Assim, se o economista ortodoxo precisar realmen-
te se posicionar e responder às convocaçıes da filosofia política, ele
definirÆ seu lugar pelas noçıes de estado de natureza ou de infra-estru-
tura ou de sociedade civil ou de sistema de subsistŒncia. No fundo, a
compreensªo de um Locke ou de um Hegel vale mais do que esse pro-
cesso a quatro vozes que, de forma alternada, o denigre ou o exalta
excessivamente.
Por que o historiador do pensamento econômico Ø, sem dœvi-
da alguma, entre os economistas, o mais renitente ao ouvir essa defesa
da CiŒncia Econômica ortodoxa? A resposta se dÆ em algumas pala-
vras. Sabemos, atravØs de nossas leituras como historiador, que o
simples desejo de melhorar nossa própria condiçªo, “nascido conosco
e que nos abandona apenas no tœmulo” (A. Smith, 1991, t. 1, p. 429),
alicerce antropológico sobre o qual se estabelece o estado de natureza
ou a sociedade de subsistŒncia, Ø de fato uma ficçªo hÆbil criada para
esconder ou banalizar duas paixıes reais muito menos inofensivas.
Por um lado, o desejo do rico de enriquecer cada vez mais, ao qual hÆ
muito tempo se associam dois aspectos: desejo sem fim, que faz de
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todas as riquezas bens quantificÆveis, jÆ que somente quantidades sªo
por si próprias sem fim; desejo que provoca à sua volta rivalidade ou
violŒncia, fomentador de vertigem ou depânico, associado aos danos
dos deuses Dionísio ou Plutªo. Por um outro lado, a piedade do po-
bre ou a compaixªo que nos une a ele, de onde vŒm as unidades
domØsticas do consumo e da partilha do sentimento de pena e onde se
alimentam tanto os ódios quanto as invejas – pois “O homem que
sofre com a infelicidade do outro sofre tambØm com a prosperidade
do outro” (Ciceron citado por H. Arendt, 1974, p. 24). Eis assim as
paixıes reais que incubam sob a ficçªo do simples desejo de melhorar
sua própria condiçªo e das quais a CiŒncia Econômica enfraquece a
ponta, conservando ao mesmo tempo a força ou o movimento que
elas imprimem em seus agentes.
Por que haveria, aliÆs, ciŒncia de um enriquecimento sem fim,
se nªo houvesse na sombra do desejo de melhorar sua própria condi-
çªo um desejo de quantidades crescentes de bens para o qual só o dinheiro
pode ser a soluçªo? Por que haveria por outro lado participaçªo de
todos na mesma unidade de sentimento de pena ou de subsistŒncia, se
nªo mais houvesse, sob a superfície dos desejos individuais, essa figura
do pobre que Ø causa de nossa simpatia mœtua?
Mas nós sabemos tambØm o que o economista ortodoxo quis
conjurar, afastar, reprimir ou negar. Conjurar aqui a dissoluçªo oriunda
das rivalidades e das ilusıes do dinheiro desejado como fim. Conjurar
ali o dono da casa ou “o dØspota” cuja compaixªo tirânica impıe sua
norma nos lugares de vida, de sobrevivŒncia ou de pena. Nªo Ø por
acaso que a ortodoxia só começa seu reino ao afastar sucessivamente o
dinheiro mercantilista e o dØspota fisiocrÆtico e, mais anteriormente,
a tradiçªo de Aristóteles.
Assim, como historiadores, conhecemos ao mesmo tempo as
boas e as mÆs razıes do que Ø sub-repticiamente conservado e do que Ø
abertamente repelido. Em primeiro lugar, sabemos que a CiŒncia Eco-
nômica só pode querer cultivar seu jardim ao abrigo do tumulto das
paixıes, porque ela perseguiu suas suspeitas políticas que, a seus olhos,
perturbavam a candura de sua própria imagem, antes das acusaçıes e
dos louvores dos quais ela tornou-se alvo no fim do sØculo XVIII; em
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seguida, sabemos que a teoria microeconômica do valor e a teoria ma-
croeconômica do enriquecimento nªo teriam sua base se a ciŒncia
econômica nªo tivesse conservado dessas mesmas suspeitas políticas o
infinito do desejo individual e a unidade na simpatia universal.
A história nos ensina, entªo, que a CiŒncia Econômica ortodo-
xa construiu sua unidade e seu objeto reprimindo seus materiais
originais. É por isso que a existŒncia atual do debate entre a filosofia
política e a ciŒncia econômica, do qual evocamos as quatro formas
extremas, nªo pode surpreender os historiadores que somos. Ele cons-
titui, ao contrÆrio, para nós, o eco do trabalho interior e velado do
economista sobre seu passado e o testemunho de que este trabalho nªo
realizou perfeitamente sua funçªo. Em seu discurso sobre as riquezas,
a CiŒncia Econômica nos fala ainda do rico e do pobre, se trai como
filosofia do mundo e nos confia sua herança.
Bibliografia
ARENDT, H. 1974. Vies politiques. Gallimard.
BIAUJEAUD, H. 1988. Essai sur la thØorie ricardienne de la valeur.
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