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Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 10 Primeira parte UTOPIAS E REALIDADE Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 11 I. A MEMÓRIA DOS POVOS Em que pesem os nossos cronômetros, nossos calendários, nossas crônicas familiares e nossos livros de história, temos sempre dificuldade em conceber a noção de tempo. Se admitirmos que a geração atual nasceu em 1960 (pura convenção) e que as gerações se renovam a cada 30 anos, o avô terá visto os primeiros aviões aproximadamente em 1900, dez gerações nos separam do século XVII (1660), cinqüenta gerações da época das grandes invasões (460). Há cem gerações (1040 a.C.), a Europa se encontrava na Idade do Bronze e a 21ª dinastia faraônica reinava no Egito do Baixo Império. 150 gerações nos levam aos mais antigos textos escritos mesopotâmicos. Há 1000 gerações, nosso ancestral, caçador do Aurinhacense, traçava nas paredes das cavernas as primeiras representações de animais, ainda toscas. 2000 gerações nos separam do Homem de Neanderthal e 57.000 gerações do Zinjantropo*, o Australopiteco* da garganta de Olduvai, na Tanzânia. Enfim, é preciso recuar até 200.000 gerações para que nosso primo Chimpanzé e nós mesmos possamos falar de um ancestral comum. Em face a essa história o homem sempre se viu desarmado. Prisioneiro entre o secreto desejo de conhecer e os limites de sua própria memória histórica, ele inventou o mito e resolveu instantaneamente o mistério da sua origem. Existe então um certo equilíbrio entre as explicações globalizantes das mitologias e os conhecimentos históricos reais, equilíbrio por vezes conflituoso, como testemunham ainda nos nossos dias, principalmente nos Estados Unidos, os confrontos entre evolucionistas, que demonstraram seguindo os passos de Darwin que as espécies vivas se transformam constantemente e podem dar origem a novas formas de vida, e os criacionistas, partidários da gênese bíblica e de uma única criação. Se decidirmos abandonar provisoriamente as certezas religiosas, nós devemos nos engajar no difícil caminho dos conhecimentos parciais e provisórios, através do qual apenas a arqueologia e a paleontologia podem guiar nossos passos. Mas talvez não seja inútil explorar inicialmente os limites da memória dos povos. 1. Cinco milhões de anos de história humana Avaliar esses limites implica, logo de início, em estabelecer uma escala de referência. Os métodos físicos e as datações isotópicas permitem estabelecer essas cronologias, no interior das quais podemos situar as principais etapas da nossa história. A idade do universo é de 10 a 20 bilhões de anos. Os primeiros corpos celestes, protogaláxias e quasares, se formaram cerca de um bilhão de anos após o Big Bang que marca a origem do universo conhecido. A idade do sistema solar recua a 4,5 bilhões de anos e as mais antigas rochas datadas na Terra situam-se há cerca de 3,8 bilhões de anos, enquanto que os primeiros indícios seguros de vida, identificáveis nas seqüências geológicas – referimo-nos aqui aos organismos procariotes (sem núcleo) dos sílex da seqüência da Figueira, no Zimbabwe – recuam a 3,4 bilhões de anos. Se a diferenciação dos mamíferos data provavelmente apenas de 150 milhões de anos, é preciso esperar o fim do Secundário para encontrar, no Cretáceo superior da América do Norte, o primeiro Primata, que foi chamado Purgatorius, e o Terciário (que começa há cerca de 60-65 milhões de anos) para que se diversifiquem os Prosímios* (cujos descendentes atuais são principalmente os Lemurienses) e, a partir do Oligoceno, cerca de 37 milhões de anos atrás, os Símios. Dell Underline Dell Underline Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 12 Confrontada a esse grande quadro, a história humana parece bem irrisória. As mais seguras bases para fixar o período do “grande início” assentam-se curiosamente não sobre os dados da paleontologia dos primatas, bastante incertas para o período crucial entre 4 e 20 milhões de anos, mas sobre os dados da genética molecular. Esta disciplina permite afirmar efetivamente que a linhagem que conduz ao homem separou-se daquela dos grandes macacos africanos (Chimpanzé e Gorila) há somente 5 a 6 milhões de anos. Há 3,7 milhões de anos já estaria adotada a postura ereta. Pode-se supor que ela já existiria, ao menos de forma imperfeita, desde a aparição da linhagem hominiana. Os mais antigos instrumentos de pedra atualmente conhecidos provêm das formações de Haddar, na Etiópia, e recuam ao menos a 2,5 milhões de anos. Essas pedras lascadas possuem características bastante evoluídas, o que torna perfeitamente possível vislumbrar descobertas futuras de instrumental ainda mais primitivo. Há cerca de 2 milhões de anos, os restos de Hominídeos* fósseis se tornam mais freqüentes na África Oriental, e se pode estudar vestígios de acampamentos deixados por alguns deles. As mais recentes descobertas relacionadas ao Homo erectus se multiplicam não somente na África, mas igualmente na Europa e na Ásia. Infelizmente, a referência cronológica torna-se aqui um tanto imprecisa. Possuímos um excelente método de datação para os períodos mais antigos (além de 1 milhão de anos), chamado método do Potássio- Argônio*, que permite datar as rochas e sedimentos vulcânicos. Esse método torna-se inútil para períodos mais recentes pois seu poder de resolução torna-se ineficiente. Isso permite explicar o porquê das dificuldades encontradas quando se trata de situar no tempo a data da aparição da utilização do fogo, invenção do Homo erectus. Os restos de fogo nos acampamentos humanos, de início esporádicos, só se generalizam no momento da glaciação do Riss, no fim do período acheulense. Desde o início do período würmiano que corresponde à última glaciação, o Homo sapiens neanderthalensis, o Homem de Neanderthal, utilizará sistematicamente o fogo. Reencontramos um referencial cronológico seguro aproximadamente a partir de 30.000 anos, graças às possibilidades oferecidas pelas datações por carbono 14*. Situamo-nos então na segunda parte do período würmiano. O Homo sapiens sapiens acaba de aparecer. Sua subsistência depende, como para os seus ancestrais, da caça, da pesca e da coleta. Será preciso esperar ainda vários milênios e o fim dos tempos glaciais para assistirmos às grandes transformações do Neolítico, marcando o início da civilização moderna, a invenção da agricultura e do pastoreio, a passagem de uma economia de predação a uma economia de produção. Essas transformações acontecem em cada região independentemente e em épocas variáveis. A cada dia, novas descobertas modificam os cenários dessas mudanças capitais para a história humana, mas as regiões montanhosas do oriente próximo permanecem sempre consideradas como a zona onde ocorreu mais precocemente. Iniciando-se há 9.000 anos a.C. por uma fase de economia centrada na coleta de cereais selvagens, a “revolução neolítica” desemboca, a partir do 7º milênio, em uma verdadeira economia agrícola, baseada na cultura do trigo e da cevada. É sobre essa base econômica que se desenvolvem, desde o 3º milênio, as primeiras cidades mesopotâmicas que, com a aparição da escrita, abrem as portas da História, ao menos nessa parte do Mundo. As civilizações urbanas se desenvolverão então em diversas regiões. As mais prestigiadas são a Mesopotâmia, o Egito, a Índia (principalmente o vale do rio Indo), a China, a América Central (México e Guatemala) e o Peru. Enquanto que, século após século, os povos agricultores ocupam espaços cada vez mais amplos, os últimos caçadores coletores só podem sobreviver nas regiões menos favoráveis do planeta, nas terras mais frias, nos extremos setentrionais e meridionais dos continentes, nas terras desérticas ou nas florestas equatoriais. Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 13 Apenas há dois séculos começamos a reconstituir essa aventura, procurando ir além das tradições orais e dos textos históricos. Até então, o olhar do homem para o seu passado não ia além das narrações mitológicasque preenchiam os horizontes vazios da história. Nós nos encontramos atualmente diante de uma alternativa: ou nos contentamos com as certezas desses mitos, ou preferimos os raros lampejos de uma investigação (mais) concreta do passado, cujos caminhos são ainda mal traçados e cujas descobertas serão sempre parciais. 2. Consciência histórica e civilização Como concebíamos o passado antes do desenvolvimento das ciências históricas e pré- históricas, qual podia ser a profundidade histórica da memória dos povos? Três razões justificam a pertinência dessa questão: 1. A primeira, e menos importante para os nossos propósitos, diz respeito a um aspecto da história do pensamento. Devemos sublinhar a originalidade da corrente intelectual que se desenvolveu no seio da civilização européia, nos dois milênios da nossa era, para enfim ganhar um impulso completamente novo no século XIX com o evolucionismo: tentar reencontrar o passado desaparecido, contestando as certezas oferecidas pelos mitos e não somente conservando a lembrança dos acontecimentos vividos. 2. É necessário mostrar, apesar de alguns exemplos remarcáveis, em que medida as lembranças se apagam da memória coletiva; como podem se transformar sob a pressão dos interesses imediatos; enfim, como podem se dissolver em narrativas mais ou menos míticas. 3. A constatação precedente é plena de conseqüências e justifica o objetivo desse livro. Em numerosos casos, à parte as sociedades que desenvolveram arquivos históricos escritos, pouco numerosas no fim das contas, somente a arqueologia tem condições de restituir o passado de grande quantidade de povos e de retraçar a história da nossa mais antiga ascendência. Os caçadores Várias sociedades de caçadores viviam ainda em zonas de refúgio enquanto os Europeus acabavam de penetrar nas mais longínquas regiões do planeta. A etnologia que se desenvolveu paralelamente às conquistas coloniais, bem ou mal, permite-nos mergulhar nesse mundo onde a profundidade histórica parece ausente das consciências. Talvez se trate de uma ilusão? Talvez o investigador, se acaso estivesse aberto a uma tal questão e liberto de alguns preconceitos, pudesse recolher, ao redor de uma fogueira, da boca de um ancião, uma narrativa sobre migrações antigas, sobre encontros e conflitos com outras populações, as conquistas, alegrias e sofrimentos do bando. Tais narrativas certamente existem mas têm um papel aparentemente bem secundário. Um livro como o de A. P. Elkin (1967) sobre os Australianos nos deixa a impressão que existem apenas dois mundos: o presente e o passado mítico, e que nenhuma tradição histórica real surge para intercalar-se entre esses dois universos. Os aborígenes da Austrália concebem o tempo como sendo aquilo que existe ou se produz no momento que estão vivendo. Ao presente opõe-se o passado mítico, época na qual viviam os heróis civilizadores. O presente é a expressão do passado na Dell Underline Dell Underline Dell Underline Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 14 vida de cada dia. Entre esses dois blocos não existe história no sentido próprio do termo. A única história é o mito que se esconde por trás do presente. O passado mítico é o que os Australianos denominam o tempo do sonho. Nesse tempo, os heróis míticos percorreram o mundo, organizando-o segundo um percurso linear, que é a trajetória do mito. As características atuais da geografia – montanhas, fontes ou outros acidentes topográficos – são as marcas dessas viagens e determinam ainda na atualidade as estradas seguidas pelos indígenas quando se deslocam (Fig. 1). A. P. Elkin distingue vários tipos de organização clânica, entre os quais deve-se destacar o clã territorial. Segundo esse autor, o clã territorial possui filiação patrilinear* e exogâmica*. É composto por um grupo de homens descendentes de um mesmo ancestral mítico. O clã territorial está ligado ao mito organizador por intermédio dos locais totêmicos habitados pelo ancestral e seus descendentes. Os membros do clã ocupam um território determinado. R. B. Lee e I. DeVore (1968) colocaram recentemente em questão essa concepção do clã territorial. Deve-se considerá-lo apenas como um grupo de homens que mantém relações rituais privilegiadas com determinados locais totêmicos (o termo vínculo territorial deve ser entendido nesse sentido). Em contrapartida, os locais totêmicos não determinam sempre o território econômico do grupo local. O clã territorial garante a ligação ritual entre o presente e o passado mítico. Durante ritos complexos que reúnem vários grupos locais, e às vezes vários tribos, os homens do clã revivem o tempo do sonho e lembram as conquistas dos heróis míticos. Freqüentemente um mesmo mito organizador engloba várias tribos. Nesse caso, cada clã possui apenas uma fração do mito. Para conhecer o conjunto das tradições relacionadas a um trajeto organizador mítico é então necessário abordar os ritos de várias tribos distintas e contíguas, cada uma podendo possuir várias tradições clânicas. Os locais totêmicos que abrigam os espíritos, bem como os churinga ou os rombos que os representam, são as marcas materiais e permanentes dessa estreita ligação entre o passado e o presente. Os rombos são objetos longos de madeira, muitas vezes decorados, que se pode fazer girar. Os churingas possuem freqüentemente a mesma forma mas são mais estáticos. Conservados em lugares secretos ligados aos locais totêmicos, esses objetos encarnam os heróis totêmicos (ver Fig. 39). A. P. Elkin admite que os grandes mitos sagrados podem por vezes conter fatos históricos reais. Ele exemplifica com as lendas dos heróis civilizadores que, indo de uma tribo a outra, levaram à adoção em todo o coração do continente da prática da circuncisão e a faca de circuncidar de pedra lascada. Os estudos de antropologia cultural permitiram verificar a realidade histórica desse fenômeno de difusão. Entretanto, fica bem evidente que os acontecimentos foram deformados a um tal ponto que torna-se impossível utilizá-los como fonte de informação histórica sem que sejam confrontados com outros dados. Essa falta de profundidade histórica dos caçadores pode surpreender. A. P. Elkin pensa que ela pode ser conseqüência das condições de vida. O caçador vive no ritmo das estações do ano, há uma concepção cíclica de sua atividade que depende essencialmente da manutenção do status quo. O mito garante esse último. Em contraposição, o exame do que ocorre junto a agricultores nos dá pistas de uma outra correlação. A competição pela posse da terra, que pode ser intensa no seio de grupos agricultores, é, ao contrário, quase inexistente nos caçadores. Estes últimos possuem uma relação com a terra bem diferente. Consequentemente, o grupo julga desnecessário justificar sua inserção territorial por meio de uma história fatual, Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 15 como é freqüentemente o caso em grupos agricultores. Reflexo de uma tal situação, a base territorial do mito permanece no mais das vezes independente do espaço econômico. Os agricultores Com os horticultores (cultivadores de tubérculos) e os agricultores (cultivadores de cereais) começa a se desenhar progressivamente um novo mundo. Durante a maior parte do tempo, as técnicas agrícolas permitem um maior povoamento; a competição entre grupos torna-se assim mais importante. Tal competição permanece praticamente nula em grupos pouco densos e móveis, como os Índios da floresta sul-americana que praticam uma agricultura de queimadas*. Ela cresce quando a densidade de povoamento torna-se maior e se formam verdadeiras fazendas que necessitam investimentos freqüentemente consideráveis (como é o caso da agricultura sobre terraços ou da agricultura irrigada). Essa transformação da maneira de viver não deixa de ter conseqüências sobre o plano das concepções da história. Mesmo se a propriedade cadastrada, conformeo sentido que nós comumente lhe damos, não existe ainda, com freqüência encontramos sinais do desejo de legitimar o direito de utilização da terra. Esta justificativa assume a forma da história, de uma história das famílias, dos clãs ou das tribos, no interior da qual a memorização das genealogias assume um papel central. Como bem mostrou C. Meillasoux (1975), o trabalho agrícola interliga gerações sucessivas através do tempo; as colheitas dos mais jovens dependem freqüentemente do trabalho dos mais idosos. Semeia-se numa estação para colher mais tarde. O celeiro torna-se o símbolo das ligações diacrônicas tecidas entre as gerações. Não estamos longe de pensar que a descoberta do tempo histórico deve estar estreitamente relacionada à passagem das economias de predação às economias agrícolas de produção. Mas certamente as coisas não são tão simples, pois os conflitos políticos rapidamente ocupam o lugar dos conflitos estritamente econômicos. Entretanto, aqui ainda a história permanece mal distinguida do mito, e a memória dos acontecimentos reais chega rapidamente ao seu limite, enquanto o suporte escrito não é inventado. É espantosa a memória dos anciãos, depositários das tradições. Ela nos parece com freqüência prodigiosa, a nós, ocidentais, que possuímos uma história escrita de cerca de cinco milênios mas que já esquecemos os nomes dos nossos bisavós e sua história. Entretanto, sempre a história oral se amolda progressivamente às formas do mito, e esse deslizamento é tão imperceptível que torna-se difícil fixar uma fronteira. Dois exemplos, tomados de uma sociedade horticultora melanesiana e de uma sociedade agrícola africana, nos permitem situar apropriadamente essa questão. A Melanésia insular e a Polinésia são abundantes em tradições orais que narram as migrações marítimas de certas populações e a história das mais importantes chefias*. Durante muito tempo se acreditou que essas narrativas fossem essencialmente ciclos míticos estruturados a posteriori (para justificar certas organizações sociais ou garantir a perenidade das hierarquias estabelecidas entre os indivíduos e os grupos). Em verdade, essas tradições possuem um conteúdo histórico real do qual não desconfiávamos há algumas décadas apenas. Os trabalhos de José Garanger, realizados entre 1964 e 1967 nas Novas Híbridas centrais, principalmente em Efate e nas ilhas Sheperd, fornecem a prova gritante de uma profundidade histórica inesperada (Garanger, 1972). As pesquisas geológicas e arqueológicas permitiram restituir a história das ilhas Sheperd, que antigamente estavam reunidas em uma única grande ilha conhecida tradicionalmente pelo nome de Kuwae. Sabe-se que essa ilha foi completamente desmantelada por um cataclismo vulcânico para o qual possui-se duas datações por Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 16 carbono 14*: 1320 ± 80 e 1460 ± 37 d.C. A primeira ocupação de Kuwae remonta ao século V d.C. Os estilos cerâmicos que caracterizam essas primeiras culturas desaparecem pouco antes do cataclismo vulcânico. Presencia-se então uma mudança cultural importante, caracterizada pela abundância dos instrumentos lascados de conchas. Esse instrumental, que apresenta afinidade com aquele de regiões ao norte, é provavelmente decorrência da chegada de novas populações. Uma das tradições históricas recolhidas nessas ilhas está relacionada às chefias de Tinabua Mata de Lubukuti, em Tangoa, nas ilhas Sheperd. Essa narrativa menciona viagens interinsulares em piroga que, depois de passarem pelas ilhas do Sul, teriam chegado a Efate. O principal herói, Roy Mata, teria então organizado a emigração dos chefes para as diversas ilhas das Novas Híbridas centrais. Segundo a tradição, esses acontecimentos seriam anteriores ao cataclismo de Kuwae. Roy Mata foi enterrado em Retoka, uma ilhota próxima da costa de Efate, em companhia de alguns membros da sua corte. Representantes de diversos clãs, voluntários para a morte, foram também inumados. Outros indivíduos foram enterrados após terem sido sacrificados, a ilha foi então declarada tabu. José Garanger, ao escavar no suposto local da sepultura de Roy Mata, fez uma das mais extraordinárias descobertas de toda a história da arqueologia. Ele efetivamente evidenciou a sepultura do herói, acompanhado por seus próximos numa fossa central. Ao redor estavam dispersos os representantes dos diversos clãs, adornados com as insígnias de seus graus e acompanhados por suas esposas. Todos os homens encontrados alongados em posição de repouso pareciam ter sido depositados na superfície do solo após terem sido envenenados, fato conhecido tradicionalmente; as mulheres, pressionadas contra seus companheiros em posições por vezes patéticas, haviam sido provavelmente estranguladas ou enterradas vivas (Fig. 2) Uma datação por carbono 14, feita a partir de uma amostra de ossos, forneceu uma data em conformidade com as tradições, 1265 ± 140 da nossa era. Foi provado dessa maneira que uma tradição oral pode preservar a lembrança precisa de velhos acontecimentos, com cinco séculos. Entretanto, se por um lado a tradição é exata até mesmo em pequenos detalhes, por outro lado ela não é por isso menos limitada, já que foi concebida em função de interesses sociais e políticos bem precisos, o que levou a uma distorção sempre importante da realidade histórica. A confrontação com a arqueologia mostra efetivamente que: 1. a renovação cultural que intervém entre os séculos IX e XII não diz respeito a pirogas vindas do Sul, da Polinésia ocidental ou mesmo oriental (cujos ocupantes não conheciam o instrumental em conchas) mas à chegada de populações vindas do norte, da Micronésia, ou de ilhotas polinésias isoladas na Micronésia e na Melanésia; 2. as sepulturas coletivas contendo indivíduos sacrificados para acompanhar o defunto não foram nunca identificadas na Polinésia, parecem ter sido inventadas ou adotadas no local pelos recém chegados. As tradições das chefias melano-polinésias não podem assim substituir a história arqueológica mas esclarecem essa última ao mostrar que a história política de uma região nem sempre ressurge claramente pelo estudo dos vestígios arqueológicos. Narrativas históricas comparáveis são encontradas junto a povos agricultores da África ocidental, cultivadores de uma espécie de milho miúdo. As tradições genealógicas familiares tem efetivamente um papel importante nessa região. M. Sahlins (1976) sublinhou a importância do parentesco para a estruturação do grupo social. Segundo esse autor, a estrutura de parentesco permite consolidar o grupo social e faz contrapeso à tendência centrífuga das Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 17 células familiares que, desde sempre, tendem a se dispersar para seguir seus próprios interesses. Na África ocidental, os grupos de descendência tem uma estrutura patrilinear (o nome do pai é herdado pelo filho) e triangular: o ancestral comum está situado no ápice do triângulo e seus descendentes mais jovens ocupam a base. Um raciocínio geométrico simples nos mostra que quanto mais o ancestral é longínquo, mais larga é a base do triângulo, mais numerosos então os indivíduos concernidos por laços de solidariedade econômica e política. Consequentemente, é interessante para o chefe fazer referência a um ancestral distante, real ou mítico, englobando numerosos descendentes sobre os quais torna-se assim mais fácil exercer seu controle. Acrescente-se a esse fator a importância das referências genealógicas na esfera do direito à terra. A história das famílias parece até certo ponto descrever um movimento browniano; acontece com freqüência de uma família deixar sua aldeia para instalar-se alhures, como conseqüência de algum desentendimento. Se ela se estabelece numa terra virgem, o chefe de família (e sua descendência) adquire assim um direito sobre a terra, transmissível de pai para filho.Dessa forma, as referências genealógicas fundamentam e justificam os direitos de exploração dos terrenos. As tradições dos Dogon do Mali permitem ilustrar essa situação. Se nos referirmos aos dados de Germaine Dieterlen (1941), vemos que as tradições “históricas” podem ser divididas em duas fases sucessivas. A Primeira fase é inteiramente mítica. Todos os Dogon da região de Bandiagara vêm de uma região chamada Mandé, no sudoeste do Mali, e descendem de um ancestral único, o Lébé. Lébé gerou dois filhos. O primogênito teve dois (ou três) filhos homens, Dyon e Ono; o caçula teve um filho, Arou. Em conseqüência de uma disputa – sublinhamos esse motivo que sempre reaparece – os três filhos decidiram emigrar e fundaram a primeira aldeia da região de Bandiagara, Kani Na. Esses três irmãos são considerados os fundadores das três principais tribos do Dogon, os Dyon, os Ono e os Arou. A Segunda fase da tradição possui bases históricas mais firmes e diz respeitos às fundações (e abandono) das diversas aldeias da região pelos descendentes dos três irmãos. Graças a diligências astuciosas, a Etnologia conseguiu fixar no início do século XV da nossa era a primeira instalação dos Dogon na região de Bandiagara. Na época de uma festa chamada Sigui que acontece a cada sessenta anos, os Dogon esculpem uma Grande Máscara que depois é conservada. M. Griaule (1963) havia observado em 1940, no abrigo sagrado de uma aldeia, 9 grandes máscaras ainda conservadas e o provável lugar de três outras desaparecidas. As nove máscaras possibilitam fixar a chegada dos Dogon no século XV (9 x 60 anos). Essa chegada recuaria ao início do século XIII (12 x 60 anos) se considerarmos as três máscaras desaparecidas. As enquêtes feitas por C. Sauvain em Sarnyéré (Gallay, 1981), uma pequena montanha situada na periferia da área de ocupação dos Dogon, testemunham a precisão das tradições genealógicas próprias a essa Segunda fase e permitem entender as ligações existentes entre a história das fundações das aldeias e a estrutura política da chefia* de Sarnyéré (Fig. 3 e 4). As genealogias registradas pelo etnólogo efetivamente recuam até a chegada da primeira família na região há dez gerações, ou seja, em torno de 1675. Na montanha existiam ainda 4 aldeias quando de nossa passagem em 1976, e distinguiam-se três tipos de famílias. A primeira família que chegou na montanha (os Tengo) ocupava um papel político central pois entre seus membros era escolhido o chefe de Sarnyéré. Em segundo lugar situavam-se as famílias fundadoras das aldeias antigas ou atuais Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 18 mais recentemente instaladas. Enfim, as famílias que se haviam juntado há bem pouco tempo às aldeias existentes formavam um terceiro grupo, subordinado. O exemplo Dogon mostra que a história, memorizada e conservada de geração em geração na tradição oral, é uma história genealógica pois é ela que justifica a estruturação política e a hierarquização das famílias por ordem de chegada. É possível atribuir a essa memória uma objetividade de ao menos três a quatro séculos, ou seja, dez gerações. Daí em diante, a imagem do passado torna-se bem mais turva, a história das famílias se simplifica, surgem muitas contradições entre as tradições. Ainda mais distante no tempo, o mito substitui a história. Enfim, na África como nas Novas Híbridas, vemos que os dados da arqueologia não concordam bem, na maioria das vezes, com esse tipo de história. Com efeito, as mudanças culturais parecem obedecer a uma lógica própria, cuja justificativa é impossível de ser encontrada na história conservada pela memória dos homens. Este segundo exemplo ilustra bem a ligação funcional que existe entre a profundidade histórica expressa pelas genealogias, de um lado, e os vínculos sociais sincrônicos, de outro lado. Quanto mais as genealogias, reais ou supostas, recuam longe no tempo, mais numerosas são as famílias concernidas pelos vínculos sociais assim estabelecidos. Às famílias realmente aparentadas, descendentes de um ancestral próximo conhecido, se agregam progressivamente famílias estrangeiras que são integradas, por meio de variados artifícios, na estrutura genealógica. Os pequenos grupos de caçadores ou de horticultores da Amazônia ou da Melanésia estão ligados entre si pela referência a um antepassado próximo. A chefia* de Sarnyéré Dogon integra num todo conhecimentos genealógicos mais extensos e um início de subordinação das famílias (as linhagens* dos etnólogos). Nas grandes chefias hereditárias, a linhagem* dominante se refere a um ancestral mítico e distante para garantir seu domínio sobre linhagens, ainda mais numerosas, que são relacionadas entre si apenas por vínculos genealógicos reais (Fig. 5). Das chefias às sociedades urbanas Essa hierarquização das sociedades provoca um duplo deslocamento das tradições históricas, perceptíveis tanto nas sociedades antigas quanto naquelas estudadas pelo etnólogo. 1. A história das famílias transforma-se em história dos chefes. As tradições se concentram nas linhagens que ocupam um lugar dominante na sociedade. A profundidade histórica torna-se, por necessidade, um privilégio de classe pois os homens que detêm o poder nela se apoiam para dominar. No outro extremo da escala social, o escravo é por definição um desterrado. Arrancado de suas origens, e freqüentemente de suas referências culturais, ele perde rapidamente a lembrança de sua história real para se reconstituir um passado mais ou menos manipulado. 2. O homem procura consolidar a tradição histórica utilizando referências exteriores à memória oral. Desde sempre, ele materializou seus conhecimentos em objetos simbólicos: churinga para os Australianos, grandes máscaras para os Dogon etc. O fundador de uma nova aldeia Dogon construiu um altar representando seu ancestral Lébé. Na Melanésia e na Polinésia, grandes monumentos megalíticos* marcam as etapas das conquistas dos ancestrais. A escrita fornecerá um suporte ideal para as genealogias dos grupos socialmente dominantes. Talvez não seja obra do acaso se os mais antigos textos, na Mesopotâmia ou noutros lugares, estão repletos de listagens genealógicas. Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 19 Ao apresentarmos a gama de temas tratados pela memória escrita da civilização suméria e babilônica, queremos frisar a inserção do fenômeno escrita na lógica histórica e sublinhar a ruptura radical provocada pela aparição das notações escritas na conservação e no enriquecimento do patrimônio cultural. A aparição da escrita no terceiro milênio, na bacia mesopotâmica, resulta de imperativos de uma gestão econômica cada vez mais complexa. Os primeiros textos são essencialmente contábeis e administrativos, tratando da estocagem e da circulação de bens alimentícios ou não. No entanto, muito rapidamente as elites souberam tirar partido desse novo instrumento para justificar seu poder, para governar, administrar seus bens e alcançar suas ambições políticas. Os diversos textos que se encaixam nessa perspectiva são: - os textos contábeis e administrativos. Aos numerosos lembretes burocráticos, balanços de exploração agrícola, inventários dos bens dos tesouros de templos e palácios, distribuição de rações a prisioneiros, e mesmo plantas de cidades e mapas geográficos, se acrescentam as diversas correspondências diplomáticas, garantindo o bom funcionamento das cidades sob um poder centralizado. - textos de história fatual. Os potentados que organizam o Estado inauguram o gênero histórico, para a edificação das gerações futuras mas sobretudo para estabelecer seu pleno direito em lutas pela hegemonia. Os vários textos históricos reúnem narrativas de conflitos políticos e territoriais, relatórios de decisões políticas sobre a resolução de certos conflitos, inscrições votivas e depósitos de fundação enterrados quando da edificação de novos monumentos públicos. Acrescente-seaí igualmente as listas genealógicas das dinastias reais para justificar a legitimidade do poder. - textos jurídicos, códigos e leis. O rei, escolhido pelos deuses, promulga, sob a proteção desses últimos, as regras e códigos sobre a definição dos pesos e medidas, a jurisprudência sobre multas, medidas tomadas em favor da moralidade pública, a reforma dos impostos etc. Vários textos agrupam despachos de tribunais, doações de terrenos pelo rei, atas de vendas. No entanto, seria falso reduzir a escrita primitiva unicamente a um instrumento de poder. Numerosos textos dão testemunho da importante mutação intelectual provocada pela aparição da escrita. Esses textos são: - textos religiosos que glorificam e exaltam os deuses e suas conquistas, cobrindo uma amplo leque de gêneros, desde diversas narrativas míticas a textos que descrevem o desenrolar dos ritos, passando pelas listagens de divindades, textos de imprecação e orações. - textos relacionados à vida intelectual e científica. Encontramos nessa categoria todos os textos utilizados na formação profissional dos escribas, especializados na manipulação de uma escrita freqüentemente complexa : compilações gramaticais, textos matemáticos (tabelas de cálculo e listas de problemas) e para gestão de arquivos escritos, como catálogos de biblioteca. Deve-se mencionar igualmente as farmacopéias, listas de provérbios e os calendários agrícolas. Desde o 3º milênio, o conjunto desses textos dá uma nova dimensão à memória coletiva dos povos do Oriente próximo, mas esse fenômeno será por muito tempo o apanágio de algumas civilizações urbanas e estatais, enquanto que numerosas culturas permanecerão desprovidas de qualquer sistema de notação escrita e à margem da História já que, conforme nossa estreita visão, assimilamos a história dos povos unicamente às crônicas escritas que eles nos legam. Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 20 2. Por que a arqueologia ? As considerações precedentes o mostram: a história é rapidamente esquecida e modificada. Na medida em que podemos julgar, os caçadores parecem viver em um mundo sem profundidade histórica no qual o mito bordeja o presente e o explica. A dimensão temporal surge, ao contrário, entre os agricultores, mas as tradições históricas e orais não vão além de alguns séculos. Sem alterar o conteúdo das tradições próprias ao mundo dos agricultores, a escrita prolonga a sua dimensão histórica e permite, pela primeira vez, que se constitua uma memória coletiva externa, que pode ser conservada além das gerações e pode ser decriptada por homens de outras culturas. Entretanto, esse fenômeno permanece limitado no tempo e no espaço. Na Mesopotâmia, os mais antigos escritos não ultrapassam o 3º milênio; e, antes da expansão européia nesses últimos séculos, várias regiões do mundo ainda não possuíam nenhuma tradição escrita. Limitadas temporalmente, as tradições históricas também o são em relação ao conteúdo. Comumente expressões de interesses políticos variados, elas constituem apenas um reflexo parcial e deformado da história no qual transparecem, no mais das vezes, apenas as lutas pela influência. Certamente não ignoramos que grandes civilizações nos legaram através de seus documentos escritos um patrimônio sempre rico que não pode ser reduzido a simples crônicas das famílias reinantes. Mas ainda assim, esse tipo de informação concerne apenas alguns povos e uma faixa de tempo, no fim das contas, relativamente estreita. A história humana, como sabemos, se estende por cinco milhões de anos. Nós confrontamos propositadamente essa dimensão histórica às tradições características das sociedades tradicionais que precedem a curiosidade do Ocidente pela origem e história do desenvolvimento da humanidade. Apesar do interesse incontestável das tradições orais, a distância parece enorme e a zona sem luz considerável. Se assim medirmos tudo o que foi esquecido e abandonado, corremos o risco de sofrer uma certa vertigem diante daquilo que pode parecer o mais profundo dos mistérios. Para resolvê-lo, não nos resta nenhuma outra solução senão debruçarmo-nos diante dos rastros deixados pelo homem na superfície da Terra durante a sua longa história e tentar decifrá-los. A paleontologia humana e a arqueologia são efetivamente as únicas capazes de rivalizar com as respostas globais oferecidas pelos mitos e pelas religiões na busca das origens históricas do homem. O fato dessas duas visões de mundo terem podido, em certos períodos, entrar violentamente em competição parece, com efeito, motivo suficiente para adiantar que elas se sobrepõem ao menos parcialmente, mesmo se história e mitologia não visam os mesmos objetivos. A arqueologia oferece a única abordagem possível para reconstituir o passado dos povos ágrafos, e uma abordagem complementar das fontes escritas indispensável no caso das civilizações que possuem escrita. Se esse livro tem como propósito explorar essa via, ele se propõe igualmente a descobrir seus limites. A profundidade histórica reencontrada não implica na possibilidade de escrever uma história total. Aspectos inteiros dessa última estão irremediavelmente perdidos. Esse tipo de abordagem concerne todos os povos e não somente o Ocidente que abriu caminho. Para muitos, essa é a oportunidade para recuperar uma identidade que se poderia considerar para sempre apagada. Pode-se ver que o que está em jogo é de extrema importância. Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 21 III. UMA FALSA ALTERNATIVA ? HISTÓRIA OU CIÊNCIA As críticas desenvolvidas no capítulo precedente demonstraram a oportunidade de uma reflexão geral sobre certos aspectos dos procedimentos do arqueólogo. Ela deveria permitir lembrar de alguns conceitos úteis para definir uma prática do conhecimento e fixar seus limites atuais. Nosso objetivo permanece uma antropologia geral. Reservamos para mais adiante tratar dos problemas ligados às limitações decorrentes da natureza dos fatos arqueológicos. Essas restrições não são, aliás, fundamentalmente diferentes daquelas encontradas na etnologia ou na história. Etnologia, história e arqueologia se organizam segundo um eixo de decrescente qualidade da informação. Na medida em que recuamos no tempo, nossos dados sobre a civilização humana se tornam mais fugazes. Mas não há por que pensar que a natureza própria do objeto de nossa pesquisa se transforme profundamente. Dentre todas as disciplinas que visam o estudo dos fenômenos em seu desenvolvimento histórico e sua explicação teórica, a biologia é certamente aquela cuja problemática mais se aproxima daquilo que nós concebemos como uma antropologia geral. Em ambos os casos, com efeito, assistimos à aparição ao longo do tempo de sistemas* cada vez mais complexos, cuja auto-organização retrocede parcial e localmente na grande corrente da entropia* crescente do Universo. Nós nos voltaremos então, durante alguns instantes, para os diversos conceitos da biologia. 1. A situação nas disciplinas biológicas A teoria da evolução e o desenvolvimento das formas vivas ao longo do tempo são certamente o campo mais próximo das preocupações do arqueólogo. Junto a Darwin e seus sucessores, a noção de espécie (animal ou vegetal) assume um papel central e constitui uma espécie de elemento articulador entre a teoria e a experimentação, de um lado, e a observação da natureza, de outro. A espécie é concebida ou como uma entidade que se modifica progressivamente (pelos gradualistas), ou como uma etapa de equilíbrio e de estabilização de formas diferenciadas obtidas pela seleção natural (pelos partidários dos equilíbrios pontuados). Essa noção ocupa uma posição central tanto na teoria da seleção quanto na história reconstituída pelos paleontólogos. Ela relaciona então a reflexão teórica com a observação. Nós poderíamos assim admitir não uma simples oposição entre ciência e história, mas uma oposição ternária entre ciências biológicas, história paleontológica e regularidades específicas(induzidas da história ou deduzidas das ciências biológicas). Nessa tríade, que corresponde respectivamente à biologia experimental, à paleontologia e à biologia da evolução (Quadro 1), a espécie tem um papel ambíguo do ponto de vista epistemológico (Fig. 20). Da biologia experimental à biologia da evolução Leis da genética e teorias da evolução Um primeiro itinerário nos leva das leis da biologia às teorias da evolução. Ele mostra que esse último campo não pode ser reduzido aos conhecimentos fornecidos pela abordagem experimental. Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 22 Nas ciências experimentais, os acontecimentos são reprodutíveis e as leis permitem operar predições* locais sobre acontecimentos futuros. Essas últimas podem ser totalmente impositivas ou, ao contrário, apresentar uma formulação probabilística. PALEONTOLOGIA BIOLOGIA DA EVOLUÇÃO BIOLOGIA EXPERIMENTAL ESPÉCIE CENÁRIOS História Irreversibilidade dos acontecimentos REGULARIDADES Estruturas Estabilidade dos equilíbrios LEIS Processo Reversibilidade, reprodutibilidade dos acontecimentos Abordagem ARQUEOLÓGICA Constatar, observar, reconstituir acontecimentos particulares Abordagem FUNCIONALISTA Explicar pelo valor seletivo CAUSAL Explicar e justificar a posteriori o como Abordagem EXPERIMENTAL Utilizar objetos semelhantes REDUCIONISTA Situar os fenômenos segundo leis da química e da física DETERMINISTA Reproduzir os fenômenos Explicar o por quê RETRODIÇÃO PREDIÇÃO Contingência dos fatos Regularidades tipológicas Leis probabilísticas Leis deterministas Quadro 1: tentativa de definição das três abordagens da biologia As leis da hereditariedade descobertas por J. Mendel constituem um bom exemplo de conhecimentos adquiridos experimentalmente que culminaram na formulação de leis de aplicação universal. Durante os seus trabalhos de hibridação de plantas, J. Mendel não se contentou em sustentar sua hipótese sobre uma concepção matemática coerente, ele apoiou sua teoria na experimentação e em observações estatísticas. Essas últimas concerniam a freqüência dos diversos tipos de híbridos preditos pelo seu modelo da transmissão de certas características observáveis em ervilhas, que lhe serviam de material experimental. Nós sabemos hoje em dia que J. Mendel havia acertado e que os mecanismos de transmissão dos genes originam os fenômenos observados. Nós sabemos também que as transformações acidentais que afetam às vezes esses genes podem ser responsáveis pela aparição de novas características nos seres vivos. Entretanto, um largo poço separa as leis da hereditariedade, as predições que elas permitem operar a respeito da transmissão de certas características e a compreensão da evolução do mundo vivo. Essa situação pode ter várias explicações: - Nós conhecemos os fundamentos genéticos apenas de um número extremamente limitado de características. - As mutações que afetam os genes se produzem ao acaso. Nenhuma lei permite predizer o sentido e a natureza dessas transformações. - Os seres vivos formam sistemas* abertos em constante relação com o seu meio. Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 23 Para entender bem essa situação, convém então nos demorarmos alguns instantes nessa última observação. Um sistema aberto está em constante relação com o seu meio. Ele troca energia, matéria e informação para garantir sua organização contra a degradação exercida pelo tempo e expulsa a entropia para o meio. Um sistema aberto só pode ser concebido em relação a um tempo irreversível, mesmo sendo possível admitir retornos de retroação*. As leis que se pode desenvolver nesse contexto só poderiam ser probabilísticas pois nunca é possível controlar todas as interações que ligam o sistema ao seu meio. Essa conceituação permite empreender o estudo de fenômenos complexos, tais como a evolução do mundo vivo. Existem duas maneiras de abordar o estudo de um sistema: Uma primeira abordagem consiste em ver como ele funciona. Admite-se nesse caso que a energia, ou a informação, recolhida no meio permite-lhe conservar (temporariamente) sua estrutura e seu equilíbrio. Sabe-se no entanto que a entropia será sempre vencedora e que o sistema se destina inexoravelmente à dispersão, à morte, ao desaparecimento. As estrelas, as espécies animais, as civilizações humanas morrem e desaparecem. Uma segunda abordagem consiste em pesquisar como um dado sistema pode se transformar em um sistema diferente, como ele pode modificar sua estrutura e como essa transformação pode, por vezes, levar a uma complexidade maior. Nós nos aproximamos aqui de uma das grandes questões levantadas pela evolução do mundo vivo, por um lado (como pode aparecer uma nova espécie ?) e, por outro lado, pela evolução do homem e de suas sociedades. A evolução biológica é a gênese do improvável e a história da auto-organização da matéria em sistemas cada vez mais complexos. Pode-se tentar fornecer uma descrição dos mecanismos dessa gênese em termos relativamente gerais, convenientes para a evolução biológica, mas há algumas razões para pensar que a evolução cultural que a prolonga e amplifica em certas espécies animais (de forma limitada) e mais particularmente nos Hominídeos* pode ser definida com termos similares. A explicação darwiniana da história biológica sustenta-se em três pontos: variações espontâneas dos genes levando à aparição de novas características, a seleção dessas características principalmente sob o impacto do meio, e a competição entre as espécies e os indivíduos dessas espécies que garante a sobrevivência dos mais aptos. Segundo uma perspectiva sistêmica, essa teoria distingue dois níveis, um nível macroscópico, as entidades, constituídas pelos indivíduos das espécies animais (ou vegetais), e um nível microscópico, representado por componentes, os cromossomas, os genes e as moléculas (Fig. 21). Esse sistema pode apresentar perturbações locais, imprevisíveis, que afetam ou o nível genético e molecular, ou o nível cromossômico, e podem ser concebidas como um gerador aleatório de variedades; a essas perturbações se dá o nome de mutações. As mutações correspondem a transformações aleatórias que influenciam apenas os componentes. Trata-se aqui de um comentário importante que converge com certas observações dos físicos. Com efeito, esses últimos notaram que um sistema, estável e homogêneo em escala macroscópica, não mais o era em escala microscópica, ao tentar-se precisar a descrição da realidade. Um sistema de estabilização e de seleção constitui o que se chama de seleção natural. Esta última age sobre as entidades: indivíduos ou espécies vivas. Essa estabilização é o resultado das interações que se desenvolvem entre as entidades e o meio. Um caso particular de interações entre as entidades e seu “meio” é constituído pelas interações entre entidades distintas. No terreno biológico, essa competição atua no nível dos indivíduos de uma mesma espécie mas pode também ser concebida no nível interespecífico. Essa competição interespecífica – que se concretiza freqüentemente em lutas por certos nichos ecológicos* – Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Note feedeback negativo Dell Note feedeback positivo Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 24 pode culminar na regressão ou mesmo no desaparecimento de certas espécies sob o efeito do crescimento de uma espécie particularmente fecunda e/ou agressiva. Em seu livro O acaso e a necessidade (Le hasard et la nécessité), J. Monod (1970) indica que um sistema biológico pode tornar-se mais complexo sob o efeito de pequenas transformações, de menor importância, que constituem as mutações. Ele contrapõeessas flutuações, devidas ao acaso, ao caráter aparentemente necessário das novas estruturas nascidas dessas transformações. O termo necessidade implica que todas as estruturas potenciais não são igualmente viáveis porque o meio exterior impõe seus limites. Quem diz necessidade reconhece, de fato, a parte importante que assume o meio na limitação das fórmulas estruturais realizáveis. Reconhecer essa influência é reconhecer que todas as soluções não são igualmente possíveis, que existem então certas regularidades. Além desses apanhados sintéticos, a compreensão dos mecanismos da evolução ainda coloca bastantes problemas. Segundo o darwinismo clássico, ou na teoria sintética da evolução, a transformação de uma espécie é gradual. Nós mencionaremos aqui uma teoria um pouco diferente, a teoria dos equilíbrios pontuados de S. J. Gould (1980) e N. Eldredge (1982). Esses autores tentaram, de forma original, conciliar as observações freqüentemente contraditórias da paleontologia. A evolução procederia de duas maneiras. Observa-se inicialmente uma microevolução que leva a uma lenta mudança das características de uma população específica. Essa microevolução é responsável ao longo dos tempos geológicos pela aparição de longas linhagens, chamadas filos (phylum). Nessa transformação, dita filética, a seleção natural concerne os indivíduos. Em contrapartida, a macroevolução é responsável pela aparição de novas espécies. Esse processo é o único capaz de aumentar a diversidade específica e é responsável por todas as grandes mudanças evolutivas. Assim, a seleção parece operar ao nível da espécie. As divergências são rápidas e intervêm em populações bastante reduzidas, situadas geralmente na periferia da área de extensão da espécie, mais raramente no próprio interior da população ancestral. Consequentemente, a evolução específica não é lenta nem regular, mas é feita de acontecimentos raros e complexos (surgindo ao acaso) que quebram a estabilidade e a homogeneidade da espécie ancestral. Essa teoria se harmoniza muito melhor com os dados da paleontologia. Com efeito, observa-se, ao lado de certos casos de mudanças progressivas atribuíveis a fenômenos de microevolução, numerosos casos onde as características morfológicas das espécies permanecem estáveis durante longos períodos. Nesse nível macroevolutivo, as novas espécies se desgarram bruscamente das antigas, a natureza produz saltos qualitativos importantes, fenômeno negado pelo darwinismo clássico e pelo neodarwinismo mas que, no entanto, se harmoniza com os dados fornecidos pelos fósseis. Da paleontologia à biologia da evolução A reconstituição das árvores filéticas A teoria da seleção permite integrar os resultados experimentais parciais, fundamentados na lei da hereditariedade e numa certa indeterminação, cuja causa, como vimos, deve ser pesquisada no caráter aberto dos sistemas biológicos e nas perturbações que afetam esses sistemas, as mutações. Mas ela encontra-se também confrontada com os dados da observação empírica: o naturalista estuda e classifica as espécies que vivem atualmente no planeta; o paleontólogo reconstitui, pelo exame dos fósseis, a história das espécies. Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 25 Pode-se considerar o paleontólogo como o historiador que busca reconstituir a árvore de diversificação das espécies. Essa árvore, chamada árvore filética, mostra como as diversas espécies derivam umas das outras, se diversificam e morrem, tal como uma árvore cujo tronco mergulharia na noite dos tempos e os ramos mais altos seriam nossos contemporâneos. Ela é a expressão de um cenário. A reconstituição dos cenários da história fornece ao mesmo tempo os materiais básicos da teoria da seleção e o contexto para sua validação. Aqui também a noção de espécie assume um papel central, orientando a maneira como os dados de campo, os fósseis, são coletados e organizados. Ela fornece efetivamente a base das classificações propostas pelos taxinomistas (a taxinomia é a arte da classificação). O teórico da seleção natural traz assim sua contribuição ao definir os objetivos da classificação e o significado das categorias propostas. Essa parte da pesquisa comporta com efeito uma atividade essencialmente taxonômica. O sistemático se esforça para classificar as diversas formas vivas em grupos homogêneos. Ele, em seguida, insere esses conjuntos em uma trama cronológica e espacial e recoloca a história das espécies em seu panorama geográfico e ecológico. Ele busca por exemplo saber como a disposição dos continentes e dos oceanos e a estrutura do relevo puderam influenciar a migração dos animais e das plantas; como regiões isoladas puderam favorecer a emergência de novas espécies; como condições climáticas desfavoráveis puderam provocar o desaparecimento de certas faunas. A paleontologia evidencia assim dois tipos de mudanças nas formas animais e vegetais. Ela constata inicialmente mudanças progressivas e limitadas de certas particularidades morfológicas ao longo do tempo. Uma espécie de caramujo possui conchas lisas nas camadas geológicas mais antigas. Em seguida, as conchas se cobrirão de espinhos cada vez maiores. Nos estratos mais recentes todos os indivíduos apresentarão longos espinhos. Esse fenômeno de microevolução resulta aparentemente de uma seleção progressiva de certas características acontecendo no seio de uma mesma população específica. Inversamente, constata-se mudanças repentinas, uma nova espécie aparece bruscamente nos estratos geológicos e se mantém sem mudanças notáveis durante períodos muito longos. Esse fenômeno de macroevolução é considerado pelos partidários dos equilíbrios pontuados como resultado de barreiras específicas que isolam da população indivíduos pouco numerosos e levam assim a verdadeiras rupturas morfológicas. Uma disciplina articuladora: a biologia da evolução As duas abordagens da evolução que nós destacamos são apropriadas para esclarecer as estreitas ligações unindo os aspectos mais experimentais das ciências biológicas, de uma parte, aos aspectos mais descritivos dos cenários paleontológicos, de outra parte. O estudo da evolução implica efetivamente em: 1. Múltiplas observações que permitam reconstituir os cenários próprios à paleontologia: evolução morfológica das “espécies”, sucessão das “espécies” no tempo (na medida em que seja possível definir uma espécie com base nos fósseis descobertos). 2. Uma teoria das relações que unem os constituintes (os genes) às entidades (as espécies), com a qual se possa definir as relações existentes entre as transformações que afetam o genótipo* (genes e cromossomas) e as conseqüências que isso produz ao nível do fenótipo*, nas características anatômicas, fisiológicas e mesmo comportamentais das diferentes espécies. Os autores não estão todos de acordo sobre a importância relativa das mutações genéticas, das freqüências genéticas observáveis em uma população e dos remanejos cromossômicos (fissões, fusões de partes dos cromossomas). Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 26 3. Uma teoria da relação entre o sistema e seu meio, expresso na seleção natural, tema de difícil domínio. A adaptação é o conceito utilizado pelos biólogos para relatar os efeitos desse fenômeno. As espécies estão adaptadas ao seu meio pois a seleção natural eliminou as fórmulas inviáveis. No entanto a explicação permanece incompleta porque numerosas características específicas são de fato totalmente neutras em relação ao meio. Sua presença se explica pelos seus vínculos com as características realmente selecionadas. S.J. Gould (assim como o próprio Darwin) insistiu em dois princípios que levam à mudança não adaptativa: - Os organismos são sistemas integrados; a mudança adaptativa de um único elemento pode provocar modificações não adaptativas alhures (as “correlações de crescimento”, conforme a expressão de C. Darwin). - Um órgão elaborado, sob a influência da seleção e num contexto específico, pode também ser capaz, segundo a sua estrutura, de cumprirvárias outras funções, totalmente independentes dos fatores responsáveis pela seleção. 4. Uma teoria das relações interindividuais e interespecíficas relacionadas aos problemas de competição. Essas diversas teorias apresentam ainda muitos pontos obscuros. Mas é outro o fato que nos parece o mais importante. As relações entre cenários (história) e teoria (ciências experimentais) só podem ser relações frouxas de plausibilidade, isso por duas razões que nos aproximam dos problemas antropológicos e arqueológicos. - Os restos paleontológicos são limitados e truncados. Como definir efetivamente uma espécie desaparecida com base em alguns ossos ? Com tal base, como distinguir duas espécies próximas uma da outra quando o único critério utilizável nesse caso é fundamentado na impossibilidade de se acasalar ou de procriar descendentes fecundos? E no entanto toda a problemática da evolução apoia-se na questão da especiação. - As leis destacadas em nível teórico são essencialmente leis probabilísticas. Assim, na biologia, a teoria permite compreender globalmente a natureza dos mecanismos envolvidos na evolução, mas muito raramente estabelecer relações de mão dupla entre tal fenômeno paleontológico e tal mecanismo testado experimentalmente. Em outros termos, a teoria não permite predizer* os fatos históricos. Nós ilustraremos essa situação com um exemplo próximo de nosso tema, o problema da hominização. Ao abordar os problemas ligados à compreensão da origem do homem e do processo de hominização, nós insistiremos sobre as dificuldades encontradas na integração dos dados experimentais da genética com os dados da paleontologia e nós veremos que elas não são próprias apenas às ciências biológicas mas aparecem também nas ciências humanas. 1. A restituição dos cenários. As numerosas pesquisas empreendidas no leste da África, na região do Rift Valley, entre a Etiópia, ao norte, e a Tanzânia, ao sul, permitem agrupar os restos de hominídeos* em seis “espécies paleontológicas”: Australopithecus* afarensis ......................................... (5-3 milhões de anos) Australopithecus africanus .................................... (2,7-2,1 milhões de anos) Australopithecus robustus ............................................ (2-1 milhões de anos) Homo habilis* ........................................................ (2,0-1,5 milhões de anos) Homo erectus ......................................................... (1,5-0,5 milhões de anos) Homo sapiens ................................................................. (0,1 milhão de anos) Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 27 Se um certo consenso parece definir-se a respeito desse recorte que permite classificar vários milhares de restos fósseis, no mais das vezes parciais, as opiniões divergem quando se trata de reconstituir as relações de descendência (relações filéticas) entre os diversos grupos. Já se propôs várias maneiras para colocar essas formas na árvore filética dos hominídeos, havendo na atualidade pelo menos acordo quanto a distinguir dois ramos a partir do Australopithecus afarensis, um deles agrupando os Australopitecos, o outro levando ao homem atual, o Homo sapiens, passando pelo Homo habilis e Homo erectus. Em maior escala, outras dificuldades surgem quando se trata de situar os primeiros fósseis a testemunhar uma postura vertical em relação com os diversos modos de locomoção constatados entre os Primatas. As concepções mais comuns evocam um macaco que caminha sobre os quatro membros (os membros anteriores apoiados sobre as faces externas das mãos dobradas), à maneira de um chimpanzé, que um dia se levanta sobre seus membros posteriores. A. Langaney observa no entanto que uma filiação anatômica mais coerente poderia ligar ancestrais que se deslocavam nas árvores, suspensos pelos seus braços (a chamada braquiação) a descendentes bípedes terrestres. Estudos anatômicos recentes mostram, por outro lado, que a locomoção ereta dos mais antigos Australopitecos não era tão perfeita quanto podia-se pensar, e que ela é testemunha, sem dúvida, de uma vida ainda parcialmente arborícola, comportando deslocamentos por braquiação. Em oposição ao fenômeno macroevolutivo representado pela aquisição da locomoção terrestre ereta, o crescimento do cérebro pode ser considerado como um fenômeno microevolutivo progressivo e independente. Entretanto, junto aos mamíferos, o tamanho do cérebro é dependente do tamanho do animal. Essa relação diminui a importância do aumento do volume do cérebro na linhagem humana porque sabe-se que há aumento do tamanho do corpo (mesmo sendo o homem uma das espécies que mais se distancia das retas de regressão habituais). De fato, o fenômeno importante é menos o aumento do volume cerebral do que a complexificação e extensão de sua superfície (o neocórtex) que se dobra progressivamente em numerosas circunvoluções. Essa maneira de não mais vincular de forma estrita a aquisição da postura vertical e o crescimento do tamanho do cérebro permite que tomemos uma certa distância do modelo, bastante mecanicista, da relação postura vertical – cerebralização exposto por A. Leroi-Gourhan em seu livro O gesto e a palavra (Le geste et la parole), modelo fundamentado no reconhecimento de um equilíbrio adaptativo. Uma explicação que privilegia esse aspecto corre pois o risco de tornar-se rapidamente tautológica. Ela negligencia o fato de que a evolução não é unicamente um processo de seleção adaptativa e que ela deve requerer igualmente outros tipos de explicações. 2. Teorias das relações genótipos-fenótipos. A primeira questão que se coloca a respeito das relações entre o genótipo* e o fenótipo* (a espécie com suas características morfológicas, fisiológicas e comportamentais) é a questão da especiação humana. Quando se compara os diversos tipos cromossômicos dos primatas (ou seja, os diversos cariótipos*), percebe-se que o primata mais próximo do homem é o Chimpanzé. Somente uma dezena de remanejos cromossômicos nos separa efetivamente de nosso primo. Os geneticistas se perguntam se a especiação assenta-se sobre os remanejos cromossômicos ou sobre as mutações dos genes. Segundo B. Dutrillaud, que estudou essas questões em Primatas, a justaposição entre um cariótipo e uma dada espécie acontece apenas em 50% dos casos. Sendo a evolução dos cariótipos freqüentemente paralela àquela das espécies, é então Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 28 provável que as modificações cromossômicas assumam um papel na especiação. Mas essas modificações não são indispensáveis e, além do mais, não determinam obrigatoriamente uma nova espécie. À incerteza ligada à avaliação do papel dos remanejos cromossômicos na especiação humana acrescenta-se uma outra limitação importante. Não é, com efeito, possível fixar as transformações reconhecidas entre a linhagem que leva ao Homem e aquela que leva ao Chimpanzé. Estudos bioquímicos permitem, em compensação, precisar alguns pontos históricos. Apesar das características fenotípicas* exteriores muito diferentes, o homem difere pouco, em certas características bioquímicas, de seus primos Pongídios (o Orangotango, o Gorila e o Chimpanzé). O estudo dos aminoácidos, que são a expressão bioquímica dos genes, mostra com efeito que nós somos idênticos em mais de 99% aos grandes símios africanos, chimpanzé e gorila, não obstante as diferenças morfológicas evidentes. Esse relógio molecular (essas transformações intervêm num certo ritmo) permite dizer que a linhagem humana (compreendendo o gênero Homo) separou-se dos grandes símios africanos (chimpanzé, gorila) há cerca de 5 a 6 milhões de anos. No estágio em que se encontra nossa compreensão da hominização, nós constatamos que é impossível integrar num todo coerente os dados dos cenários históricos e as informações fornecidas pela genética e pela bioquímica comparada dos Primatas. 3. Relação entre a especiação humana e o meio. Os paleontólogos adoram os modelos simples que estimulam a imaginação. Uma das idéias preconcebidasmais divulgadas propõe ligar a aquisição da postura terrestre vertical a uma mudança de meio ecológico. A aparição desse modo de locomoção (próprio da linhagem humana e dos Australopitecos) seria conseqüência do desaparecimento do meio florestal, da transição para um ambiente aridificado e o desenvolvimento da estepe. Ela estaria ligada a uma mudança climática. À África Oriental, estépica, pátria dos Hominídeos, faria contraponto a África florestal, pátria dos Pongídios. Deve-se sublinhar no entanto que numerosas espécies de primatas estão perfeitamente adaptadas a meios abertos, com pouca floresta, e que nem por isso deixam de possuir uma locomoção quadrúmana. Os mecanismos seletivos que permitiram a postura vertical não podem portanto ser reduzidos a um simples determinismo do meio natural e provavelmente devem muito a essa “liberdade” que a evolução preserva frente ao meio ambiente. 4. Relações de competição entre espécies. Os dados da paleontologia permitem afirmar doravante que várias espécies distintas de Hominídeos tiveram que viver na mesma época na África Oriental. Essa constatação levanta o problema da competição entre espécies, particularmente entre Australopithecus e Homo. As pesquisas efetuadas nesse sentido permanecem ainda embrionárias e se orientam principalmente para a questão dos regimes alimentares dos primeiros Hominídeos*. O estudo das marcas de uso visíveis nos dentes mostra que o Australopithecus afarensis era essencialmente vegetariano, mas que seu espectro alimentar era bastante amplo, indo das matérias vegetais coriáceas aos grãos e aos frutos. Uma especialização mais estreita em um regime vegetariano é encontrada nos enormes molares do Australopithecus robustus. A linhagem Homo se caracteriza, em contrapartida, por uma alimentação omnívora. Podemos nos perguntar se Australopithecus e Homo ocupavam nichos ecológicos distintos, ou se houve realmente competição que levou ao desaparecimento dos Australopitecos. Seria tentador, nessa perspectiva, confrontar o Homo, generalista ecológico, ao Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 29 Australopithecus, especialista ecológico. O primeiro poderia se satisfazer em diversos ambientes; o segundo estaria ligado, ao contrário, a ambientes naturais mais restritos. 2. Teoria da evolução cultural e história das ciências na antropologia Nós abordamos a questão da evolução biológica porque pensávamos que ela poderia esclarecer as questões das relações entre ciência e história. Podemos então nos inspirar no que foi dito para compreender o funcionamento da evolução das sociedades humanas ? Ao faze- lo, não queremos de nenhuma maneira transferir o modelo biológico para o terreno cultural – cada disciplina deve definir, com efeito, suas próprias regras de abordagem – mas insistir na articulação necessária entre etnologia e história. Nós poderíamos aqui destinar às sociedades observadas pelo etnólogo ou pelo arqueólogo a posição ocupada pelas espécies no modelo biológico, e distinguir teoria da evolução cultural e história das sociedades (Fig. . 22). Indo além na comparação, as sociedades humanas seriam as entidades do sistema*, enquanto que os traços culturais representariam os componentes. A geração “aleatória” dos traços culturais (sejam esses últimos inventados localmente ou tomados do exterior) forneceria então as bases da evolução cultural. Entretanto várias características separam nitidamente os sistemas culturais dos sistemas biológicos. Nós destacaremos aqui as três mais fundamentais: - Contrariamente às espécies animais ou vegetais, todas as civilizações podem se hibridar. As fronteiras culturais não são tão restritas quanto as fronteiras específicas. - É difícil conceber a invenção como um fenômeno puramente aleatório. A invenção inscreve- se efetivamente no vetor das pressões seletivas (a invenção é funcional) e insere-se na maioria das vezes na seqüência lógica de antecedentes historicamente evidenciáveis. A invenção é com freqüência uma nova síntese de elementos preexistentes, ela é um bricolage no melhor sentido do termo, mesmo se alguns a consideram como uma ruptura radical com o passado. - A teoria da evolução cultural deveria ser lamarckiana e não darwiniana. A educação garante efetivamente a transmissão das “características adquiridas” de uma geração a outra. Toda invenção pode ser imediatamente transmitida. O caráter cumulativo das inovações explica a extraordinária rapidez da evolução cultural em contraste com a lentidão da evolução biológica. Nossas referências à biologia deveriam permitir distinguir teoria antropológica, de um lado, cenários da história, de outro lado, sendo assegurada a articulação entre os dois terrenos pelo conceito de sociedade. A antropologia atual, infelizmente, está longe de possuir o arsenal teórico da biologia; nós deveremos assim limitarmo-nos às questões referentes às relações entre as regularidades, que se impõem ao observador das sociedades, e aos cenários, reconstituídos pelo historiador. Cenários e regularidades As considerações precedentes mostram que, ao menos num primeiro momento, nós podemos limitar nossas ambições antropológicas e colocar provisoriamente entre parênteses a busca pelas leis que governam os assuntos humanos. Do ponto de vista prático, nós pensamos ser útil distinguir os cenários estabelecidos a partir da descrição da realidade no plano geográfico e/ou histórico das regularidades que podem ser induzidas desses cenários. Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 30 Pode-se admitir que os cenários se desenvolvem segundo trajetórias aleatórias em virtude da impossibilidade prática de isolar todas as causas que podem influenciar as trajetórias históricas e todas as interações que vinculam esses fatores. É certamente possível evidenciar regularidades nos cenários, mas é importante sublinhar aqui – todas as considerações precedentes o mostram – que essas regularidades não se devem unicamente ao determinismo da influência do “meio”, meio natural, por um lado, meio constituído por sistemas de natureza e estrutura comparáveis, por outro. A seleção e a adaptação são apenas uma das causas dessas regularidades. Outras procedem de uma lógica diferente, independente das imposições adaptativas e característica da própria estrutura dos sistemas. A oposição cenário – regularidade não se superpõe então à oposição acaso – necessidade de Jacques Monod. Essa distinção estabelecida corresponde, de fato, às duas etapas da pesquisa, onde pode-se reconhecer dois tipos de operações intelectuais: a descrição da realidade (os cenários) e a interpretação dessa última (as regularidades). Pode-se reconhecer aqui a distinção estabelecida por J.-C. Gardin entre construção compilatória e construção explicativa. Em seu livro Uma arqueologia teórica (Une archéologie théorique), Jean-Claude Gardin (1979) busca racionalizar os vínculos que unem a descrição dos fatos arqueológicos à sua interpretação e estabelece, assim, as bases lógicas dos procedimentos de retrodição* na arqueologia. Ele distingue três etapas na compreensão dos fatos arqueológicos que geram três tipos de construções. A primeira etapa corresponde à descrição dos materiais e gera construções compilatórias. A segunda etapa é a classificação dos dados e culmina em construções tipológicas. A terceira etapa corresponde à interpretação dos dados e se traduz em construções explicativas. Essa última etapa é particularmente interessante porque implica justamente em uma comparação entre dados descritivos do campo estudado (nossos cenários) e os dados exteriores referenciais (nossas regularidades). A explicação torna-se então um simples procedimento de transferência de atributo, desde o campo de referência até o campo em estudo, sendo o atributo o significado que se dá ao objeto analisado. Essa operação comporta, por sua vez, duas etapas. A primeira consiste em aproximar o objeto estudadode um objeto exterior, que se julga idêntico ou comparável. Essa operação sustenta então como hipótese a existência de certas regularidades. A segunda etapa consiste em transferir os significados associados ao campo de referência para o objeto estudado e pode ser considerada como a operação de retrodição propriamente dita (Fig. 23). Gardin dá o seguinte exemplo: Descreve-se uma representação em uma estela: sobre seu punho enluvado, um personagem retém um grande pássaro, a outra mão não está enluvada. 2. Associa-se essa representação a um campo de referência euro-asiático, onde, conforme se sabe, os falcões são utilizados para caçar e são mantidos sobre o punho. Formula-se então a hipótese que o objeto descrito pertence ao campo de referência. 3. Deduz-se, por transferência de atributo, que o pássaro representado na estela relaciona-se provavelmente com a caça. Nós podemos desde já formular as seguintes observações: 1. Para os nossos propósitos, os cenários são cenários da história. As regularidades subjacentes são aquelas da antropologia (ou da etnologia). Mas essas últimas permanecem – no estágio pré-científico que caracteriza atualmente nossas disciplinas – referências não “explicadas” ou só parcialmente “explicadas”. Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Dell Highlight Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 31 2. A oposição é uma oposição relativa. Mostraremos efetivamente em seguida que se passa progressivamente da descrição à interpretação. Nas duas extremidades se situam, de um lado, cenários pontuais, originais e únicos em última instância, e, de outro, regularidades universais aplicáveis ao conjunto da humanidade. A passagem dos cenários às regularidades comporta, de uma parte, uma limitação cada vez maior dos traços descritivos pertinentes e, de outra parte, uma ampliação do contexto espacial e/ou temporal de referência (Fig. 24). O jogo pode ser jogado no sentido indutivo: a confrontação de cenários distintos permite isolar os traços pertinentes comuns a um conjunto de cenários, em oposição a outros traços, próprios a outro conjunto. Mas podemos também jogar no sentido dedutivo: partimos dos traços julgados universais, ou ao menos gerais; a aplicação à realidade permite ou validar a hipótese, ou invalidá-la. Em caso de teste negativo, o enriquecimento da descrição permite observar uma melhor adequação às diversas realidades. Um exemplo da dialética cenários – regularidades pode ser oferecido ao tratar-se do papel atribuído à irrigação no desenvolvimento de sociedades com classes sociais hierarquizadas. Numerosas sociedades agrícolas de diversos continentes recorreram a sistemas de canalização mais ou menos complexos para levar água às lavouras. A maioria das grandes civilizações urbanas antigas na Mesopotâmia, na China, no México ou no Peru possuíam tais sistemas. Por outro lado, elas são descritas como sociedades hierarquizadas apresentando desigualdades na repartição das riquezas. Reencontramos redes de irrigação igualmente em sociedades não urbanas, de tipo chefia*, que também apresentam uma hierarquização social. Para o problema de saber se existe uma relação entre esses dois fenômenos e em que condições essa relação poderia ter surgido, é possível responder com uma abordagem dedutiva (do geral para o particular) ou indutiva (do particular para o geral). Ainda que as duas abordagens estejam sempre intimamente ligadas, pode ser útil, do ponto de vista didático, separá-las. Jogo dedutivo. O jogo dedutivo parte da hipótese de uma relação universal entre os dois fenômenos. O modelo das sociedades hidráulicas de K. A. Wittfogel (1972) representa aproximadamente esse grau de generalização. Segundo esse autor, a irrigação necessita um poder gestionário centralizado e consequentemente contribuiu intensamente para a emergência de classes sociais dominantes (as elites). Essa autoridade política se manifesta efetivamente em três planos: A elaboração e construção da rede de irrigação que demanda uma ampla planificação e o controle de equipes importantes. A manutenção dos canais, a qual é obrigatoriamente um trabalho coletivo. A distribuição e a repartição equivalente da água nas diferentes parcelas de terreno. A complexidade dos sistemas físicos dos canais com suas ramificações gera obrigatoriamente conflitos que necessitam de mediadores. Em última instância, a elite “presta serviço” à sociedade ao contribuir para o bom funcionamento de suas engrenagens. Essa relação unívoca e universal pode naturalmente ser contestada porque sociedades hierarquizadas não são obrigatoriamente ligadas a economias agrícolas que utilizam a irrigação , decorrendo daí a necessidade de enriquecer o conteúdo da relação, até agora reduzida à parelha irrigação – desigualdade social. É o que faz A. Gilman (1981), ao ampliar o campo de referência para o conjunto das técnicas de subsistência intensivas que necessitam de um investimento humano importante. Constata-se com efeito uma certa correlação entre as sociedades estratificadas e diversas estratégias econômicas intensivas, tais como a irrigação (caso mencionado por K. A. Wittfogel), a policultura (sociedades do Bronze antigo egeano), a Gallay, Alain. L’archéologie demain. Tradução: E. Fogaça, 2002. 32 agricultura em terrenos que demandam uma importante preparação prévia (organização das parcelas, construção de terraços etc), enfim a pesca em alto mar e a caça intensiva de mamíferos marinhos (chefias da costa noroeste na América do Norte). Segundo esse autor, os investimentos econômicos implicados nessas tecnologias contribuem para a coesão de sociedades cujos membros não podem esquivar-se da dominação e da exação por parte de uma classe social elitizada fragmentando-se e dispersando-se em pequenos grupos, ou emigrando para outras terras. Nesses caso a relação entre técnica de subsistência intensiva e aparição de uma elite não é direta mas permanece, diga o que disser A. Gilman, uma interpretação funcionalista (a função adaptativa determina a forma da sociedade). O jogo pode continuar em direção à base, se demonstrarmos que existem casos onde sociedades não hierarquizadas praticam a irrigação, como na Nova Guiné, ou se descobrirmos sociedades hierarquizadas que não praticam nenhuma técnica de subsistência intensiva, como é o caso em certas zonas da África Ocidental. Com efeito, observa- se nessa região chefias relacionadas a uma agricultura simples, baseada no uso da enxada, que não demanda nenhum investimento a longo prazo. Jogo indutivo. As dificuldades ligadas ao jogo dedutivo mostram que pode ser útil jogar também o jogo indutivo. Os estudos de caso revelam efetivamente que é pertinente distinguir vários tipos de irrigação. Um bom exemplo desse tipo de abordagem é o estudo de T. K. Earle (1977) sobre as chefias* do Hawai. Nessa ilha, os chefes formam uma classe social totalmente separada do povo e endogâmica. Essa elite mantém contatos sócio-econômicos intensos com seus homólogos das outras ilhas, mas não se ocupam em nenhum caso com a planificação nem com o controle da irrigação. A ilha é composta por várias comunidades econômicas justapostas que ocupam diversos vales. Essas últimas são bastante autônomas porque têm acesso, cada uma, a uma porção dos diferentes nichos ecológicos: montanha, planície aluvial, costa com acesso ao mar, zonas de recife em águas rasas e, naturalmente, o alto mar. O sistema de irrigação relacionado com a cultura do taro (nome polinésio para a Colocasia esculenta, tubérculo que constitui a base da alimentação) é um sistema em pequena escala, próprio de cada comunidade de subsistência que não demanda nenhuma gestão centralizada. As construções (diques, canais etc) são de pequenas dimensões e não ultrapassam as possibilidades técnicas de qualquer camponês. O próprio sistema não é planificado, não necessita de um planejamento prévio do conjunto e se desenvolve por ampliação gradual a partir de dispositivos geograficamente pouco extensos.
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