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Júlio César França Pereira TEORIA DA LITERATURA: ANATOMIA DE UM CONCEITO ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS Abril, 2006 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 1 Júlio César França Pereira TEORIA DA LITERATURA: ANATOMIA DE UM CONCEITO ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS Tese apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de concentração: Literatura Comparada Orient.: Prof. Dr. Roberto Acízelo Q. de Souza Niterói Instituto de Letras da UFF Abril de 2006 2 Júlio César França Pereira TEORIA DA LITERATURA: ANATOMIA DE UM CONCEITO ATRAVÉS DA LEITURA DE SEUS GRANDES MANUAIS Tese de Doutoramento em Letras, defendida e aprovada na Universidade Federal Fluminense, em 28 de abril de 2006, pela banca examinadora constituída pelos professores: _____________________________________________ Prof. Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza - Orientador Universidade Federal Fluminense _____________________________________________ Prof. Dr. Fernando Décio Muniz Universidade Federal Fluminense _____________________________________________ Prof. Dr. Gustavo Bernardo Galvão Krause Universidade do Estado do Rio de Janeiro _____________________________________________ Prof. Dr. José Luís Jobim de Sales Fonseca Universidade do Estado do Rio de Janeiro Universidade Federal Fluminense _____________________________________________ Prof. Dr. Maria Conceição Monteiro Universidade do Estado do Rio de Janeiro 3 Este trabalho só foi possível graças a interlocutores muito especiais: Meu orientador Roberto Acízelo de Souza, Meus professores Fernando Décio Muniz e José Carlos Barcellos, Meus companheiros de doutorado Sérgio Vieira Bugalho e Leonardo Côrtes Macário Meus colegas do Fórum de Pesquisadores em Literatura. 4 A hostilidade para com a teoria geralmente significa uma oposição às teorias de outras pessoas, além de um esquecimento da teoria que se tem. Terry Eagleton (2003:X) (...) se não sei precisamente o lugar que ocupará ou ocuparia um discurso que se sabe nem científico, nem ficcional, sei quando nada que advogá-lo tem o propósito de tentar romper com a idéia que toma a ciência como detentora da lógica. Luiz Costa Lima (1981:207) As descobertas envelhecem, os métodos não. Isaías Pessotti (2001:378) 5 SUMÁRIO RESUMO ............................................................................................................................................. 06 ABSTRACT ........................................................................................................................................ 07 1 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE ...................................................................................................... 08 1.1 - UMA DISCIPLINA, MUITAS PERSPECTIVAS ............................................................................. 08 1.1.1 -“O que é Teoria Literária?”........................................................................................... 09 1.1.2 - “Para que serve a Teoria Literária?”............................................................................. 14 1.1.3 - “Como funciona nas universidades a Teoria Literária?”.............................................. 17 1.2 - SISTEMATIZANDO O PROBLEMA............................................................................................. 21 1.3 - OS ESTUDOS LITERÁRIOS ANTES DA TEORIA DA LITERATURA............................................... 28 1.4 - A ASCENSÃO DA TEORIA DA LITERATURA............................................................................. 37 1.5 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA ............................................................................. 40 2 - OS PRECURSORES....................................................................................................................... 44 2.1 - O ENCONTRO ENTRE O FORMALISMO ESLAVO E O NEW CRITICISM ........................................ 45 2.1.1 - O conceito de Literatura para Wellek & Warren ......................................................... 46 2.1.2 - Os limites dos Estudos Literários ................................................................................ 56 2.1.3 - Teoria, Crítica, História ............................................................................................... 68 2.1.4 - O capítulo esquecido ............................................................. ...................................... 74 2.1.5 - Os pontos-chave do manual de Wellek & Warren ...................................................... 77 2.1.5.1 - O conceito de Literatura .................................................................................... 78 2.1.5.2 - A compreensão dos objetivos dos Estudos Literários ....................................... 79 2.1.5.3 - O que é a Teoria da Literatura? ......................................................................... 80 2.2 - O MANUAL DA CIÊNCIA DA LITERATURA ............................................................................. 81 2.2.1 - O conceito de Literatura em Kayser ............................................................................ 82 2.2.2 - Os objetivos do estudo da Literatura ........................................................................... 84 2.2.3 - O projeto teórico de Kayser ......................................................................................... 86 3 - ANOS 60 E 70: CONSTRUÇÃO OU RUÍNA? ............................................................................ 90 3.1 - O MANUAL DE AGUIAR E SILVA ........................................................................................ .... 96 3.1.1 - A relatividade do conceito de Literatura ..................................................................... 96 3.1.2 - A Teoria da Literatura e os Estudos Literários ............................................................ 100 3.2 - TEORIA, LATO SENSU ............................................................................................................. 103 4 - A ERA DAS CRÍTICAS ................................................................................................................ 111 4.1 - “LITERATURA”, NA FALTA DE UM TERMO MAIS ADEQUADO ................................................. 113 4.2 - NAS MALHAS DA IDEOLOGIA ................................................................................................. 118 4.3 - UMA TEORIA DOS DISCURSOS ................................................................................................ 122 5 - A ERA DAS REVISÕES ........................................................................................... .................... 130 5.1 - UMA TEORIA DE MUITOS OBJETOS ......................................................................................... 142 5.1.1 - Diversidade e complexidade ........................................................................................ 143 5.1.2 - A culturalização dos Estudos Literários ..................................................................... 145 5.1.3 - Uma teoria sem objeto? ........................................................................ ....................... 146 5.2 - O QUE OS ESTUDOS LITERÁRIOS AINDA TERIAM PARA OFERECER ......................................... 151 5.2.1 - Do conceito de Literatura.................................................................................... ....... 151 5.2.2 - Os estudos literários e as armadilhas das dicotomias .................................................. 153 5.2.3 - Uma disciplina ambivalente ....................................................................................... 158 6 - OS MANUAIS DE TEORIA DA LITERATURA NO BRASIL .................................................. 163 6.1 - TEORIAS OITOCENTISTAS SOBREVIVENTES ............................................................................ 163 6.2 - A DÉCADA DOS MANUAIS ...................................................................................................... 167 6.3 - O RENASCIMENTO ................................................................................................................. 175 7 - OS TRÊS DESAFIOS DA REFLEXÃO TEÓRICA ..................................................................... 179 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 190 6 RESUMO A partir de uma leitura crítica que buscou compreender os conceitos de Literatura, de Estudos Literários e de teoria formulados nos principais manuais de Teoria da Literatura, elaborou-se um sumário dos pontos positivos e dos problemas da disciplina, com o intuito de se projetar quais as condições para o desenvolvimento de uma reflexão teórica sobre a Literatura em um momento histórico assinalado por profundo relativismo nas concepções de conhecimento orientadoras das ciências humanas. Palavras-chave: Teoria da Literatura; Relativismo; Estudos Literários (Crítica) 7 ABSTRACT Starting from a critical reading that aimed to understand the concepts within Literature, Literary Studies and Literary Theory in the main handbooks, a summary of both positive and negative aspects of the discipline was elaborated in an attempt to project the conditions to the development of a theoretical thinking concerning Literature in a historical moment that is marked by a deep relativism in Humanities. 8 1 - VESTÍGIOS DE UMA CRISE 1.1 – UMA DISCIPLINA, MUITAS PERSPECTIVAS When the study of literature is under fire - as it is nowadays - it stands more than ever in need of a type of discourse which both objectifies and justifies this particular scholastic endeavor1. Wolfgang Iser (in New Literary History, 1983:425) Há cerca de vinte anos atrás, a revista New Literary History realizou uma enquete com um grupo de acadêmicos europeus e norte-americanos. Três foram as questões formuladas: (i) Quais os objetivos e funções da Teoria2 Literária no presente? (ii) Quais conseqüências práticas teve a Teoria Literária em sua atividade de ensino da Literatura e em seu trabalho de produção crítica? (iii) Quais seriam as deficiências, se existentes, da Teoria Literária no ensino da pós-graduação? As perguntas foram respondidas por mais de trinta scholars3, entre eles alguns grandes nomes dos Estudos Literários4 contemporâneos, tais como Terry Eagleton, Hans Ulrich Gumbrecht, Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, Adrian Marino e George Steiner. Uma das primeiras impressões que se pode ter com a leitura das respostas ao questionário é a amplitude de compreensão que o termo Literary Theory suscitava em cada um dos professores entrevistados. Essa imprecisão semântica — fruto, por um lado, de uma série de usos históricos do termo “teoria”, e, por outro lado, da própria 1 “Quando o estudo da Literatura está sob ataque — como ocorre hoje em dia — torna-se mais do que nunca necessário um tipo de discurso que tanto torne objetivo quanto justifique este esforço acadêmico específico” [tradução minha]. 2 Embora alguns autores estabeleçam diferenças conceituais entre "Teoria da Literatura" e "Teoria Literária", não farei distinção entre os dois termos neste trabalho, por entender que, mesmo nos específicos contextos argumentativos em que se postula a diferenciação, a alternância dos termos não remete a disciplinas distintas, mas a diferentes modos de se entender a reflexão teórica sobre a Literatura. 3 Cinco estudantes de pós-graduação também responderam ao questionário. Como acredito que os pontos de vista dos alunos e dos professores pressupõem diferenças importantes, e como a diferença quantitativa entre os depoimentos era muito grande, optei por desconsiderar neste trabalho as opiniões dos alunos. 4 Adotarei neste trabalho a terminologia de Roberto Acízelo de Souza, que chamará de Estudos Literários “ao conjunto das disciplinas que historicamente concorreram para delimitar a área de fenômenos constituídos pela linguagem verbal elaborada” (Souza , 1987:134). 9 negligência com que os conceitos são geralmente tratados no caótico ambiente terminológico do campo dos Estudos Literários — revela-se na multiplicidade de objetivos e de funções aventadas como pertinentes ao trabalho teórico, bem como no caráter muitas vezes contraditório dos problemas e das qualidades da disciplina identificados pelos acadêmicos. As três questões formuladas pela revista funcionam, em conjunto, como um teste da condição de existência de uma suposta disciplina chamada Literary Theory. As duas primeiras perguntas tinham um caráter pragmático e claramente perguntavam “para que serve a Teoria Literária?”, embora a primeira delas — a interrogação pelos objetivos e funções — tenha obrigado os entrevistados a refletirem sobre a ontologia da disciplina, a fim de responder ao questionamento implícito “o que é a Teoria Literária?”. Já a terceira questão era explicitamente de cunho didático e institucional, interrogando pelo desempenho efetivo da teoria como disciplina acadêmica institucionalizada e que, como tal, precisa ser “ensinada” e “aprendida”: “como funciona, nas universidades, a Teoria Literária?”. Embora a enquete tenha sido realizada há vinte anos, as dificuldades, os embaraços, as aporias e, principalmente, a falta de clareza do estatuto disciplinar da Teoria Literária revelados pelas questões formuladas permanecem, em sua quase totalidade, atuais. Tomando a enquete de modo heurístico, procurei então sistematizar as respostas dadas pelos entrevistados a cada um desses núcleos temáticos, a fim de introduzir, a título de exemplificação, o conjunto de problemas e questões com os quais foi necessário lidar. 1.1.1 - “O que é Teoria Literária?” The character of critical theory is not (or should not be) dazzling or “exciting” (except in the sense that any important new theoretical idea or argument is exciting if it is important); above all, its strength must lie in accuracy and precision of formulation5. John M. Ellis (ibid., 1983:416) 5 “Não é (ou não devia ser) da natureza da teoria crítica ser deslumbrante ou estimulante (a menos no sentido em que qualquer nova idéia ou argumentação teórica, quando importante, é estimulante). A força de uma teoria reside, sobretudo, na exatidão e na precisão com que é formulada” [tradução minha]. 10 As respostas à pergunta acerca dos objetivos e funções da teoria literária revelam o quanto se está longe de unanimidade conceitual em torno do que vem a ser Literay Theory. Uma primeira classificação possível para as respostas seria dividi- las entre aquelas que tomam o termo como designação dos Estudos Literários em geral — englobando além de abordagens propriamente teóricas, também trabalhos de natureza interpretativa, histórica, analítica e crítica — e aquelas que a entendem como um procedimento específico dentro do campo da investigação sobre Literatura. No primeiro caso, a compreensão ampla de teoria literária promove um desafio a seus defensores: ter de conjugar sistematicamenteum conjunto de práticas tão diversificadas como a busca de significados da obra, a análise formal de seus elementos de composição, a contextualização histórica, o julgamento de valor etc., numa amplitude que abarcasse todos os modos já empreendidos de consideração de uma obra literária. Nas atuais condições dos Estudos Literários, um sistema conceitual desta monta — embora fosse certamente muito bem vindo... — é utópico, pois exigiria a resolução de impasses diversos hoje tidos como insuperáveis: a importância do autor para o sentido da obra, a relação das obras literárias com o mundo, os limites da interpretação, a legitimidade do cânone, para ficar apenas com alguns das questões mais pujantes. Há, contudo, variantes desse entendimento lato: Michel Glowinski (ibid.:419- 420), Jerome McGann (ibid.:438) e Adrian Marino (ibid.:435-436) estão entre aqueles que compreendem a teoria como tendo uma função sistematizadora e disciplinadora, cabendo a ela fornecer as bases e as premissas do trabalho acadêmico, integrar as descobertas dispersas em análises particulares e demonstrar que o estudo da Literatura não precisa ser uma desorganizada coleção de pequenas informações sobre vários temas. Sendo da competência da teoria a análise, a classificação e a definição de conceitos literários básicos (cf. Marino, ibid.:435-436), ela poderia, ao unificar interesses particulares em um contexto mais amplo, criar um espaço de comunicação e entendimento entre os estudiosos. Wolfgang Iser (ibid.:425) pensa nessa função sistematizadora como a garantia de que a experiência da Literatura possa ser intersubjetivamente verificável. Embora os teóricos possam falar em diferentes linguagens, os fundamentos de cada um poderiam ser conhecidos graças a um sistema conceitual teórico comum. Mesmo que não se concordasse em como se lidar com os problemas, ao menos os acadêmicos poderiam 11 compreender-se mutuamente. Tal função seria de extrema necessidade, tendo em vista que o número de sentidos e definições de uso quase individual continua crescendo, tornando urgente uma crítica da terminologia da área. Sem uma sis tematização coerente e bem engendrada a ser realizada pela Teoria, a Crítica e a História Literária estariam completamente desorientadas. Mas que tipo de teoria poderia dar conta da complexidade não do objeto literário, mas dos Estudos Literários, a ponto de se posicionar, hierarquicamente, acima das demais abordagens? Iser (ibid.:425) imagina que essa suposta força estruturadora, para pretender ser uma teoria, teria que ser algo mais do que um conjunto de premissas. Seria necessário um constante esforço de revelação e de teste de seus fundamentos, exatamente o que distinguiria o trabalho teórico dos tipos predominantes de Crítica Literária. Tal teoria deveria ser estruturada de modo que, tão logo passasse a falhar em seus objetivos, fosse retificada, o que normalmente não acontece com outros procedimentos dos Estudos Literários, muito tendentes ao dogmatismo. O ponto de vista de Iser aproxima-o daqueles que vêem na teoria a instância de auto-reflexão do campo de Estudos Literários. Para Hans Ulrich Gumbrecht (ibid.:422- 423) e Murray Krieger (ibid.:432-433), a pergunta primordial a ser feita é se há, de fato, um objeto consistente chamado “literatura” sobre o qual teorias (compreendidas como um conjunto de conceitos) podem ser construídas. Em outras palavras, a principal questão teórica deveria ser não o estabelecimento de “teorias”, mas a definição do objeto de nossa disciplina. Krieger (ibid.) afirma que somente após a decisão sobre o status disciplinar seria possível determinar as funções da teoria em relação à interpretação, à Crítica e à História Literárias. Em uma posição aproximada situam-se os que entendem, como Jan Kowenhoven (ibid.:431-432), que a Teoria Literária deva ser uma instância autônoma, concernente apenas a si própria e aos problemas que ela mesmo se propõe, a despeito de modas, utilidades ou apelos do senso comum. Evan Watkins (ibid.:448-450) acredita que a principal questão é justamente tentar entender como a Literatura e seu estudo ocupam uma posição específica no conjunto de relações culturais. De modo similar, Eugene Vance (ibid.:448) defende a função da teoria como sendo a de definir a especificidade do texto literário como um elemento constitutivo da cultura ocidental. 12 Entre as concepções de Teoria Literária como uma prática reflexiva estão também as de John Ellis (ibid.:416-417) e de Lionel Gossman (ibid.:420-422), que identificam sua função e seus objetivos com os da teoria em qualquer campo: a investigação técnica de um objeto, de sua natureza e de sua relação com outras formas culturais, além do esclarecimento relativo a questões mais gerais de uma área de estudos (os objetivos, a natureza de seus resultados, a conveniência das metodologias, a natureza e prática da crítica, dos tratados e da interpretação). Como as questões centrais de uma teoria são já bastante conhecidas, o progresso teórico é sempre lento e deve ser feito de modo paciente, através da análise cuidadosa de conceitos, de acurados processos de distinção, sistematização e reavaliação das linhas de argumentos mais conhecidas na busca de incoerências lógicas. A força de uma teoria está em sua exatidão e em suas formulações precisas — e não no seu caráter atraente ou excitante — que funcionarão como hipóteses lógicas e filosóficas nas quais se basearão a análise e o juízo, de modo o mais “científico” e descritivo possível, a fim de evitar ao máximo qualquer tipo de julgamento ideológico. Conceber a Teoria Literária como a realização, no campo dos Estudos Literários, de ideais teóricos comuns à produção do conhecimento científico dá margem à geração de uma instância metateórica que teria por objetivo questionar diretamente as condições de existência daquele ramo da saber: “Theoretical work ought to show how and why no one class of scholars, and no one subject (including theory) is self-justifying, self- explanatory, and self-sustaining”6, alerta David Bleich (ibid.:411), indicando que não se pode naturalizar a existência da disciplina. A teoria deveria ter de pensar sua própria condição acadêmica, seus problemas de identidade, suas funções e seus objetivos no conjunto da sociedade, principalmente neste momento, em que a função social do teórico/estudioso de Literatura não é clara e a própria coerência interna do corpo teórico e de análise é problemática. É neste contexto de questionamentos que a teoria deve encontrar seu modo de redirecionar sua atividade crítica e social, ao mesmo tempo que administra as pressões por maior efetividade prática (cf. Neil Larsen, ibid.:433-435). Não são poucos os que defendem que a Teoria Literária deva ter um compromisso político. E muitos também são os sentidos possíveis para “atividade política”. Raymond Federman (ibid.:417-418), Vida Markovic (ibid.:437-438) e David 6 “O trabalho teórico deveria mostrar como e porquê nenhum grupo de acadêmicos e nenhuma disciplina 13 Punter (ibid.:439-441), por exemplo, entendem que a teoria deve reafirmar o valor da Literatura, legitimar sua presença e sua existência em nossa cultura como uma das mais importantes atividades humanas. Procedendo assim, ela ofereceria um ponto de partida para o combate contra a crise de valores, manteria viva a herança dos Estudos Literários, ofereceria diretrizes para o estudo da Literatura e ajudaria a entender qual o papel da Literatura no mundo contemporâneo. O comprometimento político da teoria implica, em muitos casos, modificar as condições de existência cultural de seu objeto, propagar valores e julgamentos, estabelecer legitimidades e ilegitimidades, realizar exclusões, reafirmar o papel político do intelectual. Para Watkins (ibid.:448-450)e Gossman (ibid.:420-422), não haveria maiores problemas com esse aspecto normatizador, uma vez que é uma ilusão positivista acreditar que se possam produzir discursos teóricos imaculados que transcendam à ideologia. Os discursos humanos seriam sempre embebidos em desejo e história. Teorias que se julgam puras agiriam de modo repressivo, enquanto os melhores discursos teóricos reconheceriam que sua materialidade, longe de ser uma falha, é o que lhes dá sentido, interesse e importância. O engajamento tem, contudo, seus riscos. Teorias fortemente politizadas acabam tendo pouco interesse na própria Literatura, comenta Alastair Fowler (ibid.:418-419). É o que parece acontecer com as iniciativas que visam a aproximar a Teoria Literária do campo dos Estudos Culturais. Muitos trabalhos nessa linha colocam-se como se houvesse chegado a hora de os teóricos finalmente assumirem a responsabilidade pelas conseqüências sociais de suas hipóteses e procedimentos (cf. Annette Kolodny, ibid.:429-431), na aspiração de que assim são capazes de contribuir para a transformação das instituições (cf. Bleich, ibid.:411-413). No juízo de Larsen (ibid.: 433-435), a Teoria Literária deveria se transformar definitivamente em teoria da ideologia, o que só não ocorre porque ela teme abrir mão da exclusividade do campo do literário, sem perceber que, enquanto isso, a Literatura vai-se esvaindo e, com ela, a própria relevância da teoria. Ainda sob a perspectiva de uma Teoria Literária que extrapole os domínios do estudo da Literatura, há um tipo de visão — Eagleton, (ibid.:415-416), Gumbrecht (ibid.:422-423) e Watkins (ibid.:448-450) — que atribui a ela a função de promover o (inclusive a teoria) é autojustificável, auto-explicativa e auto-sustentável” [tradução minha]. 14 intercâmbio dos Estudos Literários com os interesses oriundos de pesquisas ou de disciplinas afins, como a Filosofia, a História, a Sociologia etc., integrando-a ao campo mais vasto dos estudos das relações culturais em geral. Além dessa via interdisciplinar, fala-se também em se abrir novos campos de investigação ou em sua substituição por campos mais abrangentes, como no caso do projeto de Iser (ibid.:425-426), por uma antropologia cultural da Literatura, e no de Jauss (ibid.:428-429), por uma teoria interdisciplinar do conhecimento. Tendo apresentado, em linhas gerais, as respostas à primeira pergunta da enquete, passo à segunda questão, mas não sem antes fazer menção a George Steiner (ibid.:444-445), que defendeu uma posição isolada, mas não insólita. Para ele, em outros contextos que não o dos Estudos Literários, o termo teoria vincula categorias de verificação e de falsificação potencial, experimentos mais ou menos controlados e formalizações. No entanto, aplicada à Literatura e às artes, a teoria seria apenas um empréstimo metafórico ou, pior, um caso de pretensão obscurantista. Nossos melhores argumentos e metodologias seriam “mitologias racionais” ou “cenários discursivos” — por exemplo, uma leitura marxista ou psicanalítica de textos literários, construtos ontológicos como os de Heidegger, mitos de sujeitos ausentes, como em Mallarmé e seus epígonos desconstrutivistas. Tais mitologias programáticas, ainda que possuam grande força de persuasão, não seriam teorias, em qualquer sentido confiável. 1.1.2 - “Para que serve a Teoria Literária?” My graduate students have read Derrida before ever encountering Husserl; they know what is “wrong” with Northrop Frye before they can locate his name in the card catalogue7. Evan Watkins (ibid.:449) Num esforço de sistematizar as concepções descritas no item anterior, sobre o que seja (ou o que deveria ser) a Teoria Literária, creio que seria possível agrupá- las, de modo generalizador, em torno de quatro linhas8 fundamentais, a saber: (i) uma designação genérica para Estudos Literários; 7 “Meus alunos de pós-graduação lêem Derrida antes de sequer tomarem conhecimento de Husserl; eles sabem o que há de errado com Northrop Frye antes de serem capazes de encontrar seu nome nas fichas catalográficas” [tradução minha]. 8 Abstraio aqui a posição de George Steiner, mas sua negativa da possibilidade de existir uma Teoria Literária permanecerá como uma hipótese a ser considerada ao longo deste trabalho. 15 (ii) uma instância sistematizadora encarregada de estabelecer um sistema de fundamentos, conceitos e métodos que possam ser partilhados pelos estudiosos de Literatura; (iii) uma instância filosófica, auto-reflexiva, voltada para a ontologia de seu objeto; (iv) uma instância empenhada em articular e relacionar o conhecimento sobre a Literatura com um conjunto mais amplo de questionamentos políticos, sociais e culturais. Neste item, procuro articular esses quatro pontos de vista básicos com as funções da Teoria Literária apontadas nas respostas à segunda pergunta da enquete. A posição (i) ajusta-se com a concepção lata de Teoria Literária que defende não ser possível se falar de um texto literário sem a presença, consciente ou não, implícita ou explícita, de um modelo de entendimento daquilo que venha a ser a Literatura — posição comum a Ellis (ibid.:416-417), Glowinski (ibid.:419-420), Gossman (ibid.:421), Gumbrecht (ibid.:422-423), Krieger (ibid.:432-433) e Carol Jacobs (ibid.:427-428) —, pois, nas palavras de Stanley Fish (ibid.:418), qualquer leitura de um texto literário é uma tematização da posição teórica do leitor. Raymond Federman (ibid.:417-418) vai ainda mais além, entendendo que o próprio autor precisa de uma teoria implícita para escrever. A teoria é, portanto, um elemento constitutivo da própria Literatura, o que leva Jacobs (ibid.: 428) a identificar o ensino desta com o daquela. Harmoniza-se com a posição (ii) uma compreensão da função da teoria como reguladora dos Estudos Literários. Bons exemplos encontram-se em Jim Springer Borck (ibid.414), que fala do “rigor” que a teoria imprimiu à sua atividade, Markiewicz (ibid.:436-437), que se refere à sistematização, precisão e consciência que ela trouxe a seu trabalho, Glowinski (ibid.:419-420), defensor de que, sem teoria, os Estudos Literários seriam vítimas da ingenuidade, e McGann (ibid.:438), que acha impensável a prática do trabalho acadêmico sem a aquisição de uma autoconsciência sobre as premissas críticas e conceituais dadas pela reflexão teórica. Esta visão trata a teoria como uma espécie de instância autocontroladora dos Estudos Literários, que forçaria o estudioso a responder pelas conseqüências de sua prática e a procurar entender o que se faz e por que se faz o que se faz, o que, em linhas gerais, é também a opinião de Watkins (ibid.:448-450), Punter (ibid.:439-441) e Fish (ibid.:418). Ela criaria uma 16 ordem de valores nos Estudos Literários e os capacitaria a promover uma constante autocrítica (cf. Ihab Hassan, ibid.:423). A teoria seria assim, comenta Iser (ibid.:425- 426), um lembrete constante para que não se perca de vista o que se pretende saber quando se começa a estudar Literatura. Responsável por fornecer os parâmetros dos discursos sobre a Literatura, a teoria teria desse modo a função de dizer o que deve ser levado em conta e o que deve ser descartado na abordagem das obras, pensa Robert Schwartz (ibid.:444), além de precisar oferecer uma reflexão metodológica sobre modos de argumentação na Crítica Literária e interpretações válidas, chegando mesmo ao extremo de dever propor um cânone de descrição das obras literárias (cf. Markiewicz, ibid.:436-437). Schwartz (ibid.:444) e McGann (ibid.:438) conferem à teoria a função de exercer a consciência históricanecessária para se perspectivar ao máximo afirmações a respeito do significado de um texto. É também nesse sentido que Vance (ibid.:448) entende a Teoria Literária como responsável por encorajar o estudante a repensar a História de Literatura e procurar depreender os modelos históricos nela inerentes. Concordantes com a posição (iii) estão os que defendem as funções da teoria literária para além de sua aplicabilidade imediata na leitura de textos, dada sua condição disciplinar de instância de reflexão pura. Gossman (ibid.:420-422), Gumbrecht (ibid.:422-423) e Ronald Paulson (ibid.:438-439) admitem que a Teoria Literária é a filosofia dos Estudos Literários, opinião que parece ser compartilhada por Watkins (ibid.:448-450), que viu nela a possibilidade de conciliar sua formação de filósofo com a de estudioso da Literatura. Como plano de reflexão filosófica, a teoria estaria relacionada com a busca de generalizações, não lhe cabendo, diz Kowenhoven (ibid.:431-432), tratar de obras particulares, mas promover uma reflexão sobre as regularidades observáveis nos processos literários, com o que concordam Markiewicz (ibid.:436-437) e Schwartz (ibid.:444). Por fim, a posição (iv), dos defensores da necessidade “expansionista” da Teoria Literária, acolheria as concepções a respeito das funções da teoria de Bleich, Bloomfield, Braudy, Hermeren e Iser, que seriam, de modo geral, as de ampliar nossos modos de estudo, de revitalizar a atividade acadêmica e de permitir que se atente para aspectos da Literatura aos quais jamais se deu atenção. Dentro dessa perspectiva, haveria concepções de teoria que privilegiariam as possibilidades analíticas: a reflexão 17 teórica teria então por objetivo capacitar a leitura da mais ampla gama de textos, atentando sempre para a multiplicidade e a complexidade dos processos de escrita e de leitura em relação a seus contextos, opinião de Kolodny (ibid.:430), David Lodge (ibid.:435) e Wallace Jackson (ibid.:426-427). A teoria seria um caminho para o livre pensamento, uma alternativa à rigidez, ao dogmatismo e à ortodoxia de linhas de investigação estritamente literárias (cf. Marino, ibid.:435). 1.1.3 - “Como funciona nas universidades a Teoria Literária?” We create strange creatures with a huge head but no body who speak a rather curious jargon which they themselves do not always understand9. Raymond Federman (ibid.:418) A terceira questão da enquete indagava dos professores sobre os efeitos da Teoria Literária no ensino universitário. Grande parte das respostas apontava para as dificuldades enfrentadas pelo ensino da teoria. Os problemas relacionados eram vastos e iam desde a denúncia da falta de envergadura intelectual dos alunos para tratar de temas filosóficos ou para aplicar seus conhecimentos teóricos em seu trabalho crítico — Iser (ibid.:426), Markiewicz (ibid.:437), McGann (ibid.:438) e Sullivan (ibid.:446) — até a obscuridade de certas correntes — Eagleton (ibid.:416) e Markiewicz (ibid.:437). Outros, como Kolodny (ibid.:430), replicavam que o problema não era a teoria em si, mas seu lugar no ensino de pós-graduação. Haveria poucos cursos que reservassem espaço para uma introdução sistemática e abrangente da multiplicidade de correntes, escolas, teorias e debates. Marino (ibid.:436) acrescentava ainda que faltariam cursos de história das idéias sobre Literatura, de Retórica, de Poética etc. Através das respostas, pode-se também observar como cada uma das quatro concepções da disciplina anteriormente descritas — e as funções a elas atribuídas — é criticada sob a perspectiva de um posicionamento diverso, o que parece revelar que tais noções de teoria não são complementares, mas mutuamente excludentes. Da posição (i), muito genérica, depreende-se o seguinte problema: seus defensores acreditam que o professor de Literatura pratica teoria, mesmo que não seja ou não se considere um teórico — pois haveria, segundo Kolodny (ibid.:430), uma 9 “Criamos estranhas criaturas com uma enorme cabeça mas sem corpo, que falam um jargão 18 teoria que subjaz a todo discurso sobre a Literatura —, o que implica, em tais casos, a ausência de um ensino sistemático e coerente (cf. Lodge, ibid.:435). A posição teórica que não se percebe como tal é naturalizada e acaba não sendo ensinada como “uma” teoria. É a partir desta crítica que se aponta para a necessidade de se organizar a disciplina, o que poderia ser feito começando-se por um estudo histórico da mesma (cf. Krieger, ibid.:433), pela exploração das estruturas conceituais que resultaram na multiplicidade concreta de práticas historicamente desenvolvidas e pelo conseqüente questionamento dos interesses ideológicos que fundam suas práticas (cf. Watkins, ibid.:449). Marino (ibid.:436) lembra, contudo, que, como rareiam os trabalhos de grande fôlego, como os de René Wellek, há uma falta de obras de referências, o que tornaria o ensino da teoria fragmentado e incompleto, razão por que certamente não seria mais possível se falar em um curso completo de Teoria Literária. Neste contexto, Leo Braudy (ibid.:415) defende a necessidade de se avaliar, efetivamente, que teorias têm alguma utilidade. Assim, como acontece em outras áreas, poder-se- iam estabelecer as teorias sobre quais todos deveriam ter algum tipo de conhecimento, ficando as demais restritas aos especialistas naquele tópico específico. Apesar da grande quantidade de conhecimentos e da crescente multiplicidade de práticas críticas, a Teoria Literária raramente se pergunta pelos fatores sociais e culturais que a conduziram a esse estado. Com uma bibliografia muito compartimentada e em constante expansão, o estudante costuma se sentir perdido, sem saber como os temas e as abordagens chegaram a se tornar pontos relevantes. As idéias são descartadas tão logo começam a ser disseminadas e não é possível coordenar ou redirecionar o que sequer foi compreendido num primeiro momento. A teoria deveria então encarar a hipótese de que a multiplicidade de práticas críticas não resulta da ausência de modelos metodológicos organizados — aliás existentes em um número suficiente para incrementar a confusão —, mas do desenvolvimento histórico dos Estudos Literários na universidade e da posição anômala dos seus cultores na sociedade contemporânea, incapazes de criticar tais modelos. Nenhuma teoria pode seguir adiante sem ser também histórica, completa Watkins (ibid.:450). curiosíssimo que nem sempre elas próprias entendem” [tradução minha]. 19 A posição (ii) dá margem à censura de que se exige constantemente do aluno, no ensino de correntes de teoria literária, a aplicação de modelos, rebaixando os textos a meras ilustrações das premissas teóricas, opinião partilhada por Bleich (ibid.:411-413) e iser (ibid.:425-426). Embora seja essencial para o ensino da pós-graduação, a teoria, pensa gumbrecht (ibid.:422-423), deve ser dada a partir de uma discussão efetiva que possibilite aos futuros profissionais e colegas a capacidade de pensar por conta própria. A essa dificuldade soma-se a resistência em se permitir aos alunos a experiência com outras correntes, que não as do professor, problema anotado por Bloomfield (ibid.:414), Borck (ibid.:414), Krieger (ibid.:433) e Iser (ibid.:426). Uma das causas deste embaraço, entende Kolodny (ibid.:429-431), reside no fato de os departamentos tenderem a se fechar em torno de apenas um escola ou método. Ainda sob a perspectiva da crítica a uma concepção de teoria como instância sistematizadora dos Estudos Literários, Bloomfield (ibid.:413-414), Markiewicz (ibid.:436-437) e Glowinski (ibid.:419-420)identificam os problemas do trabalho teórico com a tendência para minimizar o particular, superestimar o geral, enveredar por raciocínios filosóficos e sucumbir a abstrações, especulações e esquematismos. Sob o mesmo ponto de vista, Gossman (ibid.:420-422) chega a lamentar que a teoria faça com que os estudantes rejeitem idéias e percepções interessantes e sugestivas que não podem ser formuladas com suficiente rigor, ou não podem ser justificadas e validadas em termos de uma teoria abrangente. Para ele, não se pode trabalhar apenas no escopo de uma teoria, mas se deve trabalhar também no “escuro”, onde muitas das questões mais interessantes ocorrem. A posição (iii) é atacada pelos que entendem que o grande problema da Teoria Literária é, exatamente, a sua pretensão de ser um fim em si mesma e não uma ferramenta de pesquisa que permita descobrir coisas — opinião de Bleich (ibid.413), Gossman (ibid.:422), Vance (ibid.:448), Iser (ibid.:426), Lodge (ibid.:435) e Markovic (ibid.:438). A disciplina não seria um campo auto-suficiente de especulação e de raciocínio dedutivo, estando por isso obrigada a se justificar em termos de seu uso. O desprezo pela aplicabilidade, diz Bleich (ibid.:411-413), apenas reforçaria o estereótipo do trabalho intelectual como sem objetivo e inútil, o que ocorre quando muitas correntes teóricas, ao encorajarem os aprendizes a questionar, negar ou resistir às afirmativas empreendidas por outros, acabam sugerindo que pensar é superior e diferente de fazer. 20 Bleich entende que qualquer idéia que surja e termine como estritamente teórica apenas reduz o valor e a importância da teoria. Göran Hermeren (ibid.:424) entende que a teoria é discutida isoladamente com muita freqüência, porque a relação entre as atividades literária, teórica e acadêmica não é explícita. Isso torna a relevância do trabalho teórico difícil de ser compreendida pelos alunos. A grande dificuldade deles é exatamente entender as transições entre a teoria e a interpretação, as poéticas e as descrições de obras concretas, as descrições e a hermenêutica (cf. Glowinski, ibid.:419-420). Dissociado das outras práticas dos Estudos Literários, o trabalho teórico arrisca-se a degenerar em meras palavras e criar uma teia de abstrações que dizem respeito apenas ao próprio teórico, o que afasta o estudo da Literatura de outras dimensões da cultura. E o que é pior, diz Norman Holland (ibid.: 424-425), torna a teoria insensível ao desprezo que lhe vota o senso comum. Um grande número de acadêmicos — Bloomfield (ibid.:413-414), Borck (ibid.: 414), Paulson (ibid.:438-439) e Federman (ibid:417-418) — ressalta que os cursos de Teoria Literária, ainda que importantes, não podem substituir o estudo de obras e o da História Literária, tampouco se transformar no centro da formação de um estudante de Literatura. O conhecimento estrito de obras teóricas, obviamente, não forma bons professores e muito do mau uso que se faz da teoria se explicaria justamente pela falta de conhecimento que os alunos têm dos textos literários. A solução estaria no melhor equilíbrio entre a leitura de teoria e a de Literatura. Outros, porém, como Fowler (ibid.:418-419) tratam o problema de modo mais radical, entendendo que aquilo que se deve incentivar na pós-graduação é a familiaridade com a Literatura, com o contexto histórico, com a periodização, não se devendo assim dissipar tempo com a teoria, nociva porque incentivaria o abandono do estudo diacrônico. A dicotomia entre texto teórico e texto literário é ironizada por Jacobs (ibid.:427-428), para quem a suposição de que se possa optar entre Literatura e teoria, como se fosse uma opção política e polêmica, é absurda. Escolher Literatura em detrimento da teoria revelaria uma grande ignorância em relação ao seu objeto e ao próprio empreendimento crítico, tanto quanto estudar Teoria Literária sem considerar a Literatura seria, digo eu, no mínimo um nonsense. Os Estudos Literários, assim pensa Ronald Paulson (ibid.:439), deveriam conduzir o estudante à reflexão teórica, mas depois levá- lo de volta aos textos literários, então iluminados pela teoria. 21 Uma crítica comum à posição (iv) pode ser resumida na postura de Vance (ibid.:448), que entende ser o problema da Teoria Literária sua natureza híbrida: não é pura história, nem pura filosofia, nem pura antropologia, nem puro estudo de Literatura, razão pela qual ela é freqüentemente superficial e assistemática. Krieger (ibid.:432-433) também concorda que o grande problema da teoria seja exatamente seu fracasso em determinar seus próprios limites. Entre as principais causas apontadas como responsáveis pela fluidez das fronteiras da Teoria Literária está a aceitação franqueada dos modismos, que faz com que qualquer novidade receba prioridade em relação aos métodos clássicos. Ignora-se, deste modo, que muitas novidades são repetições ou redescobertas, opinião de Marino (ibid.:436) e Morton Bloomfield (ibid.:414). Esse tipo de teoria, que desconhece as reflexões sobre as linguagens anteriores a de, por exemplo, Derrida, bem como sobre a própria história da disciplina, incentiva tendências narcisistas de crítica e oferece meios de se evitar os desafios apresentados pela tradição e pela necessidade da prática da confirmação e da refutação, ponto de vista com que concordam Fowler (ibid.:419) e Ellis (ibid.:417). Em muitos casos, a aceitação de uma perspectiva teórica se dá pelo fascínio produzido pelo esplendor da imprecisão grandiosa, ao invés da clareza exigida de qualquer pesquisa teórica autêntica, referindo-se Ellis (ibid.) à pretensão de algumas correntes de que o comentário do texto seja tão importante quanto o próprio, a ponto de poder substituí- lo, ponto de vista também de Alvin Sullivan (ibid.:446). A dependência existencial-temporal do último em relação ao primeiro — isto é, do comentário em relação ao texto — não é apenas uma questão de lógica elementar, enfatiza Steiner (ibid.:445), mas também de percepção moral. 1.2 - SISTEMATIZANDO O PROBLEMA Uma análise preliminar das respostas à enquete da New Literary History pode conduzir a uma primeira hipótese de trabalho: “Teoria da Literatura” não é uma noção auto-evidente e muitas das discussões em torno do tema são prejudicadas pela ausência de um acordo conceitual prévio. As compreensões muito diversificadas a respeito da natureza, dos objetivos e das funções do trabalho teórico produzem diferenciados 22 procedimentos de produção, de divulgação e de ensino da Teoria Literária. Se, por um lado, a multiplicidade de caminhos de abordagem da Literatura aponta, supostamente, para a pujança e complexidade da obra literária, por outro lado, essa pletora de possibilidades aparentemente equivalentes em suas irredutíveis especificidades conduz os Estudos Literários a uma situação incômoda para uma disciplina institucionalizada. Seria efetivamente uma qualidade poder se responder a uma pergunta como o que é ser um estudioso de Literatura? de infinita maneiras, ou isso apenas revelaria o quão pouco especializada vem se tornando essa área de estudos? Não creio que estudiosos atuantes nesta área possam ignorar a relevância dessa questão. Por esta razão, sempre entendi que, qualquer que fosse o caminho tomado por meu trabalho, eu deveria manter esta pergunta em meu horizonte — irrespondível, mas de constante presença — para não me permitir continuar desenvolvendo uma atividade sem ter alguma consciência objetiva de suas finalidades. Não estou pensando em teleologias extremas, mas apenas tentando entender como minha prática, o estudo da Literatura, responde à minha condição humana, sobretudo, como um ser político. É claro que reconheço a validade de respostas “afetivas” a essa questão, como todas aquelas que entendem que nossa condição de estudiosos de Literatura já se justificariapelo simples fato (aliás, nada simples) de estarmos atuando como agentes de conservação do patrimônio constituído por algumas das mais radicais e maravilhosas aventuras do ser humano: as obras de arte literária. A melhor forma de demonstrar gratidão a todos aqueles que permitiram que essas obras chegassem compreensíveis até nós seria atuar também como preservadores e transmissores deste legado. Esta seria, por si só, uma missão tão nobre quanto quixotesca: atuar como bastião de um patrimônio cultural evanescente. Mas não é claro para mim como minha presença na Academia contribui, efetivamente, para essa causa. A proliferação desenfreada de discursos sobre a obra literária, a diafonia das correntes de pensamento, a exuberância das abordagens inter, trans e meta disciplinares parecem estar muito mais se utilizando da Literatura para falarem de outras coisas — em geral, delas próprias — do que propriamente tratando da Literatura, de seus problemas e de suas qualidades. O que poderia ser entendida como apenas uma dúvida existencial deve ser também considerada em sua dimensão política: o que significa ser subsidiado — ainda que mal — pelo estado para estudar Literatura, se transformar num especialista em 23 Literatura e depois atuar como formador de outros especialistas? Mesmo reconhecendo não reunir as condições necessárias para fazer desta questão o problema teórico a ser enfrentado neste trabalho, devo admitir que prosseguir falando profissionalmente de Literatura, sem um esforço prévio de compreender essa função no que ela significa e pode significar para meu tempo e para a sociedade em que vivo, vem se transformando num hábito suspeito, se não fraudulento, de apenas encher de mais confusões as já abarrotadas prateleiras dos Estudos Literários. Tendo admitido a validade e a pertinência da pergunta “que é ser um estudioso de Literatura?”, o próximo passo será tentar entender em que um estudioso da Literatura se diferenciaria do leitor comum. Nossa condição de especialistas — legitimados que somos por nossa posição institucional — deve implicar, suponho, o domínio de um discurso sobre a obra literária qualitativamente diverso daquele dos demais leitores não-especializados. Aceito aqui como válida qualquer advertência no sentido de se negar a pertinência de se pensar o discurso do especialista como qualitativamente superior aos demais discursos sobre Literatura. No entanto, se aceitamos a equivalência entre eles, deveríamos imediatamente procurar, nos cadernos de classificados, um novo ofício. Para podermos continuar a fazer o que fazemos, precisamos ao menos acreditar, em hipótese, que é possível um discurso e um saber sobre a Literatura — dados por um conjunto de práticas desenvolvidas no ambiente da universidade — diferenciados, em qualidade, da infinidade de discursos e de saberes possíveis sobre qualquer obra literária. A partir dessa assertiva hipotética — o discurso e o saber do especialista são qualitativamente diferentes dos discursos e dos saberes que podem ser produzidos sobre uma obra literária por não-especialistas —, uma outra suposição se impõe: onde estaria o cerne desta diferença? Entre as respostas possíveis, creio que poderia situar-se no esforço de observar a obra: (i) não apenas naquilo que significa para mim, leitor, mas naquilo que significa e pode significar para o conjunto dos homens; (ii) como um documento histórico, um retrato privilegiado de uma época; (iii) em suas similaridades com outras obras, chegando-se assim a algum tipo de visão sistemática de fenômenos aparentemente sempre tão singulares; 24 (iv) em suas relações, diacrônicas ou sincrônicas, com o conjunto das demais atividades humanas; (v) como singularidade irredutível e absoluta, como algo cuja existência é sempre um “existir para alguém”; (vi) como artesanato textual, fruto de técnicas de produção que podem ser catalogadas e reutilizadas para a produção de outras obras. Estas são respostas justas e possíveis, como ainda seriam possíveis e justas muitas outras. As seis possibilidades arroladas correspondem, efetivamente, a realizações dos Estudos Literários ao longo da história. Cada uma delas se funda em algum tipo de pressuposto sobre a Literatura: a obra como documento, como linguagem, como pensamento, como objeto que se oferece aos sentidos etc. Cada uma dessas tentativas recorta, de um mesmo campo de observação, a linguagem verbal, objetos formais bastante diversos que vêm sendo denominados, há pelo menos duzentos anos, com maior ou menor imprecisão, Literatura. Chegar-se- ia assim, aparentemente, a uma solução para a questão inicial proposta: o papel do especialista seria o de construir um discurso sobre obras literárias fundamentado em algum pressuposto do que vem a ser a Literatura. Tal conclusão poderia mesmo ser demonstrada, sem maiores dificuldades, de modo empírico. Bastaria uma visada histórica para perceber que os objetos que chamamos hoje literários têm se prestado a compreensões distintas e, por vezes, quase contraditórias, sem nenhum prejuízo perceptível do fenômeno literário, que sobrevive e resiste para além dos tumultuosos pensares de seus admiradores e estudiosos. Minha segunda pergunta — o que diferencia o discurso do especialista do discurso do não-especialista? — persiste, porém, sem resposta. Uma outra visada, agora empírica, poderia nos mostrar que, num mesmo momento histórico, como o nosso, discursos supostamente fundamentados sobre a Literatura parecem se propagar em progressão geométrica. Se nos submetermos ao que foi postulado no parágrafo anterior (“o papel do especialista seria o de construir um discurso sobre a Literatura fundamentado em algum pressuposto do que vem a ser a Literatura”), não acabaríamos obrigados a sustentar que qualquer discurso fundamentando em qualquer premissa é igualmente legítimo? E tal concepção não deveria também aceitar discursos geralmente tomados como não-especializados, como o do diletante que fundamenta seu discurso e 25 seu saber sobre a obra literária em, por exemplo, seu gosto individual? Não terminaríamos igualando — democraticamente, é bem verdade — uma teoria do romance ou um tratado de versificação a declarações tão peremptórias quanto incontestáveis do tipo “gosto porque gosto”? Para não acabar por se reconhecer que o resultado do estudo profissional da Literatura é idêntico ao das muito mais agradáveis horas de leitura e de conversa opiniática, deve-se admitir que a exigência simples de um discurso sobre a obra literária fundamentado em qualquer pressuposto não é suficiente para que possamos entender o que diferencia o saber do especialista do saber do não-especialista. Uma possível saída estaria em admitir que devemos ser capazes de empreender uma crítica desses fundamentos (e pseudofundamentos) dos discursos sobre a obra literária. Mas tal empreendimento é possível na condições de pensamento do mundo atual? O pensamento relativista, com a radicalidade que grassa hoje no meio dos Estudos Literários, quase nos faz esquecer que estamos obrigados, em nossa existência, a fazer escolhas e juízos. Sem algumas presunções temerárias, sem algumas certezas operacionais, sem as pequenas decisões “autoritárias” do cotidiano, não somos sequer capazes de atravessar uma rua. Em outras palavras, o relativismo, levado ao extremo, paralisaria o homem numa sucessão interminável de aporias enquanto se persegue a utópica igualdade na diferença, o provável ideal de justiça de nossos dias. Não estou assumindo aqui uma posição pragmática, mas indicando que tomar o relativismo como fundamento último tem autorizado comportamentos pragmáticos diversos, muitos deles pouquíssimo afinados com as boas intenções democráticas dos relativistas. O mundo não pára porque alguns homens têm dúvidas sobre a verdade última das coisas e dos seres.Os desafios de uma epistemologia relativista não podem ser tomados como definitivamente aporéticos. A filosofia kantiana, para ficar num único e bastante conhecido exemplo, com seu relativismo gnoseológico, mostra que a relatividade de nosso conhecimento — tudo o que conhecemos, conhecemos em função de nossa razão — pode ser, ao mesmo tempo, também a promessa e um projeto de universalidade; afinal, todos os homens são racionais. Como não estamos dispostos a abandonar as importantes e não poucas conquistas que uma consciência relativista tem proporcionado ao homem, nem tampouco abrir mão de nossa capacidade crítica — a potência de 26 questionar os limites e a validade de nossos pensamentos e ações —, talvez devêssemos nos dedicar seriamente a formular novos modos de pensamento que nos permitam um contraponto crítico, de onde se possa avaliar, por exemplo, em nome de que tipo de democracia ou em nome de que idéia de arte estão sendo proferidos discursos sobre a obra literária. Se não formos capazes desta reflexão, continuaremos a ver, à revelia de seus defensores, o relativismo servindo de combustível ideológico para atitudes, comportamentos e discursos estranhos às pretensões igualitárias de suas premissas. Entro agora no segundo questionamento derivado de minha pergunta inicial sobre o significado de ser um estudioso da Literatura: num contexto de relativismo cultural, quais modelos de Estudos Literários legitimamente fundamentados são possíveis? Acredito — e continuo assim no terreno das hipóteses, pois não tenho como “provar” a superioridade desta possibilidade — que a resposta a essa pergunta passa necessariamente pelo esforço de se reelaborar um estudo metódico e sistemático da Literatura. Para tanto, antes de mais nada, seria necessário superar a aversão, no ambiente dos Estudos Literários, ao simples proferimento da palavra “teoria”. A desconfiança, por parte de estudantes e de professores, em relação ao trabalho teórico é, em parte, justificável. A forma como ele vem sendo utilizado tem se revelado por vezes inócua, outras vezes iníqua. Na imagem precisa de Gustavo Bernardo, A teoria se torna árida, seca, burocrática, somente quando pára de pensar sobre si mesma, acreditando-se acima da crítica e da reflexão e se sobrepondo totalitariamente ao método e à prática. Quando se coloca a teoria na frente do método, ela fica se parecendo com uma chave de fenda que não encontra, na dimensão do real, a fenda que lhe cabe, e então arranha o real até forjar a fenda e torcer o fenômeno para onde a teoria dizia a priori que ele ia. (Bernardo, 1999:161; grifo meu). Em conseqüência do mau uso do trabalho teórico, a teoria vem sendo compreendida apenas como uma tentativa fracassada de transformar o estudo da Literatura em uma ciência nos moldes positivistas do século XIX. O que normalmente chamamos Teoria da Literatura, com T e L maiúsculos, é, de fato, uma realização histórica no âmbito dos Estudos Literários no século XX, que se concretizou numa pletora de correntes cujos pressupostos são tão variados, concorrentes e contraditórios entre si que somente com um supremo esforço de generalização podem ser reunidas em um mesmo rótulo. Nesse sentido, a antipatia pela teoria se justifica: seu alastramento como “abordagem” hegemônica trouxe, aos Estudos Literários, muito mais confusão e contradições do que conhecimento e soluções para os problemas da área. 27 Uma das metas deste trabalho é, em primeiro lugar, mostrar que o que parece ter morrido no século passado foi um determinado projeto de teoria, não a necessidade e a pertinência do estudo metódico e sistemático da Literatura. Além disso, creio que é estratégico demonstrar que nenhuma Teoria da Literatura pode ser tomada como substituta ideal de todas as possíveis abordagens do objeto literário, isto é, não pode ser considerada “uma espécie de enciclopédia do saber sobre a Literatura, que incorpora, como meros capítulos seus, todas as demais disciplinas historicamente discerníveis nesse setor” (Souza, 1987:102). A reflexão teórica, assim, seria uma faceta do movimento de compreensão da Literatura, juntamente com as abordagens interpretativas, analíticas, históricas, judicativas e prescritivas, que constituem o conjunto das atitudes possíveis — ao menos até este momento — diante de objetos literários. Para que a teoria assuma o papel que lhe cabe no estudo especializado da Literatura, proponho a observação de quatro princípios orientadores: (i) O estudo da Literatura, para ser sistemático e metódico, não deve precisar reproduzir fielmente métodos das ciências empíricas modernas ou repetir os caminhos trilhados pelos Estudos Literários nos séculos XIX e XX, que se serviram de metodologias importadas de outras ciências humanas e sociais, como a Antropologia, a Sociologia, a Lingüística, a Psicanálise e a História. (ii) A historicidade da experiência humana não pode redundar, necessariamente, em que todo e qualquer sistema teórico esteja fadado a se realizar como absolutização de concepções individuais ou históricas. Se o plano da experiência se revela aberto e histórico, a teoria deverá ser aberta, para a contínua renovação de seus pressupostos — sem que isso signifique formular uma teoria para cada obra literária particular ou abandonar princípios teóricos a cada problema que o dinamismo e a diversidade dos processos criativos da arte venha a apresentar —, e histórica — por ser concebida como uma construção de pensamento que se dá em um tempo e espaço definidos —, sem ser historicista, isto é, sem se restringir a concepções causais sobre a obra de arte. (iii) O estudo especializado da Literatura precisa estar empenhado no estabelecimento, aperfeiçoamento e conservação de uma linguagem conceitual universal, com o objetivo de tornar os trabalhos teóricos inteligíveis entre si e passíveis de serem comunicados. 28 (iv) Uma Teoria da Literatura precisa realizar, como uma de suas preocupações axiais, uma constante reflexão sobre o papel da Literatura na existência do homem, o que implica possuir uma dimensão filosófica cujos postulados sejam ética, lógica e epistemologicamente coerentes. Atender os quatro princípios orientadores ora propostos exigirá, ao longo da reflexão que nos propomos, uma talvez utópica e certamente ambiciosa aspiração de compromisso com um novo caminho para as ciências humanas, fundado em novos ideais de objetividade. Acredito que um esforço em se realizar uma reflexão rigorosa possa permitir pensar o estudo da Literatura, em condições que superem o relativismo permissivo que tem marcado o campo de Estudos Literários nos últimos anos. É possível imaginar que o estudo especializado da Literatura possa ser legitimado, com suas limitações, por ser um modo de compreensão da função do estudioso da Literatura solidário com um determinado modo de compreensão da arte, um determinado modo de compreender o conhecimento humano, um determinado modo de compreender o homem, enfim. 1.3 – OS ESTUDOS LITERÁRIOS ANTES DA TEORIA DA LITERATURA Até a investigação do fenômeno literário ambicionar, a partir do século XIX, um caráter científico, três disciplinas de cunho humanístico disputaram este campo de estudos: a Retórica, a Poética e a Estética. As duas primeiras têm suas origens na Antigüidade e permaneceram dominantes até pelo menos o fim do século XVIII. A Estética só foi conceitualmente formulada como um campo autônomo em meados do século XVIII, com a obra de Alexander Baumgarten. Originadas numa tradição filosófica estranha à especialização das ciências, Retórica, Poética e Estética não são facilmente separadas entre si. Roberto Acízelo de Souza aponta, contudo, para algumas especificidades inerentes a cada disciplina, e demonstra como elas ora se relacionaram de modo complementar e sem hierarquias, ora com oscilações de proeminênciaque passaram “da Retórica à Poética e desta à Estética” (ibid.:30). Fazendo inicialmente uma distinção entre Retórica e Poética, diz o ensaísta: (...) a primeira se concentra em questões predominantemente técnicas acerca da construção do discurso, enquanto a segunda é animada por um empenho especulativo que não se confina somente ao âmbito dos recursos de seleção e arranjo verbal, interessando-se antes pelos problemas correlativos da origem, 29 natureza e função da arte literária. Outras vezes, porém, a Poética sacrifica o especulativo ao pragmático e normativo (o que se dá sobretudo na Baixa Idade Média e no Classicismo moderno), com o que a preocupação absorvente com a técnica da composição a aproxima bastante do âmbito retórico (ibid.:49). As origens da Retórica podem ser relacionadas a um fato político-econômico, pois a sistematização e o ensino de técnicas oratórias atendiam a importância que a eloqüência assumia em sociedades em que tribunais e assembléias eram os centros de todas as decisões. Mas a fixação e o desenvolvimento da disciplina estão intimamente relacionados à Sofística, que, muito mais do que uma técnica de manipulação da linguagem, era um novo modo de reflexão sobre ela, e, de certo modo, representou a fundamentação filosófica da Retórica. Do ponto de vista da história tradicional da Filosofia, a Sofística foi relegada, durante séculos, a um papel secundário, que não condiz, por exemplo, com a atenção reservada a ela pelos próprios Sócrates, Platão e Aristóteles, os quais dedicaram grande parte de seu pensamento em dialogar com sofistas. Acízelo lembra, por exemplo, que, no tratado aristotélico de retórica, há diversos pontos convergentes com o pensamento de sofistas: a potência catártica do discurso, o alcance filosófico da poesia, o poder da mímesis etc. Mesmo Platão, deixando-se de lado a perspectiva moral/pedagógica de suas críticas à poesia, não negava o imenso poder do lógos — um pressuposto caro à Sofística. Foi justamente um sofista, Górgias, que acrescentou à codificação dos recursos de oratória judiciária e política o gênero epidíctico. Mas, já em Aristóteles, observa-se uma distinção — ele escreveu um tratado destinado à Retórica e outro à Poética — que se faria presente em Horácio, Ovídio e ao longo do mundo antigo, até que com Tácito, quando a oratória política e judiciária tornaram-se proibidas, reunir-se-iam as duas disciplinas sob o nome de Eloqüência. A Retórica adaptou-se ao Cristianismo e tornou-se, na era medieval, uma das disciplinas do Trivium. Nesta altura, ela se encontrava unificada com a Poética, numa disciplina que reunia arte oratória, correspondência administrativa e criação poética, até que, em fins do século XV, ocorreu a separação entre Primeira Retórica (ou Retórica geral) e Segunda Retórica (ou Retórica poética). A Idade Média, contudo, marcaria o início do declínio da Retórica. Com o passar do tempo, a perda da finalidade de instrumentalizar oradores fez com que ela passasse a se ocupar exclusivamente da 30 palavra escrita. De disciplina dominante do Trivium, ela foi perdendo sua preeminência, primeiro para a Gramática e depois para a Dialética. No Renascimento, quando a redescoberta da Poética, de Aristóteles, deu nova vida aos estudos da arte literária, a Retórica encontraria espaço apenas como disciplina escolar do ensino jesuítico. Sob a capa da Eloqüência, a Retórica havia absorvido toda a cultura da palavra e estava diretamente relacionada à idéia de Literatura como um “bem escrever”. Seu esvaziamento está relacionado, nos termos de Acízelo, a um movimento que começa no século XVIII e se consuma no XIX: em primeiro lugar, a nova ordem epistemológica que deu lugar a uma nova forma de entendimento da linguagem, sob “uma perspectiva racionalista (Gramática de Port-Royal), referencial (empirismo) ou sensualista (Estética)” (ibid.:51); depois, a ascensão da ideologia romântica e sua incompatibilidade com o caráter preceptístico assumido pelas duas disciplinas humanísticas; e, por fim, a submissão das Humanidades aos ideais cientificistas, e a ascensão da História como disciplina-chave das novas Ciências Humanas. Em suas últimas versões, a Retórica, então já uma decadente e ridicularizada disciplina, resumia-se a um conjunto de classificações. Seu declínio da condição de metalinguagem predominante foi seguido, no plano teórico, por um vazio que seria preenchido pelo impressionismo crítico. Escritores, críticos, historiadores e filósofos, alternando biografismo, sociologismo e psicologismo, dominaram o ambiente dos Estudos Literários. Por permitir partir do termo classificatório para o exemplo — mas não o inverso, do fato de língua ao nome da figura, o que caracterizaria um procedimento indutivo —, a Retórica se aproximaria, mais do que qualquer outra investigação da Literatura, de uma ciência empírica baseada na construção de uma teoria hipotético-dedutiva (ibid.:32), conforme pode ser observado nas etapas caracterizadas por Acízelo: (i) Observação dos enunciados: por exemplo, no enunciado “aurora de róseos dedos” detectar-se-ia um fato de linguagem: a relação analógica entre “róseos dedos” e “alongados e divergentes traços avermelhados” permitindo a substituição do termo próprio pelo figurado. (ii) Fixação de proposições singulares (descrições/nomeações): descrição do fato detectado. No caso, a relação de analogia entre “róseos dedos” e “alongados e divergentes traços avermelhados”. 31 (iii) Generalizações: a partir da observação de outros fatos semelhantes, estabelecimento de uma proposição geral: ocorre, na linguagem, a transposição, com base numa relação de semelhança, do nome de uma coisa para outra. (iv) Classificação das proposições singulares: criação de um conceito (no caso em questão, o de metáfora) a partir desta generalização. (v) Construção de uma “teoria de nível baixo”10: conjugação das proposições, das classes e dos conceitos, num sistema coerente. Estabelecida, por fim, uma teoria, ela deverá permitir novas generalizações conjugadas a suas proposições, promover operações dedutivas que integrem a ela novos enunciados e tornar-se um instrumento técnico de produção de enunciados por ela classificáveis conceitualmente. Outra disciplina clássica, a Poética, tem sua origem em obras fundadoras como a Poética, de Aristóteles, a Ars poetica, de Horácio, e o Sobre o sublime, de Longino. A partir do século I a.C., ocorre o já referido sincretismo com a Retórica, com o predomínio desta sobre aquela — no Septennium medieval, apenas os estudos retóricos se fazem presentes. Será apenas no final do século XV, com a distinção entre Retórica Geral e Retórica Poética, antes já aqui mencionada, que a Poética, então chamada de Segunda Retórica, alcançaria o seu auge. Enquanto a Primeira Retórica ficaria confinada ao ambiente escolar, a Poética emergiria, redescoberta no Renascimento, como uma disciplina de pesquisa filosófico-técnico-formal que daria origem às artes poéticas do Classicismo europeu moderno, até ter sua posição hegemônica arrebatada pela Estética, no século XVIII. Para Roberto Acízelo de Souza, os fatores que causam a derrocada da Poética teriam sido os mesmos que abalaram a Retórica, já aqui antes referidos. Outra disciplina da tradição humanística é a Estética, que se organizou conceitualmente em 1750, com o trabalho de Alexander Baumgarten. A temática, contudo, já era trabalhada desde a Antigüidade Clássica: uma abordagem da Literatura que levasse em consideração o conjunto das demais artes. Correspondia a tentativa de se estabelecer uma ciência do conhecimento sensível, a partir de uma distinção entre 10 Por “teoria de nível baixo” deve-se entender “(...) um conjunto de proposições/conceitos coerentes entre si, apto a permitir adedução de novas generalizações, bem como dotado da capacidade de funcionar, isto é, dotado de alcance técnico, ainda que incapaz de desvendar a profundidade do próprio funcionamento” (ibid.:32). 32 “coisas conhecidas” e “coisas percebidas”. A Estética era, portanto, não apenas um estudo da arte, mas um campo de estudo epistemológico. Há, na obra de Baumgarten, a tentativa de conceder ao sensível maior consideração, integrando-o de algum modo às faculdades cognitivas racionais. Ao colocar a arte “sob a jurisdição de uma ‘gnosiologia inferior’” (ibid.:54), ele reforçou uma concepção de linguagem como transparência à sensibilidade, impulsionando a ideologia romântica da criação artística como obra do gênio. Paradoxalmente, as transformações de que a Estética “é simultaneamente fator e produto” (ibid.:55) são também as razões de seu rápido declínio, a saber, a escalada da ciência que acabou por tomar o lugar das especulações filosóficas características da Estética, e os êxitos do Romantismo e do evolucionismo, que conferiram à História o status de modo investigativo dominante. A emergência dos ideais da ciência moderna, no século XVII, afetaria profundamente os Estudos Literários. O operativismo e o substancialismo que marcavam os estudos de Literatura de tradição clássica tornar-se- iam progressivamente desacreditados. Retórica, Poética e Estética, como modelos de conhecimento e como metalinguagem, ficaram incapazes de atender às novas necessidades epistemológicas e artísticas. Por um lado, o conhecimento voltado para o artesanal ou para o especulativo das disciplinas clássicas distanciou-se da intenção de “submeter também as realidades sociais ao âmbito da Ciência” (ibid.:57). Por outro, a produção artística, inspirada pelos ideais estéticos do Romantismo, escapava a uma metalinguagem desenvolvida em função de uma produção eminentemente clássica. Os novos pressupostos epistemológicos gerariam entendimentos diversos sobre como abordar a Literatura: como expressão da personalidade do autor, como representação social ou como documento histórico. Para cada uma delas, se estabeleceria um modo investigativo próprio: o psicológico-biográfico, o sociológico e o filológico, todos, porém, submetidos aos fundamentos filosóficos da História. A crise do código clássico, somado à convicção romântica de ser o gosto pessoal a instância última do juízo e à utilização dos jornais como instrumentos de divulgação da Literatura para um público não especializado (cf. ibid.:61), gerariam antes, porém, um período intermediário, marcado pelo impressionismo crítico, até que, sob a égide da ciência moderna, a Literatura passará a ser tomada como um objeto a que se aplicarão 33 os métodos científicos das então incipientes Ciências Humanas. Paradoxalmente, relegando-se uma premissa da cientificidade, o primeiro momento do cientificismo nos Estudos Literários é marcado por um movimento de desespecialização. Sem um método de pesquisa que lhe fosse próprio, os estudos da Literatura se caracterizaram pelo ecletismo e pela tendência culturalista decorrente da adoção de métodos e modelos de outras disciplinas científicas. Sem estarem ainda consolidados em nenhuma disciplina científica e sem possuírem nenhum conhecimento especializado, apenas absorveram quase indiscriminadamente os esforços e modelos teóricos das novas disciplinas científicas. A Crítica e a História Literária surgiram como a mediação entre as especializadas e não-científicas disciplinas clássicas e a não-especializada e não- científica crítica impressionista. Ao postularem um ideal de cientificidade e, ao mesmo tempo, de não-especialização, elas se tornaram uma espécie de “estágio (...) protocientífico da investigação da Literatura” (ibid.:59). Nas semelhanças entre Crítica e História Literárias, há uma diferença conceitual fundamental, que diz respeito à preocupação com o valor das obras. Mas o que se designa, de fato, por Crítica Literária? O primeiro problema que se enfrenta é o fato de o termo ter usos muito distintos em cada uma das principais línguas européias. São tão misteriosos os motivos que levaram à expansão do termo “crítica”, quanto os que levaram a língua inglesa a utilizar a forma criticism — em francês, italiano, espanhol, português e alemão, a forma “criticismo” e seus equivalentes referem-se ao método epistemológico kantiano — ou à limitação do sentido de kritik, em alemão, às resenhas diárias. Acízelo entende então ser mais razoável dizer que a Crítica Literária não se constitui como uma disciplina, mas como uma prática comentadora de obras literárias, cujas orientações têm se transformado bastante ao longo do tempo (ibid.:85-96). O que pode ser percebido é o maior uso da palavra, junto com “história”, em referência a obras que se ocupam da “Literatura” a partir de fins do XVIII, em substituição aos termos Retórica, Poética, Estética, Eloqüência. Embora correspondesse às intenções de se criar uma “alternativa científica para o conhecimento da Literatura, em substituição ao complexo humanístico” (ibid.:90) das disciplinas clássicas, e tivesse chegado a designar uma suposta disciplina dos Estudos Literários, havia muito pouco de 34 “científico” na atividade crítica do século XIX, praticamente imune a qualquer tipo de rigor metodológico e conceitual. Em geral, a Crítica Literária (...) tendeu a identificar-se com pura emissão de impressões de leitura, comentário ligeiro de obras literárias, no máximo servindo-se de minguadas idéias gerais provenientes de versões ecléticas e banalizadas de certo(s) sistema(s) de conhecimento sobre a Literatura. Assim, a Crítica Literária acaba por tornar-se pura publicidade e/ou divulgação jornalística de obras literárias; é ela que praticamente se confunde com o que veio a chamar-se de impressionismo crítico (...) (ibid.:91). Ao longo do século XIX, a crítica vai-se distanciando de se tornar uma atividade de investigação sistematizada da Literatura e se firmando como uma prática de publicidade de obras ou de popularização sumária de sistemas científicos, diretamente relacionada com a sociedade industrial moderna e com o circuito de circulação de produções culturais. As tentativas de se conceder à Crítica Literária um espaço disciplinar próprio nem sempre representam um empenho em repensar a possibilidade da prática em si, mas apenas, como lembra Roberto Acízelo de Souza, implicam mais em “salvar a palavra do que a prática crítica” (ibid.:93). Algumas tentativas de resgatá- la acabam sugerindo um certo sentido etimológico profundo que o termo conteria, e que este sentido original se teria corrompido, ao longo da história, por práticas críticas que não fariam jus a sua essência. Não parece possível, contudo, se evidenciar tal sentido original pelos dados históricos que se apresentam. Para Roberto Acízelo de Souza, a presença de uma preocupação conceitual, que se recusasse a se submeter a valores que lhe são estranhos, consciente da necessidade de se ater a seu aparato instrumental e dos riscos de se contaminar ideologicamente, não estaria no plano da crítica, mas no da Teoria da Literatura. Para o ensaísta, a palavra crítica está inseparavelmente ligada, em nossos dias, a julgamento, valor e opinião, não fazendo sentido pretender que ela seja “um corpo organizado de conhecimentos” (ibid.:95), justa definição de Teoria da Literatura, ou “a consideração analítica de obras particulares, em contínua referência a um quadro teórico inicial de base” (ibid.:95), atividade para cuja designação há a palavra “análise”. Contemporânea da crítica, a História de Literatura fundamenta-se no pressuposto da cientificidade da História. A ascensão do historicismo como ponto de vista epistemológico dominante no XIX tem algumas causas recuperáveis: (i) a expansão do capitalismo burguês e a exigência de uma reflexão
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