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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Mariana Prioli Cordeiro Psicologia Social no Brasil: multiplicidade, performatividade e controvérsias DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL São Paulo 2012 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Mariana Prioli Cordeiro Psicologia Social no Brasil: multiplicidade, performatividade e controvérsias DOUTORADO EM PSICOLOGIA SOCIAL Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social, sob a orientação da Professora Doutora Mary Jane P. Spink. São Paulo 2012 Banca Examinadora ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ ____________________________________ Aos meus avós, Leonina e Jair Prioli, que apesar de terem partido no período de conclusão deste trabalho, permanecerão sempre presentes. AGRADECIMENTOS Ao Felipe, meu companheiro de pesquisa e de vida, por ter lido e relido inúmeras vezes este trabalho. Por ter levantado tantas questões (im)pertinentes. Por me fazer refletir. Por me fazer persistir; À minha orientadora, Profª. Drª. Mary Jane P. Spink, por ter me acolhido e me apoiado durante todo o período de realização desta pesquisa. Por ter me feito desembrulhar (e tecer) novas redes; Aos meus pais, Rejane e Mauricio, pela confiança, carinho e apoio incondicional. Sem vocês eu (literal e figuradamente) não estaria aqui! À Profª. Drª. Maria Cristina G. Vicentin, ao Prof. Dr. Francisco Javier Tirado Serrano e ao Prof. Dr. Lupicinio Íñiguez Rueda, pelas sugestões que fizeram no exame de qualificação. À Cris, agradeço, também, por ter me acompanhado e me apoiado durante toda minha trajetória na PUC-SP. Ao Francisco e ao Lupi, sou igualmente grata pela acolhida durante meu estágio doutoral na Universidade Autônoma de Barcelona. Aos colegas do Núcleo de Práticas Discursivas da PUC-SP, do Seminário Medicine-Networks (GESCIT) e do Laicos-Iapse pelo acolhimento, pelas conversas e pelas discussões que, sem dúvida alguma, ressoarão ainda por muitos e muitos anos; Aos amigos María e Luiz, por terem nos recebido com tanto carinho em terras catalãs. Moltes gràcies! À Marlene, por estar sempre disposta a me ajudar a ultrapassar as barreiras da burocracia; Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, pelo apoio financeiro para a realização desta pesquisa e do estágio doutoral. Qualquer história é uma construção mais ou menos engenhosa de algo que pode ser feito de modo inteiramente diferente. (John Law) RESUMO A Psicologia Social apresenta inúmeras definições, abordagens teóricas e objetos de estudo. Nesta tese, embasados em pesquisas da Teoria Ator-Rede, argumentamos que esses não são diferentes aspectos ou atributos de um mesmo objeto, mas elementos que ajudam a performar diferentes versões desse objeto. São, portanto, elementos que fazem Psicologias Sociais diferentes, embora relacionadas entre si. Que fazem uma Psicologia Social múltipla, ou seja, que é mais do que uma ao mesmo tempo em que é menos do que muitas. Para construir esse argumento, lemos e relemos livros-texto de Psicologia Social disponíveis em duas bibliotecas de referência, buscando identificar como eles descrevem as práticas, referenciais teóricos, objetivos e locais de atuação da disciplina. Após essa leitura, observamos que vários desses manuais abordam a crise que assolou a Psicologia Social na década de 1970 e decidimos buscar materiais que nos ajudassem a contar melhor essas histórias. Além disso, decidimos selecionar duas dissertações de mestrado e duas teses de doutorado defendidas na área, afinal, esses trabalhos tendem a descrever de forma mais detalhada os procedimentos utilizados. Por fim, fizemos um levantamento de textos de acadêmicos e documentos de domínio público que abordam a criação do título de especialista em Psicologia Social. Tratamos todos esses materiais não apenas como “textos”, mas como materialidades que produzem efeitos, se conectam, se articulam com outros textos, com outras práticas. Ou seja, os tratamos como materialidades que produzem certas realidades da Psicologia Social. Buscamos, com isso, chamar a atenção para a possibilidade de ordenar e de coordenar a realidade de diferentes modos. De reconhecer que em uma disciplina cabem múltiplos e diversos actantes. De fazer uma Psicologia Social que busca conexões complexas que articulam humanos a não humanos e que performam múltiplas realidades. Palavras-chave: Psicologia Social; Multiplicidade; Teoria Ator-Rede. ABSTRACT Social Psychology has many definitions, theories and objects of study. In this dissertation, based on Actor-Network Theory, we argue that these are not different aspects or attributes of a single object, but elements that help to perform different versions of this object. They are, therefore, elements that make Social Psychologies different, although related to each other. They produce a multiple Social Psychology, which is more than one and, at the same time, less than many. To build this argument, we read and reread textbooks on Social Psychology that were available in two reference libraries. After an initial approach to those books, we observed that many of them talk about the reference crisis that assailed Social Psychology in the 1970s. Therefore, we decided to look for materials to help us tell these histories better. As a next step, we selected two master and two doctoral dissertations in the area, since this kind of work tends to describe the procedures used with more details. Finally, we looked up academic texts and public domain documents related to the creation of the Specialist Title in Social Psychology. We treated all those materials not only as “texts”, but as materialities that produce effects, relate to each other, articulate with other texts, with other practices. That is, we treated them as materialities that produce certain Social Psychology realities. In doing so, we strived to call attention to the possibility of ordinating and coordinating reality in different ways, of recognizing that there are multiple and diverse actants in a discipline and of making a Social Psychology that searches for complex connections that articulate humans and non- humans and perform multiple realities. Key words: Social Psychology; Multiplicity; Actor-Network Theory. SUMÁRIO INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 9 CAPÍTULO 1 - PRESSUPOSTOS ONTOLÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS.......... 21 1.1 O princípio de simetria generalizada............................................................................... 22 1.2 Heterogeneidade material................................................................................................. 24 1.3 Ator-Rede.......................................................................................................................... 26 1.4 Tradução........................................................................................................................... 28 1.5 Mediação...........................................................................................................................34 1.6 Sociologia das Associações e Sociologia do Social.......................................................... 37 CAPÍTULO 2 - A NOÇÃO DE MULTIPLICIDADE: DEFINIÇÃO E IMPLICAÇÕES.................................................................................................................... 45 2.1 Não perspectivismo........................................................................................................... 47 2.2 Fazer, performar e enact................................................................................................... 49 2.3 Modos de coordenação da multiplicidade: o exemplo da arteriosclerose...................... 55 2.4 Política Ontológica........................................................................................................... 59 CAPÍTULO 3 - A PSICOLOGIA SOCIAL É MAIS DO QUE UMA............................. 69 3. 1 A Psicologia Social na obra de Aroldo Rodrigues e Social na obra de Silvia Lane......................................................................................................................................... 70 3.2 A Psicologia Social na dissertação de Menegon.............................................................. 85 3.3 A Psicologia Social na tese de Mandelbaum.................................................................... 90 3.4 A Psicologia Social na tese de A. D. Santos..................................................................... 95 3.5 A Psicologia Social na dissertação de Miranda............................................................... 100 3.6 A Psicologia Social no concurso para especialista na área............................................. 103 CAPÍTULO 4 - A PSICOLOGIA SOCIAL É MENOS DO QUE MUITAS................... 109 4.1 Uso de uma definição singularizante................................................................................ 111 4.2 Distribuição....................................................................................................................... 114 4.3 Adição............................................................................................................................... 121 4.4Inclusão.............................................................................................................................. 122 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................... 129 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................ 137 FONTES DAS IMAGENS.................................................................................................... 155 ANEXOS................................................................................................................................ 157 9 INTRODUÇÃO No Brasil, a Psicologia Social é uma área do conhecimento que apresenta inúmeras definições, abordagens teóricas e objetos de estudo. Alguns autores a consideram uma subárea da Psicologia, outros acreditam que ela é a interseção da Psicologia com a Sociologia. Há ainda aqueles que afirmam que o adjetivo “social” não delimita uma subdivisão temática ou conceitual, mas enfatiza a importância do compromisso político que todo psicólogo deve ter. Uns baseiam-se nas leituras do Materialismo Histórico-Dialético para estruturar sua prática profissional. Outros preferem as leituras construcionistas ou ainda as da Teoria das Representações Sociais. Há psicólogos(as) sociais cognitivistas, behavioristas, psicanalistas, comunitários... O Conselho Federal de Psicologia - CFP (2003, p. 1), por exemplo, define Psicologia Social como a área da Psicologia que “[...] atua fundamentada na compreensão da dimensão subjetiva dos fenômenos sociais e coletivos, sob diferentes enfoques teóricos e metodológicos, com o objetivo de problematizar e propor ações no âmbito social.” Já para Cornelis van Stralen (2005), pesquisador e docente da área, esta não é uma subdivisão ou uma especialidade da Psicologia, mas sim o campo no qual se dá sua interseção com a Sociologia. A associação representativa da área 1 , por sua vez, sustenta que toda Psicologia é social, uma vez que parte do pressuposto de que ser Psicologia Social significa assumir o compromisso ético-sócio-político que todo(a) psicólogo(a) deve ter (ABRAPSO, 2002). Essa diversidade de objetos, teorias e práticas já foi abordada por muitos pesquisadores(as), de diferentes maneiras, em distintos momentos históricos. Alguns(as) apresentaram suas diferenças teóricas e epistemológicas, outros(as) enfocaram as transformações que elas sofreram no decorrer de sua história, discutiram suas práticas de formação, ou falaram das redes sociais que as desenvolveram. Arthur Ramos seguiu o primeiro desses caminhos: no seu livro “Introdução à Psicologia Social” (1936/2003) 2 , o autor discorre sobre diferentes teorias e objetos que formam essa disciplina. Para ele, 1 Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). 2 A primeira edição deste livro foi publicada em 1936, período em que, no Brasil, começavam a ser ministrados os primeiros cursos e publicadas as primeiras obras de e sobre Psicologia Social – o primeiro curso foi ministrado por Raul Briquet, em 1933, na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo e o segundo foi ministrado dois anos mais tarde, por Arthur Ramos, na Escola de Economia e Direito da extinta Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro, sendo que, deste último curso, resultou seu livro “Introdução à Psicologia Social” (BOMFIM, 2004). Nesses primeiros anos, “[...] a psicologia social estava inserida nos estudos de direito, de economia, de educação e de medicina e se beneficiava igualmente de contribuições biológicas, psicanalíticas, 10 a dificuldade de definição da psicologia social reside na imprecisão dos seus objetivos. Sendo uma disciplina relativamente recente, não há acordo, no campo de seus cultores, no sentido de delimitar-lhe os objetivos nítidos e a extensão de suas aplicações. Enquanto que, para uns, a psicologia social se aproxima da psicologia (McDougall), para outros, o seu objeto de estudo quase se confunde com o da sociologia (Ellwood, Ross). [...] De um lado, no pólo da psicologia, tudo o que não pertencesse à psicologia fisiológica seria psicologia social: o homem é um animal gregário e todas as suas funções psíquicas só se compreenderiam no jogo das suas reações sociais [...] De outro lado, todos os fatos sociais, tendo o homem como centro, reconheceriam uma base psicológica, e toda a sociologia se converteria numa psicologia social. (RAMOS, 2003, p. 27). De acordo com Ramos (2003), a Psicologia Social mais “psicológica” – tal como aquela proposta por McDougall – preocupar-se-ia, sobretudo, em estudar o processo de moralização dos indivíduos; ao passo que a vertente mais “sociológica” de Ross buscaria identificar os fenômenos sociais que possibilitam uniformidades de sentimentos, crenças e volições 3 . Já para Ellwood, a Psicologia Social seria o estudo dos modos em que grupos e indivíduos influenciam-se mutuamente, incluindo nesses estudos não somente aspectos sociais da consciência individual, mas também os aspectos mentais da associação. “A psicologia social torna-se aqui uma parte da sociologia; será uma „sociologia psicológica‟ [...]. Os problemas da psicologia serão [...] os mesmos da sociologia; a psicologia social estudará simplesmente o lugar dos fatores psíquicos nesses problemas.” (RAMOS, 2003, p. 28). comportamentais, sociológicas e antropológicas.” (SÁ, 2007, p. 8). Como era um campo ainda pouco conhecido, o objetivo de seus difusores era, sobretudo,apresentar uma visão generalista e panorâmica dessa “nova” área do conhecimento (BOMFIM, 2004). 3 Aqui é importante ressaltarmos que Ramos (2003) faz referência, sobretudo, a autores norte-americanos da primeira metade do Século XX. No entanto, ele reconhece que a Psicologia Social tem raízes muito anteriores: ela nasceu “[...] com os filósofos gregos, nas teorias dos sofistas, e mais especialmente na República de Platão e na Política de Aristóteles. [...] Mas foi na metade do século XVIII até começos do século XIX, que uma plêiade de economistas políticos, moralistas, juristas e criminólogos começou a conceder uma grande importância ao fenômeno da interação mental dos homens” (p. 30, grifos do autor). De acordo com ele, participaram desse processo autores como Bain, Lazarus e Stemthal, Spencer, Darwin e Bagehot, Sighele, Rossi e Le Bon; mas foi o sociólogo francês Gabriel Tarde “[...] o verdadeiro iniciador da psicologia social, tal como é considerada hoje. [...] A obra de Tarde influenciou toda uma escola de sociólogos e filósofos norte-americanos, especialmente a Edward A. Ross e J. Mark Baldwin. Toda uma escola norte-americana de psicologia social concedeu á imitação e à sugestão um papel preponderante no estudo dos fenômenos psicossociais.” (p. 32, 33). Diversos autores posteriores a Ramos também consideram que a Psicologia Social moderna é um fenômeno americano. Gordon Allport (1954, p. 3, 4), por exemplo, apresenta essa disciplina dizendo que “embora as raízes da psicologia social possam ser encontradas no solo intelectual de toda a tradição ocidental, seu atual florescimento é reconhecido como sendo um fenômeno caracteristicamente americano”. Já Lindzey (apud FARR, 2000) e Lindzey e Aronson (apud FARR, 2000) sustentam que a Psicologia Social possui um “longo passado” – que faz parte de uma tradição de pensamento ocidental, principalmente europeia – e uma “curta história”, que começou quando ela se tornou uma ciência experimental, sobretudo nos Estados Unidos. De acordo com Robert Farr (2000), essa distinção está permeada por uma filosofia de ciência específica – o Positivismo. Além disso, ela acarreta em narrativas bastantes parciais sobre a história da Psicologia Social, uma vez que tende a privilegiar apenas as formas mais “psicológicas” da disciplina. 11 Segundo Ramos (2003), F. H. Allport defende outra definição de Psicologia Social. Para ele, esta não é uma subárea da Sociologia, mas sim uma parte da Psicologia do Indivíduo – ela só não coincide totalmente com esta última pois estuda o comportamento humano (individual) em relação com a ambiência social. Já Kimball Young sustenta que o principal objeto de estudo dessa área do conhecimento é a personalidade, ou, mais precisamente, o desenvolvimento da personalidade em relação à ambiência social. Além de apresentar algumas definições e objetos de estudos, no seu livro introdutório, Ramos (2003) faz referência a uma “Psicologia Social Instintivista” e a uma “Psicologia Social dos Desejos”, a introspeccionistas e a experimentalistas, a behavioristas e a psicanalistas, a subjetivistas e a objetivistas, a estruturalistas e a personalistas, ao método explicativo-causal e ao método compreensivo-teleológico. Todas essas correntes teórico- metodológicas parecem determinar, de uma maneira ou de outra, o que a Psicologia Social é. Quase sete décadas depois da publicação do manual de Ramos (2003), Rosane Neves da Silva publicou o livro “a Invenção da Psicologia Social” (2005) 4 , no qual utiliza uma estratégia bastante diferente para apresentar essa disciplina. Nesta obra, a autora não buscou encontrar uma (ou várias) resposta(s) satisfatória(s) à pergunta “o que é Psicologia Social?”, mas discutir o problema que engendra tal questão. Partindo da hipótese de que o social é menos um campo de aplicação da Psicologia moderna do que a condição de possibilidade para seu surgimento, a autora buscou entender “[...] como este campo de conhecimento se articula, reforçando a própria dicotomia indivíduo x sociedade e anunciando aquilo que, numa perspectiva foucaultiana, marca a passagem das sociedades disciplinares para as sociedades de controle.” (p. 10). A despeito de falar em transformações que ocorrem com o passar do tempo, o objetivo da autora não era reconstruir a história da Psicologia Social, mas sim [...] tornar explícito o movimento que anima o desenvolvimento de diferentes teorizações do campo psi em relação ao social e, ao mesmo tempo, exprimir uma certa problemática inerente à própria constituição dos objetos em questão, ou seja, à constituição das massas, da família e do grupo como objetos de conhecimento. Trata-se principalmente de situar o 4 Este livro é resultado da tese de doutorado da autora, intitulada “Cartografias do Social: estratégias de produção do conhecimento”, defendida em 2001 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob orientação da Profa. Dra. Margareth Schäffer. Diferentemente da obra de Ramos (2003), esse trabalho foi realizado em um momento histórico em que a Psicologia Social já estava bastante difundida e era ensinada em todos os cursos de graduação em Psicologia do país. De acordo com a autora, muitas coisas já haviam sido ditas sobre essa área do conhecimento, no entanto, pouca reflexão havia sido proposta acerca do adjetivo “social” que a qualificava. A fim de tentar suprir essa lacuna, propôs-se a problematizar (e a desnaturalizar) essa noção: ao invés de tomar o social como um fato natural intrínseco ao modo de existência da vida humana, ela buscou pensá-lo como “[...] uma multiplicidade necessariamente construída a partir de uma relação de forças num campo historicamente dado.” (SILVA, 2004, p. 13). 12 surgimento de um determinado discurso da psicologia em relação ao social, mostrando como ela passa a problematizar a relação indivíduo x sociedade tomando o próprio indivíduo como matriz para pensar o social. Procuramos assim entender o modo pelo qual o social é objetivado pela psicologia em um determinado momento. (SILVA, 2005, p. 10, 11, grifo da autora). Ainda que não partam da construção discursiva que sugere a priorização da proposta genealógica de Foucault, diversos(as) autores(as) – como Silvia Lane (2007a) 5 , Jefferson Bernardes (2001) 6 , Ana Bock, Odair Furtado e Maria de Lourdes Teixeira (2003) 7 – também falam das transformações que essa área do conhecimento sofreu no decorrer de sua (curta) história. No entanto, o foco deles(as) é outro: eles(as) não falam dos diferentes discursos sobre o social, mas das diferenças epistemológicas, metodológicas e, sobretudo, éticas que marcaram dois momentos da história da Psicologia Social: um anterior e outro posterior à crise de referência que assolou essa área do conhecimento nas décadas de 1960 e 1970. Como veremos no capítulo 3, o primeiro fundamenta-se em princípios positivistas e tem como principais referências autores norte-americanos. O segundo, por sua vez, critica o biologicismo e o individualismo da Psicologia e propõe uma ciência comprometida com a transformação social. Já Mary Jane e Peter Spink (2007, p. 565) 8 nos chamam a atenção para o fato de que um mesmo momento histórico pode constituir uma arena de diversidade: as observações de Peter Lunt (2003) “[...] sobre a variedade de „histórias‟ da psicologia social que se organizam em volta de eixos diferentes servem de alerta para a possibilidade que essas diferentes „histórias‟ têm, como função principal, o apoio a atualidades também diferentes.” Para falar das “múltiplas versões de atualidades” (sic.) da Psicologia Social, os autores buscam, 5 O texto citado é um capítulo do livro “Psicologia Social: o homem em movimento”, publicado pela primeira vez em 1984 com o objetivo de oferecer um “conhecimentoalternativo” ao modelo norte-americano de Psicologia Social, que até então embasava a maioria dos textos disponíveis sobre essa área do conhecimento. Além de buscar suprir essa lacuna na literatura acadêmica, esta obra visava contribuir com o fortalecimento de uma Psicologia voltada para os problemas concretos da realidade brasileira, bem como com a formação de profissionais que atuassem como agentes de transformação social (LANE, 2007a, 2007b). 6 O texto de Bernardes (2001) também discorre sobre a história dessa “nova” Psicologia Social. Ele foi publicado pela primeira vez em 1998, no livro-texto “Psicologia Social Contemporânea” – livro este pensado e produzido por membros da ABRAPSO/SUL a fim de apresentar uma síntese “[...] das discussões temáticas que podem configurar o campo da Psicologia Social Crítica.” (STREY et al., 2001, p. 9). 7 Publicado pela primeira vez em 1988, o texto escrito pelos autores para apresentar a Psicologia Social faz parte de um livro didático. Dirigido a um público jovem, este livro busca introduzir as diferentes abordagens teóricas, objetos de estudos e áreas de atuação da Psicologia. 8 Este texto foi publicado pela primeira vez em 2005, em um livro sobre História da Psicologia. Segundo seus organizadores, esse livro foi pensado para servir de apoio a professores de graduação e busca apresentar uma visão da História da Psicologia que, diferentemente daquela encontrada na literatura mais conhecida no Brasil, não se restringe a que ocorreu na Europa e nos Estados Unidos: a esta “[...] se acrescenta, sempre, as contingências do saber psicológico em terras brasileiras.” (JACÓ-VILELA; FERREIRA; PORTUGAL, 2007, p. 13). 13 inicialmente, entender como diferentes livros de texto recentes definem essa disciplina. Após ler os índices, introduções e prefácios desses materiais, concluem que há alguns pontos de intersecção entre essas diferentes “atualidades” que permitem identificá-las como psicologias sociais; mas há diferenças significativas. De um lado, encontramos uma psicologia social do biológico, do intra-individual, do interindividual e do grupo; no meio, uma psicologia social da subjetividade, da linguagem, das representações sociais, dos grupos e dos processos políticos; e, de outro lado, uma psicologia social centrada na interação social, na reprodução, na mudança e nos movimentos coletivos. (SPINK, M. J.; SPINK, P., 2007, p. 569). E, então, se perguntam: “se todos eles são textos recentes sobre a psicologia social, por que são tão diferentes?” Para responder a essa segunda questão, recorrem a livros de texto “clássicos” – tais como os de Floyd Allport (1924/1994); Henri Tajfel e Colin Fraser (1978); Ignacio Martín-Baró (1983) e Silvia Lane e Wanderley Codo (1984/2007) – e nos contam como eram as “atualidades” de ontem. Em sua dissertação de mestrado, Robson da Cruz (2008) 9 também abordou diferentes Psicologias Sociais a partir de uma perspectiva histórica, mas o fez seguindo outros caminhos. Seu objetivo era “[...] traçar possíveis relações entre a produção de conhecimento da disciplina e as questões sociológicas que envolvem o desenvolvimento de uma comunidade científica.” (p.15). Para isso, analisou os artigos publicados em um dos principais periódicos brasileiros da área – a revista “Psicologia & Sociedade” – no período de 1986 a 2007. As questões que nortearam essa análise foram: “quais os centros e núcleos de desenvolvimento de Psicologia Social no Brasil?”, “qual o perfil dos autores?”, “quais as temáticas dos trabalhos?”, “quais as características metodológicas das pesquisas publicadas?” e “qual a relação entre a produção de conhecimento e o contexto de produção?”. Ao buscar respostas para essas questões, Cruz (2008) acabou percorrendo os caminhos sugeridos por várias disciplinas científicas: seguiu tanto os passos dos historiadores – já que analisou textos e eventos do passado –, quanto dos sociólogos da ciência e dos cientistas da informação – uma vez que visou encontrar possíveis relações entre “[...] a produção de conhecimento e as questões sociológicas que envolvem o desenvolvimento de uma comunidade científica.” (p. 15), além de compreender “[...] como o processo de informação e comunicação do conhecimento estabelece ligações com a formação e o desenvolvimento de um campo do saber.” (p. 15). 9 Esse trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Cornelis Johannes van Stralen e defendido na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 14 A tese de doutorado de Ligia de Souza (2005) 10 , por sua vez, não aborda a história da Psicologia Social brasileira, mas suas práticas de ensino e as representações sociais que circulam a seu respeito entre alunos de graduação em Psicologia. Para isso, a pesquisadora analisou currículos, programas e ementas de disciplinas voltadas para essa área e aplicou questionários em docentes e discentes. Mais especificamente, ela buscou [...] através da aplicação de um questionário semi-estruturado; comparar a organização das disciplinas Psicologia Social nas grades curriculares de diversas universidades brasileiras; analisar os programas das diversas disciplinas Psicologia Social presentes nas grades curriculares de diversas universidades brasileiras, com o objetivo de descobrir peculiaridades neles presentes; comparar as representações sociais da Psicologia Social, apresentadas por alunos do curso de psicologia de ingressantes e formandos, comparando as representações sociais da Psicologia Social de estudantes pertencentes a uma universidade privada e uma universidade pública e, finalmente, levantar e analisar a bibliografia das disciplinas Psicologia Social em programas e nos questionários. (SOUZA, 2005, p. 2). Sérgio Ozella também estudou a formação em Psicologia Social. Em sua tese de doutorado (1991) 11 , analisou documentos enviados por escolas de Psicologia de todo o país e entrevistou 94 professores de Psicologia Social. A partir desses materiais, o autor categorizou os programas da disciplina em modelos que iam do “tradicionalista” ao “inovador”. Além disso, discutiu “[...] a relação entre o verbal e o comportamental, o pensar e o agir do professor, definindo em termos de Postura teórica crítica/não crítica e Ação concreta participante/não participante. Finalmente, [fez] uma análise da relação Consciência-Atividade do professor.” (p. IV). Após defender sua tese de doutorado, Ozella (1996) iniciou outra pesquisa sobre o tema, atualizando os dados que já havia produzido e ampliando o universo de estudo para toda a América Latina. No entanto, devido à dificuldade de fazer entrevistas com docentes de outros países, nessa pesquisa, o autor trabalhou apenas com documentos. Nesses materiais, buscou informações sobre os cursos de Psicologia (suas localizações, dependências 10 Esse trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Edson Alves de Souza Filho e defendido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É importante ressaltarmos que o período de sua realização foi marcado por intensos debates acerca da formação em Psicologia e pela mobilização de docentes e profissionais de todo o país para elaborar propostas que servissem de base para as novas diretrizes curriculares – aprovadas em 2004, pelo Conselho Nacional de Educação (BRASIL, 2004). 11 Esse trabalho, que contou com a orientação da Profa. Dra. Maria do Carmo Guedes, começou a ser realizado em 1981 e foi defendido dez anos mais tarde, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Diferentemente da pesquisa de Souza (2005), a tese de Ozella abordou um período em que a formação em Psicologia ainda estava bastante marcada pela “crise de referência”: ao mesmo tempo em que a maioria dos manuais e livros disponíveis falava de uma Psicologia Social bastantepróxima à corrente norte-americana, em algumas universidades, começavam a se fortalecer grupos que criticavam essa corrente e propunham novas maneiras de produzir e aplicar conhecimento. 15 administrativas, datas de criação, objetivos, número de vagas e número de professores); bem como sobre as disciplinas voltadas à Psicologia Social (períodos em que são oferecidas, professores, objetivos, conteúdos, obras e autores mais utilizados). Esses dados permitiram que o pesquisador fizesse uma comparação entre a situação do Brasil em 1983 e 1993, e entre Brasil e América Latina em 1993. O estudo realizado por Elizabeth de Melo Bomfim (1994) também aborda várias maneiras de pensar a Psicologia Social e busca contribuir para sua formação. No entanto, diferentemente de Ozella (1991, 1996), a pesquisadora não investigou práticas de ensino, mas as atividades realizadas pelos profissionais da área. Para isso, ela realizou dez entrevistas e aplicou quinze questionários em psicólogos(as) sociais, sendo que os dados obtidos por meio desses procedimentos foram submetidos a uma análise de conteúdo. Esse estudo deu continuidade a uma investigação realizada anteriormente por Bomfim e colaboradores (1992), na qual “[...] foi apresentado um quadro da produção teórico-metodológica e vários relatos de práticas desenvolvidas pelos psicólogos sociais no Brasil.” (BOMFIM, 1994, p. 201). Essas pesquisas exemplificam alguns dos inúmeros caminhos que poderíamos percorrer para falar da Psicologia Social no Brasil. No entanto, nesta tese, optamos por seguir outro rumo: não fizemos uma historiografia, nem analisamos práticas de ensino ou de intervenção profissional. Tampouco nos propusemos a fazer uma cartografia dessa disciplina – até mesmo porque falar de todas as teorias, instituições, políticas, campos profissionais e objetos de estudos que a constituem seria impossível em uma pesquisa de doutorado. Faltar- nos-iam tempo, páginas e conhecimento para fazê-lo. Além disso, seria demasiadamente complicado; e o que queremos não é complicar, mas sim complexificar essa disciplina 12 . Ou seja, queremos multiplicar suas realidades, queremos contar histórias sobre alguns lugares e situações em que a Psicologia é Social. É importante ressaltarmos que “ser” Psicologia Social adquire, nesta tese, um sentido bastante preciso. Seguindo a proposta de Annemarie Mol (2002), não usamos esse verbo para nos referirmos a um objeto reificado ou a uma realidade que está dada a priori. O “ser”, do modo como aqui o compreendemos, é situado. Ele não diz o que a Psicologia Social é naturalmente, em qualquer lugar, em qualquer situação. “Ele não estabelece o que está dentro e o que está fora dela, pois algo nunca „está‟ sozinho. Estar é estar relacionado. [...] O “ser” 12 Segundo Latour (1994a; 2001), apesar de ter a mesma etimologia, as palavras complexo e complicado possuem significados distintos, que nos permitem diferenciar dois tipos de realidades. O adjetivo complexo refere-se à irrupção simultânea de múltiplas variáveis que não podem ser tratadas separadamente; enquanto que complicado se refere à presença de diferentes variáveis que podem ser tratadas individualmente e que podem ser somadas e transformadas em uma “verdade” – ou, para usar o vocabulário do autor, que podem ser fechadas em uma caixa preta. 16 praxiológico não é universal, é local. Ele necessita de uma especificação espacial.” (p. 54, tradução nossa, grifo da autora). Nesse gênero ontológico, uma afirmação sobre o que a Psicologia Social é deve ser complementada por outra que indica onde isso ocorre. Sendo assim, nesta tese, não falamos da Psicologia Social brasileira, mas falamos de alguns lugares em que, no Brasil, a Psicologia é Social. Falamos, por exemplo, de trabalhos acadêmicos, documentos e livros introdutórios. Além disso, para compreendermos o que o ser faz, não podemos desconsiderar as praticidades envolvidas nos processos que performam a realidade (MOL, 2002). Desse modo, os caminhos metodológicos que percorremos foram guiados por algumas das práticas que performam a Psicologia Social brasileira. Aqui é importante explicitarmos que essas práticas não incluem somente as intervenções psicossociais, trabalhos de campo, entrevistas ou experimentos. Mas, seguindo a proposta de Isabelle Stengers (2006 apud MORAES; ARENDT, 2010, p. 60), nesta tese, a prática designa as ciências „se fazendo‟, ela engloba o ajuste de instrumentos, a escritura de artigos, as relações de cada participante com os colegas, mas também com tudo isto que e todos aqueles que contam ou poderiam contar em sua paisagem. Nada está pronto. Tudo está por negociar, por ajustar, alinhar e o termo prática designa a maneira pela qual tais negociações, ajustes, alinhamentos constringem e especificam as atividades individuais sem por isso determiná-las. E como, em diferentes lugares, práticas distintas tendem a acontecer, a Psicologia Social tende a variar de um lugar para o outro: aqui, ela é a intersecção da Psicologia com a Sociologia; ali, é um mecanismo de transformação da realidade social; acolá, é o estudo científico dos processos de influência grupal. Nesta tese, argumentaremos que esses não são diferentes aspectos ou atributos de um mesmo objeto, mas elementos que ajudam a performar diferentes versões desse objeto. São, portanto, elementos que fazem Psicologias Sociais diferentes, embora relacionadas entre si. Que fazem uma Psicologia Social múltipla, ou seja, que é mais do que uma ao mesmo tempo em que é menos do que muitas. Para sustentar esse argumento, primeiramente, apresentaremos os conceitos e ideias que direcionaram nosso percurso. Para isso, no primeiro capítulo, abordaremos, ainda que de forma breve, algumas das ideias centrais da Teoria Ator-Rede (TAR), tais como o princípio da simetria generalizada e as noções de tradução, mediação, ator-rede e associação. No capítulo 2, discutiremos a noção de multiplicidade proposta por Mol (1999, 2002), bem como suas implicações metodológicas, epistemológicas e ontológicas. Mais especificamente, 17 sustentaremos que essa noção não é sinônima de “diversidade” – afinal, como observa a autora, a existência de múltiplas versões de um objeto é apenas um de seus aspectos: para ser múltiplo, o objeto tem de ser, ao mesmo tempo, igual e diferente, diverso e singular. Nos capítulos subsequentes, nosso foco será a multiplicidade da Psicologia Social brasileira: no capítulo 3, sustentaremos a primeira parte de nosso argumento e falaremos de diversidade. Ou seja, falaremos de alguns lugares e situações em que a Psicologia Social é mais do que uma. No capítulo seguinte, dedicar-nos-emos à segunda parte. Nele, falaremos de singularidade ao abordarmos as práticas que fazem com que a Psicologia Social seja, também, menos do que muitas. Para elaborar esses dois últimos capítulos, percorremos diferentes caminhos, usamos diferentes materiais, nos referimos a diferentes pessoas. Em nossas primeiras “idas a campo”, visitamos duas bibliotecas de referência da área – a Nadir Gouvêa Kfouri, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e a Dante Moreira Leite, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Ao digitar o descritor “Psicologia Social” nos bancos de dados dessas bibliotecas, nos deparamos com duas imensas listas de materiais e, como seria inviável lermos e analisarmos todos eles, optamos por estabelecer alguns critérios de seleção: dentre todos os livros e manuais disponíveis, selecionamos apenas aqueles que haviam sido publicados entre 1990 e 2011 13 e que se caracterizavam como livros-texto ou manuais introdutórios de Psicologia Social 14 . Não selecionamos, portanto, obras antigas ou que abordavam somente uma subárea, conceito ou temática específica. Este critérioé, em certa medida, limitador, uma vez que obras que falam, por exemplo, de Psicologia Social Comunitária, de Representações Sociais ou de Psicologia Social da Saúde também fazem parte dessa disciplina. No entanto, optamos por utilizá-lo porque seria impossível, no espaço de tempo de uma tese de doutorado, seguir os atores descritos em todos os livros que possuem como descritor a palavra “Psicologia Social”. Além disso, 13 Algumas das obras selecionadas foram inicialmente publicadas antes desse período, mas como foram reeditadas posteriormente, as incluímos no corpus desta tese. A primeira edição do livro “Introdução à Psicologia Social”, de Arthur Ramos, por exemplo, data de 1936, mas em 2003, em comemoração ao centenário do nascimento do autor, ela foi reeditada. 14 Para selecionar aqueles que obedeciam a esse critério, lemos os prefácios, apresentações e sumários dos livros que tinham a expressão “Psicologia Social” no título. Consideramos esta etapa importante pois, muitas vezes, o título dava a impressão de se referir a um manual introdutório quando, na verdade, tratava-se da publicação de conferências proferidas em um evento científico – como no caso do livro “Psicologia Social: temas em debate”, que apresentava as conferências e mesas-redondas do V Encontro Regional de Psicologia Social da ABRAPSO- Espírito Santo – ou ainda de trabalhos realizados a partir de uma teoria específica – como, por exemplo, o livro “Psicologia Social: indivíduo e cultura”, organizado por Faria e Brandão (2004, p. 10), e que visa possibilitar “[...] uma leitura que vai da apresentação e discussão de conceitos abrangentes da Teoria Crítica da Sociedade a discussões mais específicas de temas, objetos e práticas psicológicas [...]”. 18 “diferentemente dos livros monotemáticos, o livro-texto é uma tentativa de organizar a disciplina; de responder à pergunta „o que é a disciplina hoje‟, seu foco, suas áreas de estudo, suas questões principais.” (SPINK, M. J.; SPINK, P. 2007, p. 566). Ou seja, esses manuais mais “gerais” tendem a falar de diversas correntes teóricas, áreas de atuação e objetos de estudo ao mesmo tempo em que tratam essa disciplina como algo singular. São, portanto, um bom “lugar” para acompanharmos alguns dos modos de coordenação de diferentes versões da Psicologia Social brasileira 15 . Outro critério que utilizamos para selecionar os livros e manuais que compuseram o corpus desta tese foi a nacionalidade dos(as) autores(as). Dentre todas as obras introdutórias, selecionamos somente aquelas que eram de autoria de pesquisadores(as) brasileiros(as) ou de estrangeiros(as) que atuam profissionalmente no Brasil. Para conhecer suas nacionalidades e/ou filiação institucional consultamos, primeiramente, o banco de dados da Plataforma Lattes (http://lattes.cnpq.br/), sendo que, nos casos em que os(as) autores(as) não estavam aí cadastrados, buscamos dados sobre sua atuação profissional por meio do motor de buscas Google (www.google.com.br). É importante ressaltarmos que, ao estabelecermos esse critério, não estamos propondo que livros de autores(as) estrangeiros(as) não contribuam para performar a Psicologia Social no Brasil. Afinal, vários deles estão disponíveis nas bibliotecas de nossas universidades, são citados em nossas pesquisas e estudados em nossas disciplinas – no curso de graduação em Psicologia da USP, por exemplo, um dos textos que compõem a bibliografia básica da disciplina Psicologia Social I é o manual do polonês emigrado nos Estados Unidos Solomon Asch (1952/1997) 16 . No entanto, como optamos por não fazer uma etnografia, não acompanhamos as práticas que esses textos e autores ensejam na realidade brasileira. Os livros de autoria de pesquisadores “nacionais”, por sua vez, em geral, falam de pesquisas e experiências profissionais realizadas no Brasil. Assim, independentemente do uso que se faz 15 Consultamos, também, o SciElo – Scientific Electronic Library Online (http://www.scielo.br), uma vez que, no Brasil, esta é uma das bases de dados virtuais mais utilizadas para a consulta de textos acadêmicos. No entanto, não encontramos nenhum artigo que obedecesse aos nossos critérios de busca. No período da consulta (dezembro de 2010), estavam disponíveis 118 textos relacionados à Psicologia Social, mas nenhum deles buscava introduzir essa disciplina. A maioria dos artigos escritos por autores brasileiros relatava pesquisas da área (como, por exemplo, SATO, 2007; SILVA, QUEIRÓS, 2006; MATTOS, FERREIRA, 2004); outros discutiam um conceito ou abordagem teórica específica (como PAIVA, 2000; CROCHÍK, 2008; ARENDT, 1998); uma subdivisão da Psicologia Social (como FREITAS, 1998; ARENDT, 1997; TRAVERSO-YEPEZ, 2001) ou ainda aspectos relacionados à história, formação profissional e ao trabalho de campo na área (como DIHL, MARASCHIN, TITTONI, 2006; NARITA, 2006; SOUZA, SOUZA FILHO, 2009; SILVA, 2004). 16 O programa e a bibliografia básica da disciplina estão disponíveis em: <http://sistemas2.usp.br/ jupiterweb/obter Disciplina?sgldis= PST0201&nomdis=>. Acesso em 10 dez. 2010. http://lattes.cnpq.br/ http://www.scielo.br/ http://sistemas2.usp.br/%20jupiterweb/obter%20Disciplina?sgldis=%20PST0201&nomdis http://sistemas2.usp.br/%20jupiterweb/obter%20Disciplina?sgldis=%20PST0201&nomdis 19 deles, esses materiais falam de algumas das Psicologias Sociais que são feitas em nosso país 17 . Após uma leitura inicial desses livros, observamos que vários deles abordavam a crise de referência que assolou a Psicologia Social na década de 1970. Ao descrever esse momento histórico, enfatizavam as controvérsias e discrepâncias entre a proposta de Aroldo Rodrigues e a de Silvia Lane. Desse modo, decidimos buscar materiais que nos ajudassem a contar melhor essa história. Para isso, consultamos os bancos de dados das bibliotecas da PUC-SP, do IP-USP e do SciElo (www.scielo.br), usando nesta busca as seguintes palavras-chave: “Silvia Lane”, “Aroldo Rodrigues” e “Crise da Psicologia Social”. Em um terceiro momento, percorremos os corredores das bibliotecas onde estavam dispostas as teses e dissertações defendidas nos programas de pós-graduação em Psicologia Social das duas universidades. Após lermos os resumos de todos os trabalhos concluídos entre 1990 e 2011 e identificarmos seus objetos de estudo, linhas teóricas e estratégias metodológicas, selecionamos duas pesquisas (uma de cada universidade) que faziam Psicologias Sociais bastante diferentes e que “transitavam” por áreas do conhecimento distintas. É importante ressaltarmos que esses trabalhos não representam a totalidade das pesquisas realizadas e defendidas nos dois programas de pós-graduação. Eles são apenas exemplos de como a Psicologia Social pode ser diferentemente performada. A leitura da tese e da dissertação selecionadas nos pareceu tão interessante que resolvemos selecionar mais dois trabalhos. No entanto, desta vez não recorremos às bibliotecas da PUC-SP e da USP, mas ao site da associação representativa da área, no qual buscamos as referências dos dois trabalhos premiados no “II Concurso de Teses, Dissertações e Artigos da ABRAPSO”. Optamos por descrever apenas quatro trabalhos (e não cinco, dez, vinte ou todos), pois esses nos pareceram suficientes para sustentar o argumento central de nossa pesquisa. Afinal, como dissemos anteriormente, nosso objetivo não é fazer uma cartografia da Psicologia Social brasileira, mas falar de alguns lugares em que, no Brasil, a Psicologia é Social. Contar histórias sobre teses e dissertações da área nos pareceu um interessante caminho para falar da multiplicidade da Psicologia Social no Brasil pois, de um modo geral, esses materiais apresentam de forma detalhada os procedimentos metodológicos utilizados. Afinal, ao menos em teoria,as sessões de materiais e métodos de textos científicos “[...] especificam tanto quanto possível as práticas de investigação. Elas evidenciam [instantiate] o 17 Os anexos 1 e 2 apresentam as obras que obedeceram aos nossos critérios de seleção. 20 reconhecimento de que as práticas que forçam um objeto a falar são cruciais para o que pode ser dito sobre ele.” (MOL, 2002, p. 158, tradução nossa). Podem ser, portanto, uma fonte tão interessante quanto observações etnográficas para fazer uma praxiografia (MOL, 2002) 18 . Outro “lugar” que visitamos para falar da multiplicidade da Psicologia Social brasileira foi o debate suscitado pela criação do título de especialista na área. Como veremos no capítulo 3, por meio da Resolução 05/03, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) reconheceu a Psicologia Social como uma especialidade da Psicologia e estabeleceu as normas e os procedimentos para a concessão e o registro do título de especialista na área (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2003). Por um lado, tal medida representou uma tentativa de singularização da Psicologia Social, uma vez que propunha sua definição e delimitação. Por outro lado, ela suscitou um intenso debate sobre o que é a Psicologia Social, explicitando, com isso, a dificuldade de pensar essa área do conhecimento como algo singular. Para acompanhar os modos de coordenação dessa diversidade, bem como as controvérsias que caracterizaram esse debate, recorremos, sobretudo, a textos acadêmicos e a documentos de domínio público, tais como os editais e as provas do concurso que dão acesso a essa titulação e o encarte especial dedicado ao tema, publicado no número dezessete da Revista Psicologia & Sociedade. Buscamos, assim, compreender em que medida e como a Psicologia Social desses materiais é mais do que uma e menos do que muitas. É importante ressaltarmos que tratamos todos esses artigos, livros, documentos e trabalhos acadêmicos não apenas como “textos”, mas como materialidades que produzem efeitos, se conectam, se articulam com outros textos, com outras práticas. Ou seja, os tratamos como materialidades que produzem certas realidades da Psicologia Social (MORAES, 2010). Uma vez apresentado o caminho metodológico percorrido, apresentaremos, no capítulo seguinte, o referencial teórico que embasa esta tese. 18 Diferentemente da maioria dos pesquisadores da TAR, não utilizamos técnicas etnográficas tradicionais pois consideramos os autores desses trabalhos como seus próprios etnógrafos. Ou seja, os consideramos como atores capazes de descrever suas próprias práticas, de fazer suas próprias praxiografias (MOL, 2002). Afinal, segundo Latour (2008, p. 27, 28, tradução nossa), em um estudo da TAR, “a tarefa não é mais impor alguma ordem, limitar a variedade de entidades aceitáveis, ensinar aos atores o que são ou agregar certa reflexividade a sua prática cega. De acordo com uma premissa da TAR, é preciso „seguir os próprio atores‟, ou seja, tratar de colocar-se em dia com suas inovações [...] para aprender com elas no que se converteu a existência coletiva na mão de seus atores, que métodos foram adotados para fazer com que tudo se encaixasse, que descrições poderiam definir melhor as novas associações que se viram obrigados a fazer.” 21 CAPÍTULO 1 PRESSUPOSTOS ONTOLÓGICOS E EPISTEMOLÓGICOS 22 A Teoria Ator-Rede (TAR) é uma etiqueta utilizada para se referir a um conjunto de princípios metodológicos, epistemológicos e de trabalhos de campo que há mais de duas décadas vem questionando o pensamento social tradicional. Também conhecida como “Antropologia Simétrica”, “Sociologia das Associações” e “Sociologia da Tradução", essa “teoria” 19 surgiu a partir de discussões ensejadas no campo dos Estudos da Ciência e Tecnologia e hoje suas contribuições abarcam o problema da produção e estabilização da ordem social (TIRADO-SERRANO; DOMÈNECH-ARGEMÍ, 2005). Neste capítulo, não objetivamos apresentar detalhadamente toda a história e pressupostos da TAR, tarefa demasiada extensa para um capítulo “teórico”; objetivamos, apenas, apresentar alguns conceitos e princípios que participaram da elaboração deste trabalho. 1.1 O princípio de simetria generalizada Uma das principais características da TAR é a defesa do princípio de simetria generalizada instaurado pela Antropologia das Ciências. Segundo Latour (1994b), esse princípio foi proposto inicialmente por Michel Callon (1986) para enfatizar a importância de radicalizar o principio de simetria de David Bloor 20 (1976), que propunha que o erro e a verdade tivessem tratamentos semelhantes e fossem explicados com os mesmos termos. Em meados da década de 1970, Bloor (1976) publicou a obra Knowledge and Social Imagery, na qual apresentava seu Programa Forte para o desenvolvimento da Sociologia do Conhecimento. Esse programa era regido por quatro princípios centrais: 1) o princípio da causalidade, que propunha que as ciências sociais deveriam explicar o conhecimento científico do modo como as ciências naturais explicam a natureza: por meio da explicitação de causas e de um método científico; 2) o princípio da imparcialidade, que propunha que o analista social deveria explicar tanto a má ciência (dos erros, crenças etc.), quanto a ciência bem sucedida (da verdade); 3) o princípio de simetria, que afirmava que o conhecimento verdadeiro e o falso deveriam ser explicados pelas mesmas causas; e 4) o princípio de 19 Estamos colocando a palavra teoria entre aspas pois, segundo Latour (2005), a despeito de se chamar “Teoria Ator-Rede”, a TAR não constitui uma teoria propriamente dita. Afinal, propõe que são os atores que sabem o que fazem e “[...] nós temos de aprender com eles não somente o que eles fazem, mas como e por que o fazem. Somos nós, os cientistas sociais, que desconhecemos o que fazem, e não eles que necessitam de explanações sobre por que são involuntariamente manipulados por forças exteriores a eles e conhecidas somente pelo poderoso olhar e método dos cientistas sociais. [...] Longe de ser uma teoria do social ou, pior ainda, uma explicação do que faz a sociedade exercer pressão sobre os atores, ela sempre foi [...] um método bastante rudimentar [crude] de aprender com os atores, sem impor-lhes uma definição a priori de suas capacidades de construção do mundo.” (LATOUR, 2005, p. 19, 20, tradução nossa, grifos do autor). 20 Considerado um dos principais expoentes da Escola de Edimburgo. 23 reflexividade, que sugeria que o analista deveria aplicar em sua própria análise os mesmos métodos que utilizava para estudar o conhecimento científico. O Programa Forte de Bloor tinha como objetivo central contrapor-se à Escola Mertoniana – corrente que, na época, dominava o campo da Sociologia da Ciência. De acordo com Domènech e Tirado (1998, p.15, 16, tradução nossa), seguindo os passos de Merton [...], os sociólogos da ciência esmeram-se, durante os anos cinqüenta, sessenta e boa parte dos setenta, a explicar a organização da ciência como instituição social – valores, normas... – e em manifestar o papel adulterador que supostamente teria o social na produção de conhecimento. A ideia que subjaz a uma sociologia que possui tais tarefas não é outra que um convencimento cartesiano, sumamente enraizado na concepção moderna do conhecimento, de que o verdadeiro, o racional, não requer explicação; só o erro, o falso, o irracional necessitam de uma justificativa causal. [...] Ao considerar que a verdade surge diretamente dos fatos, não sobra espaço para conceber uma sociologia da verdade, só é possível conceber o que se chamou de sociologia do erro, ou seja, uma sociologia que toma como objeto de análise a ideologia, as falsascrenças e os preconceitos, mas nunca a verdade. A grande contribuição do Programa Forte de Bloor (1976) foi, justamente, propor uma Sociologia que desse conta de explicar tanto o erro quanto a verdade, tanto o conteúdo quanto a natureza do conhecimento científico. Nesse Programa, os conhecimentos falsos e os verdadeiros deveriam ser tratados da mesma forma e explicados pelas mesmas causas: os fenômenos sociais. Sendo assim, não bastava dizer que uma teoria é melhor que outra por ser mais verdadeira ou por ser mais bem comprovada pela empiria; era preciso falar das condições (argumentos, negociações etc.) que tornaram possível a existência de consenso sobre um conjunto de resultados ou sobre os conteúdos de uma experiência. No entanto, para Callon (1986), a despeito de tratar simetricamente o erro e a verdade, esse princípio continuava a sustentar uma assimetria, pois tratava de forma distinta a natureza e a sociedade. Afinal, considerava o domínio do social como um recurso explicativo, enquanto que a natureza, a ciência e a tecnologia eram o que deveria ser explicado. Em suas palavras, sabemos que os ingredientes das controvérsias são uma mistura de considerações sobre a natureza e sobre a sociedade. Por essa razão, propomos que o observador use um único repertório ao descrevê-las. O vocabulário escolhido para estas descrições e explicações fica a critério do observador. [...] Mas, dado o princípio da simetria generalizada, a regra que devemos seguir é não mudar de registro quando nos movemos dos aspectos técnicos do problema estudado aos sociais. (CALLON, 1986, p. 4, tradução nossa). 24 Afinal, se mudamos de registro, corremos o risco de adotarmos posturas ontológicas distintas, ou seja, corremos o risco de sermos construcionistas com a natureza e realistas com a sociedade, esquecendo-nos que de a sociedade também é um produto, um efeito, algo tão construído quanto a natureza (LAW, 1987). Além de propor a utilização de um mesmo repertório para se referir à natureza e à sociedade, a generalização do princípio de simetria sugere que todas as coisas e fenômenos sejam tratados sob os mesmos termos. Isso implica a utilização de um estilo de descrição que não se baseia em dualismos como verdadeiro-falso, humano-não humano, sujeito-objeto, micro-macro etc. No entanto, é importante ressaltarmos que problematizar essas dicotomias não significa dizer que não existem divisões entre materialidades e pessoalidades, entre o natural e o social ou entre verdade e falsidade; mas que essas divisões e distinções são efeitos, ou seja, são resultados de uma série de associações entre atores heterogêneos. 1.2 Heterogeneidade material Assim, ao assumir o princípio da simetria generalizada, os(as) autores(as) da TAR acabam problematizando também a concepção de realidade defendida pelas correntes tradicionais da Sociologia do Conhecimento. Diferentemente do que ocorre nestas últimas, na TAR, a “realidade” não é um fato externo, objetivo e sujeito à interpretação cultural da ciência. Pelo contrário, é algo construído e reconstruído ativamente. E para descrever como ocorre este processo de construção e reconstrução, é preciso focar na heterogeneidade material das redes de atores humanos e não humanos e descrevê-la a partir de uma ontologia relacional. Nas palavras de Law e Mol (1993/1994, p. 48, tradução nossa, grifos dos autores), as materialidades [...] não existem por si mesmas, mas são constituídas nas redes de que faz parte. Os objetos, as entidades, os atores, os actantes são (algo como) efeitos semióticos: os nós das redes são conjuntos de relações ou conjuntos de relações entre relações. Isso significa que os materiais são constituídos interativamente: podem servir para incrementar a estabilidade, mas não são reais, não existem além de suas interações. As máquinas, as pessoas, as instituições, o mundo material, a divindade, todas estas coisas são efeitos ou produtos. 21 21 Aqui, cabe observar que a semiótica performada pela TAR é diferente das correntes tradicionais, pois ela utiliza o insight semiótico do caráter relacional das entidades e o aplica a todos os materiais (e não simplesmente aos linguísticos) – por essa razão, Law (1999) afirma que a TAR faz uma “Semiótica da Materialidade”. 25 Desse modo, nessa “teoria”, só podemos falar do “real” ao nos referirmos a [...] uma multiplicidade de materiais heterogêneos conectados em forma de uma rede que tem múltiplas entradas, está sempre em movimento e aberta a novos elementos que podem se associar de forma inédita e inesperada. Todos os fenômenos são efeitos dessas redes que mesclam simetricamente pessoas e objetos, dados da natureza e dados da sociedade, oferecendo-lhes igual tratamento. (MELO, 2007, p. 170). Oferecer-lhes igual tratamento significa não estabelecer a priori o que é social, o que é natural ou o que é tecnológico. Significa não estabelecer uma hierarquia ou uma ordem de prevalência entre os atores de uma rede. Significa considerar que qualquer coisa – pessoa ou objeto – cuja incidência modifique um estado de coisas é um ator 22 (LATOUR, 2008). Desse modo, para os(as) autores(as) da TAR, os objetos também são capazes de incidir sobre ações 23 . A ação de batermos em um prego com um martelo, por exemplo, é diferente da de batermos com a palma da mão, assim como andarmos pela rua com roupas não é como andarmos sem elas. Entretanto, isso não significa que os objetos determinem a ação, afinal, não é o martelo que impõe que devemos golpear o prego. Segundo Latour (2008), existem muitos matizes metafísicos entre a plena causalidade e a mera inexistência: além de “determinar”, ou de “servir como pano de fundo da ação humana”, as coisas podem autorizar, permitir, sugerir, dar recursos, influenciar, proibir, bloquear etc. Sendo assim, esses autores e autoras não propõem a afirmação vazia de que são os objetos – e não os atores humanos – que fazem as coisas. Dizem, simplesmente, que nenhuma ciência do social pode existir se não explorar, primeiramente, a questão do que e quem participa da ação – ainda que isso signifique permitir que se incorporem elementos não humanos à resposta. 22 Em alguns textos (LATOUR, 1996; AKRICH, LATOUR, 1992; TIRADO-SERRENO, DOMÈNECH- ARGEMÌ, 2005, entre outros), a palavra “ator” é substituída por “actante”, pois, tanto na linguagem científica quanto na cotidiana, a primeira geralmente é usada para se referir apenas a humanos; enquanto que a segunda possui menos tradição conceitual e pode mais facilmente ser usada para se referir, também, a não humanos. Em um texto escrito em coautoria com Madeleine Akrich, Bruno Latour (1992, p. 259, tradução nossa) afirma que um “actante” é qualquer coisa que atue ou modifique a ação. Em outros textos (como em LATOUR, 2008), o autor afirma que um actante é um ator que ainda não possui figuração. Nesta tese, usamos os termos “ator” e “actante” como sinônimos, ou seja, aqui, ambos referem-se às entidades (humanas e não humanas) que possuem agência. 23 É importante ressaltarmos que dizer que não há diferença fundamental entre pessoas e objetos é uma atitude analítica, e não uma posição ética. Afinal, segundo Law (1992, p. 4, tradução nossa), isso não significa que tenhamos de tratar as pessoas como máquinas. “Não temos de negar os direitos, deveres e responsabilidades que usualmente atribuímos às pessoas. Na verdade, nós podemos usar [essa atitude] para aprofundar questões éticas sobre o caráter especial do efeito humano – como, por exemplo, em casos difíceis tais como os de vida mantida artificialmente por conta das tecnologias de tratamento intensivo”. 26 Nos trabalhos da TAR, um ator não constitui a fonte de uma ação, mas é o alvo móvel de umaquantidade enorme de entidades que convergem em sua direção. Nas palavras de Law e Mol (2008, p. 58, tradução nossa), [...] um ator não age sozinho. Ele age em relação com outros atores, vinculado com eles. Isso significa que ele também está sempre sendo atuado [acted upon]. Atuando e sendo atuado [enacted] conjuntamente. E mais, um ator-atuado [enacted-actor] não está em controle. Agir não é controlar, pois os resultados do que está sendo feito frequentemente são inesperados. Desse modo, a palavra ator assume aqui um sentido bastante diferente do que a tradição anglo-saxônica comumente lhe atribui. Segundo Latour (1996), para esta última, um ator é sempre um humano individual – na maioria das vezes, do sexo masculino – que busca adquirir poder por meio de uma rede de aliados. Já para a TAR, um ator é uma definição semiótica que se refere a algo que age e que é alvo da ação dos outros. Nas palavras de Arendt (2008, p. 5, grifos do autor), “um ator não age, simplesmente, mas é levado a agir, ele é superado por sua ação. Em outros termos, ele não apenas faz, a rede o faz fazer.” 1.3 Ator-Rede Essa rede que faz fazer difere da rede da Análise de Redes Sociais (ARS) e das redes tecnológicas. A principal divergência com a primeira refere-se ao fato de que, segundo Latour (1996), esta é composta por relações sociais existentes entre atores humanos individuais e pode ser estudada por meio da frequência, homogeneidade, distribuição e proximidade dessas relações. Já um ator-rede 24 é composto também por atores não humanos e não individuais. Além disso, os pesquisadores da ARS utilizam a noção de rede social para acrescentar informações sobre as relações estabelecidas entre humanos em um mundo social e natural – que é mantido intocado pelos analistas – enquanto que a TAR, como dissemos anteriormente, problematiza as noções de sociedade e natureza. Desta forma, ela não almeja adicionar as redes sociais à teoria social, “[...] mas reconstruir a teoria social a partir das redes. É tanto uma ontologia ou uma metafísica quanto uma sociologia [...]. Redes sociais certamente vão 24 Para evitar a confusão com outras noções de rede, muitos autores da TAR (CALLON, 1998; LATOUR, 2008; LAW, 1997, entre outros) preferem utilizar a expressão “ator-rede”. Outra vantagem deste termo é o fato de ele garantir a simetria e enfatizar a impossibilidade de separarmos rede de ator. Nas palavras de Callon (1998, p. 156, tradução nossa), essa expressão ressalta que “o ator-rede não é redutível nem a um simples ator nem a uma rede. Está composto [...] de séries de elementos heterogêneos, animados e inanimados, que têm sido conectados mutuamente durante certo período de tempo [...] Um ator-rede é, simultaneamente, um ator cuja atividade consiste em entrelaçar elementos heterogêneos e uma rede que é capaz de redefinir aquilo do qual está feita.” 27 ser incluídas na descrição, mas não haverá privilégio nem proeminência [...]” (LATOUR, 1996, p. 1, tradução nossa). Já a divergência em relação às redes tecnológicas (como as ferroviárias, as de internet, as de telefone, as de esgoto etc.) reside no fato de que nelas há elementos distantes conectados por radares, trilhos, fios e tubulações, sendo a circulação entre esses elementos (ou “nós”) obrigatória e pré-determinada. Além disso, essa circulação é estabelecida por tecnologias rígidas, que dão a alguns nós um papel central. Segundo Latour (1996), apesar de, em alguns casos, a noção de ator-rede poder assumir esse modelo de rede fixa e estável, é muito mais frequente que ela assuma características completamente diferentes, ou seja, que se refira a algo local, que não possui ligações obrigatórias e que não tem nós estratégicos. Além disso, outra importante diferença entre as duas concepções de rede é que, na tecnológica, a circulação é vista como mero transporte, enquanto que, na latouriana, ela, necessariamente, implica transformação. E é justamente este processo de transformação e de construção de fatos, sujeitos, objetos e crenças que os(as) autores(as) da TAR buscam descrever (LATOUR, 2008). Isto se dá pois eles(as) consideram que o que importa não é somente a ideia de vínculo ou de aliança; importa, também, o que esses vínculos produzem, ou seja, os efeitos decorrentes de tais alianças. Sendo assim, podemos dizer que, na TAR, ator-rede é sinônimo de fabricação, de ação. Fabricação interessante, porque deve ser considerada como um processo distribuído entre todos os atores. Não há um agente primordial, central do qual emana a fabricação do mundo. Então há uma ação recíproca e o que importa é acompanhar os efeitos desta ação, os muitos deslocamentos que ela produz. Será então que devemos considerar a teoria ator-rede como um quadro de referências, como uma teoria que podemos aplicar a muitos domínios, inclusive à psicologia? [...] A teoria ator-rede não é uma teoria cujos princípios estejam dados de antemão. Trata-se antes de um método, um caminho para seguir a construção e fabricação dos fatos. (TSALLIS et al., 2006, p. 66). Sendo assim, na TAR, não mais se discute se o indivíduo é prévio a qualquer coisa e configura a sociedade; se as instituições são produzidas por um conjunto de relações duradouras; ou ainda, se um emaranhado de fatos unidos pelo cimento da moral gera o coletivo. De acordo com Domènech e Tirado (1998, p. 25, tradução nossa), o questionamento agora é muito mais simples: “[...] indivíduos, fatos, estruturas ou relações são produtos, efeitos a posteriori do que é somente um emaranhado de materiais heterogêneos, justapostos, unidos e configurados pelas relações que são capazes de estabelecer ou sofrer.” 28 No entanto, quando pensamos em nosso cotidiano, não temos dúvidas de que existem estruturas, instituições, relações de poder, normas e classificações. Afinal, temos famílias, vivemos em um sistema capitalista, aprendemos que não devemos roubar, seguimos determinadas regras de etiqueta ao comermos, sabemos que a Terra é redonda e que as doenças não são causadas por castigo divino. Se a realidade não passa de um emaranhado de materiais heterogêneos, de onde vêm essas regularidades, ou melhor, essas totalidades? Callon (1986), Latour (1998a, 1998b, 2008) e Law (1992, 1998) respondem a essa questão dizendo que o mundo toma forma por meio dos processos de tradução 25 . 1.4 Tradução Na Teoria Ator-Rede, a noção de tradução é utilizada para se referir não somente à passagem de uma língua a outra, mas também a um deslocamento, a um desvio, a uma mediação, à criação de um laço que não existia anteriormente e que, pelo simples fato de passar a existir, produz transformações (LATOUR, 1998b). Assim como na Filosofia das Ciências e na Epistemologia, esse termo é usado para descrever o modo como cientistas passam de enunciados gerais sobre o mundo (teorias) a enunciados observacionais (e vice- versa). Dizemos, por exemplo, que um(a) leigo(a) é capaz de observar que a agulha de um amperímetro aponta para o número 100; mas um(a) físico(a) provavelmente tentará estabelecer equivalências – ou ao menos relações inteligíveis – entre esse enunciado observacional, que se exprime na língua ordinária, e os enunciados teóricos que recorrem a palavras e a noções inabituais. Tentará, portanto, relacionar o movimento da agulha com o fato de que elétrons existem e possuem determinadas características (CALLON, 2003). A ciência se encarrega de explorar esse abismo que ela contribui para criar. Os filósofos recorreram à noção de tradução para explicar como os cientistas em seus laboratórios passam de uma língua que foi feita de noções totalmente ordinárias [...] a uma língua que é teórica e que faz uso de noções que descrevem entidades que ninguém nunca viu. A noção de tradução permite descrever essetransporte misterioso que faz com que possamos 25 Esse processo também é chamado de “ensamblage”, “translação” e “padrões de ordenação”. Nesta tese, optamos por utilizar a expressão “tradução” uma vez que esta é a terminologia usada por muitos autores de língua portuguesa (tais como MORAES, 2004; FREIRE, 2006, MELO et al., 2007; BONAMIGO, 2008, entre outros). No entanto, consideramos que ela pode trazer certa confusão, pois, frequentemente, utilizamos este termo para fazer referência a uma representação fiel de algo e não a uma transformação. Quando, por exemplo, citamos a edição brasileira do livro “Jamais fomos modernos”, citamos Latour (1994b), e não Carlos Irineu da Costa, seu tradutor. Esquecemo-nos das diferenças linguísticas e das interpretações pessoais do tradutor. Tratamos a edição brasileira como se fosse igual à francesa. 29 passar de observações empíricas, experimentais a enunciados teóricos que, de certa maneira, não têm nada a ver com os enunciados observacionais [...]. A noção de tradução é uma primeira maneira de descrever esse transporte de significações da experiência à teoria. (CALLON, 2003, p. 58, tradução nossa, grifo nosso). Mas, na TAR, a palavra “tradução” também assume o sentido proposto pelo filósofo francês Michel Serres (1974) ao ser usada para explicar como as informações e a comunicação em geral operam por meio de uma série de transformações, de transportes e de traições. De acordo com Callon (2003, p. 59, tradução nossa), esse duplo significado da palavra, “[...] tradução de uma língua a outra e transporte de um mundo a outro, pode ser mobilizado para compreender as relações entre a ciência isolada, a ciência confinada e o mundo que a rodeia.” Para dar um sentido mais preciso a essa noção, o autor propõe que distingamos três tipos de tradução comuns no campo científico: o primeiro deles refere-se à atividade de transporte do mundo no qual vivemos (do “grande mundo”, do macrocosmo) para dentro do laboratório. Esse movimento é de grande importância, pois permite que a ciência aja sobre o mundo – de que adiantariam, por exemplo, estudos de Psicologia Social que abordassem temas alheios à nossa realidade? Para promover transformações sociais 26 , pesquisadores da área precisam fazer entrevistas, observações, experimentos, escrever diários de campo, selecionar textos, transcrever... Enfim, precisam transformar fatos, processos e objetos do “mundo exterior” em material analisável. Precisam trazer a “realidade psicossocial” para dentro do “laboratório”. O segundo sentido faz referência ao que acontece dentro do laboratório. Para Callon (2003), a obsessão de todo pesquisador é a de questionar a natureza, recolher as respostas que ela fornece e, por fim, interpretá-las. Ou seja, seu trabalho é o de “fazer falar” as entidades transportadas para dentro do laboratório: “conseguir fazer com que elétrons ou genes falem não é nada evidente! Conseguir fazer com que digam quem são, como podem agir, tampouco é evidente! A grande força dos cientistas é conseguir isso dentro do mundo fechado dos laboratórios.” (CALLON, 2003, p. 59, tradução nossa). O terceiro movimento de tradução refere-se ao retorno daquilo que foi produzido no laboratório ao mundo “exterior”. Uma vez que o grande mundo foi transportado, transposto, para o pequeno mundo do laboratório, uma vez as entidades assim aclimatadas [...] são 26 Como veremos no capítulo 4, muitos(as) pesquisadores(as) consideram o compromisso com a transformação social a principal característica dessa área do conhecimento. 30 questionadas, uma vez recolhidas as respostas e, a partir delas, delimitadas – ao menos parcialmente – suas identidades, o último problema se coloca: como soltar no grande mundo esses seres pacientemente domesticados? [...] Não podemos compreender o movimento e a lógica da ciência se conservamos a imagem de um laboratório confinado [...] Sim, o laboratório se distanciou, mas entre ele e o mundo ocorre um intenso tráfico, nos dois sentidos, o laboratório parece uma empresa de importação e exportação que não se contentará em fazer circular as mercadorias, mas que também as transformará e as recondicionará. A tradução consiste precisamente nesse movimento que permite agir sobre o mundo o transportando para dentro do laboratório e o fazendo voltar transformado para o exterior do laboratório. O laboratório é um poderoso instrumento para a reconfiguração do nosso mundo, não é somente um instrumento de observação e interpretação. (CALLON, 2003, p. 60, tradução nossa, grifos nossos). A tradução, portanto, substitui uma coisa por outra coisa: substitui uma língua por outra, uma palavra por outra, um grande mundo por um microcosmo. E essa substituição implica, necessariamente, transporte. “A ciência sempre começa por essa inversão, essa mudança de escala, essa miniaturização [...] ao invés de ter o grande mundo, um macrocosmo, você tem um pequeno mundo, um microcosmo [...]” (CALLON, 2003, p. 61, tradução nossa). Dizemos, muitas vezes, que esse microcosmo representa o grande mundo; mas para o autor, o verbo “representar” é demasiadamente estático e omite o transporte, a transformação inerente a esse processo. Callon (2003) nos dá um bom exemplo de como os mecanismos de tradução contribuem para a construção do conhecimento científico ao relatar o caso de pessoas que sofrem de amiotrofia espinhal infantil, uma doença genética rara. De acordo com o autor, até o início da década de 1950, esses doentes não tinham interlocutores na área médica nem na biológica. Não existia nenhum tipo de registro sistemático e o quadro clínico da doença era bastante impreciso. Apenas alguns(as) pacientes mais empreendedores(as) – ou menos resignados(as) – se dedicavam a coletar informações sobre os sintomas e sobre o desenvolvimento da doença. Em colaboração com profissionais da saúde, eles(as) organizavam campanhas de coleta de sangue, visando construir um banco de DNA que permitisse a identificação e a localização do gene defeituoso. Neste caso, em que consiste o movimento de tradução? Você tem uma população indeterminada de doentes dentre os quais o trabalho de observação e enquete permite estabelecer certas similitudes; em seguida, você extrai [prélevez] elementos de seus corpos e os transporta para os laboratórios e os pesquisadores [...] começam a analisá-los. Não há ilustração mais bela da tradução que este movimento: formular os problemas a serem resolvidos, simplificar e reduzir a realidade a ser estudada, extrair elementos, transportá-los para o laboratório e se engajar no trabalho de produção de inscrições. Aí está o primeiro arco da tradução. Antes dessa 31 tradução, problemas estavam formulados, questões estavam levantadas, e restavam sem resposta [...] Depois da tradução, outras questões mais precisas, mais fáceis de delimitar e de estudar são substituídas pelas precedentes. (CALLON, 2003, p. 62, tradução nossa, grifo nosso). Após formular o problema e trazer o material de análise para dentro do laboratório, os(as) cientistas precisam fazer com que esse material “fale”, ou melhor, precisam fazer com que esse material “escreva”. No entanto, como amostras de sangue não falam nem escrevem por si só, eles(as) precisam recorrer a uma série de instrumentos para auxiliar esse processo, como reagentes químicos, microscópios, computadores, imagens tridimensionais etc. Esses dispositivos tornam visível aquilo que até então era invisível e permitem que o(a) pesquisador(a) fabrique inscrições 27 , como artigos científicos, gráficos e relatórios. Ao escrever artigos sobre as falhas genéticas que causam a amiotrofia espinhal infantil, o(a) pesquisador(a) se torna uma espécie de “porta-voz” do gene:
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