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TRADUZINDO A ÁFRICA QUEER CATERINA REA CLARISSE GOULART PARADIS IZZIE MADALENA SANTOS AMANCIO (ORGANIZADORAS) TRADUZINDO A ÁFRICA QUEER DeViRes editora 2018 © Editora Devires Traduzindo a África Queer Caterina Rea Clarisse Goulart Paradis Izzie Madalena Santos Amancio (Organizadoras) Editor | Gilmaro Nogueira Revisão | Gerusa Bondan Diagramação | Daniel Rebouças Capa | Sérgio Rodrigo da Silva Ferreira CIP BRASIL — CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO R281t REA. Caterina, Traduzindo a África Queer/Caterina Rea, Clarisse Goulart Paradis, Izzie Madalena Santos Amancio. 1ª edição/Salvador, BA: Editora Devires, 2018. 146p.; 16x23cm ISBN 978-85-93646-16-4 1. África 2. Dissidência sexual 3. Queer I. Título. CDU 306 CDD 316.7-306.76 Qualquer parte dessa obra pode ser reproduzida, desde que citada a fonte. Direitos para essa edição cedidos à Editora Devires. Editora Devires Av. Ruy Barbosa, 239, sala 104, Centro – Simões Filho – BA www.editoradevivres.com.br DeViRes editora SUMÁRIO O Queer African Reader e sua atualidade para o debate sobre dissidência sexual e teoria queer em uma perspectiva Sul-Sul 7 Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB Clarisse Goulart Paradis/FEMPOS/UNILAB Izzie Madalena Santos Amancio/FEMPOS/UNILAB A proposta do Queer African Reader 23 Sokari Ekine Hakima Abbas Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB Um ensaio 28 David Kato Kisule Tradução Felipe Fernandes/GIR@/UFBA “Sobre sororidade e solidariedade”: tornando queer os espaços feministas africanos 31 Awino Okech Tradução Clarisse Goulart Paradis/FEMPOS/UNILAB Discursos pós-coloniais do ativismo queer e de classe na África 57 Lyn Ossome Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB Caster corre para mim 74 Ola Osaze Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB A história única a homofobia africana é perigosa para o ativismo LGBTI 78 Sibongile Ndashe Tradução Caterina Rea, Izzie Madalena Santos Amancio e Equipe do FEMPOS Manifesto LGBTI africano/declaração 89 Autorexs varixs Tradução Thamy Ayouch/Université Denis Diderot, Paris VII Queerizando as fronteiras: uma perspectiva africana ativista 91 Bernedette Muthien Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB Lutas LGBTI Queer como outras lutas em África 101 Gathoni Blessol Tradução Caterina Rea, Izzie Madalena Santos Amancio e equipe do FEMPOS O Quênia Queer na lei e na política 111 Keguro Macharia Tradução Sergio Rodrigo Ferreira GIGA/UFBA Olhando para além dos binarismos coloniais: desfazendo o discurso sobre a homossexualidade no Malaui 129 Jessie Kabwila Tradução Tatiana Ivette Castilla Carrascal/UNILAB e Carolina Barbosa Pereira/UFBA TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 7 O Queer African Reader e sua atualidade para o debate sobre dissidência sexual e teoria queer em uma perspectiva Sul-Sul Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB Clarisse Goulart Paradis/FEMPOS/UNILAB Izzie Madalena Santos Amancio/FEMPOS/UNILAB Apresentamos, aqui, a tradução de alguns dos textos contidos no Queer African Reader, a primeira coletânea de textos escritos por autorxs africanxs que se declaram abertamente como queer ou que se solidarizam com a pauta da dissidência sexual1. Este trabalho de tradução, liderado pelo Grupo de Pesquisa “Pós-colonialidade, Feminismos e Epistemologias Anti-hegemônicas/FEMPOS/UNILAB”, foi realizado durante o decorrer do projeto de pesquisa Fluxo Contínuo UNILAB (2016-2017), intitulado Sexualidades dissidentes, Interseccionalidade e Teoria Queer na África: um primeiro mapeamento2, e do projeto de Iniciação Científica (PIBIC/ UNILAB, 2017-2018), intitulado Diversidade sexual, homofobia e debate sobre teoria Queer em contextos africanos: uma primeira abordagem, ambos coordenados por Caterina Rea. Este envolveu a participação de professorxs da UNILAB, de professorxs e doutorandxs da Universidade Federal da Bahia/UFBA (Felipe Bruno Martins Fernandes, Carolina Barbosa Pereira e Sérgio Rodrigo Ferreira) e da França, Université de Paris VII (Thamy Ayouch), que colaboraram no processo de tradução3. Ao focar nas traduções de textos do Queer African Reader, escolhemos apresentar a teoria queer africana a partir das produções de autorxs do 1 Gostaríamos de agradecer Sokari Ekine, editora do Queer African Reader, e a todxs xs autorxs aqui traduzidxs por terem nos facilitado este trabalho, aceitando a publicação das traduções e cedendo os direitos autorais. 2 No quadro deste projeto, realizamos a primeira tradução de um artigo do Queer African Reader. Trata-se do texto da militante nigeriana Sokari Ekine, “Narrativas contestadoras da África Queer”, publicado pela revista Cadernos de Gênero e Diversidade, v. 2, n. 2, 2016. 3 As traduções aqui propostas são traduções livres e militantes de textos do Queer African Reader, a partir de um trabalho colaborativo entre xs membrxs do grupo de pesquisa FEMPOS/UNILAB e outrxs colaboradorxs externxs que participaram deste projeto. 8 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER próprio continente4. O campo dos estudos queer sobre contextos africanos conta com diversas produções de antropólogxs e historiadorxs africanistas e teóricxs queer brancxs, norte-americanxs e europexs, como mostra o artigo de Ashley Currier e Thérèse Migraine-George, publicado, em 2016, no Journal of Lesbian and Gay Studies5. Na academia brasileira, ainda há uma separação bastante evidente entre africanistas e pesquisadorxs na área dos Estudos de Gênero e Sexualidades e, em particular, da Teoria Queer. Existem algumas exceções, como o texto publicado pelo antropólogo Luiz Mott, na revista Afro-Ásia, de 2005, onde o autor contesta o chamado “mito da inexistência da homossexualidade na África”6 e pesquisas mais recentes de jovens cientistas sociais sobre a vivência da homossexualidade em países africanos de língua oficial portuguesa (Cabo Verde e Moçambique, em particular). Mencionamos, nesta direção, o texto de Fabiana Mendes de Souza, publicado em 2014, na revista baiana Olhares Sociais7, e o de Francisco Miguel, sobre a homossexualidade masculina em Cabo Verde, publicado em 2016, pela revista Enfoques8. O texto de Francisco Miguel menciona o Queer African Reader entre as produções africanas sobre sexualidades dissidentes. De significativa importância é também a publicação, em tradução portuguesa, pela revista Bagoas, do estudo clássico do antropólogo inglês, Evans-Pritchard, “Inversão sexual entre os Azande”, que mostra a presença de formas de relações homoafetivas no grupo étnico dos Azande da época pré-colonial9. 4 Cf. REA, Caterina. “Sexualidades dissidentes e teoria Queer pós-colonial: o caso africano”. Revis- ta Epistemologias do Sul, v. 1, n. 1, p. 145-165, 2017 e REA, Caterina. “Descolonização, Feminismos e condição queer em contextos africanos”. Ravista Estudos Feministas, n. 26, v. 3, p. 1-21, 2018. 5 CURRIER, Ashley; MIGRAINE-GEORGE, Thérèse. “Queer Studies/African Studies. An impos- sible transaction?”. A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 22, n. 2, 2016, p. 281-305. Nesta linha de uma produção queer sobre as sexualidades africanas, podemos citar também HOAD, Neville. African Intimacies. Race, Homosexuality and Globalization. Minneapolis/London: University of Minnesota Press, 2007; e CURRIER, Ashley. LGBT Organizing in Namibia and South Africa. Min- neapolis/London: University of Minnesota Press, 2012. 6 MOTT, Luiz. “Raízes históricas da homossexualidade no Atlântico lusófono negro”, Afro-Ásia, n. 33, 2005, p. 9-33. 7 SOUZA MENDES, Fabiana de. “Discretos e declarados: Relatos sobre a dinâmica da vida dos homossexuais em Maputo, Moçambique”.Revista Olhares Sociais, v. 3, n. 2, 2014, p. 76-101. 8 MIGUEL, Francisco. “(Homo)sexualidades masculinas em Cabo Verde: um caso para pensar teorias antropológicas e movimentos LGBT em África”. Enfoques, v. 15, 2016, p. 87-110. 9 PRITCHARD, Evans. “Inversão sexual entre os Azande”. Tradução Felipe Bruno Martins Fer- nandes, Bagoas, n. 7, p. 15-30, 2012. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 9 Esta breve revisão bibliográfica nos leva a concluir que são ainda bem escassos, particularmente no Brasil, os textos que mencionam reflexões recentes de militantes e cientistas africanxs, engajadxs nas múltiplas lutas pela afirmação da dissidência sexual e de gênero, assim como na crítica ao neocolonialismo e à imposição, para os países africanos, do modelo único da “democracia” neoliberal. O Queer African Reader é oriundo de países africanos de língua e de colonização inglesa e foi publicado em 2013, pela editora africana Pambazuka, editora progressista cujo objetivo é visibilizar as produções de pensadorxs e ativistas africanxs que participam das diferentes frentes das lutas contra a opressão. O Queer African Reader conta com a participação de ativistas, acadêmicxs, políticxs e artistas de vários países da África que promovem uma análise crítica e a discussão sobre a importância social, cultural e política da dissidência sexual e de gênero no continente. Por isso, destacamos a presença de registros diferentes nos textos desta coletânea, que vão do mais acadêmico e teórico, ao mais afeito à militância.Visamos, aqui, à apresentação da tradução para o português de alguns destes textos do Reader, na esperança de podermos continuar este trabalho, no futuro, trazendo novos textos africanos para a discussão, no Brasil, sobre sexualidades dissidentes. O Queer African Reader tem como editoras duas mulheres feministas, a nigeriana Sokari Ekine e a egípcia Hakima Abbas. Na introdução à coletânea, que traduzimos neste volume, as autoras apontam para a essencial contribuição das lutas travadas pelas comunidades LGBTIQ africanas em prol da visibilidade da dissidência sexual, para a consolidação da democracia e da libertação anticolonial no continente. Para isso, é preciso contestar os discursos hegemônicos nos quais a África e a cultura africana são homogeneizadas, quando de sua representação em uma identidade única, uniforme e estática, seja por uma homofobia obsessiva e radical, seja por uma heterossexualidade compulsória e totalizante. Se tais discursos hegemônicos são encarnados por sujeitos políticos diferentes e mesmo opostos – os países ocidentais e as organizações LGBT internacionais, por um lado, e as lideranças políticas e religiosas locais, por outro –, as lógicas que os animam não são, porém, diferentes, conforme as análises que a maioria dxs autorxs do Reader realiza. De fato, ambos os discursos levam 10 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER a uma compreensão simplista e redutiva da complexidade que caracteriza as culturas africanas (no plural) e a multiplicidade de vivências e práticas sexuais que nelas se manifestam. A leitura do Queer African Reader nos mostra o caráter insustentável dos estereótipos que pesam sobre o continente africano e, particularmente, sobre a forma com que sexualidades e gêneros dissidentes aí são representados. A África não é toda e integralmente homofóbica, nem é toda e exclusivamente heterossexual. Como em todo e qualquer contexto sociocultural, existem sexismo, machismo e homofobia, mas, também, existem sítios de resistência e de lutas feministas e em prol da libertação das comunidades LGBTIQ. É assim que países como Uganda, Nigéria ou Malaui, conhecidos como os mais inóspitos para as pessoas sexualmente dissidentes, são, ao mesmo tempo, teatros de intensas produções de práticas teóricas e de militâncias feministas e queer. Neste sentido, pode-se afirmar que a África, em seus vários contextos e regiões, está se transformando em um laboratório extraordinário do pensamento e do ativismo feminista e Queer. Na ótica do Queer African Reader, a questão (homo)sexual, na África, não constitui uma realidade isolada, mas diz respeito a novas formas de colonização que concernem às relações entre o Norte e o Sul globais. Ou seja, a questão (homo)sexual apresenta-se como uma questão política crucial, na qual se encarnam o neo-imperialismo e o paternalismo do Ocidente e as crispações nacionalistas anticoloniais dos países africanos. As intervenções de instituições ocidentais ligadas à defesa dos direitos humanos e LGBT em territórios africanos, onde tais direitos não são respeitados, suscitam o ódio dos líderes políticos e culturais, que veem comprometida a autonomia de seus países e da sociedade civil em geral. Essas intervenções reforçam a compreensão que se tem, em muitas regiões da África, de que “a homossexualidade é parte da agenda ocidental”.10 Desta forma, analogamente ao que o teórico palestino Joseph Massad11 aponta para o mundo árabe, de maneira paradoxal, crendo defender e libertar 10 NDASHE, Sibongile. The single story of “African homophobia” is dangerous for LGBTI activism. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013. 11 MASSAD, Joseph. Desiring Arabs. Chicago: University of Chicago Press, 2007. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 11 os homossexuais africanos, as agências e as ONGs LGBT internacionais acabam estimulando a homofobia local e piorando as condições de vida das pessoas dissidentes sexuais e de gênero no continente12. Estas últimas são consideradas como traidoras da pátria e como portadoras de interesses estrangeiros, ligados ao mundo ocidental. Em particular, a presença de tais atores estrangeiros, que desconhecem ou ocultam as agendas dos movimentos LGBTI locais, assume, em muitos casos, a forma de uma nova colonização, através da continuidade da ingerência das potências ocidentais nas questões políticas locais, sob o pretexto de defenderem os direitos das minorias sexuais. Como escreve lucidamente Sibongile Ndashe, Mesmo com boas intenções, as intervenções estrangeiras, muitas vezes, não compreendem as dinâmicas e as políticas locais e podem fazer muito mais mal do que bem. Mas fundamentalmente, a tentativa de estrangeiros de liderarem a luta do movimento, na África, subordina os interesses da comunidade local aos interesses de atores externos, reforçando divisões raciais enraizadas no movimento global e afogando as vozes progressistas e os movimentos de desenvolvimento13. 12 Segundo Massad, lido e seguido por várixs autorxs africanxs, estas ONGs e associações interna- cionais que operam no Sul Global são as que estão afiliadas às duas mais poderosas associações de defesa dos direitos humanos LGBT, ou seja, a International Lesbian and Gay Association (ILGA) e a International Gay and Lesbian Human Rights Commission (IGLHRC). Sediada em Genebra, a ILGA se estrutura como uma federação mundial de organizações que operam em vários países do mundo. A IGLHRC mudou seu nome em 2015 e se chama agora Out Right Action International. Sediada em Nova York, esta organização tem presença permanente nas Nações Unidas e funcioná- rios em diferentes países, agindo amplamente no Sul Global. Na interpretação queer africana, estas associações e suas inúmeras ramificações perpetuam agendas econômicas e políticas neoliberais, desenvolvendo o controverso papel de agências financiadoras que concedem dinheiro ou impõem sanções aos países africanos e do Sul, conforme estes se engajam ou não no fortalecimento dos direitos humanos LGBT. Desta forma, ao invés de serem um fator de libertação para as minorias sexuais de muitos países africanos, as organizações internacionaisfortalecem posições heterocen- tradas nas populações locais, pelas quais a epistemologia/política ocidental da (homo)sexualidade não representa o único nem o principal vetor de identificação. 13 NDASHE, Sibongile. The single story of “African homophobia” is dangerous for LGBTI activism. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013. 12 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER O outro aspecto desta mesma questão das intervenções de ONGs estrangeiras é a imposição de um modelo único de vivenciar a homossexualidade, que coincide com o modelo ocidental. Este modelo privilegia estratégias que nem sempre, nem necessariamente funcionam nos contextos africanos ou nos do mundo árabe e oriental. A epistemologia ocidental da (homo)sexualidade estrutura-se a partir do coming-out (saída do armário), da afirmação do orgulho e da visibilidade enquanto características imprescindíveis do ser gay e lésbica e se baseia, desta forma, na ideia de uma oposição bem definida entre homossexualidade e heterossexualidade. Assumir abertamente a própria homossexualidade se torna, para o mundo ocidental, a primeira e fundamental etapa da libertação sexual. Contudo, como nos ensinam xs queers africanxs e, em geral, xs queers of color, as epistemologias e as práticas das sexualidades dissidentes, nos contextos africanos, mas também no mundo árabe- muçulmano e no Sul Global, não funcionam necessariamente segundo o binarismo homossexual versus heterossexual e não implicam a exigência da saída do armário e da visibilidade como condição indispensável do exercício de uma sexualidade dissidente. Mais precisamente, na maioria das culturas africanas e na cultura árabe-muçulmana, o fato de ter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo não comporta afirmar uma identidade gay ou lésbica, nem “expressar a necessidade de políticas gays”14. Da mesma forma, silêncio e discrição podem se mostrar estratégias mais eficazes de ativismo. E o próprio ativismo, em muitos contextos individuais, não é considerado um exercício intrínseco para a experimentação de sexualidades e tampouco para o pertencimento às práticas das sexualidades dissidentes. É esta diferença cultural de estratégias de luta que a Internacional Gay15 não consegue incorporar, suscitando reações negativas das populações locais contra a causa homossexual, identificada com uma preocupação do neo-imperialismo ocidental. 14 MASSAD, Joseph. Desiring Arabs. Chicago: University of Chicago Press, 2007. 15 Internacional Gay é o nome que Joseph Massad dá para o conjunto de associações e ONGs LGBT internacionais, mas sediadas nos países ocidentais, que opera no mundo árabe, na África e no Sul Global com a “missão” de salvar as minorias sexuais locais da terrível homofobia de tais re- giões. Segundo Massad, retomado por muitxs autorxs africanxs, a Internacional Gay é responsável por impor um modelo único e ocidentalizado das relações homoafetivas. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 13 Nesta introdução, usamos a terminologia LGBTIQ, uma vez que ela é usada pelxs autorxs do Queer African Reader. No entanto, consideramos que a escolha desta terminologia e o fato de se autoproclamar como gays, lésbicas, bi, trans* ou queer não traduz uma exigência única e necessariamente compartilhada por todos os sujeitos da dissidência sexual nos contextos africanos. Nem uma tal postura é acompanhada pela incorporação das principais normas e padrões da vivência homossexual no mundo ocidental. É nesse sentido que muitxs dos autorxs do Reader apontam para a necessidade de criar políticas transversais e interseccionais de luta contra diferentes sistemas de dominação e de opressão, homofobia e heterossexualidade obrigatória, mas também as novas faces do colonialismo, do racismo e as lógicas neoliberais que sempre vêm acompanhar as intervenções ocidentais no Sul Global. A partir da perspectiva de uma universidade como a UNILAB, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro- Basileira, voltada para a discussão e valorização das culturas africanas e afro-diaspóricas, este projeto se revela de grande importância para a descolonização das mentes e dos corpos. A leitura e a compreensão das discussões travadas no Queer African Reader nos permitem enxergar que as sexualidades e os gêneros dissidentes fazem, sim, parte das culturas africanas, e não constituem identidades simplesmente importadas pelo Ocidente colonial. Neste sentido, a discussão de assuntos e de pautas feministas, na África e no próprio terreno da UNILAB, não constitui a promoção de interesses contrários aos africanos ou às culturas africanas. A maioria dxs autorxs do Reader testemunha a própria africanidade e a necessidade de fazer acompanhar a luta em prol da libertação sexual da luta contra o colonialismo, o neocolonialismo e a dominação das populações africanas por interesses políticos e econômicos do mundo ocidental. A apresentação do Queer African Reader contribui para desfazer o argumento da suposta superioridade ocidental (Europa e Estados Unidos) em matéria de gênero e de sexualidade, que alimenta, no plano internacional, posturas femonacionalistas e homonacionalistas. Contra estas posturas, argumentamos que não existem culturas ou nações inteiramente sexistas, machistas e homofóbicas, em oposição a 14 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER culturas e nações totalmente privadas de tais preconceitos e formas de violência. Cada cultura e cada nação são atravessadas por estas atitudes preconceituosas, mas todas contêm movimentos que, corajosamente, enfrentam estas violências e visam à realização de uma justiça social interseccional. O Queer African Reader defende, assim, que as culturas africanas são profundamente dinâmicas, maleáveis e intimamente atravessadas por conflitos, o que as torna abertas para uma multiplicidade de formas e vivências da sexualidade. Como afirma Keguro Macharia, a propósito do Quênia, estamos constantemente criando e recriando a nós mesmos e ao Quênia através de nossa forma de afiliações e filiações íntimas. Nossas vidas íntimas inovadoras oferecem paradigmas de como a cultura e o patrimônio estão dinâmica e constantemente em evolução16. No plano das relações internacionais, vale ainda a pena lembrar que o Queer African Reader discute a espinhosa questão da retirada, por parte de países ocidentais, das ajudas humanitárias, onde os direitos das minorias sexuais não são respeitados. O caso do Malaui, discutido por Sibongile Ndashe, por Jessie Kabwila e por Sokari Ekine e Hakima Abbas, ou o caso de Uganda, mencionado por Sokari Ekine17, mostram a ineficácia destas políticas baseadas nas estratégias das ajudas condicionadas ou na aplicação de sanções, que acabam vulnerabilizando ainda mais as minorias sexuais, apontadas como culpadas pelas instabilidades econômicas que tais estratégias determinam. Os exemplos trazidos por essxs autorxs nos remetem a como a orientação neoliberal da economia política, dominante no mundo, se estrutura, também, a partir dos seus projetos patriarcais e heteronormativos. A questão das ajudas condicionadas explicita como o neoliberalismo, como rationale econômica, política e social, projeta-se a partir de práticas coloniais, racistas e sexistas. Como nos mostra Awino Okech, 16 MACHARIA, Keguro. Queer Kenya in law and policy. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013. 17 Cf. o texto “Narrativas contestadoras da África Queer” (2016), que mencionamos anteriormente. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 15 na sua contribuição para o QueerAfrican Reader, a heteronormatividade estrutura não apenas as relações afetivas e sexuais no âmbito privado, mas organiza como se dão as relações de poder no Estado, na família, na economia. Conceber a heteronormatividade como vértebra da economia política tem como ganho não apenas combater o neoliberalismo, mas politizar, cada vez mais, as identidades sexuais dissidentes. Evidenciar esses traços estruturantes, como nos mostra Okech, é necessário para pensar as vias possíveis para uma ação política queer/feminista que seja transformadora a partir de seus contextos particulares. Existe uma grande atualidade do Queer African Reader e de muitos dos debates políticos levantados para o atual contexto brasileiro. Pensamos, em particular, na presença, em muitos países africanos, de uma poderosa bancada evangélica, fomentada pelos Estados Unidos e outros países ocidentais, que tem o poder de influenciar o curso da política local e, sobretudo, de incentivar campanhas de ódio contra as minorias sexuais. É assim que, neste contexto, o Ocidente joga o duplo jogo de suposto modelo de liberdade sexual e de políticas gay-friendly, bem como de apoiador de igrejas e cultos estrangeiros que agem, nos países africanos, como os principais promotores da repressão contra os movimentos da dissidência sexual e de gênero. Nesta direção vão os textos de David Kato e de Gathoni Blessol. Esta última, em particular, denuncia abertamente as lideranças religiosas, sobretudo evangélicas, de muitos países africanos, por espalharem uma versão ocidentalizada da espiritualidade, “que é baseada no que é masculino, branco e rico”18 e que, como tal, dificilmente poderia encarnar uma suposta originalidade da cultura e da tradição africanas. Na introdução ao Reader, Sokari Ekine e Hakima Abbas retraçam a gênese da coletânea e sua relação com a história do debate queer na África. Elas apontam, em particular, para o processo por indecência e atos contra a natureza, intentado, no Malaui, em 2010, contra Tiwonge Chimbalanga, uma mulher trans, e seu companheiro, Steven Monjeza. A partir deste fato desenvolveu-se uma acalorada discussão sobre a presença de sujeitos 18 BLESSOL, Gathoni. LGBTI-Queer struggles like other struggles in Africa. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013. 16 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER LGBTIQ no Malaui, que se estendeu para a maioria dos outros países da África de colonização inglesa. Ekine e Abbas analisam em detalhe os discursos das diferentes partes que se posicionaram sobre o caso, como os líderes locais, com sua violenta retórica homofóbica, a imprensa internacional, os diplomatas de países ocidentais que ameaçaram retirar as ajudas humanitárias, como retaliação ao não respeito aos direitos das populações LGBT e a International Gay. Esta última, formada por um conjunto de associações e ONGs LGBT internacionais, sediadas nos países do Norte Global e guiadas por atitudes missionárias e pela pretensão de salvar as populações LGBT locais, como se estas não possuíssem qualquer capacidade organizativa e as próprias agendas, construídas a partir das necessidades de países do Sul Global. As duas editoras do Queer African Reader pretendem resgatar as vozes de intelectuais e militantes queer do continente africano. Trata-se, assim, de “documentar não só a resistência nas vidas e nas lutas diárias das comunidades queer da África” e de “valorizar a complexidade da maneira com que a libertação queer é enquadrada na África e pelos africanos”19. É por isso que o próprio termo queer deve ser ressignificado no contexto das lutas plurais e interseccionais que, além da dissidência sexual, visam a contestar o sistema patriarcal, capitalista e neocolonial. David Kato, autor do primeiro ensaio, foi um professor de escola e militante pelos direitos LGBTIQ em Uganda, que foi assassinado em janeiro de 2011. Ele entregou este texto, publicado no Queer African Reader, um mês antes de ser morto. Neste breve artigo, David Kato apresenta a situação de seu país, na época em que tramitava, no parlamento ugandense, um projeto de lei contra a homossexualidade e que inúmeras violências eram perpetradas contra pessoas gays e lésbicas. Kato explica a proliferação da homofobia em Uganda, como “promoção de um ódio continuado”20, a partir das antigas leis coloniais antissodomias implementadas pelos ingleses, e da intervenção massiva, hoje em dia, de igrejas evangélicas norte-americanas, cuja ingerência na política interna é 19 ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013. 20 KATO, David. An essay. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 17 muito poderosa. Desta forma, pode-se afirmar que, se a homofobia existe em Uganda e em outros países do continente, ela não é necessariamente, nem originariamente, um fenômeno africano ou intrínseco às culturas locais. Awino Okech é militante e acadêmica do Quênia, atualmente pesquisadora na SOAS University of London, onde seu trabalho versa sobre as relações entre gênero, sexualidades e estados/nações no contexto de sociedades que experimentam ou experimentaram situações de conflito. No capítulo intitulado “Sobre sororidade e solidariedade: tornando queer os espaços do feminismo africano”, Okech busca refletir sobre os desafios, conflitos e potencialidades do encontro entre movimento queer e espaços feministas de ativismo, considerando especialmente o contexto africano. A partir de uma reflexão sobre o papel dos movimentos sociais e de sua capacidade de desafiar os poderes patriarcais, racistas e heteronormativos, a autora busca interrogar alguns dos conceitos que fundamentaram historicamente teoria e prática feministas, tais como a ideia de amizade, sororidade e solidariedade. Ao revisitar os alicerces dos espaços feministas autônomos, Okech busca refletir de que modo é preciso subverter alguns desses cânones, de modo a constituir um campo movimentacional cada vez mais construído e impactado pela contribuição prática e teórica dxs sujeitxs queer. Lyn Ossome é uma feminista e acadêmica queniana, cuja trajetória intelectual e militante desenvolve-se em vários países africanos. Atualmente está baseada no Institute for Social Research da Universidade de Makerere, em Kampala (Uganda). O texto dela, aqui traduzido, faz uma interessante análise da conjuntura política da África pós-colonial, atravessada por novas tensões e anseios de reconhecimento por parte de grupos marginalizados. O processo de democratização, no fim dos anos 1980, em vários países africanos, conferiu visibilidade para o movimento queer no continente. Porém, nota Ossome, no momento em que o ativismo LGBTIQ se expande e reivindica o reconhecimento dos seus direitos, o ativismo pela justiça social e econômica e a análise em termos de classe sofrem um recuo. A homofobia se espalha no continente, ao passo que os fundamentalismos religiosos conseguem se aliar com o poder estatal e o modelo neoliberal se impõe com as desigualdades de classe. Neste 18 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER momento, é necessário que as lutas queer afirmem explicitamente suas intersecções com as questões raciais, de gênero e, particularmente, de classe, e que integrem, em suas pautas, a justiça econômica e social. Trata- se, desta forma, de desconstruir a ideia enraizada segundo a qual os grupos queer representariam uma elite econômica e cultural, nas sociedades africanas, vinculada aos interesses ocidentais. Tal ideia, defendida pelas classes dominantes e pelo fundamentalismo religioso, impede a formaçãode uma plataforma plural de lutas, assim como de políticas transversais de solidariedade, capazes de unir os diferentes grupos marginalizados. As políticas de identidade existentes em muitos contextos africanos revelam-se insuficientes e mesmo violentas ao mobilizarem um só aspecto identitário e ao excluírem outras dimensões, como a classe, a partir das quais se pode construir novas alianças. Ola Osaze é um homem trans da Nigéria, que mora e trabalha nos Estados Unidos, onde é um dos organizadores do Black LGBTQIA+ Migrant Project (BLMP) e do Transgender Law Center. O texto que aqui apresentamos parte da análise do caso de Caster Semenya, a atleta sul- africana vencedora da medalha de ouro no Campeonato Mundial de Atletismo de Berlim, em 2009. Como relata o texto de Osaze, a vitória de Caster Semenya foi questionada e a atleta teve de se submeter a testes de gênero para que fosse comprovada sua feminilidade. Segundo destaca o autor, o caso de Caster Semenya, como o de Saartjie Baartman (conhecida como a Venus de Hottentot), no passado, mostram o racismo- sexismo do mundo ocidental em relação às mulheres africanas, mas também o preconceito contra as pessoas africanas cujo gênero não está em conformidade com as normas socialmente estabelecidas. Através da análise deste caso, Ola Osaze mostra as profundas interligações nos processos de racialização do gênero (e dos gêneros não binários) e a gendrificação da raça. O texto de Sibongile Ndashe apresenta uma contundente crítica à narrativa única que apresenta a África como homogeneamente caracterizada por uma homofobia obsessiva. Sibongile Ndashe é uma advogada sul-africana e feminista, engajada na defesa dos direitos humanos e na luta pela descriminalização da homossexualidade na África. A tese de Ndashe é a de que a “história única da homofobia africana é perigosa” TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 19 para os militantes locais, cujas resistências e lutas são continuamente invisibilizadas atrás da retórica da África unicamente dominada pela violência homofóbica e pelo heterossexismo. Uma tal retórica fortalece a presença de movimentos estrangeiros com suas mensagens salvacionistas, que pretendem organizar e liderar os processos locais, impondo a agenda ocidental. É preciso, então, construir ações conjuntas entre movimentos locais, regionais e internacionais, deixando, porém, aos grupos locais, sua plena autonomia na implementação das estratégias de luta. O pequeno texto do Manifesto Queer Africano encarna, em poucas linhas, a radicalidade do projeto Queer no continente africano, reivindicando a necessidade de uma revolução africana anticolonial, em prol da justiça social, de gênero, da justiça econômica, erótica e ambiental. O texto de Bernedette Muthien, ativista sul-africana no campo das questões de gênero, sexualidades e direitos humanos, chama nossa atenção para a importância do híbrido, do fronteiriço, do que se encontra no cruzamento (inbetween). Somente desta forma é possível questionar o tentador chamado da pureza e das origens, no qual estão presentes os germes das violências. Ela define sua identidade como fluida, dinâmica, complexa, ou seja, como queer. Enquanto o termo queer abraça todxs aquelxs que não são heteronormatixos e inclui as fronteiras [inbetween] fluidas, o termo ‘lésbica’ não me inclui necessariamente porque eu me defino para além dos binarismos, como fronteira e como fluida, dinâmica e variável. Certas pessoas podem, talvez, me chamar de bissexual, mas este termo também remete a uma noção de polaridade – de que eu sou ambos os polos – quando de fato eu me desloco e mudo de posição, não em um continuum estático e linear, mas ao longo de uma elipse infinitamente espiralar que, não ironicamente, é oval, símbolo do poder reprodutivo feminino21. 21 MUTHIEN, Bernedette. Queerying borders: an Afrikan activist perspective. In: ABBAS, Haki- ma; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013. 20 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER Gathoni Blessol é queniana e ativista pelos direitos das populações LGBTIQ no seu país, sendo que atualmente está sob ameaças de morte, por conta de seus engajamentos. No texto aqui apresentado, a autora afirma a importância do movimento queer africano tecer alianças com outros movimentos africanos de lutas contra o capitalismo e as injustiças sociais, econômicas e políticas. A luta LGBTIQ é uma das mais solitárias na África, pois se encontra presa entre grupos extremistas religiosos e fascistas, de um lado, e grupos liberais, de outro. Se os primeiros querem impor uma visão moral, supostamente local, e pregam contra a homossexualidade, os liberais defendem a universalidade das normas, são patrocinados pelo “neocolonialismo cor-de-rosa” e animados pelo ideal salvacionista. Escreve Gathoni Blessol a propósito desta segunda vertente: Como em muitas outras lutas, o resultado deste ideal catastrófico foi o crescimento de um ativismo e de organizações LGBTIQ motivadas por financiadores que são guiados, de maneira visionária, pouco prática, capitalista e mercantilizada – sobretudo, marginalizando as lutas, as realidades, os conceitos e as soluções da base. Nossas organizações LGBTIQ se tornaram, em grande parte, hierarquicamente estruturadas, mandatadas pelos financiadores e limitadas no ativismo22. Ou seja, esse processo acaba restringindo o pensamento e a prática dos movimentos LGBTIQ àquilo que os órgãos financiadores indicam ou exigem, perdendo o caráter interseccional de suas lutas. Ao contrário, os movimentos LGBTIQ africanos devem tomar consciência de suas raízes nas culturas africanas onde, antes da colonização, existiam formas de relacionamentos homoafetivos e performances de gênero com valor de ritual cultural ou religioso que podem inspirar e fortalecer os movimentos atuais. Keguro Macharia é um intelectual e acadêmico queniano, atualmente vinculado à Universidade do Maryland (USA), onde trabalha, em particular, sobre as intersecções entre estudos queer e estudos africanos. 22 BLESSOL, Gathoni. LGBTI-Queer struggles like other struggles in Africa. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 21 O texto aqui apresentado faz um apanhado sobre a situação das minorias sexuais no Quênia durante a primeira década do século XXI, a partir da leitura de três acontecimentos importantes e interligados, como a Lei sobre as Ofensas sexuais (2006), a Política Nacional sobre Cultura e Herança (2009) e a nova Constituição (2010). Destes documentos, ressalta a vontade de proteger a família heterossexual contra outras formas de arranjos familiares e de relacionamentos afetivos que viriam comprometer a unicidade do modelo familiar heterossexual e reprodutivo. Apesar de a legislação queniana não se basear, primeiramente, na repressão e criminalização da homossexualidade, a primazia aberta e insistentemente conferida para a heterossexualidade torna impensáveis e mesmo impossíveis os modos de vida queer. Analisando a situação política do Malaui, Jessie Kabwila, docente universitária, ativista feminista e defensora da liberdade acadêmica na Universidade do Malaui, apresenta, no seu texto, os principais discursos que dominam o debate sobre a homossexualidade, mostrando as raízes coloniais que, ainda, o atravessam. Quem defende a legalização da homossexualidade o faz, na maioria dos casos, em nome do discurso universalista dos direitos humanos. De outro lado, as igrejas evangélicas e os líderes tradicionais argumentam contra o caráter africano da homossexualidade e rejeitam a possibilidade de sua legalização. A autora contesta ambosos discursos e mostra que eles estão enraizados no contexto do passado colonial africano e não expressam a autenticidade de um posicionamento local. Assim, a decisão de legalizar ou manter a homossexualidade ilegal, no Malaui, precisa ser feita em termos locais e do Malaui. O Malaui pós-colonial precisa ter essa conversa em termos descolonizados, que não sigam o discurso prescritivo e colonizador dos direitos humanos, nem o discurso essencialista da cultura malauiana que alimenta o discurso colonial ocidental da religião organizada do Ocidente e do Oriente e do elitismo de classe23. 23 KABWILA, Jessie. Seeing beyond colonial binaries: unpacking Malawi’s homosexuality dis- course. In: ABBAS, Hakima; EKINE, Sokari (Ed.). Queer African Reader. Dakar: Pambazuka Press, 2013. 22 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER Em particular, segundo Kabwila, é preciso elaborar um discurso malauiano sobre a legalização da homossexualidade, que não identifique esta medida com uma forma de adesão à modernidade ocidental, como um ‘presente’ que o Ocidente traria para uma África supostamente atrasada, tradicionalista e pré-moderna. Os distintos países africanos devem se apropriar da discussão sobre a homossexualidade, fazer com que a preocupação com a vida e o respeito a sujeitos não normativos, em termos de gênero e de sexualidade, não apareça mais como uma ingerência ocidental ou como “um projeto imperial atual”24, mas possa se traduzir em caminhos propriamente africanos da dissidência sexual. Acreditamos, assim, que com estas traduções do Queer African Reader seja possível fortalecer o diálogo Sul-Sul a partir da perspectiva dos Estudos de Gênero, Feministas e Estudos sobre Sexualidades, permitindo uma releitura descolonizada deste campo. Muitas questões, contudo, ainda permanecem em aberto e precisam de um ulterior aprofundamento, entre elas, a da escolha dxs autorxs do Reader de utilizarem termos como ‘gay’, lésbica’, ‘bissexual’ ou ‘trans’, que remetem à história ocidental das identidades sexuais e de gênero. Como soaria a chamada ‘sopa de letrinhas’, se ao invés das categorias ocidentais, fossem colocadas as expressões africanas que marcam a dissidência sexual e de gênero, nos diferentes contextos deste continente? 24 HOAD, Neville. African Intimacies. Race, Homosexuality, and Globalization. Minnesota: Uni- versity of Minnesota Press, 2007, p. XIII. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 23 A proposta do Queer African Reader Sokari Ekine Hakima Abbas Tradução Caterina Rea/FEMPOS/UNILAB A viagem desta coletânea começou em janeiro de 2010, em um momento crítico na história queer africana. Uma mulher trans do Malaui, Tiwonge Chimbalanga, de 20 anos, e seu companheiro homem, Steven Monjeza, 26 anos, foram processados por crime de grave indecência e por atos contra a natureza, puníveis com até 14 anos de aprisionamento e trabalhos forçados. A mídia internacional e os grupos internacionais de defensores dos direitos humanos, em frenesi, passaram informações sobre violação de direitos gays na África. O presidente do Malaui, o falecido Bingu waMutharika, uniu-se ao coro da violência transfóbica e homofóbica. Embaixadas e diplomatas do Norte Global mobilizaram- se, por sua vez, alimentados pela defesa de organizações de lésbicas, bissexuais, gays, transgêneros e intersex (LGBTI) dos respectivos países e demandaram a libertação dos dois “homens”, ameaçando a retirada de ajuda, se os direitos humanos não fossem respeitados. E, com isso, os pontos de discussões anteriormente silenciados dentro do grupo cada vez maior de ativistas africanxs, pensadorxs, artistas e de comunidades queer, passaram para o primeiro plano, em uma deslumbrante exibição do que é o pântano das vidas LGBTI no continente. Havia a invisibilização das identidades de gênero não convencionais das vidas e dos seres trans*, ao insistirem em se referir a Tiwonge como um gay, mesmo que ela afirmasse se identificar como uma mulher. Existia a retórica violenta da homofobia populista, usada para calar os dissidentes em toda a nação não somente por meio de uma elite dominante formada pela alta classe política e econômica, mas também assentada sobre o poder de uma religião importada. Havia o uso da retórica da independência, que inclui a definição do que é africano e a rejeição das imposições ocidentais, de forma a incentivar a violência do africano contra o africano (aqueles que se identificam com as prescrições dominantes em termos de sexualidade e de gênero, contra quem encarna 24 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER definições dissidentes de gênero e sexualidade), com a intenção de apagar a não conformidade de gênero e as identidades não heterossexuais do projeto nacional. Havia a Internacional Gay – defensorxs e associações lésbicas e gays em nível internacional – que chegavam ao país com pouco ou nenhum conhecimento do contexto para conduzir as questões, mas com a convicção firme de que elxs estavam salvando as vítimas perseguidas da barbárie brutal dos africanos, sem consultar os grupos locais e repreendendo os líderes africanos por seu fracasso em abraçar a ideologia liberal, acompanhada pelos direitos humanos e dos monopólios econômicos neoliberais. Havia as embaixadas e os governos ocidentais que flexionaram seus músculos para vir ao socorro da minoria perseguida, enfatizando assim a continuidade da dependência colonial do continente e reforçando dinâmicas de poder distorcidas entre o Norte e o Sul Globais. Ao usar a retirada das ajudas humanitárias como uma alavanca para salvar os LGBTI africanos, estes “parceiros do desenvolvimento internacional” criaram uma onda de medo paradoxal frente a esta ameaça, apesar do amplo reconhecimento de que as ajudas nunca serviram aos interesses das populações africanas. Havia a África do Sul, à qual nos dirigimos com uma ansiedade cheia de expectativas, por conta da nossa tendência a agarrar- nos às memórias de um partido de libertação guiado por princípios, esperando que o partido falasse com coragem, mas cujo longo silêncio nos deixou cabisbaixos e envergonhados. Havia um dos nossos “líderes” que tentou providenciar o perdão presidencial, mas ainda insistindo na negação do pertencimento queer, com uma atitude de “quem sabe da próxima vez”. Havia os corajosos habitantes do Malaui, oriundos de todas as esferas da vida, que permaneceram em suas casas ou enfrentaram a mídia nacional para denunciar a opressão infligida contra nós todxs e que atingia diretamente a poucxs; malauianos que não conseguiram alcançar a audiência internacional porque sua mensagem era demasiado complexa, mas que tentaram avisar sua nação do iminente estrangulamento de uma crescente regressão democrática; os mesmos malauianos que se encontraram aprisionados e conduzidos a se esconderem, alguns meses depois, quando o dissenso popular atingiu as estradas e as universidades. Havia o movimento LGBTI do Malaui, cujas vozes não conseguiam superar a cacofonia de interesses que falavam por, sobre e contra eles, e cujas comunidades eram empurradas nas profundezas do medo. Havia TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 25 os africanos no mundo que se organizavam, olhavam uns para os outros, procurando uma estratégia e apoio, e que não conseguiam abalar o teatro do absurdo que se desenvolvia ao redor das vidas africanas. Mas, próprio como o fenômeno de políticos medíocres, que procuram a cena e a encontram na persecução fundamentalista de uma comunidade que já estava com medo, parece espalhar-se no continente, por outro lado, a resistência africana, que cresce, aprende e é fortalecida através decada batalha. No intuito de dar voz a esta resistência e de perpetuar a história das múltiplas identidades que encarnamos, nós duas, editoras, Sokari Ekine, africana da Nigéria, e Hakima Abbas, uma africana do Egito, juntamos nossas forças com um grupo de africanxs no mundo, para dar testemunho do implacável poder das comunidades queer ao redor da África e sua diáspora. O Queer African Reader reúne textos acadêmicos, análises políticas, depoimentos de vida, conversações e trabalhos artísticos de africanxs engajadxs na luta pela libertação LGBTIQ. O Queer African Reader rompe com a homogeneização da África como continente homofóbico, para evidenciar a complexidade das vidas e das experiências LGBTIQ, com contribuições que exploram temas como identidade, resistência, solidariedade, lavagem cor de rosa [pinkwashing], políticas globais, intersecções de lutas, religião e cultura, comunidade, sexo e amor. Conscientes da magnitude do que estamos propondo documentar no Queer African Reader, sabíamos que não podíamos tentar fazer isso sozinhas. Assim, levamos até o fim a ideia de suscitar discussões, a partir das nossas numerosas comunidades e de nossos contribuintes potenciais, sobre como documentar não só a resistência nas vidas e nas lutas diárias das comunidades queer da África, mas também como valorizar a complexidade da maneira com que a libertação queer é concebida na África e pelos africanos. Nós esperamos também que o trabalho da coletânea assegure que esta publicação tenha respondido às necessidades do movimento queer africano, pelas discussões que abarca, em vez de ser uma visão voyeurística para “outros” olhares. O que descobrimos, através desse processo, e nas raízes da resistência queer na África, é a continuação das lutas pela libertação africana e pela autodeterminação do indivíduo e do coletivo. 26 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER Usamos o termo queer aqui e no título para denotar um quadro político mais do que uma identidade de gênero ou um comportamento sexual. Usamos queer para sublinhar uma perspectiva que abraça a pluralidade de gênero e sexual e que procura transformar, revisar e revolucionar a ordem africana, mais do que assimilá-la em um contexto hetero-patriarcal-capitalista opressivo. Queer é nossa posição dissidente, mas o usamos, aqui, conscientes das limitações da terminologia em relação com nossas realidades africanas neocoloniais. Xs autorxs, ao longo deste volume, usam um conjunto de identificações para denotar gêneros e sexualidades dissidentes. Como editoras, acreditamos que esta diversidade proporciona o sabor com o qual tal coletânea está condimentada. É esta vasta multiplicidade que abraçamos nas perspectivas, experiências, ideias e estratégias apresentadas neste livro. Na mesma medida em que, neste volume, queríamos fazer um retrato completo do espectro do arco-íris negro, assim como dar voz às tendências pró-queer e pró-feministas de um conjunto de africanxs que se identificam em diferentes esferas sexuais e de gênero, reconhecemos que existem várias lacunas no material aqui coletado. Por exemplo, a ausência de textos submetidos pela África do Norte, assim como a ausência de vozes das velhas gerações e as experiências que documentaram, produz uma lacuna na tessitura que esta coletânea tenta registrar. Por isso tudo, assumimos toda a responsabilidade e esperamos que este livro estimule outrxs africanxs a retomar o desafio. Esperamos que outros possam produzir mais e que isso possa não somente afirmar a existência da dissidência política em termos de sexualidade e de gênero, na África, mas, também, reforçar a reflexão e sublinhar a importante contribuição destas vozes para a libertação de nosso continente. Quanto ao aspecto financeiro para realizar esta coletânea, agradecemos ao fato de que foi uma entidade financiadora feminista africana, Urgent Action Found – Africa, a ser a primeira a apoiar este trabalho. Gostaríamos, portanto, de agradecer a UAF-Africa pela ajuda generosa e pela confiança no projeto em suas fases iniciais. O Queer African Reader tornou-se também possível graça à ajuda generosa da Arcus Foundation, e nós somos gratas, especialmente, à sua agente internacional de programas, Carla Sutherland, por seu apoio à iniciativa ‘Fahamus’s Reclaim’, da qual TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 27 nasceu o Queer African Reader. Poucos meses depois que começamos o processo que culminou, após três anos, no Queer African Reader, David Kato, professor e importante ativista LGBTI em Uganda, foi assassinado. Poucas semanas antes de seu assassinato, David submeteu um artigo para nós, em consideração a este volume. Incluímos o artigo de David em primeiro lugar na coletânea, em memória de um militante abatido. Com humildade, dedicamos o Queer African Reader para todxs xs sobreviventes e vítimas das múltiplas opressões e para xs resistentes que lutam, a cada dia, com o corpo, com o espírito e com a mente, para libertar a nós todxs. Nós xs saudamos! Tradução Caterina Alessandra Rea (UNILAB) 28 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER Um ensaio David Kato Kisule Tradução Felipe Fernandes/GIR@/UFBA David Kato Kisule submeteu esse curto ensaio às editoras do Queer African Reader apenas um mês antes de seu assassinato, em 26 de janeiro de 2011. David Kato foi professor e um proeminente ativista LGBTI em Uganda, tendo trabalhado como advocacy na organização Sexual Minorities Uganda (SMUG) [Minorias Sexuais de Uganda]. Algumas semanas antes de sua morte, David ganhou um caso histórico contra um jornal sensacionalista que publicou fotografias de 100 pessoas, incluindo a dele mesmo, em um artigo que conclamava o enforcamento de lésbicas e gays ugandenses. Esse ensaio é aqui publicado, com muitas poucas edições, em memória de David Kato e todos aqueles que tombaram na luta pela igualdade LGBTI. Nesse país, é um absurdo que, ao mesmo tempo em que LGBTIs se esforçam para liberar sua comunidade na conquista não de direitos especiais, mas de direitos iguais como possuem quaisquer outras, está se enfrentando um dilema. Com leis opressivas e leis contra a sodomia (que há muito tempo foram revogadas em seus países de origem!), o investimento massivo de grupos religiosos estrangeiros em comunidades africanas, a recente propagação da homofobia que promove um ódio continuado e a reprodução global do evangelicalismo estadunidense tornaram as coisas piores para a sobrevivência da comunidade LGBTI nesses países. Em nome da proteção da família tradicional, os evangélicos recentemente incitaram a elaboração de um projeto de lei anti- homossexualidade no parlamento ugandense – como um projeto de lei privado, que afetará não apenas a comunidade LGBTI, mas, caso aprovado, terá repercussão global para toda a comunidade. Por isso, é necessária uma abordagem que confronte esse projeto de lei como um problema universal com repercussões globais. Também é necessário o uso de estratégias vigorosas e sem rodeios para falar sobre esse projeto de lei não simplesmente como “expressão da homofobia”, mas TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 29 como incitador de um ódio contínuo e de violência. Há uma necessidade premente de fomentar o debate sobre os sistemas globais que atualmente agem na reprodução do autoritarismo homofóbico em todas as partes do mundo. Em Uganda, na medida em que a comunidade LGBTI se tornou mais visível em sua demanda por inclusão nas estratégias governamentais de saúde, na luta para enfrentar a disseminação do HIV, os legisladores propuseram leis que criminalizam até mesmo o sexo consensual entre pessoasdo mesmo sexo com a pena de morte! Isso incentivou muitas voltas ao armário e tornou muitas pessoas vulneráveis ao açoite. Alguns foram presos, assediados, detidos e outros morreram nesse processo. Muitos foram expulsos de lares, moradias, escolas, e outros humilhados (através até mesmo de linchamentos e estupros). Há, também, uma homofobia institucionalizada estimulada por gestores de políticas públicas e os autores ficam sempre impunes! Lésbicas são estupradas por membros da família e por outros, em nome da cura do lesbianismo e, nesse processo, muitas se infectam com o HIV! Tais alegações foram feitas primeiramente no Tribunal de Mbale, onde Late Brian Pande e Wasukire Fred foram acusados por relação sexual carnal contra a ordem da natureza e o cirurgião da polícia disse à corte que: Ele encontrou um deles sem DST, mas na segunda testagem foram encontradas DST em ambos. Ele encontrou um deles com um ferimento no ânus. Ele descobriu que um deles branqueou o rosto. Com esses dados, concluíram que os dois rapazes estavam fazendo sexo juntos. Em resposta, o magistrado perguntou pelas garantias para conceder aos dois uma fiança judicial, ao que um proeminente advogado, no tribunal, demandou ao magistrado para não conceder a fiança pois dentro de uma semana toda a cidade de Mbale estaria cheia de homossexuais e, então, os dois deveriam morrer na prisão! Não por acaso, Pande morreu semanas depois de sair da prisão de Maluku, onde tínhamos sido 30 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER proibidos de vê-lo quando fomos visitá-lo. Contradizendo os relatórios hospitalares, seu atestado de óbito informava que ele havia morrido de meningite, doença que, no entanto, ainda não havia sido verificada pelos médicos, o cirurgião policial disse, diante de um corpo bem nutrido, que ele tinha morrido de anemia! É estranho que, tendo acompanhado de perto o caso de Mbale sem saber quem era Fred, ao perguntarmos por Fred como víamos na mídia, fomos informados de que a pessoa que procurávamos era um homem, mas que sempre vivera com a aparência de uma mulher! Podemos nos perguntar que mal poderia ter feito uma pessoa que viveu na mesma comunidade por mais de 30 anos! Apenas o estímulo ao ódio público por fundamentalistas religiosos e gestores de políticas públicas pode ter deesncadeado tal ódio! Toda legislação criada sem a inclusão de comunidades marginalizadas é antidemocrática – o projeto de lei em si mesmo é inconstitucional, uma vez que advoga pela discriminação, não segue ou respeita os princípios internacionais e não segue a lei ugandense. Em geral, o estado e a situação são alarmantes e há uma grande necessidade de lutar para impedir esse projeto de lei, o que é complicado, pois qualquer membro da sociedade civil que contribui com essa luta é tido como incitador da homossexualidade, a qual está em processo de criminalização, de acordo com o último comunicado do Ministro de Relações Internacionais! Graças a todos os esforços, coragem e luta da comunidade LGBTI de Uganda, ativistas, artistas, líderes religiosos, aliados e gestores de políticas públicas em todo o país, África e mundo, a lei anti-homossexualidade de Uganda não foi aprovada até o momento de escrita deste ensaio. Entretanto, o perigo e a ameaça ainda crescem e mais e mais países em todo o continente e continuam a ameaçar a criar legislação semelhante e incitam a violência e a perseguição daqueles considerados como de sexualidades não hteronormativas e com identidades de gênero transgressoras. Tradução Felipe Bruno Martins Fernandes (GIRA/UFBA) TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 31 “Sobre sororidade e solidariedade”: tornando queer os espaços feministas africanos Awino Okech Tradução Clarisse Goulart Paradis/FEMPOS/UNILAB Esse capítulo busca examinar o espaço e lugar da organização queer dentro dos “espaços feministas africanos mainstream”. Essa é uma tarefa ambiciosa, dada a multiplicidade de espaços, atorxs e agendas. As possibilidades de “espaços feministas mainstream” sugerem uma multiplicidade de vanguarda, ou outros locais, que operam na periferia do centro. Esse fato é, em si mesmo, uma posição que vale a pena ser interrogada, mas não se enquadra no escopo deste capítulo. Meu objetivo não é criticar locais específicos de construção dos movimentos feministas, mas sim oferecer uma linha direta teórica, traçar disjunções e refletir sobre possibilidades. Esse capítulo inicia uma conversa teórica que não é de forma alguma concebida para ser abrangente ou representativa da riqueza de experiências e literatura disponíveis. Para minha análise nesse capítulo, eu me baseio na minha experiência pessoal – leia-se aqui a minha participação em diversos espaços, alguns nomeados como espaços ativistas feministas; outros, como locais acadêmicos feministas, conversas com diversos atores com histórias em diferentes formas de organização, algumas feministas, algumas explicitamente nomeadas como Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgênero, Intersexo (LGBTI). Eu me baseio nessas conversas como locais nos quais vários indivíduos identificados como mulheres, feministas, lésbicas, pesquisadorxs têm lutado com o intuito de encontrar um espaço teórico, dentro de espaços ativistas, para dar sentido à luta25 de viver e ocupar uma das muitas identidades que xs torna vulneráveis não apenas a ataques 25 O termo luta é usado para se referir às tensões manifestadas em navegar por múltiplas identida- des, algumas políticas, outras vistas como pessoais, algumas rotuladas como arriscadas e em con- flito. Por exemplo, quando uma mulher gay ocupa um cargo público, mas a sua homossexualidade não é uma questão política, o resultado é muitas vezes um silenciamento de sua identidade sexual 32 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER específicos do Estado, mas também a um isolamento particular entre “irmãs”, onde a “segurança” é construída como um componente central do espaço. A acusação de homofobia26 dentro dos movimentos de mulheres27 ou nos espaços feministas autônomos recentes em várias partes da África não é nova. Essas acusações foram evidentes na pós 4ª Conferência Mundial de Mulheres da ONU de Beijing, em 1995, na qual várias mulheres africanas ativistas sinalizaram que a questão “sexual” não era uma prioridade para as mulheres africanas28. Sexo e sexualidade só se tornaram prioridades na medida em que impactaram saúde, mobilidade, emprego e herança (leia- se direitos reprodutivos e violência contra as mulheres). Debates em torno da autonomia corporal e integridade sexual continuam permanecendo locais tênues referentes à legislação e ao ativismo em muitos países africanos29. Isso pode ser visto no desenvolvimento do discurso público e/ou na legislação sobre o aborto, os quais continuam a irritar órgãos de formulação de políticas e do público igualmente30. Além disso, a ofensiva da violência contra homens e mulheres que performam sua sexualidade diferentemente – contra a normatividade heterossexual – também recriou discursos sobre autonomia. Orientação sexual como um assunto de ou de sua piblicização, transformando isso em uma questão política. Na maioria dos contextos africanos, os dois não coexistem perfeitamente. 26 O termo poderia significar qualquer coisa, desde um “silêncio” sobre orientação sexual e hete- ronormatividade no discurso ativista feminista até referências explícitas a um outro – “eles” – ou a reticência em identificar abertamente e engajar-se nas lutas políticas LGBTI quando solicitadas. No Quênia, por exemplo, a maioria dos lobbies “pró-aborto” vieram de ginecologistas e não de ativistas dos direitos das mulheres.27 Não me aprofundo em uma discussão sobre a existência e a viabilidade do movimento de mulheres. Esse tema foi habilmente discutido mais recentemente pela AWID, através de seu projeto de pesquisa sobre construção do movimento (veja www.awid.org). Eu faço a distinção entre um movimento de mulheres e espaços feministas com base em uma análise mais aprofundada neste capítulo, que traça a divisão entre um movimento de mulheres que se baseia no feminismo como sua ideologia organizadora e aqueles que se distanciam dele. 28 JOLLY, Susie. Queering development: exploring the links between same sex sexualities, gender and development. Development, v. 8, n. 1, p. 78-88, 2000. 29 Ativistas dos direitos da mulher foram retardatárias nos debates “pró-aborto” e na negociação com o Estado e em outros locais de poder como as igrejas, em que a escolha foi efetivamente apagada. 30 KLUGMAN, Barbara; BUDLENDER, Debbie. Advocating for abortion access: eleven coun- try studies. Women’s Health Project, University of Witwatersrand, 2002; Center for Reproductive Rights. In Harm’s Way the Impact of Kenya’s Restrictive Abortion Law, CRR, New York, 2010. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 33 advocacy é um assunto que tem sido citado como tendo o potencial de desviar a luta, como se torna evidente quando são feitas escolhas sobre quais questões ganham prioridade no âmbito público — como questões políticas e, eu acrescento, ideológicas, dentro dos lobbies dos direitos das mulheres31. A organização distinta, que ocorre na maior parte da África entre o trabalho LGBTI e os lobbies feministas/de direitos das mulheres, é igualmente significativa, uma vez que o trabalho LGBTI se baseia historicamente no repertório que chamarei, para os propósitos deste capítulo, de teoria feminista. Jackson faz abaixo uma distinção útil, ao notar que: Queer e feminismo convergem na medida em que ambos questionam a inevitabilidade e a naturalidade da heterossexualidade e ambos, pelo menos até certo ponto, ligam a divisão binária entre o gênero com aquela entre a heterossexualidade e a homossexualidade. Para além disso, eles diferem em ênfase. Os teóricos queer buscam desestabilizar a heteronormatividade, mas estão relativamente despreocupados com o que acontece nas relações heterossexuais. As feministas, porque estão preocupadas com as maneiras pelas quais a heterossexualidade garante a divisão de gênero e depende dela, estão muito mais interessadas na institucionalização e na prática cotidiana das relações heterossexuais32. Como resultado, escolhas foram feitas33 por indivíduos e organizações em torno de qual identidade política colocar em primeiro plano, com alguns argumentando que enquanto elxs mantêm uma forte conexão com a teoria feminista, a ideologia e os espaços são centrais para o ímpeto de seu trabalho ativista e sua identidade política lésbica é sustentada, 31 Eu tirei essa reflexão de conversas com mulheres queer que tiveram que negociar a menção de direitos e escolhas sexuais, de modos significativos, em declarações e posicionamentos em confe- rências. A inocência sobre a distração que a orientação sexual anunciava era oferecida porque a identidade queer delas não era destacada como sendo política. 32 JACKSON, Stevi. The social complexity of heteronormativity: gender, sexuality and heterosex- uality. In: HETERONORMATIVITY – A FRUITFUL CONCEPT?, Trondheim, 2005. 33 Eu tirei essa reflexão de conversas com ativistas da África subsaariana que trabalham com organizações LGBTI ou são autoidentificadas como ativistas LGBTI ao contrário de ser mulheres que são lésbicas. 34 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER colocada em jogo, por causa do “silêncio”, falta de “solidariedade” e às vezes “homofobia” dentro de espaços onde isso não deveria ser a norma – espaços feministas e/ou o movimento de mulheres34. Nesse capítulo, eu avalio se as ferramentas conceituais e ideológicas que o feminismo oferece têm sido usadas de modo que não sejam nem homogeneizantes nem essenciais dentro dos processos de construção do movimento. Eu examino as abordagens conceituais que foram implantadas na construção dos movimentos dentro de espaços feministas autônomos. Ao fazê-lo, eu questiono o quão prontos eles estão para responder a um crescente movimento queer35. Isso é importante por três razões. A primeira é baseada na história e aceitação do feminismo de um lado e a causa das mulheres do outro. Onde feministas e o feminismo foram guetizados e rotulados de várias maneiras, Adeleye Fayemi observa: É muito difícil criar e sustentar espaços feministas em muitos países africanos por várias razões. O feminismo é ainda muito impopular e ameaçador. A palavra ainda evoca mulheres brancas nuas e selvagens queimando seus sutiãs, imperialinsmo, dominação, um enfraquecimento da cultura africana, etc. As feministas são submetidas a ridicularizações e insultos e, em alguns casos, sofrem ameaças de vida. Elas são chamadas de “frustradas”, “solteironas deploráveis”, “castradoras”, “destruidoras de lares” e muitos outros epítetos indignos36. Algumas das respostas para desafiar essas qualificações foram admitidamente reacionárias, ao invés de proativas. Enquanto elas foram 34 HAMES, Mary. The women’s movement and lesbian and gay struggles in South Africa. Feminist Africa, n. 2, 2003. Disponível em: <http://www.agi.aca.za/sites/agi.ac.za/files/fa_2_standpoint_4. pdf>. Acesso em: 30 nov. 2012; KRAAK, Gerald. Homosexuality and South African left: the ambi- guities of exile. In: WISER, Johannesburg, 2002. 35 A palavra queer aqui é semelhante à interpretação de Jolly como constituindo uma rejeição da distinção binária entre homo e heterossexual e, assim, uma conceituação das sexualidades como não essenciais e transitórias. (JOLLY, Susie. Queering development: exploring the links between same sex sexualities, gender and development. Development, v. 8, n. 1, p. 78-88, 2000). 36 ADELEYE-FAYEMI, Bisi. Creating and sustaining feminist space in Africa: local global chal- lenges in the 21st century. In: 4th ANNUAL DAME NITA BARROW LECTURE, Toronto, 2000. p. 8. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 35 úteis em perturbar a hegemonia epistemológica ocidental, o discurso emergente, ao contrário, reincorporou o patriarcado e, especificamente, suas raízes heteronormativas37. Isso também produziu um discurso no feminismo africano que foi construído em oposição ao que foi visto como sendo o que feminismo ocidental representava. Não necessariamente evoluiu em novos discursos que se engajaram de maneira significativa com as realidades contextuais da África. Ao contrário, tornou-se culturalmente relativo. O resultado foi uma série de projetos destinados a escavar narrativas e histórias para enfrentar as construções dominantes da África e das “mulheres africanas”. O feminismo africano definido dessa forma permanece em oposição e moldado por construções imperiais e, reconhecidamente, por redefinições da África, e não evolui organicamente38. A segunda razão reconhece que as bolsas de estudo feministas africanas, em particular, e as bolsas de estudo feministas, em geral, têm sido amplamente indisponíveis para a maioria dxs estudantes africanxs e cidadãxs interessadxs em se engajar em análise de gênero, para além do “gênero e desenvolvimento”, tornados populares pelas empresas de desenvolvimento. Consequentemente, alguns dos imperativos epistemológicos que eu localizo aqui em termos da sua centralidade em desafiar a heteronormatividade permanecem subutilizados em espaços 37 O termo “heteronormatividade” é utilizado para referir-se às instituições, estruturas de en- tendimento e orientações práticas que fazem a heterossexualidade parecernão somente coerente, isto é, organizada como sexualidade, mas também privilegiada. (MIKELL, Gwendolyn. African Feminism: The Politics of Survival in Sub-Saharan Africa. Philadephia: University of Pennsylvania Press, 1997; OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ. The Invention of Women: Making na African Sense of Western Gender Discourse. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997; STEADY, Filmina Chiona. The Black Woman Cross-Culturally. Cambridge: Schenkman, 1981). 38 Trabalhos acadêmicos mais recentes nessa arena produziram análises mais nuançadas (ver, entre outros, BENNETT, Jane. Editorial: researching for life: paradigms and power. Feminist Af- rica, v. 11, p. 1-12, 2008; LEWIS, Desiree. Editorial. Feminist Africa, n. 2, p. 1-7, 2003; MEKGWE, Pinkie. Theorising African Feminism(s): the colonial question. QUEST: An African Journal of Philosophy/Revue Africaine de Philospphie, n. 20, p. 11-22, 2008; MUPOTSA, Danai S.; MHISHI, Lennon. This little rage of poetry: researching gender and sexuality. Feminist Africa, n. 11, p. 97- 107, 2008; PEREIRA, Charmaine. Interrogating norms: feminists theorising sexuality, gender and heterosexuality. Development, v. 52, n. 1, p. 18-24, 2009; SALO, Elaine. Multiple targets, mixing strategies: complicating feminist analysis of contemporary South African women’s movement. Fe- minist Africa, n. 4, p. 64-71, 2005). 36 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER de construção do movimento. O mantra da necessidade de responder a problemas reais e ser relevante para realidades vividas pelas mulheres “na base” resultou na construção da epistemologia feminista, a qual é inacessível e irrelevante para entender e responder às realidades vividas pelas mulheres. Essa é uma tensão que, ainda que consistentemente reconhecida, é dificilmente resolvida na prática. A terceira razão considera o contexto atual, o qual é caracterizado por massivas reversões de ganhos conceituais e de ativistas que o feminismo ofereceu para entender as injustiças socioeconômicas e políticas. A manipulação desenvolvimentista e despolitizada do gênero como estrutura conceitual que deve moldar as intervenções que buscam a transformação nas normas de gênero é frequentemente baseada em princípios de igualdade que buscam a inclusão ao invés da transformação39. Isso contribuiu, em parte, para canalizar energias para remobilizar uma posição política que se centra no desmantelamento do patriarcado e em seu poder associado tanto teoricamente, quanto na prática. A recuperação de espaços autônomos onde tal reflexão possa ocorrer é um fator desse contexto político mais amplo. Como, portanto, essas afirmações recentes levaram a uma compreensão efetiva e renovada do patriarcado e a uma desestabilização da heteronormatividade para responder à diversidade40 e à transformação das hierarquias de poder dentro e fora do movimento? Pensando nos movimentos O termo “movimento” se tornou tão corrente e vagamente usado no atual discurso a ponto de quase se tornar desprovido de significado [...] precisamos revisitar nossa definição de movimentos e ter clareza sobre o que é e o que não é um movimento. Pois é um pouco preocupante o quanto fenômenos diferentes são descritos como movimentos41. 39 Veja uma discussão mais completa sobre isso em Hassim (2004). 40 Eu uso o termo diversidade aqui para destacar binarismos existentes que atribuem alteridade a desejos homoeróticos, por exemplo. 41 BATLIWALA, Srilatha. Grassrooots movements as transnational actors: implication of global civil Society. Voluntas: International Journal of Voluntary and Nonprofit Organisations, v. 13, n. 4, p. 393-410, 2002. TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER 37 As preocupações de Batliwala refletem não apenas a imposição do termo movimento enquanto qualquer atividade que reúna uma coalizão de organizações, mas são também indicativas da crescente preocupação com a ideia de construir movimentos populares através de intervenções programáticas de organizações internacionais para o desenvolvimento. O “desenvolvimentismo” da construção dos movimentos é uma tendência crescente que merece alguma interrogação conceitual, particularmente na medida em que esses processos, em toda a África, refletem ativamente a noção de organização, sobre quais modelos de organização são críticos para seus objetivos de justiça social e o lugar da ideologia nessas agendas42. Movimentos sociais emergem como contestações populares da legalidade da participação. Portanto, aspiram a redefinir e estender o espaço e os limites das formas “aceitáveis” de engajamento político, social e econômico na sociedade. Existe uma constante tensão entre a “legalidade da participação”, como definida e regulada por instituições e indivíduos poderosos, e os desejos populares da maioria da população, cujo envolvimento com a governança de suas sociedades é limitado pelas regras de participação. Na última década, essa tensão foi elevada pela diminuição do espaço para participação cidadã, pelos governos e instituições supraestatais, e apresentou maiores ameaças para o espaço que os cidadãos têm para a ação autônoma. Há uma série de teorias que informaram a análise em torno do desenvolvimento dos movimentos sociais. Teóricxs da “mobilização de recursos”, por exemplo, explicam a ação coletiva em termos de oportunidades estruturais, liderança, redes ideológicas e organizacionais43. Teóricxs dos “novos movimentos sociais” oferecem o conceito de “identidades coletivas” como forma de examinar como as pessoas agem em conjunto, frequentemente com o objetivo de alcançar um tipo novo, distinto ou semiautônomo de presença e reconhecimento culturais. Estudiosxs que escrevem desde a perspectiva dos “novos movimentos 42 Para uma discussão mais completa sobre isso, ver Batliwala (2002) e o projeto de pesquisa sobre construção do movimento AWID e extensivos recursos sobre o objeto em www.awid.org. 43 McCLURG MUELLER, Carol; MORRIS, Aldon D. Frontiers in Social Movements Theory. New Haven: Yale University Press, 1992. p. 12-16. 38 TR ADUZIND O A ÁFRICA QUEER sociais” estão interessadxs na construção, contestação e negociação das identidades coletivas no processo de atividade política. Identidade coletiva refere-se “à definição (frequentemente implícita) acordada de associação, limites e atividades para o grupo”44. A existência de identidade coletiva, assim como da noção de “consciência coletiva” ou “falsa consciência” é difícil de comprovar. A própria natureza dos movimentos sociais significa que a identidade coletiva é um “alvo em movimento”, com diferentes definições dominando diferentes pontos da trajetória de um movimento. Os anos 199045, em particular, assistiram a um avanço dos movimentos, especialmente em países que enfrentaram a transição ou passaram por processos de consolidação democrática, que levaram a uma mudança em sua lógica, dinâmica e ênfase. De acordo com Alvarez46, uma das mudanças significativas foi a modificação de uma postura antiestatal para uma postura de negociação crítica em relação ao Estado e às arenas internacionais formais. Isso também significou um deslocamento de um tipo de autonomia defensiva e dinâmica de confronto para a lógica da negociação. Organizações não governamentais, consequentemente, passaram a ser consideradas como o veículo de escolha – a fórmula mágica – para fomentar estratégias de desenvolvimento47. A liberalização gradual do ambiente político no qual movimentos sociais operaram e a introdução do gênero no Estado, induzido em parte por alguns governos estaduais controlados pela oposição no início até meados da década de 1990, resultaram na necessidade de um número crescente de feministas formalizarem suas
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