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DEDICATÓRIA À memória de João Carlos, meu pai, que me ensinou a amar o senso de justiça e de retidão vindos de Jesus Cristo, o Redentor. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO PREFÁCIO INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA CAPÍTULO 2 A UNIPERSONALIDADE DO REDENTOR CAPÍTULO 3 NOMES QUE APONTAM PARA A UNIO PERSONALIS CAPÍTULO 4 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS NA NATUREZA HUMANA DO REDENTOR CAPÍTULO 5 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A NATUREZA DIVINA DO REDEN- TOR CAPÍTULO 6 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE A PESSOA DO REDENTOR CAPÍTULO 7 OS EFEITOS DA UNIO PERSONALIS SOBRE OS CRISTÃOS CAPÍTULO 8 A COMUNICAÇÃO DE ATRIBUTOS CAPÍTULO 9 A IMPECABILIDADE DO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 10 A TENTABILIDADE DO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 11 ENSINO GERAL SOBRE A TENTAÇÃO DO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 12 ENSINO ESPECÍFICO SOBRE A TENTAÇÃO DO REDENTOR DIVINO-HUMANO 8 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR CAPÍTULO 13 A PERFEIÇÃO DO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 14 A HONRA E ADORAÇÃO QUE DEVEMOS AO REDENTOR DIVINO-HUMANO Capítulo 15 A FÉ QUE DEVEMOS AO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 16 A OBEDIÊNCIA QUE DEVEMOS AO REDENTOR DIVINO-HUMANO CAPÍTULO 17 O AMOR QUE DEVEMOS AO REDENTOR DIVINO-HUMANO BIBLIOGRAFIA ÍNDICE DE ASSUNTOS DE NOMES DE TEXTOS ANALISADOS DE TEXTOS CITADOS 9POR QUE UMA SÉRIE DE LIVROS SOBRE JESUS CRISTO? Apresentação 10 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 11POR QUE UMA SÉRIE DE LIVROS SOBRE JESUS CRISTO? PREFÁCIO O meu objetivo tem sido sempre o de apresentar uma matéria que tenha um suporte profundamente escriturístico, para o deleite dos que gostam de ler teologia fundamentada na infalível Palavra de Deus. O desafio a que me propus levou-me a trabalhar em áreas outrora desconhecidas para mim, como este assunto da unipersonalidade do Redentor. Essa unipersonalidade sempre haverá de esca- par à nossa perfeita compreensão. Todavia, tento trabalhar neste livro com várias informações que Deus, em sua Palavra, fornece para o nosso conhecimento dessa maravilhosa e encantadora Pessoa Redentora. No livro anterior, As Duas Naturezas do Redentor,1 apresentei da forma mais didática que pude as naturezas divina e humana de Jesus Cristo, estudadas separa- damente, sem tratar propriamente de qualquer aspecto da união delas. Neste livro, há a tentativa de estudar as duas naturezas unidas. A expressão mais comum a ser usada neste livro sobre a unipersonalidade do Redentor será unio personalis, ou união pessoal, embora na Teologia Sistemática seja comum a referência à união hipostática. Esse segundo livro sobre a Pessoa do Redentor trata do assunto de uma pers- pectiva um pouco mais técnica do que o primeiro mencionado acima, e mesmo mais técnica do que os dois primeiros que escrevi sobre o Ser de Deus.2 Esse livro é mais recheado de terminologia técnica porque também trabalho em alguns casos sob uma perspectiva histórica, o que exige um uso desse vocabulário, especial- mente quando trato da história da doutrina. Alguns nomes e conceitos não muito familiares aos crentes em geral aparecem e, com um pouco de esforço, creio eu, todos podem lucrar com as informações, mesmo quando o arcabouço histórico do leitor não for muito apurado. Tentei usar os termos técnicos de uma maneira inte- ligível. Todavia, não sei se essa será a opinião do leitor. O fato é que não pude evitar esse aspecto terminológico, pois o assunto o exige. A metodologia do livro segue mais ou menos os meus livros publicados ante- riormente. A grande ênfase desse livro continua sendo a dos comentários e análi- ses de textos que servem de fundamento para a doutrina da qual me proponho tratar. 1. Heber Carlos de Campos. As Duas Naturezas do Redentor (São Paulo: Cultura Cristã, 2004). 2. Heber Carlos de Campos. O Ser de Deus e Seus Atributos (São Paulo: Cultura Cristã, 2002, 2ª. edição) e A Providência e Sua Realização Histórica (São Paulo: Cultura Cristã, 2001). 12 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Os capítulos desse livro, que se relacionam entre si, são divididos da forma mais lógica que me foi possível fazê-lo. O Capítulo 1 trata do desenvolvimento histórico da doutrina da unio persona- lis nos primeiros concílios gerais da Igreja. As duas partes principais do capítulo tratam dos erros que apareceram na Igreja e dos acertos trazidos pelos concílios. No final desse capítulo há uma grande ênfase nos erros que devemos evitar e nas atitudes que devemos ter para com os que estão no erro e para com aqueles que não querem sair do erro. É um capítulo que termina em tons negativos, mas que pode ser muito positivo para a vida da Igreja, se ela prestar atenção aos elementos histó- ricos da doutrina. O Capítulo 2 trata da unipersonalidade do Redentor propriamente dita. Nele, eu trato primeiramente das definições e, logo a seguir, da base bíblica e histórico- teológica da doutrina. Então trato de algumas verdades gerais sobre ela, suas ca- racterísticas, sua singularidade e as distinções que há nela. O capítulo 3 destaca apenas cinco dos muitos nomes de Jesus Cristo que apon- tam para a unio personalis. A idéia desse capítulo é que esses nomes não seriam possíveis nele se não fosse a união hipostática. É um capítulo longo que tem boas sugestões para os que gostam de ensinar sobre a Pessoa do Redentor, porque apre- senta algumas facetas muito interessantes dele. Nos Capítulos 4, 5, 6 e 12, a ênfase cai sobre os efeitos da unio personalis em: (1) a natureza humana do Redentor; (2) os alegados efeitos na natureza divina; (3) a Pessoa completa do Redentor; e (4) os efeitos na vida dos crentes. Esses capítu- los são muito importantes e, por isso, devem ser cuidadosamente analisados, espe- cialmente os três primeiros. Os Capítulos 7, 8 e 9 tratam de um modo específico e extensivo dos efeitos da unio personalis sobre a Pessoa do Redentor, ou seja: a comunicação de atributos, a impecabilidade e a tentabilidade do Redentor. Os Capítulos 10 e 11 tratam das tentações em geral e das tentações específicas de Cristo Jesus. Ainda que não tenham uma ligação direta com a unio personalis, as tentações relacionadas a Jesus Cristo não poderiam existir se não fosse a huma- nidade do Redentor. O Capítulo 13 trata da perfeição de Jesus Cristo em sua existência divino- humana. A ênfase está na perfeição do seu relacionamento com Deus; no seu rela- cionamento com os homens; em suas funções mediatoriais; no exercício dos seus dons espirituais; e na sua conduta moral. A perfeição do Redentor divino-humano é completa. Os Capítulos 14, 15 e 16 tratam dos nossos deveres para com a pessoa divino- humana do Redentor: devemos a ele honra e adoração, fé, obediência e amor. O livro termina com uma aplicação geral, instando os leitores a olharem para Jesus, conformando-se a ele. 13 Foi-me bastante difícil escrever sobre a unipersonalidade do meu Redentor porque ela é altamente complexa e exigiu de mim um tempo enorme de pesquisa, inclusive em algumas áreas com as quais eu não estava familiarizado. O desafio foi grande porque este livro, no meu entendimento, vem preencher uma lacuna na literatura teológica em língua portuguesa referente à Pessoa de Cristo. Eu me es- forcei ao máximo para tornar esse livro acessível a todos os crentes que gostam de estudar as verdades a respeito do Redentor Jesus Cristo. Todavia, vários capítulos abordam a Pessoa de Cristo de um prisma que muitos deles nunca haviam aborda- do. Eu oro a Deus para que a presente abordagem seja um desafio para os crentes em geral, de um modo especial aos professores de escola dominical, e mais parti- cularmente ainda aos estudantes de teologia e ministros da Palavra. Se eles pude- rem aproveitar razoavelmente esse livro, eu já me terei dado por satisfeito. PREFÁCIO INTRODUÇÃO J á estudamos, anteriormente, no livro As Duas Naturezas do Redentor, que o Senhor Jesus Cristo é o verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Como verdadeiro Deus, possui todos os atributos divinos que são essenciais e que perfazem a Divin- dade. Semelhantemente,como verdadeiro homem, ele possui todas as proprieda- des essenciais aos seres humanos, e, além disso, assumiu, por causa de nossos pecados, todas as conseqüências deles. Todavia, essas duas naturezas não agem separadamente, como se fossem duas pessoas. Elas estão perfeitamente unidas numa só pessoa, mantendo a distinção das naturezas, mas de modo que nunca a divina é humanizada nem a humana deificada. Ambas as naturezas estavam e ain- da estão em operação para o exercício das obras mediatoriais do Redentor, de forma que elas, conquanto distintas, nunca podem estar separadas. É a esse assun- to que este livro diz respeito. A. A NECESSIDADE DO ESTUDO DA UNIO PERSONALIS 1) A carência de publicações específicas sobre o assunto. Não há, em nossa língua portuguesa, que eu conheça, nem um livro sequer que trate da matéria da unio personalis. Para ser honesto, nem em língua inglesa en- contrei um livro sobre esse assunto. O que existe são pequenos capítulos de livros sobre Cristologia em geral e artigos que podem ser vistos na internet. A razão da ausência de literatura sobre a unio personalis provavelmente está ligada à dificul- dade de se conseguir material para trabalhar e de ser este realmente um assunto que exija bastante de quem escreve. Tomei para mim essa tarefa, desafiado pela carência de publicações específicas, e gastei muitíssimas horas para conseguir material, para produzir o meu próprio e para organizá-lo de maneira a tornar o assunto mais palatável para aqueles que querem aprender de uma forma mais sis- temática. 2) A pequena informação que os cristãos possuem exige um livro sobre a unio personalis. Além de haver pouco material publicado sobre o assunto, muitos ministros de nossas igrejas não têm tido acesso a livros em geral sobre Cristologia. É relativa- mente mais comum os Ministros da Palavra terem noções das duas naturezas do Redentor, mas poucos já trabalharam com as informações que a Escritura fornece 16 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR sobre a unio personalis. Os livros que tratam apresentam um panorama da Teolo- gia Sistemática dão pouca atenção ao assunto da unio personalis. Quando tratam dela, não o fazem de modo suficiente para esclarecer coisas que precisam e que podem ser esclarecidas. Se os ministros não têm acesso a bons livros sobre essa matéria, o que pode- mos dizer dos professores de escola dominical e dos cristãos em geral? Poucos cristãos já ouviram falar na unipersonalidade do Redentor. Esse é um problema muito fácil de se constatar nas igrejas cristãs. A ignorância sobre esse assunto é muito grande. Portanto, é necessário que a Igreja tenha consciência da união das duas naturezas e dos resultados dela para o próprio Redentor e para aqueles a quem ele redimiu. Não se deve supor que, por ser um dos mistérios mais profundos da fé cristã, a doutrina da unio personalis seja assunto somente para os teólogos ou somente para os estudantes de teologia. Essa é uma verdade tão vital que deve ser estudada pelos crentes para que eles tenham a sua fé nutrida. Quando o Espírito Santo nos faz entender aquilo que se pode entender dessa união, nós, os crentes, amamos cada vez mais o Deus triúno que fez esse arranjo tão maravilhoso da unio personalis. Somente com o estudo dessa matéria pelos cristãos é que eles ficam livres de serem vencidos pelas investidas errôneas contra a Pessoa de Cristo. 3) A dificuldade da matéria exige um estudo mais detalhado. Nesse livro, navegaremos em águas profundas, e aqueles que estão acostuma- dos a brincar na praia terão que ter bastante vontade e coragem para penetrar (até onde é possível!) os arcanos divinos ligados à encarnação. Esse tema da unio per- sonalis faz parte dos grandes mistérios da fé cristã, e nós devemos ter coragem para tratar desse assunto, com o auxílio da graça divina, para que a Igreja de Cristo conheça o que está revelado sobre ele. O nosso caminhar deve ser de grande temor e tremor, para que não digamos nada que não seja expressão da verdade. Não estudaremos essa matéria confiando no nosso conhecimento ou em nossa inteli- gência, e muito menos a estudaremos com intrepidez descabida, mas o senso de temor do Senhor deverá permear tudo o que viermos a dizer. Conquanto o assunto da unio personalis seja um mistério muito grande, so- mente precedido em profundidade pelo mistério da união das Três Pessoas da Trin- dade, não podemos nos furtar a estudá-lo. Não é da nossa competência especular as dificuldades, mas estudar, até onde a revelação divina nos permita, esse tema tão importante para a fé cristã. Há alguma luz que vem dessa revelação e que nos impulsiona a estudá com muito senso de reverência e santo temor para que a admi- ração e o espanto tomem conta de nossa alma devido à profundeza e beleza de tão grande e maravilhosa união. 17INTRODUÇÃO B. A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DA UNIO PERSONALIS 1) A doutrina da unio personalis é importante porque temos nela uma compre- ensão melhor da redenção. O valor do que Cristo fez dependeu inteiramente daquilo que ele era, e, portan- to, é de suprema importância que nós tenhamos uma visão correta da redenção que ele realizou. Ele pode fazer somente pelo que ele veio a ser com a unio personalis. Nunca poderíamos ter a redenção e nem Jesus poderia realizá-la sem essa união maravilhosa. A união hipostática garante a nossa redenção, assegurando, de maneira inequí- voca, o fato de nós sermos representados por alguém que possui a nossa natureza, satisfazendo, assim, a exigência de obedecer ativa e passivamente em nosso lugar. Ao mesmo tempo, essa união hipostática aponta para um Redentor que não é sim- plesmente humano, mas, sobretudo, divino, um Redentor poderoso que satisfaz to- das as exigências de Deus. A união hipostática, portanto, é muito importante para que compreendamos de maneira própria a nossa redenção. 2) A Doutrina da unio personalis é importante porque ela é produto unicamen- te da revelação divina. Não há maneira de se estudar a unio personalis à parte da revelação objetiva e subjetiva dessa verdade de Deus a nós. Certa vez Jesus Cristo perguntou aos seus discípulos: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?”. Pedro se antecipou e respondeu: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Então, Jesus disse a Pedro: “Bem-aventu- rado és tu, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue quem to revelou, mas meu Pai que está no céu” (Mt 16.15-17). O ponto importante aqui é que não foi o conhecimento humano (por si próprio) que descobriu a união hipostática, isto é, não foi o conhecimento humano que descobriu que o Filho de Deus era Jesus Cristo. Pedro não teve uma “intuição” ou um “insight”, mas ele percebeu a verdade da unio personalis pela bondade de Deus. A capacidade humana de compreender as coisas não é suficiente para detec- tar num jovem carpinteiro o Filho de Deus encarnado. Quando Pedro fez a decla- ração mencionada acima, ele a fez porque havia recebido luz divina para conhecer e aceitar a verdade da unio personalis. Somente por revelação divina podemos saber que Jesus Cristo é Deus e é homem. Todos os outros homens comuns e outras religiões não atingidas pela graça reveladora de Deus haveriam de ver em Cristo apenas um homem. Todavia, Pedro viu nele “o Cristo, o Filho do Deus vivo”, e isso em razão da revelação de Deus. A unio personalis foi revelada a Pedro pela graça divina, que o tornou um bem-aventurado. Pedro foi apontado por Cristo para ser um líder na sua Igreja (v. 18), provavelmente por ele ter sido o primeiro a reconhecer a união hipostática. A doutrina da união hipostática é muito importante para a maturidade cristã. É uma doutrina que precisa ser aprendida e 18 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR apreendida pela Igreja cristã por sua importância determinante da sua sobrevivên- cia. Sem essa doutrina, todo o arcabouço teológico do Cristianismo desaba. Quan- do a Igreja cristã não presta a devida atenção à doutrina da união hipostática, ela nunca vem a entender as doutrinas relacionadas a ela, a saber, redenção, expiação, reconciliação, e mesmo as noçõesbíblicas da Trindade. A unio personalis é uma doutrina central, na qual muitas outras estão dependuradas. A Igreja nunca se tor- nará madura enquanto não entender a importância dessa doutrina. Geralmente, quando a Igreja Católica interpreta o texto de Mateus 16.18, ela coloca Pedro como o fundamento da Igreja. Contudo, o ensino geral da Escritura é que o fundamento da Igreja é Cristo, aquele de quem Pedro disse: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, sendo esta a declaração de Pedro da união hipostática do Filho. A Igreja não estava sendo fundamentada sobre Pedro, mas sobre a Rocha dos Séculos, aquele de quem conhecemos que era ao mesmo tempo Deus e homem. 3) A doutrina da unio personalis é importante porque, por causa dela, não haverá a derrota da Igreja para as portas do inferno. Logo após a declaração de Jesus de que a “descoberta” de Pedro tinha sido uma revelação divina, o texto diz que a Igreja, construída sobre a Rocha dos Sécu- los, nunca haveria de sucumbir diante dos ataques infernais. Na verdade, as portas do inferno não prevalecem contra a Igreja enquanto ela reconhecer a união hipostática do Filho e permanecer no ensino dela como está revelado nas Escrituras. É perfeitamente verificável que as Igrejas denominacio- nais que não mais crêem, não mais ensinam ou ignoram a doutrina da união hipos- tática, acabam sendo vencidas pelas “portas do inferno”. Os ramos do Cristianis- mo que rejeitam a unio personalis, mostrando Jesus Cristo como apenas um ho- mem, não passam de instituições secularizadas. Muitos dos que vão a esses grupos religiosos nunca crêem no Cristo da Escritura e não conhecem verdadeiramente o Redentor. Muitos deles serão condenados não somente por causa de sua natureza pecaminosa e de seus pecados atuais, mas porque ignoram as naturezas divina e humana de Jesus Cristo. As portas do inferno têm prevalecido contra essas Igrejas porque elas negam uma verdade cardeal do Cristianismo bíblico e histórico. Essa doutrina é extremamente importante para o fortalecimento e proteção da Igreja, onde quer que ela possa estar. Apenas a título de resumo, podemos ver quão importante é a união pessoal quando observamos a vinda do Filho de Deus a este mundo para ser Redentor. O Filho de Deus não poderia ser Redentor como Verbo divino, mas ele teve que assumir a natureza humana para exercer as suas funções mediatoriais. A fim de realizar o seu plano redentor, o Filho de Deus teve de se encarnar, sendo concebido de uma virgem, nascido dela, e teve que viver entre nós, ser um membro da nossa raça e morrer, todavia sem pecado. Somente um Redentor com natureza divina poderia ser um Redentor poderoso; somente um Redentor com natureza humana poderia morrer pelos nossos pecados; somente um 19INTRODUÇÃO Redentor com natureza divina e humana poderia ressuscitar dentre os mortos. Por causa de sua humanidade ele morreu; por causa de sua divindade ele ressuscitou. 4) A importância da unio personalis está no fato dela ser fundamentada na união trinitária. A união das duas naturezas no Redentor está baseada numa união infinitamen- te mais elevada, que é a união das três Pessoas num só ser triunitário. Essa união é a mais incompreensível e inefável de todas as uniões mencionadas nas Escrituras. Todavia, diferentemente da unio personalis, a união mencionada acima é uma união de Pessoas da mesma essência. A unio personalis, que é a segunda em mistério e insondável em alguns de seus aspectos, é a da Segunda Pessoa da Trindade, o Filho, com sua natureza divina, que, ao unir-se a uma natureza humana, tornou-se Jesus Cristo, o Redentor divino-humano. Se houvesse apenas uma Pessoa na essência divina, a nossa salvação teria sido totalmente impossível. Somente porque Deus está unido tripessoalmente entre si é que uma dessas Pessoas – Filho – pode ser enviada para se tornar o nosso Reden- tor, assumindo natureza humana. 5) A importância da unio personalis está na impossibilidade de haver crentes sem ela. A doutrina da constituição da Pessoa de Cristo é de tão grande e fundamental importância que nunca poderia haver redenção e nunca poderíamos ser crentes sem ela. Por essa razão, João fala que “todo espírito que confessa que Jesus veio em carne é de Deus” – A confissão do Verbo encarnado, isto é, da unio personalis, é uma evidência de que uma pessoa pertence a Deus. Não pode haver cristãos que não creiam nessa doutrina. Quem, todavia, não crê nela, recebe o julgamento divi- no. Por essa razão, João continua a sua argumentação: “e todo espírito que não confessa a Jesus não procede de Deus” (1Jo 4.2, 3). Todos os que negam a unio personalis não pertencem a Deus e são chamados por João de “anticristos” (1Jo 4.3). O que nós cremos sobre Jesus Cristo é o teste para se saber se somos cristãos ou não, e a confiança nessa doutrina é fundamental para a nossa existência como crentes. Não passamos no teste de nosso Cristianismo se não pensarmos correta- mente a respeito de Jesus Cristo. 6) A importância da unio personalis está no fato da junção de coisas aparente- mente irreconciliáveis. Quando tratamos da unio personalis, estamos lidando com coisas que são não apenas absolutamente distintas, mas com coisas que estão muito distantes uma da outra. Você pode imaginar a distância que existe entre a divindade e a humanidade e entre o Criador e a criatura? Você é capaz de imaginar a ligação entre o Infinito e o finito, e entre eterno e o temporal? Você é capaz de conceber a união entre a imortalidade e a mortalidade? Você é capaz de imaginar a união do divino com o 20 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR humano? Você é capaz de imaginar uma natureza divina de bem-aventurança eter- na ser unida a uma natureza humana cheia de tristezas e angústias? Você é capaz de pensar na onisciência ligada indissoluvelmente à ignorância e ao conhecimento limitado? Pois todas essas coisas estão envolvidas no estudo dessa maravilhosa doutrina. É importante a abordagem desse assunto capital para a nossa fé. As coi- sas aparentemente irreconciliáveis estão juntadas e esposadas de modo maravilho- so na pessoa do Redentor. C. A EXIGÊNCIA DA UNIO PERSONALIS Houve algumas razões que tornaram necessária a unio personalis para que a redenção humana pudesse acontecer. Portanto, foi absolutamente necessário que o Filho de Deus assumisse natureza humana. 1) A unio personalis era uma exigência fundamental para que pecadores pu- dessem se unir a Deus em Cristo. Não haveria qualquer ligação dos homens com Deus à parte do Redentor divi- no-humano. Assim como nós éramos um com Adão, assim também, em Cristo, o segundo Adão, nós nos unimos a Deus. O caminho para essa união com Deus está enraizado e dependente da unio personalis. Nunca seríamos restaurados ao favor de Deus, a menos que ele viesse a nós através do Filho encarnado. Quando chegou o tempo devido, Deus enviou seu Filho, e este foi nascido de mulher (Gl 4.4) para ligar-nos a Deus. Aquele que existia independentemente na “forma de Deus” teve que existir, também, após a encarnação, “na forma de servo”, entrando na esfera da sujeição à lei, que é parte de sua humilhação. Somente nessa condição de humilha- do é que ele pode tomar o nosso lugar e nos devolver à condição de comunhão com Deus, unindo-nos a ele. 2) A unio personalis era uma exigência fundamental para que o Redentor pu- desse sofrer a penalidade dos pecados por causa dos pecados dos homens. Houve a quebra da lei pelos homens e as penalidades da lei divina eram muito sérias para serem ignoradas pelo Legislador. A natureza santa do Legislador exigia que a penalidade fosse imposta. Todavia, o amor do Legislador afrontado foi tão grande que ele resolveu perdoar pecadores. Mas ele não poderia perdoá-los igno- rando a penalidade deles. O que ele fez? Ele acertou com seu Filho para que este viesse ao mundo e recebesse uma natureza humana para poder substituir os seres humanos, levando a penalidade deles no seu corpo e na sua alma. Então, somente por causa da unio personalis, Jesus Cristo pôde ser maldito de Deus para nos libertar damaldição da lei (Gl 3.13). 3) A unio personalis era uma exigência fundamental para que os homens fos- sem livres do poder do maligno. Os homens estavam debaixo da ira divina. Uma das manifestações da ira divi- 21INTRODUÇÃO na sobre o pecador foi colocá-lo sob a autoridade e o domínio do mais sagaz e maldoso dos capatazes: Satanás. Todavia, quando Deus resolveu livrar os pecado- res de sua própria ira, ele enviou o seu Filho para que “tivesse participação co- mum” juntamente com os homens, “de carne e sangue. Destes também ele, igual- mente, participou, para que, por sua morte, destruísse aquele que tem o poder da morte, a saber, o diabo” (Hb 2.14). A unio personalis era necessária para que ele pudesse, com todas as propriedades humanas, vencer aquele que Deus havia cons- tituído como dominador sobre a morte, o diabo. Para que houvesse essa vitória, Deus exigiu que o seu Filho se unisse a uma natureza humana. Somente um Re- dentor divino e humano como Jesus poderia fazer tal obra. 4) A unio personalis era uma exigência para que Jesus fosse membro da raça humana. Se Jesus Cristo viesse diretamente do céu, sem que a sua natureza humana fosse retirada de Maria, ele não poderia ser membro de nossa raça. E se ele não fosse membro da raça, ele não poderia livrar-nos da culpa e da pecaminosidade vindas da raiz comum de nossos primeiros pais. Não era necessário simplesmente que o Redentor tivesse todas as propriedades de nossa humanidade, mas que ele também fosse membro da raça humana, tendo ancestrais humanos e recebesse a carga genética deles. Somente com a unio personalis isso foi possível. Era exigên- cia que o Redentor fosse Redentor-parente, vindo da sua família, porque a ele somente cabia o direito de ser um Redentor (cf. Lv 25.48-49; Rt 2.20 e 3.9). Ele veio da semente da mulher e, assim, tornou-se nosso parente, de nossa raça, para poder salvar gente dessa raça. Nem todos os crentes têm o desejo de meditar em coisas tão necessárias para a fé cristã. Alguns deles não querem exercitar sua mente em assuntos tão profundos, como é o caso da unio personalis. Nem todos gostam de provar da doçura do Redentor divino-humano. Alguns até tentam banir algumas das verdades cristoló- gicas de sua mente. Poucos desejam rever suas posições teológicas a respeito de Cristo. Na verdade, poucos amam de fato Jesus Cristo, porque o que determina o nosso interesse numa pessoa é o nosso amor por ela. Todavia, a necessidade, a importância e a exigência da unio personalis são levados em conta aqui nesse livro. A oração do autor é que o estudo tão necessário e importante da unio personalis seja de grande valor e proveito para todos quantos amam o Redentor Jesus Cristo, e que todos os leitores, após estudarem a matéria, tenham uma visão melhor de quem o Redentor é e porque ele teve de ser o Reden- tor do jeito que a Escritura o apresenta. Que façam bom uso todos os que lerem esse livro, que é produto do esforço de muitas horas de trabalho, dentro e fora do horário de trabalho no Centro Presbiteriano de Pós Graduação Andrew Jumper. ÍNDICE DO CAPÍTULO 1 CAPÍTULO 1 ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA Esse trabalho sobre Cristologia ficaria prejudicado se não tratássemos do desen-volvimento histórico doutrina da unio personalis, que tem a ver diretamente com a união das duas naturezas – a divina e a humana. Toda doutrina cristã tem o seu nascedouro e a sua formação no decorrer da história. Essa doutrina não foge à regra. A doutrina da unio personalis teve início nos primeiros concílios da Igreja Cristã, nas controvérsias cristológicas, ainda que o termo unio personalis tenha aparecido um pouco mais tarde, com o desenvolvimento da doutrina. Após os Concílios de Nicéia (325) e de Constantinopla (381), a doutrina orto- doxa da Igreja ficou sendo a da verdadeira e plena humanidade e divindade de Jesus Cristo. Os conflitos com Ário e com Apolinário, que representaram o pri- meiro e o segundo estágios do desenvolvimento da Cristologia, foram salutares para a Igreja no sentido de definir corretamente o pensamento sobre a natureza divina e a natureza humana do Redentor. Contudo, continuaram discussões poste- riores sobre outros aspectos relativos à união das naturezas no Redentor. Esse é o terceiro estágio do desenvolvimento do pensamento cristológico. A questão era descobrir os termos corretos com os quais a Igreja poderia expressar a relação que existe entre o humano e o divino no Redentor. A solução para a questão da relação entre as duas naturezas foi abordada dois ângulos, por duas escolas distintas de pensamento da Igreja Cristã, que apresenta- ram respostas diferentes diante da ameaça do arianismo: a Cristologia da Escola de Antioquia e a Cristologia da Escola de Alexandria. A. O PENSAMENTO CRISTOLÓGICO DA ESCOLA DE ANTIOQUIA Em termos cristológicos, a Escola de Antioquia3 foi caracterizada por uma 3. A Escola de Antioquia foi uma escola de pensamento centrada ao redor da Antioquia da Síria, do séc. 3º. Ao séc. 5º. Essa escola enfatizou o método gramático-histórico, em oposição à tendência da escola de Alexandria, que enfatizava a alegorização das Escrituras. 26 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR “rígida separação entre as duas naturezas em Cristo. Foi a natureza humana que experimentou sofrimento, enquanto a natureza divina permaneceu intocada por ele.”4 Essa escola “foi marcada por uma aversão à especulação metafísica e a um pro- fundo elemento místico no cristianismo. Ela rejeitou a exegese alegó- rica e estabeleceu o método gramático histórico de interpretação da Escritura. Os representantes dessa escola eram exegetas diligentes que estudaram a vida do Cristo histórico, especialmente o seu desenvolvi- mento humano e moral. Eles eram, dessa forma, naturalmente opos- tos ao Docetismo e ao Apolinarismo. A ênfase principal da Escola de Antioquia era sobre a humanidade de Cristo sem sequer pretender negar Sua divindade.”5 1. OS REPRESENTANTES DA ESCOLA DE ANTIOQUIA Essa escola de pensamento foi marcada pela presença de alguns expoentes da história da Igreja. Apenas discorreremos rapidamente sobre alguns deles. a. Diodoro de Tarso (c.330-94) É considerado o pioneiro da Escola de Antioquia, e foi um dos principais com- batentes da ortodoxia contra o arianismo. Nasceu em Antioquia e, ali e em Atenas, educou-se secularmente. Veio a ser um mestre de grande influência em Antioquia, de onde foi banido em 372 para a Armênia pelo Imperador Valente. Tornou-se bispo de Tarso em 378. Teve dois discípulos famosos: Teodoro de Mopsuéstia e João Crisóstomo. Mesmo, em geral, tendo sido considerado ortodoxo, ele foi condenado postu- mamente por um sínodo em Antioquia, em 499, como sendo o autor do Nestoria- nismo. Escreveu muitas obras, inclusive comentários da Escritura. No período final de sua vida, seguiu o método gramático-histórico de exegese em oposição ao mé- todo alegórico da escola de Alexandria.6 b. Teodoro de Mopsuéstia (c. 350-428) Teodoro foi discípulo de Diodoro de Tarso. Foi exegeta e teólogo da escola de Antioquia. Veio de uma rica família de Antioquia, e foi educado aos pés de João 4. New Dictionary of Theology, orgs. Sinclair B. Ferguson e David F. Wright (Inglaterra: Inter Varsity Press, 1988), 32. 5. J. L. Neve, A History of Christian Thought (Filadélfia: The Muhlenberg Press, 1946), 128. 6. Ver J. D. Douglas, The New International Dictionary of the Christian Church, org. J. D. Douglas (Grand Rapids: Zondervan, 1978), 964. 27ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA Crisóstomo. Abandonou a carreira secular, c. 369, e foi para a escola monástica de Diodoro de Tarso. Foi ordenado presbítero por Flaviano, em 383, e, em 392, foi tornado bispo de Mopsuéstia, na Cilícia. Mesmo morrendo em 428, o seu prestígio foi postumamente envolvido, após o Concílio de Éfeso, em 431, quando o relacionaram ao seu condenado aluno Nestório. Sofreu a forte oposição de Cirilo de Alexandria e, embora tenha gozado de um certo apoio póstumo de Calcedônia, seusescritos foram anatematizados no Segun- do Concílio de Constantinopla (553). Escreveu muitas obras exegéticas e comen- tários. As suas obras são mais bíblicas e exegéticas e menos filosóficas do que a dos alexandrinos.7 c. Teodoreto de Ciro (c.393-458) Nasceu em Antioquia, foi para o monastério em 416, e, sete anos depois, tor- nou-se bispo da Ciro, na Síria, e permaneceu bispo ali pelo resto de sua vida, exceto por dois anos, de 449 a 451, por ter sido deposto do ofício por questões cristológicas. Tornou-se um grande exegeta da Escola de Antioquia, escrevendo comentários curtos sobre Cantares de Salomão, os Profetas, Salmos, e sobre as Epístolas Paulinas. Nas controvérsias cristológicas, ele enfrentou os da escola de Alexandria, es- pecialmente Cirilo de Alexandria, no Concílio de Éfeso, em 431. Quando Cirilo dirigiu anátemas a Nestório, Teodoreto saiu em favor de Nestório, defendendo-o. Por sua oposição teológica, Teodoreto foi deposto e exilado pelo Sínodo de Latrão, em 449, realizado em Éfeso, mas foi restaurado no Concílio de Calcedô- nia, em 451, onde teve que aceitar a expressão theotokos, e teve de participar da condenação de Nestório, a quem havia defendido anteriormente.8 2. A RELAÇÃO DAS DUAS NATUREZAS DE CRISTO SEGUNDO A ESCOLA DE ANTIOQUIA É importante lembrar que a escola de Antioquia nunca negou nenhuma das duas naturezas e nem qualquer mistura das delas. Todavia, o sentido de união entre as naturezas da qual eles falam tem uma conotação diferente das formulações cris- tológicas posteriores. a. A relação entre as naturezas não é a de uma União Pessoal Os postulantes de Antioquia expressaram a relação entre as duas naturezas de Cristo numa espécie de união, mas essa união nada tem a ver com a unio persona- lis afirmada posteriormente nos concílios da Igreja. 7. Ver J. D. Douglas, The New International Dictionary of the Christian Church, 964. 8. J. D. Douglas, The New International Dictionary of the Christian Church, 965. 28 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Para alguns mestres da escola de Antioquia, “a divindade [de Cristo] tem sua residência na humanidade. O Logos reside no homem Jesus como num santuário; essa habitação é também comparada à habitação de Cristo no coração dos crentes.”9 A palavra que os da Escola de Antioquia usaram para descrever essa “união” era “conexão” ou “conjunção” (da palavra grega suna/meia). Como nessa escola não há lugar para uma real encarnação do Logos, diante da expressão bíblica “e o Verbo se fez carne” (Jo 1.14), Teodoro de Mopsuéstia disse que esse verso nunca deve ser tomado literalmente; o Logos foi simplesmente adotado pela carne de Jesus e fez dela a sua habitação.10 Essa postura se deve ao fato de os expoentes de Antioquia terem feito uma separação radical entre as duas naturezas. Isso dificul- tou para eles a verdadeira união das naturezas. G. A. Keith diz que “Ele [Teodoro de Mopsuéstia] gostava de ilustrar isso [a conjunção] com a metáfora da habitação. A natureza humana de Cristo funciona como um templo no qual Deus habita. Mas essa habitação, que se dá pelo beneplácito de Deus, difere da habitação de Deus nos profetas e em outros homens santos em virtude de sua permanência e completa- mento.”11 Obviamente, essa visão de Antioquia foi rejeitada violentamente pelos adver- sários de Teodoro de Mopsuéstia. A união era só aparente, não uma união real. A conjunção das duas naturezas (mencionada acima) não é uma “união pessoal”, uma união das duas naturezas essenciais (divina e humana), mas uma união gra- ciosa onde o Logos entrou numa relação íntima com a humanidade de Jesus – uma espécie de união moral. Teodoreto de Ciro, que acabou não ficando com nenhum dos lados extremos da controvérsia cristológica, “sustentava que Cristo tinha duas naturezas unidas em uma pessoa, mas não em essência”.12 Pensava ligeiramente diferente de Teodo- ro de Mopsuéstia, mas ainda assim não aceitava a real união pessoal ou hipostática. Na Escola de Antioquia, “a natureza humana se desenvolveu independente- mente da divindade; portanto, uma real participação da divindade na experiência da vida humana não era admissível. Contrariamente à intenção de Antioquia, isso destruiu a real união das duas naturezas na pessoa de Cristo.”13 b. A relação entre as duas naturezas parece implicar em duas pessoas Diodoro de Tarso “preferia falar de dois Filhos e duas naturezas, e negava 9. Neve, A History of the Christian Thought, 129. 10. Neve, A History of the Christian Thought, 130. 11. G. A. Keith, no New Dictionary of Theology, orgs. Sinclair B. Ferguson e David F. Wright (Inglater- ra: InterVarsity Press, 1988), 32. 12. J. D. Douglas, The New International Dictionary of the Christian Church, 965. 13. Neve, A History of the Christian Thought, 130. 29ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA qualquer espécie de comunicação de atributos... A negação da transferência de propriedades permaneceu como o ensino padrão da escola de Antioquia”.14 Harry Buis afirma que, em oposição ao apolinarismo, Diodoro de Tarso “tendeu a ir para o extremo oposto e, assim, tornou-se o precursor da heresia nestoriana. Sua tentativa de resolver o problema das duas na- turezas de Cristo levou-o a uma posição onde ele pensava que o Lo- gos residia no homem Jesus como num templo ou numa roupa. Para ele, a união das duas naturezas era externa e moral antes do que subs- tancial... Na verdade, ele dividiu Cristo em duas pessoas, ao invés de afirmar uma pessoa com duas naturezas.”15 A separação que ele fazia das duas naturezas era tão grande que ele chegava a pensar que a natureza humana de Jesus Cristo foi quem morreu na cruz, enquanto que o Verbo divino permaneceu impassível. Os defensores da escola de Antioquia geralmente aceitavam a impassibilidade de Deus. Por essa razão, a tendência para um crescente Nestorianismo na escola de Antioquia. Duas naturezas, mas duas pessoas. Teodoro de Mopsuéstia percebeu o perigo das duas pessoas para a Cristologia e tentou evitar essa acusação que vinha sobre a teologia da escola de Antioquia. Ele disse: “O Filho é corretamente confessado ser um, visto que a distinção deve neces- sariamente permanecer, e a unidade da pessoa deve ser guardada sem interrupção.”16 “Não obstante, essa unidade não significava mais do que o ajusta- mento harmonioso da vontade de Jesus à vontade do Logos, de forma que Jesus se tornou o perfeito órgão do desejo e da ação do Logos. Assim, Teodoro parecia aparentemente assegurar a unidade das duas naturezas.”17 Na verdade, a união que Teodoro de Mopsuéstia apregoava não passava de uma adequação da vontade humana à vontade divina. Não era uma unio persona- lis, mas a vontade de Jesus submissa à vontade do Logos. A dificuldade da união das duas naturezas para Teodoro de Mopsuéstia está clara na sua citação a seguir: “Quando distinguimos as naturezas, sustentamos que a natureza de Deus, o Verbo é perfeita; perfeita, também a pessoa – por isso não é possível falar de uma existência distinta, que é impessoal; perfeita, também, a natureza do homem, e a pessoa igualmente. Mas quando olhamos para a conjunção das duas, então dizemos que há uma pessoa.”18 14. New Dictionary of Theology, 32. 15. Harry Buis no verbete “Diodorus”, Philip E. Hughes, org., The Encyclopedia of Christianity, vol. III (Delaware: The National Foundation for Christian Education, 1972), 398, 399. 16. De Incarnatione, XV, 1, apud Neve, A History of the Christian Thought, vol. 1, 129. 17. Neve, A History of the Christian Thought, vol. 1, 129. 18. De Incarnatione, VIII, apud Neve, A History of the Christian Thought, vol. 1, 129. 30 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Ao mesmo tempo, Teodoro fala de uma pessoa unida na harmonia das duas vontades, mas também fala da perfeição das duas pessoas que são vistas como uma quando contempladas na conjunção das naturezas. Obviamente, sua tendência, como a dos outros expoentes de Antioquia mencionados aqui, era em direção ao Nesto- rianismo. Ele não cria numa verdadeira união pessoal. Teodoretode Ciro não cria na união hipostática ou na união natural (ensinada por Cirilo de Alexandria) porque ela “significava para ele uma fusão da divindade com a humanidade numa composição híbrida sob a influência de alguma lei física de combinação mecânica inteiramente oposta a qualquer conceito de ato voluntá- rio e gracioso que caracterizou a encarnação”.19 A unio personalis, da forma como a Igreja veio a crer posteriormente, não era concebível dentro do esquema teológi- co de Antioquia porque, a princípio, os seus postulantes criam que havia duas naturezas e duas hipóstases, o que abriu caminho para a controvérsia com Nestório. B. O PENSAMENTO CRISTOLÓGICO DA ESCOLA DE ALEXANDRIA A cidade de Alexandria foi o centro intelectual do primitivo império romano, especialmente pela força da educação grega no tempo de Orígenes. Foi o pensa- mento grego que, de alguma forma, condicionou a teologia de Alexandria no de- senvolvimento feito por Clemente (c. 159-215)20 e Orígenes (185-251). Clemente de Alexandria estudava as obras de Filo, o filósofo judeu do primei- ro século que era de Alexandria, para tentar reconciliar a revelação bíblica com a herança educacional grega. Por isso, Hagglund disse que a escola de Alexandria “fez a primeira tentativa de estabelecer uma síntese entre o cristianis- mo e a filosofia grega. Diferentemente dos apologistas, os alexandri- nos não se contentaram simplesmente em apresentar a tradição cristã como uma contraparte superior à filosofia. E diferentemente dos gnós- ticos, eles não procuraram substituir o cristianismo por uma doutrina sincrética da salvação que abandonasse alguns dos elementos funda- mentais da fé cristã.”21 A teologia de Alexandria chegou ao seu ponto máximo sob a influência de Orí- genes. Todavia, o prestígio teológico da teologia Alexandria caiu quando Ário, bispo de Alexandria, ensinou a teoria de que Cristo era o Filho criado de Deus, não sendo, portanto, divino ontologicamente. Durante o século 4º, gradativamente a escola caiu na obscuridade, embora houvesse nela o brilho de Alexandre e Atanásio, que ataca- ram o arianismo, sendo os líderes do estabelecimento da ortodoxia cristã.22 19. New Dictionary of Theology, 33. 20. Sobre Clemente de Alexandria, veja Bengt Hagglund, History of Theology, (Saint Louis: Concordia Publishing House, 1968), 61-63. 21. Bengt Hagglund, History of Theology, 59. 22. The New International Dictionary of Christian Church, org. J. D. Douglas, 26. 31ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA Os de Alexandria não estavam querendo misturar o Cristianismo com filoso- fia, mas somente apresentá-lo como a mais alta verdade.23 Nessa tentativa de apre- sentar o Cristianismo como a verdade suprema, podemos dizer que houve várias ênfases da escola de Alexandria: (1) ela se preocupou com o lugar do professor e da pesquisa intelectual livre da Igreja;24 (2) ela tratou da relação entre fé e razão;25 (3) ela tratou da interpretação das Escrituras;26 (4) Ela tratou da Cristologia,27 que é o que nos interessa neste momento. Em termos cristológicos, a escola de Alexandria segue numa direção diferente da escola de Antioquia. O ponto de partida dessa escola era o lado divino da Pes- soa de Cristo e a encarnação de Cristo. O texto de João, “e o Verbo se fez carne” (Jo 1.14) era o texto chave deles. 1. REPRESENTANTES DA ESCOLA DE ALEXANDRIA a. Atanásio (297-373) Atanásio, que foi um dos campeões da teologia de Nicéia28 contra o arianismo, era egípcio de nascimento, mas havia recebido a educação grega. Foi influenciado por Alexandre, bispo de Alexandria, por quem foi ordenado diácono. Trabalhou muito numa escola catequética de Alexandria. Com a morte de Alexandre, em 328, Atanásio assumiu o bispado de Alexandria, aos trinta e três anos de idade. Por causa da sua luta contra o arianismo, foi alvo dos ataques deles. Experimentou cinco exílios, tendo que fugir e se esconder durante 17 anos, mas sempre encon- trou abrigo e proteção nos monges do deserto e também em Alexandria, onde era querido do povo.29 “No interesse da precisão cronológica, deveria ser lembrado que Ata- násio escreveu antes do tempo dos da escola de Antioquia. Mas Ata- násio é tratado aqui porque os teólogos de Alexandria começaram com a sua cristologia. Deveria também ser lembrado que Atanásio não tratou intencionalmente com a pessoa e as naturezas de Cristo”.30 23. Bengt Hagglund, History of Theology, 59. 24. Sobre a pedagogia de Deus em Clemente de Alexandria, veja Bengt Hagglund, History of Theology, 61, 62. 25. Sobre fé e razão (ou gnosis) em Clemente de Alexandria, veja Bengt Hagglund, History of Theology, 62, 63. 26. Sobre a interpretação das Escrituras em Orígenes, veja Bengt Hagglund, History of Theology, 63-64. 27. Ver New Dictionary of Theology, orgs. Sinclair Ferguson e David Wright (Downers Grove, Il: Inter- Varsity Press, 1989), 14. 28. Atanásio, embora tivesse sido um campeão da ortodoxia da Igreja contra o surgimento do arianismo, não participou ativamente dos procedimentos conciliares de Nicéia, mas como secretário do bispo Alexan- dre de Alexandria, tendo, todavia, grande influência, porque escrevia para o bispo as encíclicas, cartas, circulares, etc. (ver The New International Dictionary of the Christian Church, 81). 29. Ver The New International Dictionary of the Christian Church, 79, 80. 30. Neve, A History of Christian Thought, 130, nota de rodapé 1 (grifos acrescentados). 32 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Além da influência de Atanásio, a teologia de Alexandria recebeu a influência dos dois Gregórios da Capadócia, que ficaram conhecidos como Pais Capadócios, e de Cirilo de Alexandria. b. Gregório de Nazianzo (330-389) É conhecido como um Pai Capadócio. Seu pai era bispo da Capadócia, de onde ele derivou o seu título. Foi educado em Cesaréia, onde se tornou amigo de Basí- lio, o grande. Defendeu a fé Nicena combatendo o arianismo. Após se tornar bispo de Constantinopla e presidir brevemente o Concilio de Constantinopla (381), Gre- gório renunciou e se retirou agradecidamente para a Capadócia”,31 para a cidade de Nazianzo, onde assumiu a responsabilidade da Igreja, mas a partir de 384 foi para a propriedade de sua família, onde finalmente morreu.32 “A principal contribuição de Gregório de Nazianzo para o desenvol- vimento da Cristologia aconteceu em sua oposição a Apolinário. Ele argumentou que a totalidade da natureza humana que caiu em Adão deve ser unida ao Filho, corpo, alma e mente, porque ‘o que não é assumido não é sarado’.”33 Com respeito à união das duas naturezas, Gregório de Nazianzo assumiu o ponto-de-vista que “na encarnação, a humanidade de Cristo, por causa de um processo de mistura ou mescla (synkrasis, anakrasis, mixis), ficou totalmente desaparecida na divindade. Ele comparou a divindade e a humanida- de de Cristo ao sol e as estrelas; o sol brilha com tal fulgor que prati- camente extingue as estrelas.”34 Com isso ele queria dizer que a humanidade de Cristo é absorvida e engolfada por sua divindade. A ênfase sobre a divindade deixa a humanidade diminuída e, até mesmo, anulada. c. Gregório de Nissa (335-395) Gregório de Nissa foi de grande valor na vitória da ortodoxia sobre o arianis- mo. Não possuía uma boa educação formal, como seu irmão Basílio, mas era bri- lhante no raciocínio. Tornou-se um professor de retórica e foi mais brilhante que seus irmãos como um pensador especulativo. Foi ordenado bispo de Nissa em 372 por seu irmão Basílio para assisti-lo numa luta pelo poder eclesiástico. Após a 31. T. A. Noble, no New Dictionary of Theology, org. S. Ferguson, 281. 32. G. L. Carey, The New International Dictionary, 435. 33. T. A. Noble, no New Dictionary of Theology, org. S. Ferguson, 281. 34. J. L. Neve, A history of Christian Thought (Filadélfia: The Muhlenberg Press, 946), 131. 33ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA morte de Basílio, Gregório foi uma das figuras exponenciais no Concílio de Con- stantinopla, em 381.35 Gregócio de Nissa não conseguiu fugirda mesma dificuldade sobre a relação das duas naturezas de Cristo que o seu homônimo de Nazianzo teve. Ele também “disse que o corpo passivo de Cristo tinha se misturado com a Sua divindade ativa, que o humano tinha se transformado no divino. Ele igualou o divino e o humano ao mar e uma gota de vinagre, que fica completamente envolta e absorvida na vastidão do oceano.”36 A sua tendência docética fica patente no seu pensamento sobre a união das duas naturezas. A natureza humana, embora existente, fica eclipsada pela natureza divina, ao ponto dela não poder ser percebida em virtude da grandeza e da majes- tade da sua divindade. É importante observar “aqui que o Docetismo tem sempre sido a acusação feita contra os teólogos que têm seguido um curso diferente daquele seguido pela escola de Antioquia.”37 d. Cirilo de Alexandria (375-444) Nasceu e cresceu em Alexandria, e ali tornou-se bispo, em 412. Aprendeu teo- logia entre os monges do deserto. Lutou veementemente contra Nestório. Escre- veu muitas homilias, e várias delas exerceram um papel central no conflito com Nestório, que acabou sendo condenado no Concílio de Éfeso, em 431. Neve diz que “é verdade que houve certos elementos pessoais que estavam envolvidos no conflito entre Cirilo e Nestório. A acusação é que o bispo Cirilo era um homem que usava meios questionáveis para estabelecer e para incrementar a causa pela qual ele dava suporte”.38 Adolf von Harnack, um teólogo liberal, tentando mostrar algum tipo de defesa de Cirilo, e, ao mesmo tempo, honestidade com os fatos históricos, sustentava que “enquanto Cirilo era ofensivo nos métodos que usava, todavia ele era honesto nos princípios que apoiava. Não deve ser esquecido que ele escreveu sua obra De Incarnantione Unigenite antes do surgimento da controvér- sia nestoriana”.39 Além das questões pessoais e dos métodos duros empregados por Cirilo contra Nestório, havia “a rivalidade eclesiástica entre as duas sés, a de Alexandria e a de Constantinopla, que exerceu uma parte importante em toda a controvérsia.”40 35. T. A. Noble, no New Dictionary of Theology, org. S. Ferguson, 282. 36. J. L. Neve, A History of Christian Thought (Filadélfia: The Muhlenberg Press, 1946), 131. 37. J. L. Neve, A History of Christian Thought , 131. 38. Neve, A History of Christian Thought, 133. 39. Citado por Neve, A History of Christian Thought, 133. 40. Neve, A History of Christian Thought, 133. 34 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR Os últimos anos de vida de Cirilo foram gastos em paz, embora ele tenha tido de explicar o seu ensino aos críticos de ambas as escolas, de Alexandria e de An- tioquia.41 Cirilo de Alexandria e seus sucessores se opuseram à divisão proposta por Antioquia, entre o divino e o humano em Cristo, por insistir sobre a unidade de sua pessoa. Neve afirma que, para Cirilo, “somente antes da união e in abstrato pode- mos falar de duas naturezas; após a encarnação e in concreto podemos falar so- mente de uma natureza divino-humana”.42 Por causa disso, alguns de seus críticos viram-no como pendendo para o campo do monofisismo, e os monofisitas julga- ram ter Cirilo do lado deles. Dentre as suas muitas obras, destacamos aqui Cinco Livros de Negação das Blasfêmias de Nestório, onde ele argumenta em favor da união pessoal do Logos divino com a carne nascida de Maria, contra a Cristologia de Nestório, baseada na conjunção entre o Logos divino e o homem nascido de Maria. Todavia, a terminologia de Cirilo às vezes era confusa e apresentou proble- mas, porque ela era flexível e sujeita a equívocos, embora o seu pensamento fosse claro. Um exemplo de terminologia que causou confusão foi o fato de ele argu- mentar em favor de dois nascimentos do mesmo e único Filho divino: um na eter- nidade (o divino) e um na história (o humano), enquanto que o argumento de Nes- tório era o de dois Filhos, um divino e um humano, que estão unidos em Cristo.43 O que Cirilo queria mostrar era que o divino e o humano estavam no mesmo Emanu- el, enfatizando a união hipostática das duas naturezas, sua comunicação de atribu- tos, e, acima de tudo, que sua virgem mãe que é verdadeiramente theotokos (porta- dora de Deus).44 2. UNIÃO DAS NATUREZAS DE CRISTO NA ESCOLA DE ALEXAN- DRIA “A unidade de Cristo não somente deu forma à Cristologia alexandri- na, mas ela também proporcionou um esquema para interpretar os evangelhos. Embora salvaguardando a unidade da pessoa de Cristo, a abordagem alexandrina conduziu ao monofisismo, que apelou para Cirilo como seu mentor teológico.”45 Para Orígenes, “a alma de Cristo não caiu do seu estado de pureza. Sua alma entrou em seu corpo, e assim as naturezas divina e humana foram unidas... mas o lado físico de Cristo foi progressivamente absorvido pelo divino, de forma que ele 41. New Dictionary of Theology, 184. 42. Neve, A History of Christian Thought, 134. 43. New Dictionary of Theology, 185. 44. Ibid., 185. 45. E. Ferguson, New Dictionary of Theology, 14. 35ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA cessou de ser homem.”46 Cristo acabou ficando com uma só natureza, a divina. Uma natureza foi absorvida na outra, pavimentando o caminho para aquilo que posteriormente se chamaria monofisismo. Não somente Orígenes teve dificuldade sobre a união das duas naturezas, mas mesmo os Pais Capadócios – os dois Gregórios – não conseguiram chegar a uma teoria consolidada sobre a relação das duas naturezas em uma só Pessoa. Cirilo de Alexandria é quem trataria melhor desse assunto.47 Neve diz que “por empregar a concepção das duas naturezas, a humana, que é impessoal, e a divina, como o sujeito de ambas, Cirilo evitou usar a palavra mixture, que os Capadócios haviam usado”.48 O resumo do sistema cristológico de Cirilo é fornecido por Neve, da seguinte forma: “Há duas naturezas e, todavia, uma unidade. Uma não é mudada na outra; nem são as duas fundidas uma na outra. Nem há um junção de uma natureza com a outra (suna/feia), nem a habitação da divindade na humanidade (e)noi/xhsij). Cada natureza preserva seus atributos”. Todavia, Neve diz ainda que “o sistema de Cirilo realmente não ofereceu ne- nhuma solução razoável para o problema [da relação das duas naturezas]”.49 Cirilo conseguiu chegar onde os Pais de Calcedônia chegaram algum tempo depois. É bem provável que Cirilo tivesse a intenção de resolver finalmente as questões so- bre a unio personalis, mas “ele simplesmente afirmou o mistério da piedade (1Tm 3.6) em harmonia com as tradições ortodoxas da Igreja expressas por Atanásio e pelos Capadócios, evitando ao mesmo tempo os erros de seus predecessores”.50 Algumas outras questões que ainda permaneceram depois de Cirilo foram: era Cristo uma pessoa com as naturezas divina e humana, ou era ele uma pessoa huma- na com natureza humana e uma pessoa divina com natureza divina, ou ainda, uma pessoa com uma espécie de duas naturezas fundidas, um tertium quid? Essas ques- tões foram levantadas devido ao aparecimento de movimentos condenados em Calcedônia, mas que não pararam por aí. Após Calcedônia, outros movimentos apareceram, como é o caso dos Monofisitas e dos Monotelitas. ERROS SOBRE A UNIO PERSONALIS ANTES E DEPOIS DE CALCEDÔNIA Há vários erros sobre a unio personalis, tanto antes como depois do Concílio de Calcedônia. Para os nossos propósitos, mencionaremos e discorreremos apenas sobre alguns deles. 46. Bengt Hagglund, History of Theology, 67. 47. J. L. Neve, A History of Christian Thought (Filadélfia: The Muhlenberg Press, 1946), 131. 48. Ibid., 133. 49. Ibid, 134. 50. Ibid., 134. 36 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR A. NESTORIANISMO O movimento teológico conhecido como Nestorianismo está relacionado ao nome de Nestório (428-451), Patriarca de Constantinopla, que era um expoente extremo da Cristologia de Antioquia. Antes de ser Patriarca de Constantinopla, Nestório foi presbítero e monge na cidade de Antioquia. Seu maior adversário teológico foi Cirilo, bispo de Alexandria, que acabou levando Nestório à condena- ção no Concílio de Éfeso, convocado pelo imperadorTeodósio, em 431. Nestório foi exilado pelo imperador no seu próprio monastério em Antioquia, e, mais tarde, foi exilado no Grande Oásis no Egito, onde morreu, no ano da reali- zação do Concílio de Calcedônia, em 451. Os cristãos ligados ao Nestorianismo eram caracterizados por um forte zelo missionário, e levaram o evangelho à Índia e Arábia. Nos séculos 13 e 14 os cristãos nestorianos sofreram muito sob a invasão dos mongóis. Grupos de “cristãos assírios” sobrevivem, consideram-se nestoria- nos e proíbem a designação “theotokos”. 1. A CONTROVÉRSIA DE NESTÓRIO SOBRE O TERMO THEOTOKOS A teologia do nestorianismo afirmava que havia duas pessoas, a divina e a humana, vivendo juntas em Jesus Cristo. Nestório tomou partido na controvérsia sobre a questão de Maria poder ser chamada Theotokos (qeoto/koj), uma expres- são técnica que literalmente significa “portadora de Deus”, retirada do Credo de Atanásio e que, de maneira infeliz, popularmente foi interpretada erroneamente como “mãe de Deus”, interpretação esta que prevaleceu na história do Catolicismo e não fugiu de algumas tradições protestantes. A essa altura, “o uso popular do termo theotokos havia alcançado um ponto onde os homens se atreviam a conside- rar a virgem como uma espécie de modo divino, igual a Deus”.51 Macleod diz ainda que “a razão por sua aversão ao termo [theotokos]não foi principalmente sua tendência de encorajar a mariolatria, mas a ameaça que o termo colocou sobre a divindade de Cristo”.52 Certamente, por causa disso, Nestório foi contra essa de- signação, rejeitando-a, e preferiu a expressão Christotokos (xristoto/koj, que literalmente significa “portadora de Cristo”). Macintosh afirma que Nestório teria dito: “Maria não portava a divindade; ela portava um homem que era o órgão da divindade”.53 Ela não era Theotokos, mas Cristotokos. Nestório até preferiria usar a expressão Anthropotokos (a)nqropoto/koj, que literalmente traduzida significa “portadora de homem”), para designar a expressão relativa a Maria. Macleod obser- va que “se Maria fosse proclamada como a Mãe da Palavra [Verbo] de Deus, isso não abriria a porta para a antiga noção ariana de que o Logos era uma criatura?”.54 51. Macleod, The Person of Christ, 182. 52. Ibid. 53. H. R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribenr´s Sons, 1912), 203. 54. Donald Macleod, The Person of Christ, 182. 37ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA Não há dúvida de que, em alguns círculos protestantes, essa opinião de Nestó- rio alcançaria muito maior simpatia do que a expressão theotokos, por causa da mariolatria percebida nos círculos católicos, especialmente em países da América do Sul. Na sua formulação cristológica, ao tentar preservar as duas naturezas de Cris- to, Nestório acabou deixando transparecer duas pessoas, mais do que simplesmen- te duas naturezas, negando que houvesse qualquer união orgânica entre o homem Jesus e o Logos Divino que nele habitava.55 A analogia usada por Nestório para explicar a sua Cristologia era a da união do crente com Cristo. Na, verdade, isso não é encarnação, mas a deificação de um homem, que veio de baixo, não de cima. Longe de ser uma encarnação, a Cristologia de Nestório enfatizava mais uma aliança, uma união de Deus com o homem. 2. O ERRO CRISTOLÓGICO DE NESTÓRIO Corretamente, Nestório defendia tanto a divindade de Jesus Cristo (afirmada pelo Concílio de Nicéia) como sua humanidade (afirmada por Constantinopla). Todavia, o erro de que Nestório é acusado tem a ver com a união das duas nature- zas de Cristo. O nestorianismo é acusado de ensinar a existência de duas pessoas em Jesus Cristo, a divina e a humana. Não se pode esquecer que Nestório é um discípulo da tradição da escola de Antioquia. Nela, Deus o Verbo é agudamente distinto do homem Jesus. Nestório disse em um dos seus sermões: “Por amor daquele que se gasta eu adoro aquele que foi gasto; por amor daquele que é escondido eu adoro aquele que aparece. Daquele que aparece, Deus é inseparável: por essa razão eu não separo a honra daquele que é inseparado. Eu separo as naturezas, mas eu combino a adoração.”56 Nestório ensinou que as duas naturezas de Cristo permanecem inalteradas e distintas em sua união dentro de Jesus Cristo. “O ponto forte do nestorianismo é sua tentativa de fazer plena justiça à humanidade de Cristo (um verdadeiro Salvador de homens), mas o seu ponto fraco é que ele coloca as duas naturezas juntas uma da outra com pouco mais do que uma união moral e simpática entre elas.”57 Na tentativa de separar claramente as duas naturezas é possível que Nestório 55. Veja New Dictionary of Theology, 457. 56. Sermo 9 (Loofs, Nestoriana, 262), citado por H. R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 204. 57. Peter Toon, em The New International Dictionary of the Christian Church, organizado por J.D. Douglas (Grand Rapids: Zondervan, 1978), 700. 38 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR tenha dito alguma coisa que tenha dado a entender que ele admitia duas pessoas distintas em Jesus Cristo. Há apenas poucas frases realmente atribuídas a Nestório em documentos,58 e é possível que ele não tenha sido devidamente entendido por aqueles que o ouviram ou que o leram. O fato é que tem havido controvérsias entre os estudiosos sobre o pensamento de Nestório. Certamente ele teve a infelicidade de ter como adversário uma das figuras mais poderosas da história a Igreja – Cirilo de Alexandria (376-444),59 que certa- mente interpretou a sua teologia e, por causa disso, o nome de Nestório não foi muito bem visto durante muitos séculos. Ele foi condenado no Concílio de Éfeso (341) sob a influência de Cirilo, que o anatematizou como um herege e o declarou deposto. O imperador o exilou para o seu monastério em Antioquia e, mais tarde, para o Grande Oásis do Egito, onde ele morreu, em 451. Todavia, essa acusação de se atribuir uma dupla personalidade a Cristo tem sido historicamente questionada por alguns teólogos, como veremos abaixo. 3. DEFENSORES MODERNOS DE NESTÓRIO Na sua época, Nestório recebeu o apoio de vários teólogos orientais, pois sua teologia era considerada ortodoxa. Modernamente também alguns autores tentam isentar Nestório da heresia de que foi acusado, seguindo o próprio intuito de Nestório ao tentar provar a sua inocência. Mesmo teólogos bem conservadores têm uma opinião razoavelmente favorá- vel a Nestório. A heresia conhecida como nestorianismo tem a sua discussão com- plicada pelo fato de que Nestório quase certamente não era aquilo que nós, hoje, chmamos de nestoriano.60 “Ele não sustentava a crença regularmente atribuída a ele de que em Jesus Cristo havia duas pessoas, a pessoa de um Deus e a pessoa de um homem que foram, mecanicamente, colocadas juntas, uma sendo Filho por natureza e, a outra, Filho por associação, de forma que real- mente havia dois Filhos e dois Cristos. Ele é tão explícito quanto possível neste ponto.”61 58. Como se pensava que seus escritos só existiam em fragmentos, durante a história da Igreja foi difícil concordar com Nestório que ele não era um herege. “Mas a descoberta, em 1910, de The Book (Bazaar) of Heracleides, numa versão siríaca, tem proporcionado um maior entendimento de suas posições. Não obs- tante, eruditos modernos não estão em acordo em sua avaliação da doutrina de Nestório. Para alguns, ele foi a vítima infeliz de política eclesiástica; para outros, ele permanece culpado de erros teológicos aponta- dos contra ele por Cirilo e outros” (Peter Toon, em The New International Dictionary of the Christian Church, organizado por J.D. Douglas [Grand Rapids: Zondervan, 1978], 699). 59. H. R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 204, (nota de rodapé 1). 60. Donald Macleod, The Person of Christ, 181-82. 61. Frase retirada de Bethune-Baker, Nestorius and his Teaching (Cambridge, 1908), 82, e citada por H. 39ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NAHISTÓRIA DA IGREJA E ainda: “[Nestório] não pensava [a respeito] de duas pessoas distintas junta- das, mas de uma única pessoa que combinou em si mesma as duas coisas (substâncias) distintas, a divindade e a humanidade, com suas características (naturezas) completas e intactas embora unidas nele.”62 Isso foi escrito a respeito de Nestório no começo do século XX. Mais recente- mente, tem sido dito que “Nestório manteve a sua ortodoxia, declarando que as Escrituras mostram Cristo como tendo sido verdadeiramente divino e, como tal, não envolvido no sofrimento humano e em mudança. As mesmas Es- crituras apresentam Cristo como tendo vivido uma verdadeira vida humana de crescimento, tentações e sofrimento. A única maneira de entender a relação desses dois elementos distintos, o da plena divin- dade e o da plena humanidade, é reconhecer a presença separada de- les na ‘prosopon comum’ da união.”63 Em seus Fragmentos, Nestório declara que “Cristo é indivisível naquilo em que ele é Cristo, mas ele é duplo naquilo em que ele é ambos, Deus e homem; ele é um em sua Filia- ção, mas ele é duplo naquilo em que toma e naquilo em que é tomado. Na prosopon do Filho ele é um indivíduo, mas, como no caso de dois olhos, ele é separado nas naturezas da humanidade e divindade.”64 Não obstante a sua tentativa de defesa, historicamente a sua Cristologia tem sido considerada heresia. A teologia de Nestório foi rejeitada no Concílio de Éfe- so, em 431 A.D., e até hoje, a despeito de alguns seus defensores, continua sobre ele o peso de ter gerado uma heresia cristológica. B. MONOFISISMO (OU EUTIQUIANISMO) Num sentido bem básico, o monofisismo é a crença doutrinária de que Jesus Cristo possuía uma só natureza. O próprio nome aponta para essa conclusão: mono= um, e physis= natureza. Os defensores do monofisismo são a contraparte do duofi- sismo esposado por Calcedônia. R. Macintosh, The Doctrine of the Person of Jesus Christ (Nova York: Charles Scribner´s Sons, 1912), 204 (nota de rodapé 1). 62. Ibid. 63. New Dictionary of Theology, organizado por Sinclair Ferguson e David Wright (Inglaterra: Inter Varsity Press, 1989), p. 457. 64. Frase de Nestorius em seus Fragmentos, 297, como citado em Ferguson, New Dictionary of Theolo- gy, p. 457. 40 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR 1. O MONOFISISMO DE ÊUTICO Êutico (378-454) é o personagem mais conhecido relacionado ao monofisis- mo. Ele era um superior de mosteiro em Constantinopla, por volta da metade do século 5º. A resposta às perguntas acima apontaria para uma espécie de monofisis- mo onde a humanidade de Cristo seria absorvida por sua divindade. O próprio Êutico havia lutado contra o nestorianismo, mas acabou se opondo à posição dos bispos da ortodoxia com quem havia ladeado na luta contra o pensamento de Nes- tório.65 a. A reação de Êutico a Nestório O Concílio de Éfeso tinha afirmado que “o Verbo, de um modo indizível e inconcebível, uniu a si mesmo a carne hipostaticamente animada por uma alma racional, e assim tornou-se homem”.66 Essa afirmação de Éfeso não responde a algumas perguntas que foram feitas posteriormente: “Como o relacionamento ente o divino e o humano deveria ser entendido? Como se pode falar de Deus como sendo encarnado em Jesus, e ainda se falar que Jesus tem uma humanidade ple- na?”. Alguns tentaram responder perguntas como essas. Entre eles estava Êutico. O pensamento de Êutico, assim como o de Nestório, tem a ver com os proble- mas da união das duas naturezas na pessoa de Cristo, que ainda estavam longe de serem resolvidos. “Se a tendência da escola de Antioquia era a de enfatizar excessiva- mente a humanidade Cristo, e, assim, a distinção entre as naturezas (o caso de Nestório), a tendência da escola de Alexandria era a de enfa- tizar excessivamente a divindade dele; e não meramente uma ênfase excessiva nela, mas a insistência em seu papel dominante e determi- nante dentro da pessoa.”67 Foi nessa última escola que Êutico desenvolveu o seu pensamento. As tendên- cias monofisitas (uma natureza) nasceram dentro da escola do pensamento de Ale- xandria, na metade do século 5º.68 Êutico, que representava o pensamento da escola de Alexandria, foi um forte opositor da teologia de Nestório. Na verdade, seu ensino foi o oposto do nestoria- nismo. Êutico sustentava que havia a unidade da auto-consciência na Pessoa de Cristo, mas havia a perda da dualidade das naturezas. Sustentava ainda que, como um resultado da encarnação, houve uma fusão do divino com o humano em Jesus 65. Concílio de Calcedônia, Definitio fidei, Norman P. Tanner, ed., Decrees of the Ecumenical Councils, (Washington D.C., 1990), 86. 66. Cirilo de Alexandria, Cyrilli epistula altera ad Nestorium (como aceito pelo Concílio de Éfeso), ver em Norman P. Tanner, ed., Decrees of the Ecumenical Councils (Washington D.C., 1990), 41. 67. Macleod, The Person of Jesus Christ, 183. 68. Ibid. 41ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA Cristo. Diante da pergunta de se ele confessava duas naturezas no Cristo encarna- do, Êutico declarou “nosso Senhor surgiu de duas naturezas antes da união, mas eu confesso uma natureza após a união”.69 Portanto, o “consenso entre os eruditos parece ser o de que ele cria que, na encarnação, a divindade de Cristo absorveu completamente a humanidade”.70 Assim, diferentemente de Nestório, Êutico ensi- nava que, em Cristo, havia uma pessoa e uma natureza, porque a natureza humana havia sido absorvida pela divina. Por essa razão, os seguidores de Êutico sustenta- vam ser acurada a expressão “Deus sofreu” – significando que Jesus Cristo sofreu na sua natureza divina. Sua Cristologia ficou sendo conhecida também como mo- nofisismo.71 Todavia, não deve se pensar que Êutico cria em Cristo como possuin- do apenas a natureza divina que absorveu a natureza humana, mas numa espécie de mistura de duas naturezas, que acabava se constituindo numa tertium quid, ou terceira coisa ou elemento, não sendo perfeitamente Deus nem perfeitamente ho- mem. Êutico também sustentava que Maria era theotokos, a mãe de Deus, mas com um sentido diferente do ensino de Calcedônia. b. A Condenação de Êutico As sementes do monofisismo, na verdade, já estavam presentes no ensino de Cirilo, ao tentar combater a heresia de Nestório. Em sua obra That Christ is One, Cirilo afirma que “há uma natureza (mia physis) de Deus, a Palavra encarnada, mas adorada com sua carne”.72 Segundo a opinião de Harnack, a teoria de Cirilo é pura, mas foi um monofisismo sem intenção.73 De fato, Êutico havia apoiado Ciri- lo contra Nestório no Sínodo de Éfeso, em 431, o que pareceu indicar que Cirilo ensinava uma espécie de monofisismo. Mas Êutico foi acusado de confundir as duas naturezas, e foi deposto por Flaviano, bispo de Constantinopla, no Sínodo de Constantinopla, em 448. Então, Êutico apelou para Leão, o bispo de Roma, reclamando que Flaviano não o havia tratado com justeza. Simultaneamente, Flaviano também escreveu a Leão, contando o seu lado da história. Certamente Leão deu ganho de causa a Flaviano e condenou Êutico por ter falhado em não entender o mistério da fé. Para Leão, “em Cristo Jesus, nem a Humanidade sem a verdadeira Divindade, nem a Divindade sem a verdadeira Humanidade, deve ser crida como existindo”.74 Após Calcedônia, os seguidores de Êutico foram chamados monofisitas, e “fo- ram mais consistentes em seu monofisismo, afirmando que a união das duas natu- 69. Citado em Ferguson, New Dictionary of Theology, p. 443. 70. Macleod, The Person of Jesus Christ, 184. 71. Palavra formada por duas palavras gregas mono (um) + physis (natureza). 72. Citado no New Dictionary of Theology, p. 442. 73. Citado no New Dictionary of Theology, p. 443. Ver Adolf Harnack, Outlines of the History of Dogma, (Boston: Beacon Press, 1957), p. 292, 293. 74. Citação de Macleod, The Person of Jesus Christ, 184. 42 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR rezas resultou num composto que não era nem humano nem divino, mas que for- mou uma espécie de tertium quid”.75 Após Calcedônia, o monofisismoseparou-se em duas principais correntes: Severianos e Julianistas.76 2. O MONOFISISMO DOS SEVERIANOS Os mais moderados dentre os monofisitas eram os Severianos, seguidores de Severus (460-538), o Patriarca de Antioquia. Eles estavam próximos do pensa- mento de Cirilo, considerando que as duas naturezas eram uma mera abstração ideal. Eles asseveravam fortemente a humanidade da natureza resultante que eles declararam ser capaz de corrupção em si mesma, como a nossa. Esse tipo de mono- fisismo é, às vezes, chamado por seus oponentes de phtartolatrai, adoradores do corruptível. Numa petição que fizeram ao imperador, em 532, os monofisitas severianos afirmaram que eles “reconhecem uma Trindade santa que é adorável e é de uma natureza, poder, e honra, que é tornada conhecida em três pessoas; porque nós adoramos o Pai e seu único Filho, Deus de Deus, que foi gerado dele eternamente antes de todos os tempos”.77 Eles também podiam afirmar que Maria era a “mãe de Deus”, e que “enquanto, na Divindade, [Cristo] era da natureza do Pai, ele também era de nossa natureza, na humanidade.”78 Todavia, não se deve pensar que eles criam em duas naturezas distintas na mesma pessoa. Para Severus, bispo de Antioquia, a distinção entre o humano e o divino em Cristo está baseada no seu entendimento da hipóstase “auto-subsisten- te” e na hipóstase “não auto-subsistente”. “Enquanto o termo hipóstase era usado amplamente e de diversas maneiras por muitos cristãos, quando Severus fala da ‘união natural’ ou da ‘uma natureza de Deus, o Verbo encarnado’, ele sempre quer dizer ‘natureza’ no sentido de indivíduo. A hipóstase não-auto-subsis- tente é aquela que não pode existir por si mesma. Se alguém aceita a idéia de um ser individual composto de corpo e alma, então o corpo, porque ele não pode existir independentemente da alma, é dependen- te da alma para sua existência, e é, portanto, não-auto-subsistente. A alma, entretanto, é auto-subsistente, e isso implica em que ela sim- plesmente usa o corpo para experimentar o mundo ao redor de si, mas continua a existir após a morte do corpo. Nesse sentido, Cristo é com- 75. Ibid. 76. Veja New Dictionary of Theology, p. 443. 77. Petition of the Monophysites to Justinian. Texto completo em W. H. C. Frend, The Rise of the Monophysite Movement: Chapters in the History of the Church in the Fifth and Sixth Centuries (Cam- bridge, 1972), xii, 362-5 (ver essa informação no artigo sobre o monofisimo no site http://www.geocities.com/ Athens/Olympus/2961/mono2.htm, acessado em junho de 2004. 78. Ibid. 43ERROS E ACERTOS SOBRE A UNIO PERSONALIS NA HISTÓRIA DA IGREJA posto de um Verbo auto-subsistente e de uma humanidade não-auto- subsistente”.79 A hipóstase auto-subsistente difere da não-auto-subsistente no sentido em que a primeira possui um nome. Visto que a humanidade de Cristo é não-subsistente, Severus não dá nenhum nome a ela, e, portanto, não fala de “o Homem” ou “Je- sus”. Ao mesmo tempo em que não se fala da ação da alma de alguém separada do corpo, também não se fala da ação do Verbo separado de sua humanidade. Traba- lhando com o mesmo raciocínio, Severo não faz distinção entre as ações do divino e do humano em Cristo: “[1] Em Cristo, não falamos de duas operações: não dize- mos que ‘o homem chorou’ ou que ‘Deus ressuscitou Lázaro dentre os mortos’, mas que ‘o Verbo encarnado fez isso’.”80 Dessa forma, a monofisismo de Severus é relativamente diferente do monofisismo de Êutico. Ele se aproxima apenas um pouco daquilo que conhecemos nos círculos reformados como comunicação de atributos, mas ainda está longe de identificar-se com essa doutrina. 3. O MONOFISISMO DOS JULIANISTAS Julianus, bispo de Halicarnassus, na província de Caria, foi líder dos monofisi- tas. Em 511 ele se tornou ativo, juntamente com Severus e outros, instigando o imperador Anastácio a depor Macedônio, patriarca de Constantinopla. Com a as- censão de Justino I, em 518, foram tomadas medidas severas contra os monofisi- tas, e Julianus foi afastado de sua diocese, sendo deposto nesse mesmo ano. Foi para Alexandria, no que foi seguido por Severus, quando de sua expulsão de An- tioquia. De algum modo, Juliano recuperou sua diocese de Halicarnassus, mas, no Concílio de Constantinopla, em 536, sob Agapetus, bispo de Roma, ele foi nova- mente deposto. Após sua deposição ele desapareceu, mas suas opiniões continua- ram a se espalhar subseqüentemente, especialmente no oriente.81 a. O monofisismo dos Julianistas x Severianos Os Julianistas, seguidores de Juliano, bispo de Halicarnassus, ficaram mais próximos de Êutico. Para eles, o corpo humano de Cristo foi tão modificado pela união com o divino que se tornou incorruptível, pensando diferentemente de Seve- rus, que ensinava que o seu corpo se tornou corruptível. Segundo os julianistas, Cristo sofreu por um ato de sua própria vontade, e não porque ele possuía uma 79. Ver o artigo sobre Monophysitism (parte 2) no site http://www.geocities.com/Athens/Olympus/2961/ mono2.htm, acessado em junho de 2004. 80. Roberta C. Chesnut, Three Monophysite Christologies: Severus of Antioch, Philoxenus of Mabbug and Jacob of Sarug (Londres: 1976), 11-12. 81. Informações tomadas do artigo que trata dos Julianistas, no site http://www.ccel.org/w/wace/bio- dict/htm/iii.x.xxxi.htm, acessado em junho de 2004. Esse site reproduz informações da Christian Classics Ethereal Library do Calvin College. 44 A UNIÃO DAS NATUREZAS DO REDENTOR natureza humana corruptível, como ensinavam os severianos Nessa controvérsia violenta, os julianistas acusavam os severianos de Phthartolatrae ou Corruptico- lae, enquanto que os severianos acusavam os julianistas como sendo Phantasias- tae (porque declaravam que o corpo de Cristo era um mero fantasma) e aphtarto- doketai (ensinadores do incorruptível, conhecidos também pelo termo latino in- corrupticolae). Essa foi a designação pela qual os julianistas foram mais geral- mente conhecidos. Leôncio de Bizâncio nos diz que Julianus sinceramente pugna- va pela “incorruptibilidade”, porque ele considerava a idéia de Severus como fa- zendo uma distinção entre o corpo de nosso Senhor e o Verbo de Deus, permitindo a idéia de duas naturezas nele.82 O ensino sobre a incorruptibilidade do corpo do Senhor não era uma unanimi- dade entre os julianistas. Um grupo ensinava que “o corpo de nosso Senhor era absolutamente incorruptível desde a própria unio”. Um segundo grupo ensinava que o corpo “não era absolutamente incorruptível, mas potencialmente o reverso, todavia poderia não se tornar corrupto porque o Verbo o impedia”. Um terceiro grupo dizia que o corpo “não era somente incorruptível desde a real unio, mas também incriado”.83 b. Corolários do Julianismo Depois da deposição final dos líderes dos vários movimentos dentro do Mono- fisismo, ainda permaneceram controvérsias dentro dos segmentos orientais e oci- dentais da Igreja. Quatro escolásticos de Alexandria visitaram Éfeso, c. 549, e prevaleceram so- bre o bispo Procópio para que ele confessasse ser um julianista. Em 560, imediata- mente após o seu falecimento, é dito que sete de seus presbíteros, que também eram julianistas, colocaram as mãos do seu cadáver sobre a cabeça de um monge chamado Eutropius, e então recitaram a oração de consagração sobre ele. Ainda é dito que o corpo de Julianus foi tratado da mesma forma por seus seguidores pes- soais. Logo a seguir, Eutropius ordenou dez julianistas como bispos, e os enviou como missionários para o Ocidente e para o Oriente, e, entre outros lugares, para Constantinopla, Antioquia, Alexandria, Síria, Pérsia e Mesopotâmia. Por volta de 565, o imperador Justiniano tinha se tornado um incorruptibilista, ou seja, um julianista. Ele emitiu um edito admitindo sua mudança de opinião e deu a ordem de que “todos os bispos de toda parte” deviam aceitar o julianismo. Obviamente que sua atitude encontrou grande oposição, especialmente, entre outros, de Anas- tásio (559-569), Patriarca de Antioquia.84 82. Informações tomadas do artigo que trata dos Julianistas, no
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