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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 10
Primeira parte
UTOPIAS E REALIDADE
Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 11
I. A MEMÓRIA DOS POVOS
Em que pesem os nossos cronômetros, nossos calendários, nossas crônicas familiares e
nossos livros de história, temos sempre dificuldade em conceber a noção de tempo. Se
admitirmos que a geração atual nasceu em 1960 (pura convenção) e que as gerações se
renovam a cada 30 anos, o avô terá visto os primeiros aviões aproximadamente em 1900, dez
gerações nos separam do século XVII (1660), cinqüenta gerações da época das grandes
invasões (460).
Há cem gerações (1040 a.C.), a Europa se encontrava na Idade do Bronze e a 21ª dinastia
faraônica reinava no Egito do Baixo Império. 150 gerações nos levam aos mais antigos textos
escritos mesopotâmicos. Há 1000 gerações, nosso ancestral, caçador do Aurinhacense, traçava
nas paredes das cavernas as primeiras representações de animais, ainda toscas. 2000 gerações
nos separam do Homem de Neanderthal e 57.000 gerações do Zinjantropo*, o
Australopiteco* da garganta de Olduvai, na Tanzânia. Enfim, é preciso recuar até 200.000
gerações para que nosso primo Chimpanzé e nós mesmos possamos falar de um ancestral
comum.
Em face a essa história o homem sempre se viu desarmado. Prisioneiro entre o secreto
desejo de conhecer e os limites de sua própria memória histórica, ele inventou o mito e
resolveu instantaneamente o mistério da sua origem. Existe então um certo equilíbrio entre as
explicações globalizantes das mitologias e os conhecimentos históricos reais, equilíbrio por
vezes conflituoso, como testemunham ainda nos nossos dias, principalmente nos Estados
Unidos, os confrontos entre evolucionistas, que demonstraram seguindo os passos de Darwin
que as espécies vivas se transformam constantemente e podem dar origem a novas formas de
vida, e os criacionistas, partidários da gênese bíblica e de uma única criação.
Se decidirmos abandonar provisoriamente as certezas religiosas, nós devemos nos engajar
no difícil caminho dos conhecimentos parciais e provisórios, através do qual apenas a
arqueologia e a paleontologia podem guiar nossos passos. Mas talvez não seja inútil explorar
inicialmente os limites da memória dos povos.
1. Cinco milhões de anos de história humana
Avaliar esses limites implica, logo de início, em estabelecer uma escala de referência. Os
métodos físicos e as datações isotópicas permitem estabelecer essas cronologias, no interior
das quais podemos situar as principais etapas da nossa história.
A idade do universo é de 10 a 20 bilhões de anos. Os primeiros corpos celestes,
protogaláxias e quasares, se formaram cerca de um bilhão de anos após o Big Bang que marca
a origem do universo conhecido. A idade do sistema solar recua a 4,5 bilhões de anos e as
mais antigas rochas datadas na Terra situam-se há cerca de 3,8 bilhões de anos, enquanto que
os primeiros indícios seguros de vida, identificáveis nas seqüências geológicas – referimo-nos
aqui aos organismos procariotes (sem núcleo) dos sílex da seqüência da Figueira, no
Zimbabwe – recuam a 3,4 bilhões de anos. Se a diferenciação dos mamíferos data
provavelmente apenas de 150 milhões de anos, é preciso esperar o fim do Secundário para
encontrar, no Cretáceo superior da América do Norte, o primeiro Primata, que foi chamado
Purgatorius, e o Terciário (que começa há cerca de 60-65 milhões de anos) para que se
diversifiquem os Prosímios* (cujos descendentes atuais são principalmente os Lemurienses)
e, a partir do Oligoceno, cerca de 37 milhões de anos atrás, os Símios.
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 12
Confrontada a esse grande quadro, a história humana parece bem irrisória. As mais
seguras bases para fixar o período do “grande início” assentam-se curiosamente não sobre os
dados da paleontologia dos primatas, bastante incertas para o período crucial entre 4 e 20
milhões de anos, mas sobre os dados da genética molecular. Esta disciplina permite afirmar
efetivamente que a linhagem que conduz ao homem separou-se daquela dos grandes macacos
africanos (Chimpanzé e Gorila) há somente 5 a 6 milhões de anos. Há 3,7 milhões de anos já
estaria adotada a postura ereta. Pode-se supor que ela já existiria, ao menos de forma
imperfeita, desde a aparição da linhagem hominiana.
Os mais antigos instrumentos de pedra atualmente conhecidos provêm das formações de
Haddar, na Etiópia, e recuam ao menos a 2,5 milhões de anos. Essas pedras lascadas possuem
características bastante evoluídas, o que torna perfeitamente possível vislumbrar descobertas
futuras de instrumental ainda mais primitivo.
Há cerca de 2 milhões de anos, os restos de Hominídeos* fósseis se tornam mais
freqüentes na África Oriental, e se pode estudar vestígios de acampamentos deixados por
alguns deles. As mais recentes descobertas relacionadas ao Homo erectus se multiplicam não
somente na África, mas igualmente na Europa e na Ásia. Infelizmente, a referência
cronológica torna-se aqui um tanto imprecisa. Possuímos um excelente método de datação
para os períodos mais antigos (além de 1 milhão de anos), chamado método do Potássio-
Argônio*, que permite datar as rochas e sedimentos vulcânicos. Esse método torna-se inútil
para períodos mais recentes pois seu poder de resolução torna-se ineficiente. Isso permite
explicar o porquê das dificuldades encontradas quando se trata de situar no tempo a data da
aparição da utilização do fogo, invenção do Homo erectus. Os restos de fogo nos
acampamentos humanos, de início esporádicos, só se generalizam no momento da glaciação
do Riss, no fim do período acheulense. Desde o início do período würmiano que corresponde
à última glaciação, o Homo sapiens neanderthalensis, o Homem de Neanderthal, utilizará
sistematicamente o fogo.
Reencontramos um referencial cronológico seguro aproximadamente a partir de 30.000
anos, graças às possibilidades oferecidas pelas datações por carbono 14*. Situamo-nos então
na segunda parte do período würmiano. O Homo sapiens sapiens acaba de aparecer. Sua
subsistência depende, como para os seus ancestrais, da caça, da pesca e da coleta. Será preciso
esperar ainda vários milênios e o fim dos tempos glaciais para assistirmos às grandes
transformações do Neolítico, marcando o início da civilização moderna, a invenção da
agricultura e do pastoreio, a passagem de uma economia de predação a uma economia de
produção. Essas transformações acontecem em cada região independentemente e em épocas
variáveis. A cada dia, novas descobertas modificam os cenários dessas mudanças capitais
para a história humana, mas as regiões montanhosas do oriente próximo permanecem sempre
consideradas como a zona onde ocorreu mais precocemente. Iniciando-se há 9.000 anos a.C.
por uma fase de economia centrada na coleta de cereais selvagens, a “revolução neolítica”
desemboca, a partir do 7º milênio, em uma verdadeira economia agrícola, baseada na cultura
do trigo e da cevada. É sobre essa base econômica que se desenvolvem, desde o 3º milênio, as
primeiras cidades mesopotâmicas que, com a aparição da escrita, abrem as portas da História,
ao menos nessa parte do Mundo.
As civilizações urbanas se desenvolverão então em diversas regiões. As mais prestigiadas
são a Mesopotâmia, o Egito, a Índia (principalmente o vale do rio Indo), a China, a América
Central (México e Guatemala) e o Peru.
Enquanto que, século após século, os povos agricultores ocupam espaços cada vez mais
amplos, os últimos caçadores coletores só podem sobreviver nas regiões menos favoráveis do
planeta, nas terras mais frias, nos extremos setentrionais e meridionais dos continentes, nas
terras desérticas ou nas florestas equatoriais.
Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 13
Apenas há dois séculos começamos a reconstituir essa aventura, procurando ir além das
tradições orais e dos textos históricos. Até então, o olhar do homem para o seu passado não ia
além das narrações mitológicasque preenchiam os horizontes vazios da história. Nós nos
encontramos atualmente diante de uma alternativa: ou nos contentamos com as certezas
desses mitos, ou preferimos os raros lampejos de uma investigação (mais) concreta do
passado, cujos caminhos são ainda mal traçados e cujas descobertas serão sempre parciais.
2. Consciência histórica e civilização
Como concebíamos o passado antes do desenvolvimento das ciências históricas e pré-
históricas, qual podia ser a profundidade histórica da memória dos povos? Três razões
justificam a pertinência dessa questão:
1. A primeira, e menos importante para os nossos propósitos, diz respeito a um aspecto da
história do pensamento. Devemos sublinhar a originalidade da corrente intelectual que se
desenvolveu no seio da civilização européia, nos dois milênios da nossa era, para enfim
ganhar um impulso completamente novo no século XIX com o evolucionismo: tentar
reencontrar o passado desaparecido, contestando as certezas oferecidas pelos mitos e não
somente conservando a lembrança dos acontecimentos vividos.
2. É necessário mostrar, apesar de alguns exemplos remarcáveis, em que medida as
lembranças se apagam da memória coletiva; como podem se transformar sob a pressão dos
interesses imediatos; enfim, como podem se dissolver em narrativas mais ou menos míticas.
3. A constatação precedente é plena de conseqüências e justifica o objetivo desse livro. Em
numerosos casos, à parte as sociedades que desenvolveram arquivos históricos escritos, pouco
numerosas no fim das contas, somente a arqueologia tem condições de restituir o passado de
grande quantidade de povos e de retraçar a história da nossa mais antiga ascendência.
Os caçadores
Várias sociedades de caçadores viviam ainda em zonas de refúgio enquanto os Europeus
acabavam de penetrar nas mais longínquas regiões do planeta.
A etnologia que se desenvolveu paralelamente às conquistas coloniais, bem ou mal,
permite-nos mergulhar nesse mundo onde a profundidade histórica parece ausente das
consciências.
Talvez se trate de uma ilusão? Talvez o investigador, se acaso estivesse aberto a uma tal
questão e liberto de alguns preconceitos, pudesse recolher, ao redor de uma fogueira, da boca
de um ancião, uma narrativa sobre migrações antigas, sobre encontros e conflitos com outras
populações, as conquistas, alegrias e sofrimentos do bando. Tais narrativas certamente
existem mas têm um papel aparentemente bem secundário. Um livro como o de A. P. Elkin
(1967) sobre os Australianos nos deixa a impressão que existem apenas dois mundos: o
presente e o passado mítico, e que nenhuma tradição histórica real surge para intercalar-se
entre esses dois universos.
Os aborígenes da Austrália concebem o tempo como sendo aquilo que existe ou se
produz no momento que estão vivendo. Ao presente opõe-se o passado mítico,
época na qual viviam os heróis civilizadores. O presente é a expressão do passado na
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 14
vida de cada dia. Entre esses dois blocos não existe história no sentido próprio do
termo. A única história é o mito que se esconde por trás do presente.
O passado mítico é o que os Australianos denominam o tempo do sonho. Nesse
tempo, os heróis míticos percorreram o mundo, organizando-o segundo um percurso
linear, que é a trajetória do mito. As características atuais da geografia – montanhas,
fontes ou outros acidentes topográficos – são as marcas dessas viagens e determinam
ainda na atualidade as estradas seguidas pelos indígenas quando se deslocam (Fig.
1).
A. P. Elkin distingue vários tipos de organização clânica, entre os quais deve-se
destacar o clã territorial. Segundo esse autor, o clã territorial possui filiação
patrilinear* e exogâmica*. É composto por um grupo de homens descendentes de um
mesmo ancestral mítico. O clã territorial está ligado ao mito organizador por
intermédio dos locais totêmicos habitados pelo ancestral e seus descendentes. Os
membros do clã ocupam um território determinado. R. B. Lee e I. DeVore (1968)
colocaram recentemente em questão essa concepção do clã territorial. Deve-se
considerá-lo apenas como um grupo de homens que mantém relações rituais
privilegiadas com determinados locais totêmicos (o termo vínculo territorial deve
ser entendido nesse sentido). Em contrapartida, os locais totêmicos não determinam
sempre o território econômico do grupo local.
O clã territorial garante a ligação ritual entre o presente e o passado mítico.
Durante ritos complexos que reúnem vários grupos locais, e às vezes vários tribos,
os homens do clã revivem o tempo do sonho e lembram as conquistas dos heróis
míticos. Freqüentemente um mesmo mito organizador engloba várias tribos.
Nesse caso, cada clã possui apenas uma fração do mito. Para conhecer o conjunto
das tradições relacionadas a um trajeto organizador mítico é então necessário abordar
os ritos de várias tribos distintas e contíguas, cada uma podendo possuir várias
tradições clânicas. Os locais totêmicos que abrigam os espíritos, bem como os
churinga ou os rombos que os representam, são as marcas materiais e permanentes
dessa estreita ligação entre o passado e o presente. Os rombos são objetos longos de
madeira, muitas vezes decorados, que se pode fazer girar. Os churingas possuem
freqüentemente a mesma forma mas são mais estáticos. Conservados em lugares
secretos ligados aos locais totêmicos, esses objetos encarnam os heróis totêmicos
(ver Fig. 39).
A. P. Elkin admite que os grandes mitos sagrados podem por vezes conter fatos
históricos reais. Ele exemplifica com as lendas dos heróis civilizadores que, indo de
uma tribo a outra, levaram à adoção em todo o coração do continente da prática da
circuncisão e a faca de circuncidar de pedra lascada. Os estudos de antropologia
cultural permitiram verificar a realidade histórica desse fenômeno de difusão.
Entretanto, fica bem evidente que os acontecimentos foram deformados a um tal
ponto que torna-se impossível utilizá-los como fonte de informação histórica sem
que sejam confrontados com outros dados.
Essa falta de profundidade histórica dos caçadores pode surpreender. A. P. Elkin pensa
que ela pode ser conseqüência das condições de vida. O caçador vive no ritmo das estações do
ano, há uma concepção cíclica de sua atividade que depende essencialmente da manutenção
do status quo. O mito garante esse último. Em contraposição, o exame do que ocorre junto a
agricultores nos dá pistas de uma outra correlação. A competição pela posse da terra, que
pode ser intensa no seio de grupos agricultores, é, ao contrário, quase inexistente nos
caçadores. Estes últimos possuem uma relação com a terra bem diferente. Consequentemente,
o grupo julga desnecessário justificar sua inserção territorial por meio de uma história fatual,
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 15
como é freqüentemente o caso em grupos agricultores. Reflexo de uma tal situação, a base
territorial do mito permanece no mais das vezes independente do espaço econômico.
Os agricultores
Com os horticultores (cultivadores de tubérculos) e os agricultores (cultivadores de
cereais) começa a se desenhar progressivamente um novo mundo. Durante a maior parte do
tempo, as técnicas agrícolas permitem um maior povoamento; a competição entre grupos
torna-se assim mais importante. Tal competição permanece praticamente nula em grupos
pouco densos e móveis, como os Índios da floresta sul-americana que praticam uma
agricultura de queimadas*. Ela cresce quando a densidade de povoamento torna-se maior e se
formam verdadeiras fazendas que necessitam investimentos freqüentemente consideráveis
(como é o caso da agricultura sobre terraços ou da agricultura irrigada).
Essa transformação da maneira de viver não deixa de ter conseqüências sobre o plano das
concepções da história.
Mesmo se a propriedade cadastrada, conformeo sentido que nós comumente lhe damos,
não existe ainda, com freqüência encontramos sinais do desejo de legitimar o direito de
utilização da terra. Esta justificativa assume a forma da história, de uma história das famílias,
dos clãs ou das tribos, no interior da qual a memorização das genealogias assume um papel
central. Como bem mostrou C. Meillasoux (1975), o trabalho agrícola interliga gerações
sucessivas através do tempo; as colheitas dos mais jovens dependem freqüentemente do
trabalho dos mais idosos. Semeia-se numa estação para colher mais tarde. O celeiro torna-se o
símbolo das ligações diacrônicas tecidas entre as gerações. Não estamos longe de pensar que a
descoberta do tempo histórico deve estar estreitamente relacionada à passagem das economias
de predação às economias agrícolas de produção. Mas certamente as coisas não são tão
simples, pois os conflitos políticos rapidamente ocupam o lugar dos conflitos estritamente
econômicos. Entretanto, aqui ainda a história permanece mal distinguida do mito, e a
memória dos acontecimentos reais chega rapidamente ao seu limite, enquanto o suporte
escrito não é inventado. É espantosa a memória dos anciãos, depositários das tradições. Ela
nos parece com freqüência prodigiosa, a nós, ocidentais, que possuímos uma história escrita
de cerca de cinco milênios mas que já esquecemos os nomes dos nossos bisavós e sua história.
Entretanto, sempre a história oral se amolda progressivamente às formas do mito, e esse
deslizamento é tão imperceptível que torna-se difícil fixar uma fronteira.
Dois exemplos, tomados de uma sociedade horticultora melanesiana e de uma sociedade
agrícola africana, nos permitem situar apropriadamente essa questão.
A Melanésia insular e a Polinésia são abundantes em tradições orais que narram as
migrações marítimas de certas populações e a história das mais importantes chefias*.
Durante muito tempo se acreditou que essas narrativas fossem essencialmente ciclos
míticos estruturados a posteriori (para justificar certas organizações sociais ou
garantir a perenidade das hierarquias estabelecidas entre os indivíduos e os grupos).
Em verdade, essas tradições possuem um conteúdo histórico real do qual não
desconfiávamos há algumas décadas apenas. Os trabalhos de José Garanger,
realizados entre 1964 e 1967 nas Novas Híbridas centrais, principalmente em Efate e
nas ilhas Sheperd, fornecem a prova gritante de uma profundidade histórica
inesperada (Garanger, 1972).
As pesquisas geológicas e arqueológicas permitiram restituir a história das ilhas
Sheperd, que antigamente estavam reunidas em uma única grande ilha conhecida
tradicionalmente pelo nome de Kuwae. Sabe-se que essa ilha foi completamente
desmantelada por um cataclismo vulcânico para o qual possui-se duas datações por
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 16
carbono 14*: 1320 ± 80 e 1460 ± 37 d.C. A primeira ocupação de Kuwae remonta ao
século V d.C. Os estilos cerâmicos que caracterizam essas primeiras culturas
desaparecem pouco antes do cataclismo vulcânico. Presencia-se então uma mudança
cultural importante, caracterizada pela abundância dos instrumentos lascados de
conchas. Esse instrumental, que apresenta afinidade com aquele de regiões ao norte,
é provavelmente decorrência da chegada de novas populações.
Uma das tradições históricas recolhidas nessas ilhas está relacionada às chefias de
Tinabua Mata de Lubukuti, em Tangoa, nas ilhas Sheperd. Essa narrativa menciona
viagens interinsulares em piroga que, depois de passarem pelas ilhas do Sul, teriam
chegado a Efate. O principal herói, Roy Mata, teria então organizado a emigração
dos chefes para as diversas ilhas das Novas Híbridas centrais.
Segundo a tradição, esses acontecimentos seriam anteriores ao cataclismo de
Kuwae. Roy Mata foi enterrado em Retoka, uma ilhota próxima da costa de Efate,
em companhia de alguns membros da sua corte. Representantes de diversos clãs,
voluntários para a morte, foram também inumados. Outros indivíduos foram
enterrados após terem sido sacrificados, a ilha foi então declarada tabu. José
Garanger, ao escavar no suposto local da sepultura de Roy Mata, fez uma das mais
extraordinárias descobertas de toda a história da arqueologia. Ele efetivamente
evidenciou a sepultura do herói, acompanhado por seus próximos numa fossa central.
Ao redor estavam dispersos os representantes dos diversos clãs, adornados com as
insígnias de seus graus e acompanhados por suas esposas. Todos os homens
encontrados alongados em posição de repouso pareciam ter sido depositados na
superfície do solo após terem sido envenenados, fato conhecido tradicionalmente; as
mulheres, pressionadas contra seus companheiros em posições por vezes patéticas,
haviam sido provavelmente estranguladas ou enterradas vivas (Fig. 2) Uma datação
por carbono 14, feita a partir de uma amostra de ossos, forneceu uma data em
conformidade com as tradições, 1265 ± 140 da nossa era. Foi provado dessa maneira
que uma tradição oral pode preservar a lembrança precisa de velhos acontecimentos,
com cinco séculos. Entretanto, se por um lado a tradição é exata até mesmo em
pequenos detalhes, por outro lado ela não é por isso menos limitada, já que foi
concebida em função de interesses sociais e políticos bem precisos, o que levou a
uma distorção sempre importante da realidade histórica.
A confrontação com a arqueologia mostra efetivamente que:
1. a renovação cultural que intervém entre os séculos IX e XII não diz respeito a
pirogas vindas do Sul, da Polinésia ocidental ou mesmo oriental (cujos ocupantes não
conheciam o instrumental em conchas) mas à chegada de populações vindas do
norte, da Micronésia, ou de ilhotas polinésias isoladas na Micronésia e na Melanésia;
2. as sepulturas coletivas contendo indivíduos sacrificados para acompanhar o
defunto não foram nunca identificadas na Polinésia, parecem ter sido inventadas ou
adotadas no local pelos recém chegados.
As tradições das chefias melano-polinésias não podem assim substituir a história
arqueológica mas esclarecem essa última ao mostrar que a história política de uma
região nem sempre ressurge claramente pelo estudo dos vestígios arqueológicos.
Narrativas históricas comparáveis são encontradas junto a povos agricultores da África
ocidental, cultivadores de uma espécie de milho miúdo. As tradições genealógicas familiares
tem efetivamente um papel importante nessa região. M. Sahlins (1976) sublinhou a
importância do parentesco para a estruturação do grupo social. Segundo esse autor, a estrutura
de parentesco permite consolidar o grupo social e faz contrapeso à tendência centrífuga das
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 17
células familiares que, desde sempre, tendem a se dispersar para seguir seus próprios
interesses.
Na África ocidental, os grupos de descendência tem uma estrutura patrilinear (o nome do
pai é herdado pelo filho) e triangular: o ancestral comum está situado no ápice do triângulo e
seus descendentes mais jovens ocupam a base. Um raciocínio geométrico simples nos mostra
que quanto mais o ancestral é longínquo, mais larga é a base do triângulo, mais numerosos
então os indivíduos concernidos por laços de solidariedade econômica e política.
Consequentemente, é interessante para o chefe fazer referência a um ancestral distante, real ou
mítico, englobando numerosos descendentes sobre os quais torna-se assim mais fácil exercer
seu controle. Acrescente-se a esse fator a importância das referências genealógicas na esfera
do direito à terra. A história das famílias parece até certo ponto descrever um movimento
browniano; acontece com freqüência de uma família deixar sua aldeia para instalar-se alhures,
como conseqüência de algum desentendimento. Se ela se estabelece numa terra virgem, o
chefe de família (e sua descendência) adquire assim um direito sobre a terra, transmissível de
pai para filho.Dessa forma, as referências genealógicas fundamentam e justificam os direitos
de exploração dos terrenos.
As tradições dos Dogon do Mali permitem ilustrar essa situação. Se nos referirmos
aos dados de Germaine Dieterlen (1941), vemos que as tradições “históricas” podem
ser divididas em duas fases sucessivas. A Primeira fase é inteiramente mítica. Todos
os Dogon da região de Bandiagara vêm de uma região chamada Mandé, no sudoeste
do Mali, e descendem de um ancestral único, o Lébé. Lébé gerou dois filhos. O
primogênito teve dois (ou três) filhos homens, Dyon e Ono; o caçula teve um filho,
Arou. Em conseqüência de uma disputa – sublinhamos esse motivo que sempre
reaparece – os três filhos decidiram emigrar e fundaram a primeira aldeia da região
de Bandiagara, Kani Na. Esses três irmãos são considerados os fundadores das três
principais tribos do Dogon, os Dyon, os Ono e os Arou.
A Segunda fase da tradição possui bases históricas mais firmes e diz respeitos às
fundações (e abandono) das diversas aldeias da região pelos descendentes dos três
irmãos. Graças a diligências astuciosas, a Etnologia conseguiu fixar no início do
século XV da nossa era a primeira instalação dos Dogon na região de Bandiagara. Na
época de uma festa chamada Sigui que acontece a cada sessenta anos, os Dogon
esculpem uma Grande Máscara que depois é conservada. M. Griaule (1963) havia
observado em 1940, no abrigo sagrado de uma aldeia, 9 grandes máscaras ainda
conservadas e o provável lugar de três outras desaparecidas. As nove máscaras
possibilitam fixar a chegada dos Dogon no século XV (9 x 60 anos). Essa chegada
recuaria ao início do século XIII (12 x 60 anos) se considerarmos as três máscaras
desaparecidas.
As enquêtes feitas por C. Sauvain em Sarnyéré (Gallay, 1981), uma pequena
montanha situada na periferia da área de ocupação dos Dogon, testemunham a
precisão das tradições genealógicas próprias a essa Segunda fase e permitem
entender as ligações existentes entre a história das fundações das aldeias e a estrutura
política da chefia* de Sarnyéré (Fig. 3 e 4).
As genealogias registradas pelo etnólogo efetivamente recuam até a chegada da
primeira família na região há dez gerações, ou seja, em torno de 1675. Na montanha
existiam ainda 4 aldeias quando de nossa passagem em 1976, e distinguiam-se três
tipos de famílias. A primeira família que chegou na montanha (os Tengo) ocupava
um papel político central pois entre seus membros era escolhido o chefe de Sarnyéré.
Em segundo lugar situavam-se as famílias fundadoras das aldeias antigas ou atuais
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 18
mais recentemente instaladas. Enfim, as famílias que se haviam juntado há bem
pouco tempo às aldeias existentes formavam um terceiro grupo, subordinado.
O exemplo Dogon mostra que a história, memorizada e conservada de geração em
geração na tradição oral, é uma história genealógica pois é ela que justifica a
estruturação política e a hierarquização das famílias por ordem de chegada. É
possível atribuir a essa memória uma objetividade de ao menos três a quatro séculos,
ou seja, dez gerações. Daí em diante, a imagem do passado torna-se bem mais turva,
a história das famílias se simplifica, surgem muitas contradições entre as tradições.
Ainda mais distante no tempo, o mito substitui a história. Enfim, na África como nas
Novas Híbridas, vemos que os dados da arqueologia não concordam bem, na maioria
das vezes, com esse tipo de história. Com efeito, as mudanças culturais parecem
obedecer a uma lógica própria, cuja justificativa é impossível de ser encontrada na
história conservada pela memória dos homens.
Este segundo exemplo ilustra bem a ligação funcional que existe entre a profundidade
histórica expressa pelas genealogias, de um lado, e os vínculos sociais sincrônicos, de outro
lado. Quanto mais as genealogias, reais ou supostas, recuam longe no tempo, mais numerosas
são as famílias concernidas pelos vínculos sociais assim estabelecidos. Às famílias realmente
aparentadas, descendentes de um ancestral próximo conhecido, se agregam progressivamente
famílias estrangeiras que são integradas, por meio de variados artifícios, na estrutura
genealógica. Os pequenos grupos de caçadores ou de horticultores da Amazônia ou da
Melanésia estão ligados entre si pela referência a um antepassado próximo. A chefia* de
Sarnyéré Dogon integra num todo conhecimentos genealógicos mais extensos e um início de
subordinação das famílias (as linhagens* dos etnólogos). Nas grandes chefias hereditárias, a
linhagem* dominante se refere a um ancestral mítico e distante para garantir seu domínio
sobre linhagens, ainda mais numerosas, que são relacionadas entre si apenas por vínculos
genealógicos reais (Fig. 5).
Das chefias às sociedades urbanas
Essa hierarquização das sociedades provoca um duplo deslocamento das tradições
históricas, perceptíveis tanto nas sociedades antigas quanto naquelas estudadas pelo etnólogo.
1. A história das famílias transforma-se em história dos chefes. As tradições se
concentram nas linhagens que ocupam um lugar dominante na sociedade. A profundidade
histórica torna-se, por necessidade, um privilégio de classe pois os homens que detêm o poder
nela se apoiam para dominar. No outro extremo da escala social, o escravo é por definição um
desterrado. Arrancado de suas origens, e freqüentemente de suas referências culturais, ele
perde rapidamente a lembrança de sua história real para se reconstituir um passado mais ou
menos manipulado.
2. O homem procura consolidar a tradição histórica utilizando referências exteriores à
memória oral. Desde sempre, ele materializou seus conhecimentos em objetos simbólicos:
churinga para os Australianos, grandes máscaras para os Dogon etc. O fundador de uma nova
aldeia Dogon construiu um altar representando seu ancestral Lébé. Na Melanésia e na
Polinésia, grandes monumentos megalíticos* marcam as etapas das conquistas dos ancestrais.
A escrita fornecerá um suporte ideal para as genealogias dos grupos socialmente
dominantes. Talvez não seja obra do acaso se os mais antigos textos, na Mesopotâmia ou
noutros lugares, estão repletos de listagens genealógicas.
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 19
Ao apresentarmos a gama de temas tratados pela memória escrita da civilização
suméria e babilônica, queremos frisar a inserção do fenômeno escrita na lógica
histórica e sublinhar a ruptura radical provocada pela aparição das notações escritas
na conservação e no enriquecimento do patrimônio cultural.
A aparição da escrita no terceiro milênio, na bacia mesopotâmica, resulta de
imperativos de uma gestão econômica cada vez mais complexa. Os primeiros textos
são essencialmente contábeis e administrativos, tratando da estocagem e da
circulação de bens alimentícios ou não. No entanto, muito rapidamente as elites
souberam tirar partido desse novo instrumento para justificar seu poder, para
governar, administrar seus bens e alcançar suas ambições políticas. Os diversos
textos que se encaixam nessa perspectiva são:
- os textos contábeis e administrativos. Aos numerosos lembretes burocráticos,
balanços de exploração agrícola, inventários dos bens dos tesouros de templos e
palácios, distribuição de rações a prisioneiros, e mesmo plantas de cidades e mapas
geográficos, se acrescentam as diversas correspondências diplomáticas, garantindo o
bom funcionamento das cidades sob um poder centralizado.
- textos de história fatual. Os potentados que organizam o Estado inauguram o
gênero histórico, para a edificação das gerações futuras mas sobretudo para
estabelecer seu pleno direito em lutas pela hegemonia. Os vários textos históricos
reúnem narrativas de conflitos políticos e territoriais, relatórios de decisões políticas
sobre a resolução de certos conflitos, inscrições votivas e depósitos de fundação
enterrados quando da edificação de novos monumentos públicos. Acrescente-seaí
igualmente as listas genealógicas das dinastias reais para justificar a legitimidade do
poder.
- textos jurídicos, códigos e leis. O rei, escolhido pelos deuses, promulga, sob a
proteção desses últimos, as regras e códigos sobre a definição dos pesos e medidas, a
jurisprudência sobre multas, medidas tomadas em favor da moralidade pública, a
reforma dos impostos etc. Vários textos agrupam despachos de tribunais, doações de
terrenos pelo rei, atas de vendas.
No entanto, seria falso reduzir a escrita primitiva unicamente a um instrumento de
poder. Numerosos textos dão testemunho da importante mutação intelectual
provocada pela aparição da escrita. Esses textos são:
- textos religiosos que glorificam e exaltam os deuses e suas conquistas, cobrindo
uma amplo leque de gêneros, desde diversas narrativas míticas a textos que
descrevem o desenrolar dos ritos, passando pelas listagens de divindades, textos de
imprecação e orações.
- textos relacionados à vida intelectual e científica. Encontramos nessa categoria
todos os textos utilizados na formação profissional dos escribas, especializados na
manipulação de uma escrita freqüentemente complexa : compilações gramaticais,
textos matemáticos (tabelas de cálculo e listas de problemas) e para gestão de
arquivos escritos, como catálogos de biblioteca. Deve-se mencionar igualmente as
farmacopéias, listas de provérbios e os calendários agrícolas.
Desde o 3º milênio, o conjunto desses textos dá uma nova dimensão à memória coletiva
dos povos do Oriente próximo, mas esse fenômeno será por muito tempo o apanágio de
algumas civilizações urbanas e estatais, enquanto que numerosas culturas permanecerão
desprovidas de qualquer sistema de notação escrita e à margem da História já que, conforme
nossa estreita visão, assimilamos a história dos povos unicamente às crônicas escritas que eles
nos legam.
Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 20
2. Por que a arqueologia ?
As considerações precedentes o mostram: a história é rapidamente esquecida e
modificada.
Na medida em que podemos julgar, os caçadores parecem viver em um mundo sem
profundidade histórica no qual o mito bordeja o presente e o explica. A dimensão temporal
surge, ao contrário, entre os agricultores, mas as tradições históricas e orais não vão além de
alguns séculos. Sem alterar o conteúdo das tradições próprias ao mundo dos agricultores, a
escrita prolonga a sua dimensão histórica e permite, pela primeira vez, que se constitua uma
memória coletiva externa, que pode ser conservada além das gerações e pode ser decriptada
por homens de outras culturas. Entretanto, esse fenômeno permanece limitado no tempo e no
espaço. Na Mesopotâmia, os mais antigos escritos não ultrapassam o 3º milênio; e, antes da
expansão européia nesses últimos séculos, várias regiões do mundo ainda não possuíam
nenhuma tradição escrita. Limitadas temporalmente, as tradições históricas também o são em
relação ao conteúdo. Comumente expressões de interesses políticos variados, elas constituem
apenas um reflexo parcial e deformado da história no qual transparecem, no mais das vezes,
apenas as lutas pela influência. Certamente não ignoramos que grandes civilizações nos
legaram através de seus documentos escritos um patrimônio sempre rico que não pode ser
reduzido a simples crônicas das famílias reinantes. Mas ainda assim, esse tipo de informação
concerne apenas alguns povos e uma faixa de tempo, no fim das contas, relativamente estreita.
A história humana, como sabemos, se estende por cinco milhões de anos. Nós
confrontamos propositadamente essa dimensão histórica às tradições características das
sociedades tradicionais que precedem a curiosidade do Ocidente pela origem e história do
desenvolvimento da humanidade.
Apesar do interesse incontestável das tradições orais, a distância parece enorme e a zona
sem luz considerável. Se assim medirmos tudo o que foi esquecido e abandonado, corremos o
risco de sofrer uma certa vertigem diante daquilo que pode parecer o mais profundo dos
mistérios.
Para resolvê-lo, não nos resta nenhuma outra solução senão debruçarmo-nos diante dos
rastros deixados pelo homem na superfície da Terra durante a sua longa história e tentar
decifrá-los. A paleontologia humana e a arqueologia são efetivamente as únicas capazes de
rivalizar com as respostas globais oferecidas pelos mitos e pelas religiões na busca das
origens históricas do homem. O fato dessas duas visões de mundo terem podido, em certos
períodos, entrar violentamente em competição parece, com efeito, motivo suficiente para
adiantar que elas se sobrepõem ao menos parcialmente, mesmo se história e mitologia não
visam os mesmos objetivos.
A arqueologia oferece a única abordagem possível para reconstituir o passado dos povos
ágrafos, e uma abordagem complementar das fontes escritas indispensável no caso das
civilizações que possuem escrita. Se esse livro tem como propósito explorar essa via, ele se
propõe igualmente a descobrir seus limites. A profundidade histórica reencontrada não
implica na possibilidade de escrever uma história total. Aspectos inteiros dessa última estão
irremediavelmente perdidos.
Esse tipo de abordagem concerne todos os povos e não somente o Ocidente que abriu
caminho. Para muitos, essa é a oportunidade para recuperar uma identidade que se poderia
considerar para sempre apagada. Pode-se ver que o que está em jogo é de extrema
importância.
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 21
III. UMA FALSA ALTERNATIVA ?
HISTÓRIA OU CIÊNCIA
As críticas desenvolvidas no capítulo precedente demonstraram a oportunidade de uma
reflexão geral sobre certos aspectos dos procedimentos do arqueólogo. Ela deveria permitir
lembrar de alguns conceitos úteis para definir uma prática do conhecimento e fixar seus
limites atuais. Nosso objetivo permanece uma antropologia geral. Reservamos para mais
adiante tratar dos problemas ligados às limitações decorrentes da natureza dos fatos
arqueológicos. Essas restrições não são, aliás, fundamentalmente diferentes daquelas
encontradas na etnologia ou na história. Etnologia, história e arqueologia se organizam
segundo um eixo de decrescente qualidade da informação. Na medida em que recuamos no
tempo, nossos dados sobre a civilização humana se tornam mais fugazes. Mas não há por que
pensar que a natureza própria do objeto de nossa pesquisa se transforme profundamente.
Dentre todas as disciplinas que visam o estudo dos fenômenos em seu desenvolvimento
histórico e sua explicação teórica, a biologia é certamente aquela cuja problemática mais se
aproxima daquilo que nós concebemos como uma antropologia geral. Em ambos os casos,
com efeito, assistimos à aparição ao longo do tempo de sistemas* cada vez mais complexos,
cuja auto-organização retrocede parcial e localmente na grande corrente da entropia*
crescente do Universo. Nós nos voltaremos então, durante alguns instantes, para os diversos
conceitos da biologia.
1. A situação nas disciplinas biológicas
A teoria da evolução e o desenvolvimento das formas vivas ao longo do tempo são
certamente o campo mais próximo das preocupações do arqueólogo.
Junto a Darwin e seus sucessores, a noção de espécie (animal ou vegetal) assume um
papel central e constitui uma espécie de elemento articulador entre a teoria e a
experimentação, de um lado, e a observação da natureza, de outro.
A espécie é concebida ou como uma entidade que se modifica progressivamente (pelos
gradualistas), ou como uma etapa de equilíbrio e de estabilização de formas diferenciadas
obtidas pela seleção natural (pelos partidários dos equilíbrios pontuados). Essa noção ocupa
uma posição central tanto na teoria da seleção quanto na história reconstituída pelos
paleontólogos. Ela relaciona então a reflexão teórica com a observação.
Nós poderíamos assim admitir não uma simples oposição entre ciência e história, mas
uma oposição ternária entre ciências biológicas, história paleontológica e regularidades
específicas(induzidas da história ou deduzidas das ciências biológicas). Nessa tríade, que
corresponde respectivamente à biologia experimental, à paleontologia e à biologia da
evolução (Quadro 1), a espécie tem um papel ambíguo do ponto de vista epistemológico (Fig.
20).
Da biologia experimental à biologia da evolução
Leis da genética e teorias da evolução
Um primeiro itinerário nos leva das leis da biologia às teorias da evolução. Ele mostra que
esse último campo não pode ser reduzido aos conhecimentos fornecidos pela abordagem
experimental.
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 22
Nas ciências experimentais, os acontecimentos são reprodutíveis e as leis permitem operar
predições* locais sobre acontecimentos futuros. Essas últimas podem ser totalmente
impositivas ou, ao contrário, apresentar uma formulação probabilística.
PALEONTOLOGIA BIOLOGIA DA EVOLUÇÃO BIOLOGIA EXPERIMENTAL
ESPÉCIE
CENÁRIOS
História
Irreversibilidade dos
acontecimentos
REGULARIDADES
Estruturas
Estabilidade dos equilíbrios
LEIS
Processo
Reversibilidade, reprodutibilidade
dos acontecimentos
Abordagem ARQUEOLÓGICA
Constatar, observar, reconstituir
acontecimentos particulares
Abordagem FUNCIONALISTA
Explicar pelo valor seletivo
CAUSAL
Explicar e justificar a posteriori o
como
Abordagem EXPERIMENTAL
Utilizar objetos semelhantes
REDUCIONISTA
Situar os fenômenos segundo leis da
química e da física
DETERMINISTA
Reproduzir os fenômenos
Explicar o por quê
 RETRODIÇÃO PREDIÇÃO
Contingência dos fatos Regularidades tipológicas Leis probabilísticas
 Leis deterministas
Quadro 1: tentativa de definição das três abordagens da biologia
As leis da hereditariedade descobertas por J. Mendel constituem um bom exemplo de
conhecimentos adquiridos experimentalmente que culminaram na formulação de leis de
aplicação universal. Durante os seus trabalhos de hibridação de plantas, J. Mendel não se
contentou em sustentar sua hipótese sobre uma concepção matemática coerente, ele apoiou
sua teoria na experimentação e em observações estatísticas. Essas últimas concerniam a
freqüência dos diversos tipos de híbridos preditos pelo seu modelo da transmissão de certas
características observáveis em ervilhas, que lhe serviam de material experimental. Nós
sabemos hoje em dia que J. Mendel havia acertado e que os mecanismos de transmissão dos
genes originam os fenômenos observados. Nós sabemos também que as transformações
acidentais que afetam às vezes esses genes podem ser responsáveis pela aparição de novas
características nos seres vivos.
Entretanto, um largo poço separa as leis da hereditariedade, as predições que elas
permitem operar a respeito da transmissão de certas características e a compreensão da
evolução do mundo vivo.
Essa situação pode ter várias explicações:
- Nós conhecemos os fundamentos genéticos apenas de um número extremamente
limitado de características.
- As mutações que afetam os genes se produzem ao acaso. Nenhuma lei permite predizer
o sentido e a natureza dessas transformações.
- Os seres vivos formam sistemas* abertos em constante relação com o seu meio.
Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 23
Para entender bem essa situação, convém então nos demorarmos alguns instantes nessa
última observação.
Um sistema aberto está em constante relação com o seu meio. Ele troca energia, matéria e
informação para garantir sua organização contra a degradação exercida pelo tempo e expulsa
a entropia para o meio. Um sistema aberto só pode ser concebido em relação a um tempo
irreversível, mesmo sendo possível admitir retornos de retroação*. As leis que se pode
desenvolver nesse contexto só poderiam ser probabilísticas pois nunca é possível controlar
todas as interações que ligam o sistema ao seu meio. Essa conceituação permite empreender o
estudo de fenômenos complexos, tais como a evolução do mundo vivo.
 Existem duas maneiras de abordar o estudo de um sistema:
Uma primeira abordagem consiste em ver como ele funciona. Admite-se nesse caso que a
energia, ou a informação, recolhida no meio permite-lhe conservar (temporariamente) sua
estrutura e seu equilíbrio.
Sabe-se no entanto que a entropia será sempre vencedora e que o sistema se destina
inexoravelmente à dispersão, à morte, ao desaparecimento. As estrelas, as espécies animais, as
civilizações humanas morrem e desaparecem.
Uma segunda abordagem consiste em pesquisar como um dado sistema pode se
transformar em um sistema diferente, como ele pode modificar sua estrutura e como essa
transformação pode, por vezes, levar a uma complexidade maior. Nós nos aproximamos aqui
de uma das grandes questões levantadas pela evolução do mundo vivo, por um lado (como
pode aparecer uma nova espécie ?) e, por outro lado, pela evolução do homem e de suas
sociedades. A evolução biológica é a gênese do improvável e a história da auto-organização
da matéria em sistemas cada vez mais complexos. Pode-se tentar fornecer uma descrição dos
mecanismos dessa gênese em termos relativamente gerais, convenientes para a evolução
biológica, mas há algumas razões para pensar que a evolução cultural que a prolonga e
amplifica em certas espécies animais (de forma limitada) e mais particularmente nos
Hominídeos* pode ser definida com termos similares.
A explicação darwiniana da história biológica sustenta-se em três pontos: variações
espontâneas dos genes levando à aparição de novas características, a seleção dessas
características principalmente sob o impacto do meio, e a competição entre as espécies e os
indivíduos dessas espécies que garante a sobrevivência dos mais aptos. Segundo uma
perspectiva sistêmica, essa teoria distingue dois níveis, um nível macroscópico, as entidades,
constituídas pelos indivíduos das espécies animais (ou vegetais), e um nível microscópico,
representado por componentes, os cromossomas, os genes e as moléculas (Fig. 21).
Esse sistema pode apresentar perturbações locais, imprevisíveis, que afetam ou o nível
genético e molecular, ou o nível cromossômico, e podem ser concebidas como um gerador
aleatório de variedades; a essas perturbações se dá o nome de mutações.
As mutações correspondem a transformações aleatórias que influenciam apenas os
componentes. Trata-se aqui de um comentário importante que converge com certas
observações dos físicos. Com efeito, esses últimos notaram que um sistema, estável e
homogêneo em escala macroscópica, não mais o era em escala microscópica, ao tentar-se
precisar a descrição da realidade.
Um sistema de estabilização e de seleção constitui o que se chama de seleção natural. Esta
última age sobre as entidades: indivíduos ou espécies vivas. Essa estabilização é o resultado
das interações que se desenvolvem entre as entidades e o meio. Um caso particular de
interações entre as entidades e seu “meio” é constituído pelas interações entre entidades
distintas. No terreno biológico, essa competição atua no nível dos indivíduos de uma mesma
espécie mas pode também ser concebida no nível interespecífico. Essa competição
interespecífica – que se concretiza freqüentemente em lutas por certos nichos ecológicos* –
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 24
pode culminar na regressão ou mesmo no desaparecimento de certas espécies sob o efeito do
crescimento de uma espécie particularmente fecunda e/ou agressiva.
Em seu livro O acaso e a necessidade (Le hasard et la nécessité), J. Monod (1970)
indica que um sistema biológico pode tornar-se mais complexo sob o efeito de
pequenas transformações, de menor importância, que constituem as mutações. Ele
contrapõeessas flutuações, devidas ao acaso, ao caráter aparentemente necessário
das novas estruturas nascidas dessas transformações. O termo necessidade implica
que todas as estruturas potenciais não são igualmente viáveis porque o meio exterior
impõe seus limites. Quem diz necessidade reconhece, de fato, a parte importante que
assume o meio na limitação das fórmulas estruturais realizáveis. Reconhecer essa
influência é reconhecer que todas as soluções não são igualmente possíveis, que
existem então certas regularidades. Além desses apanhados sintéticos, a
compreensão dos mecanismos da evolução ainda coloca bastantes problemas.
Segundo o darwinismo clássico, ou na teoria sintética da evolução, a transformação
de uma espécie é gradual. Nós mencionaremos aqui uma teoria um pouco diferente, a
teoria dos equilíbrios pontuados de S. J. Gould (1980) e N. Eldredge (1982). Esses
autores tentaram, de forma original, conciliar as observações freqüentemente
contraditórias da paleontologia. A evolução procederia de duas maneiras. Observa-se
inicialmente uma microevolução que leva a uma lenta mudança das características de
uma população específica. Essa microevolução é responsável ao longo dos tempos
geológicos pela aparição de longas linhagens, chamadas filos (phylum). Nessa
transformação, dita filética, a seleção natural concerne os indivíduos. Em
contrapartida, a macroevolução é responsável pela aparição de novas espécies. Esse
processo é o único capaz de aumentar a diversidade específica e é responsável por
todas as grandes mudanças evolutivas. Assim, a seleção parece operar ao nível da
espécie. As divergências são rápidas e intervêm em populações bastante reduzidas,
situadas geralmente na periferia da área de extensão da espécie, mais raramente no
próprio interior da população ancestral.
Consequentemente, a evolução específica não é lenta nem regular, mas é feita de
acontecimentos raros e complexos (surgindo ao acaso) que quebram a estabilidade e
a homogeneidade da espécie ancestral. Essa teoria se harmoniza muito melhor com
os dados da paleontologia. Com efeito, observa-se, ao lado de certos casos de
mudanças progressivas atribuíveis a fenômenos de microevolução, numerosos casos
onde as características morfológicas das espécies permanecem estáveis durante
longos períodos. Nesse nível macroevolutivo, as novas espécies se desgarram
bruscamente das antigas, a natureza produz saltos qualitativos importantes, fenômeno
negado pelo darwinismo clássico e pelo neodarwinismo mas que, no entanto, se
harmoniza com os dados fornecidos pelos fósseis.
Da paleontologia à biologia da evolução
A reconstituição das árvores filéticas
A teoria da seleção permite integrar os resultados experimentais parciais, fundamentados
na lei da hereditariedade e numa certa indeterminação, cuja causa, como vimos, deve ser
pesquisada no caráter aberto dos sistemas biológicos e nas perturbações que afetam esses
sistemas, as mutações.
Mas ela encontra-se também confrontada com os dados da observação empírica: o
naturalista estuda e classifica as espécies que vivem atualmente no planeta; o paleontólogo
reconstitui, pelo exame dos fósseis, a história das espécies.
Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 25
Pode-se considerar o paleontólogo como o historiador que busca reconstituir a árvore de
diversificação das espécies. Essa árvore, chamada árvore filética, mostra como as diversas
espécies derivam umas das outras, se diversificam e morrem, tal como uma árvore cujo tronco
mergulharia na noite dos tempos e os ramos mais altos seriam nossos contemporâneos. Ela é a
expressão de um cenário.
A reconstituição dos cenários da história fornece ao mesmo tempo os materiais básicos da
teoria da seleção e o contexto para sua validação. Aqui também a noção de espécie assume
um papel central, orientando a maneira como os dados de campo, os fósseis, são coletados e
organizados. Ela fornece efetivamente a base das classificações propostas pelos taxinomistas
(a taxinomia é a arte da classificação). O teórico da seleção natural traz assim sua
contribuição ao definir os objetivos da classificação e o significado das categorias propostas.
Essa parte da pesquisa comporta com efeito uma atividade essencialmente taxonômica. O
sistemático se esforça para classificar as diversas formas vivas em grupos homogêneos. Ele,
em seguida, insere esses conjuntos em uma trama cronológica e espacial e recoloca a história
das espécies em seu panorama geográfico e ecológico. Ele busca por exemplo saber como a
disposição dos continentes e dos oceanos e a estrutura do relevo puderam influenciar a
migração dos animais e das plantas; como regiões isoladas puderam favorecer a emergência
de novas espécies; como condições climáticas desfavoráveis puderam provocar o
desaparecimento de certas faunas.
A paleontologia evidencia assim dois tipos de mudanças nas formas animais e
vegetais. Ela constata inicialmente mudanças progressivas e limitadas de certas
particularidades morfológicas ao longo do tempo. Uma espécie de caramujo possui
conchas lisas nas camadas geológicas mais antigas. Em seguida, as conchas se
cobrirão de espinhos cada vez maiores. Nos estratos mais recentes todos os
indivíduos apresentarão longos espinhos. Esse fenômeno de microevolução resulta
aparentemente de uma seleção progressiva de certas características acontecendo no
seio de uma mesma população específica. Inversamente, constata-se mudanças
repentinas, uma nova espécie aparece bruscamente nos estratos geológicos e se
mantém sem mudanças notáveis durante períodos muito longos. Esse fenômeno de
macroevolução é considerado pelos partidários dos equilíbrios pontuados como
resultado de barreiras específicas que isolam da população indivíduos pouco
numerosos e levam assim a verdadeiras rupturas morfológicas.
Uma disciplina articuladora: a biologia da evolução
As duas abordagens da evolução que nós destacamos são apropriadas para esclarecer as
estreitas ligações unindo os aspectos mais experimentais das ciências biológicas, de uma
parte, aos aspectos mais descritivos dos cenários paleontológicos, de outra parte.
O estudo da evolução implica efetivamente em:
1. Múltiplas observações que permitam reconstituir os cenários próprios à paleontologia:
evolução morfológica das “espécies”, sucessão das “espécies” no tempo (na medida em que
seja possível definir uma espécie com base nos fósseis descobertos).
2. Uma teoria das relações que unem os constituintes (os genes) às entidades (as espécies),
com a qual se possa definir as relações existentes entre as transformações que afetam o
genótipo* (genes e cromossomas) e as conseqüências que isso produz ao nível do fenótipo*,
nas características anatômicas, fisiológicas e mesmo comportamentais das diferentes espécies.
Os autores não estão todos de acordo sobre a importância relativa das mutações genéticas, das
freqüências genéticas observáveis em uma população e dos remanejos cromossômicos
(fissões, fusões de partes dos cromossomas).
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3. Uma teoria da relação entre o sistema e seu meio, expresso na seleção natural, tema de
difícil domínio. A adaptação é o conceito utilizado pelos biólogos para relatar os efeitos desse
fenômeno. As espécies estão adaptadas ao seu meio pois a seleção natural eliminou as
fórmulas inviáveis. No entanto a explicação permanece incompleta porque numerosas
características específicas são de fato totalmente neutras em relação ao meio. Sua presença se
explica pelos seus vínculos com as características realmente selecionadas. S.J. Gould (assim
como o próprio Darwin) insistiu em dois princípios que levam à mudança não adaptativa:
- Os organismos são sistemas integrados; a mudança adaptativa de um único elemento
pode provocar modificações não adaptativas alhures (as “correlações de crescimento”,
conforme a expressão de C. Darwin).
- Um órgão elaborado, sob a influência da seleção e num contexto específico, pode
também ser capaz, segundo a sua estrutura, de cumprirvárias outras funções,
totalmente independentes dos fatores responsáveis pela seleção.
4. Uma teoria das relações interindividuais e interespecíficas relacionadas aos problemas
de competição.
Essas diversas teorias apresentam ainda muitos pontos obscuros. Mas é outro o fato que
nos parece o mais importante. As relações entre cenários (história) e teoria (ciências
experimentais) só podem ser relações frouxas de plausibilidade, isso por duas razões que nos
aproximam dos problemas antropológicos e arqueológicos.
- Os restos paleontológicos são limitados e truncados. Como definir efetivamente uma
espécie desaparecida com base em alguns ossos ? Com tal base, como distinguir duas
espécies próximas uma da outra quando o único critério utilizável nesse caso é
fundamentado na impossibilidade de se acasalar ou de procriar descendentes
fecundos? E no entanto toda a problemática da evolução apoia-se na questão da
especiação.
- As leis destacadas em nível teórico são essencialmente leis probabilísticas.
Assim, na biologia, a teoria permite compreender globalmente a natureza dos mecanismos
envolvidos na evolução, mas muito raramente estabelecer relações de mão dupla entre tal
fenômeno paleontológico e tal mecanismo testado experimentalmente. Em outros termos, a
teoria não permite predizer* os fatos históricos. Nós ilustraremos essa situação com um
exemplo próximo de nosso tema, o problema da hominização.
Ao abordar os problemas ligados à compreensão da origem do homem e do
processo de hominização, nós insistiremos sobre as dificuldades encontradas na
integração dos dados experimentais da genética com os dados da paleontologia e nós
veremos que elas não são próprias apenas às ciências biológicas mas aparecem
também nas ciências humanas.
1. A restituição dos cenários. As numerosas pesquisas empreendidas no leste da
África, na região do Rift Valley, entre a Etiópia, ao norte, e a Tanzânia, ao sul,
permitem agrupar os restos de hominídeos* em seis “espécies paleontológicas”:
Australopithecus* afarensis ......................................... (5-3 milhões de anos)
Australopithecus africanus .................................... (2,7-2,1 milhões de anos)
Australopithecus robustus ............................................ (2-1 milhões de anos)
Homo habilis* ........................................................ (2,0-1,5 milhões de anos)
Homo erectus ......................................................... (1,5-0,5 milhões de anos)
Homo sapiens ................................................................. (0,1 milhão de anos)
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Se um certo consenso parece definir-se a respeito desse recorte que permite
classificar vários milhares de restos fósseis, no mais das vezes parciais, as opiniões
divergem quando se trata de reconstituir as relações de descendência (relações
filéticas) entre os diversos grupos. Já se propôs várias maneiras para colocar essas
formas na árvore filética dos hominídeos, havendo na atualidade pelo menos acordo
quanto a distinguir dois ramos a partir do Australopithecus afarensis, um deles
agrupando os Australopitecos, o outro levando ao homem atual, o Homo sapiens,
passando pelo Homo habilis e Homo erectus.
Em maior escala, outras dificuldades surgem quando se trata de situar os primeiros
fósseis a testemunhar uma postura vertical em relação com os diversos modos de
locomoção constatados entre os Primatas. As concepções mais comuns evocam um
macaco que caminha sobre os quatro membros (os membros anteriores apoiados
sobre as faces externas das mãos dobradas), à maneira de um chimpanzé, que um dia
se levanta sobre seus membros posteriores. A. Langaney observa no entanto que uma
filiação anatômica mais coerente poderia ligar ancestrais que se deslocavam nas
árvores, suspensos pelos seus braços (a chamada braquiação) a descendentes bípedes
terrestres. Estudos anatômicos recentes mostram, por outro lado, que a locomoção
ereta dos mais antigos Australopitecos não era tão perfeita quanto podia-se pensar, e
que ela é testemunha, sem dúvida, de uma vida ainda parcialmente arborícola,
comportando deslocamentos por braquiação.
Em oposição ao fenômeno macroevolutivo representado pela aquisição da
locomoção terrestre ereta, o crescimento do cérebro pode ser considerado como um
fenômeno microevolutivo progressivo e independente. Entretanto, junto aos
mamíferos, o tamanho do cérebro é dependente do tamanho do animal. Essa relação
diminui a importância do aumento do volume do cérebro na linhagem humana
porque sabe-se que há aumento do tamanho do corpo (mesmo sendo o homem uma
das espécies que mais se distancia das retas de regressão habituais). De fato, o
fenômeno importante é menos o aumento do volume cerebral do que a
complexificação e extensão de sua superfície (o neocórtex) que se dobra
progressivamente em numerosas circunvoluções.
Essa maneira de não mais vincular de forma estrita a aquisição da postura vertical e
o crescimento do tamanho do cérebro permite que tomemos uma certa distância do
modelo, bastante mecanicista, da relação postura vertical – cerebralização exposto
por A. Leroi-Gourhan em seu livro O gesto e a palavra (Le geste et la parole),
modelo fundamentado no reconhecimento de um equilíbrio adaptativo. Uma
explicação que privilegia esse aspecto corre pois o risco de tornar-se rapidamente
tautológica. Ela negligencia o fato de que a evolução não é unicamente um processo
de seleção adaptativa e que ela deve requerer igualmente outros tipos de
explicações.
2. Teorias das relações genótipos-fenótipos. A primeira questão que se coloca a
respeito das relações entre o genótipo* e o fenótipo* (a espécie com suas
características morfológicas, fisiológicas e comportamentais) é a questão da
especiação humana. Quando se compara os diversos tipos cromossômicos dos
primatas (ou seja, os diversos cariótipos*), percebe-se que o primata mais próximo
do homem é o Chimpanzé. Somente uma dezena de remanejos cromossômicos nos
separa efetivamente de nosso primo. Os geneticistas se perguntam se a especiação
assenta-se sobre os remanejos cromossômicos ou sobre as mutações dos genes.
Segundo B. Dutrillaud, que estudou essas questões em Primatas, a justaposição entre
um cariótipo e uma dada espécie acontece apenas em 50% dos casos. Sendo a
evolução dos cariótipos freqüentemente paralela àquela das espécies, é então
Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 28
provável que as modificações cromossômicas assumam um papel na especiação. Mas
essas modificações não são indispensáveis e, além do mais, não determinam
obrigatoriamente uma nova espécie.
À incerteza ligada à avaliação do papel dos remanejos cromossômicos na
especiação humana acrescenta-se uma outra limitação importante. Não é, com efeito,
possível fixar as transformações reconhecidas entre a linhagem que leva ao Homem e
aquela que leva ao Chimpanzé.
Estudos bioquímicos permitem, em compensação, precisar alguns pontos históricos.
Apesar das características fenotípicas* exteriores muito diferentes, o homem difere
pouco, em certas características bioquímicas, de seus primos Pongídios (o
Orangotango, o Gorila e o Chimpanzé).
O estudo dos aminoácidos, que são a expressão bioquímica dos genes, mostra com
efeito que nós somos idênticos em mais de 99% aos grandes símios africanos,
chimpanzé e gorila, não obstante as diferenças morfológicas evidentes. Esse relógio
molecular (essas transformações intervêm num certo ritmo) permite dizer que a
linhagem humana (compreendendo o gênero Homo) separou-se dos grandes símios
africanos (chimpanzé, gorila) há cerca de 5 a 6 milhões de anos.
 No estágio em que se encontra nossa compreensão da hominização, nós
constatamos que é impossível integrar num todo coerente os dados dos cenários
históricos e as informações fornecidas pela genética e pela bioquímica comparada
dos Primatas.
3. Relação entre a especiação humana e o meio. Os paleontólogos adoram os
modelos simples que estimulam a imaginação. Uma das idéias preconcebidasmais
divulgadas propõe ligar a aquisição da postura terrestre vertical a uma mudança de
meio ecológico. A aparição desse modo de locomoção (próprio da linhagem humana
e dos Australopitecos) seria conseqüência do desaparecimento do meio florestal, da
transição para um ambiente aridificado e o desenvolvimento da estepe. Ela estaria
ligada a uma mudança climática. À África Oriental, estépica, pátria dos Hominídeos,
faria contraponto a África florestal, pátria dos Pongídios.
Deve-se sublinhar no entanto que numerosas espécies de primatas estão
perfeitamente adaptadas a meios abertos, com pouca floresta, e que nem por isso
deixam de possuir uma locomoção quadrúmana. Os mecanismos seletivos que
permitiram a postura vertical não podem portanto ser reduzidos a um simples
determinismo do meio natural e provavelmente devem muito a essa “liberdade” que
a evolução preserva frente ao meio ambiente.
4. Relações de competição entre espécies. Os dados da paleontologia permitem
afirmar doravante que várias espécies distintas de Hominídeos tiveram que viver na
mesma época na África Oriental. Essa constatação levanta o problema da competição
entre espécies, particularmente entre Australopithecus e Homo. As pesquisas
efetuadas nesse sentido permanecem ainda embrionárias e se orientam
principalmente para a questão dos regimes alimentares dos primeiros Hominídeos*.
O estudo das marcas de uso visíveis nos dentes mostra que o Australopithecus
afarensis era essencialmente vegetariano, mas que seu espectro alimentar era
bastante amplo, indo das matérias vegetais coriáceas aos grãos e aos frutos. Uma
especialização mais estreita em um regime vegetariano é encontrada nos enormes
molares do Australopithecus robustus. A linhagem Homo se caracteriza, em
contrapartida, por uma alimentação omnívora. Podemos nos perguntar se
Australopithecus e Homo ocupavam nichos ecológicos distintos, ou se houve
realmente competição que levou ao desaparecimento dos Australopitecos. Seria
tentador, nessa perspectiva, confrontar o Homo, generalista ecológico, ao
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 29
Australopithecus, especialista ecológico. O primeiro poderia se satisfazer em
diversos ambientes; o segundo estaria ligado, ao contrário, a ambientes naturais mais
restritos.
2. Teoria da evolução cultural e história das ciências na antropologia
Nós abordamos a questão da evolução biológica porque pensávamos que ela poderia
esclarecer as questões das relações entre ciência e história. Podemos então nos inspirar no que
foi dito para compreender o funcionamento da evolução das sociedades humanas ? Ao faze-
lo, não queremos de nenhuma maneira transferir o modelo biológico para o terreno cultural –
cada disciplina deve definir, com efeito, suas próprias regras de abordagem – mas insistir na
articulação necessária entre etnologia e história. Nós poderíamos aqui destinar às sociedades
observadas pelo etnólogo ou pelo arqueólogo a posição ocupada pelas espécies no modelo
biológico, e distinguir teoria da evolução cultural e história das sociedades (Fig. . 22). Indo
além na comparação, as sociedades humanas seriam as entidades do sistema*, enquanto que
os traços culturais representariam os componentes. A geração “aleatória” dos traços culturais
(sejam esses últimos inventados localmente ou tomados do exterior) forneceria então as bases
da evolução cultural.
Entretanto várias características separam nitidamente os sistemas culturais dos sistemas
biológicos. Nós destacaremos aqui as três mais fundamentais:
- Contrariamente às espécies animais ou vegetais, todas as civilizações podem se hibridar. As
fronteiras culturais não são tão restritas quanto as fronteiras específicas.
- É difícil conceber a invenção como um fenômeno puramente aleatório. A invenção inscreve-
se efetivamente no vetor das pressões seletivas (a invenção é funcional) e insere-se na maioria
das vezes na seqüência lógica de antecedentes historicamente evidenciáveis. A invenção é
com freqüência uma nova síntese de elementos preexistentes, ela é um bricolage no melhor
sentido do termo, mesmo se alguns a consideram como uma ruptura radical com o passado.
- A teoria da evolução cultural deveria ser lamarckiana e não darwiniana. A educação garante
efetivamente a transmissão das “características adquiridas” de uma geração a outra. Toda
invenção pode ser imediatamente transmitida. O caráter cumulativo das inovações explica a
extraordinária rapidez da evolução cultural em contraste com a lentidão da evolução
biológica.
Nossas referências à biologia deveriam permitir distinguir teoria antropológica, de um
lado, cenários da história, de outro lado, sendo assegurada a articulação entre os dois terrenos
pelo conceito de sociedade.
A antropologia atual, infelizmente, está longe de possuir o arsenal teórico da biologia; nós
deveremos assim limitarmo-nos às questões referentes às relações entre as regularidades, que
se impõem ao observador das sociedades, e aos cenários, reconstituídos pelo historiador.
Cenários e regularidades
As considerações precedentes mostram que, ao menos num primeiro momento, nós
podemos limitar nossas ambições antropológicas e colocar provisoriamente entre parênteses a
busca pelas leis que governam os assuntos humanos. Do ponto de vista prático, nós
pensamos ser útil distinguir os cenários estabelecidos a partir da descrição da realidade no
plano geográfico e/ou histórico das regularidades que podem ser induzidas desses cenários.
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 30
Pode-se admitir que os cenários se desenvolvem segundo trajetórias aleatórias em virtude
da impossibilidade prática de isolar todas as causas que podem influenciar as trajetórias
históricas e todas as interações que vinculam esses fatores.
É certamente possível evidenciar regularidades nos cenários, mas é importante sublinhar
aqui – todas as considerações precedentes o mostram – que essas regularidades não se devem
unicamente ao determinismo da influência do “meio”, meio natural, por um lado, meio
constituído por sistemas de natureza e estrutura comparáveis, por outro. A seleção e a
adaptação são apenas uma das causas dessas regularidades. Outras procedem de uma lógica
diferente, independente das imposições adaptativas e característica da própria estrutura dos
sistemas. A oposição cenário – regularidade não se superpõe então à oposição acaso –
necessidade de Jacques Monod. Essa distinção estabelecida corresponde, de fato, às duas
etapas da pesquisa, onde pode-se reconhecer dois tipos de operações intelectuais: a descrição
da realidade (os cenários) e a interpretação dessa última (as regularidades). Pode-se
reconhecer aqui a distinção estabelecida por J.-C. Gardin entre construção compilatória e
construção explicativa.
Em seu livro Uma arqueologia teórica (Une archéologie théorique), Jean-Claude
Gardin (1979) busca racionalizar os vínculos que unem a descrição dos fatos
arqueológicos à sua interpretação e estabelece, assim, as bases lógicas dos
procedimentos de retrodição* na arqueologia. Ele distingue três etapas na
compreensão dos fatos arqueológicos que geram três tipos de construções.
 A primeira etapa corresponde à descrição dos materiais e gera construções
compilatórias.
A segunda etapa é a classificação dos dados e culmina em construções tipológicas.
A terceira etapa corresponde à interpretação dos dados e se traduz em construções
explicativas. Essa última etapa é particularmente interessante porque implica
justamente em uma comparação entre dados descritivos do campo estudado (nossos
cenários) e os dados exteriores referenciais (nossas regularidades). A explicação
torna-se então um simples procedimento de transferência de atributo, desde o campo
de referência até o campo em estudo, sendo o atributo o significado que se dá ao
objeto analisado. Essa operação comporta, por sua vez, duas etapas. A primeira
consiste em aproximar o objeto estudadode um objeto exterior, que se julga idêntico
ou comparável. Essa operação sustenta então como hipótese a existência de certas
regularidades. A segunda etapa consiste em transferir os significados associados ao
campo de referência para o objeto estudado e pode ser considerada como a operação
de retrodição propriamente dita (Fig. 23). Gardin dá o seguinte exemplo:
Descreve-se uma representação em uma estela: sobre seu punho enluvado, um
personagem retém um grande pássaro, a outra mão não está enluvada.
2. Associa-se essa representação a um campo de referência euro-asiático, onde,
conforme se sabe, os falcões são utilizados para caçar e são mantidos sobre o punho.
Formula-se então a hipótese que o objeto descrito pertence ao campo de referência.
3. Deduz-se, por transferência de atributo, que o pássaro representado na estela
relaciona-se provavelmente com a caça.
Nós podemos desde já formular as seguintes observações:
1. Para os nossos propósitos, os cenários são cenários da história. As regularidades
subjacentes são aquelas da antropologia (ou da etnologia). Mas essas últimas permanecem –
no estágio pré-científico que caracteriza atualmente nossas disciplinas – referências não
“explicadas” ou só parcialmente “explicadas”.
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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 31
2. A oposição é uma oposição relativa. Mostraremos efetivamente em seguida que se passa
progressivamente da descrição à interpretação. Nas duas extremidades se situam, de um lado,
cenários pontuais, originais e únicos em última instância, e, de outro, regularidades universais
aplicáveis ao conjunto da humanidade. A passagem dos cenários às regularidades comporta,
de uma parte, uma limitação cada vez maior dos traços descritivos pertinentes e, de outra
parte, uma ampliação do contexto espacial e/ou temporal de referência (Fig. 24).
O jogo pode ser jogado no sentido indutivo: a confrontação de cenários distintos permite
isolar os traços pertinentes comuns a um conjunto de cenários, em oposição a outros traços,
próprios a outro conjunto. Mas podemos também jogar no sentido dedutivo: partimos dos
traços julgados universais, ou ao menos gerais; a aplicação à realidade permite ou validar a
hipótese, ou invalidá-la. Em caso de teste negativo, o enriquecimento da descrição permite
observar uma melhor adequação às diversas realidades.
Um exemplo da dialética cenários – regularidades pode ser oferecido ao tratar-se do
papel atribuído à irrigação no desenvolvimento de sociedades com classes sociais
hierarquizadas. Numerosas sociedades agrícolas de diversos continentes recorreram a
sistemas de canalização mais ou menos complexos para levar água às lavouras. A
maioria das grandes civilizações urbanas antigas na Mesopotâmia, na China, no
México ou no Peru possuíam tais sistemas. Por outro lado, elas são descritas como
sociedades hierarquizadas apresentando desigualdades na repartição das riquezas.
Reencontramos redes de irrigação igualmente em sociedades não urbanas, de tipo
chefia*, que também apresentam uma hierarquização social.
 Para o problema de saber se existe uma relação entre esses dois fenômenos e em
que condições essa relação poderia ter surgido, é possível responder com uma
abordagem dedutiva (do geral para o particular) ou indutiva (do particular para o
geral). Ainda que as duas abordagens estejam sempre intimamente ligadas, pode ser
útil, do ponto de vista didático, separá-las.
Jogo dedutivo. O jogo dedutivo parte da hipótese de uma relação universal entre os
dois fenômenos. O modelo das sociedades hidráulicas de K. A. Wittfogel (1972)
representa aproximadamente esse grau de generalização. Segundo esse autor, a
irrigação necessita um poder gestionário centralizado e consequentemente contribuiu
intensamente para a emergência de classes sociais dominantes (as elites). Essa
autoridade política se manifesta efetivamente em três planos:
A elaboração e construção da rede de irrigação que demanda uma ampla
planificação e o controle de equipes importantes.
A manutenção dos canais, a qual é obrigatoriamente um trabalho coletivo.
A distribuição e a repartição equivalente da água nas diferentes parcelas de terreno.
A complexidade dos sistemas físicos dos canais com suas ramificações gera
obrigatoriamente conflitos que necessitam de mediadores.
Em última instância, a elite “presta serviço” à sociedade ao contribuir para o bom
funcionamento de suas engrenagens.
Essa relação unívoca e universal pode naturalmente ser contestada porque
sociedades hierarquizadas não são obrigatoriamente ligadas a economias agrícolas
que utilizam a irrigação , decorrendo daí a necessidade de enriquecer o conteúdo da
relação, até agora reduzida à parelha irrigação – desigualdade social. É o que faz A.
Gilman (1981), ao ampliar o campo de referência para o conjunto das técnicas de
subsistência intensivas que necessitam de um investimento humano importante.
Constata-se com efeito uma certa correlação entre as sociedades estratificadas e
diversas estratégias econômicas intensivas, tais como a irrigação (caso mencionado
por K. A. Wittfogel), a policultura (sociedades do Bronze antigo egeano), a
Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 32
agricultura em terrenos que demandam uma importante preparação prévia
(organização das parcelas, construção de terraços etc), enfim a pesca em alto mar e a
caça intensiva de mamíferos marinhos (chefias da costa noroeste na América do
Norte). Segundo esse autor, os investimentos econômicos implicados nessas
tecnologias contribuem para a coesão de sociedades cujos membros não podem
esquivar-se da dominação e da exação por parte de uma classe social elitizada
fragmentando-se e dispersando-se em pequenos grupos, ou emigrando para outras
terras.
Nesses caso a relação entre técnica de subsistência intensiva e aparição de uma elite
não é direta mas permanece, diga o que disser A. Gilman, uma interpretação
funcionalista (a função adaptativa determina a forma da sociedade). O jogo pode
continuar em direção à base, se demonstrarmos que existem casos onde sociedades
não hierarquizadas praticam a irrigação, como na Nova Guiné, ou se descobrirmos
sociedades hierarquizadas que não praticam nenhuma técnica de subsistência
intensiva, como é o caso em certas zonas da África Ocidental. Com efeito, observa-
se nessa região chefias relacionadas a uma agricultura simples, baseada no uso da
enxada, que não demanda nenhum investimento a longo prazo.
Jogo indutivo. As dificuldades ligadas ao jogo dedutivo mostram que pode ser útil
jogar também o jogo indutivo. Os estudos de caso revelam efetivamente que é
pertinente distinguir vários tipos de irrigação. Um bom exemplo desse tipo de
abordagem é o estudo de T. K. Earle (1977) sobre as chefias* do Hawai. Nessa ilha,
os chefes formam uma classe social totalmente separada do povo e endogâmica. Essa
elite mantém contatos sócio-econômicos intensos com seus homólogos das outras
ilhas, mas não se ocupam em nenhum caso com a planificação nem com o controle
da irrigação. A ilha é composta por várias comunidades econômicas justapostas que
ocupam diversos vales. Essas últimas são bastante autônomas porque têm acesso,
cada uma, a uma porção dos diferentes nichos ecológicos: montanha, planície
aluvial, costa com acesso ao mar, zonas de recife em águas rasas e, naturalmente, o
alto mar. O sistema de irrigação relacionado com a cultura do taro (nome polinésio
para a Colocasia esculenta, tubérculo que constitui a base da alimentação) é um
sistema em pequena escala, próprio de cada comunidade de subsistência que não
demanda nenhuma gestão centralizada. As construções (diques, canais etc) são de
pequenas dimensões e não ultrapassam as possibilidades técnicas de qualquer
camponês. O próprio sistema não é planificado, não necessita de um planejamento
prévio do conjunto e se desenvolve por ampliação gradual a partir de dispositivos
geograficamente pouco extensos.

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