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Introdução Este livro traduz uma experiência de quase duas décadas no campo do ensino e da investigação científica, nos cursos de graduação e de pós-graduação das Faculdades de Direito em que tenho tido a honra de lecionar. Ao elaborá-lo, sempre tive em mente produzir um instrumento de trabalho que fosse útil ao estudo, à pesquisa, ao raciocínio e à reflexão jurídica dos estudantes, a quem o dedico e ofereço como reconhecimento ao incentivo que deles sempre recebi. Justifica-se, assim, a minha preocupação em oferecer não só um texto claro e conciso, embora sem concessões à superficialidade, como também atualizada informação jurisprudencial e bibliográfica que permita conhecer os modos de realização prática do direito e o processo de renovação científica por que passa o direito civil contemporâneo. Sendo uma introdução ao estudo do direito civil, tem como objetivos básicos: a) iniciar no estudo e na análise das noções, categorias e princípios estruturais que formam a doutrina do direito civil; b) orientar no conhecimento da técnica jurídica, isto é, na arte de aplicar o direito civil aos problemas da vida real, procurando integrar o conhecimento científico com a prática de nossos tribunais; c) contribuir para a formação jurídica do aluno, por meio de uma perspectiva interdisciplinar que possa facilitar a compreensão do fenômeno jurídico; d) suscitar uma reflexão teórica sobre a necessidade de renovação do direito civil, acompanhando o processo de mudança por que passa atualmente o direito, por força das transformações econômicas e sociais que se processam na sociedade contemporânea. O direito civil é o direito comum, é o direito que se aplica à generalidade das pessoas e das relações jurídicas de natureza privada. Compreende uma parte de direitos pessoais, que protegem a pessoa humana e sua família, uma parte de direitos patrimoniais, pertinentes à atividade econômica, à propriedade dos bens e à prestação de serviços, e ainda uma terceira, de importância crescente na teoria e na prática, que é da responsabilidade civil, cujas normas disciplinam a indenização do dano alheio. Configura-se, portanto, como a regulamentação jurídica da sociedade civil, assim entendido o universo social em que se desenvolvem as relações de natureza familiar e econômica, com base na igualdade jurídica e no poder de autodeterminação das pessoas, com as limitações decorrentes da atuação jurídica dos demais componentes sociais. O seu estudo científico, indispensável à atividade dos profissionais de direito, deve levar em conta, porém, as condições políticas, econômicas e sociais que determinaram ou influíram no seu processo de formação histórica e cultural, assim como as funções que pode desempenhar na solução dos problemas típicos de uma sociedade em desenvolvimento, tendo presentes os valores e os princípios que lhe servem de fundamento e lhe conferem legitimidade. E por isso conveniente, se não necessário, articular a ciência do direito, e, particularmente, o direito civil, com as demais ciências sociais, de modo a compreender melhor o que realmente seja o direito civil. E, nesse processo interdisciplinar, ressalta a importância da história das instituições jurídicas, pois quem não tiver a percepção do sentido histórico do direito só pode ter dele uma visão estática. O direito é uma regulamentação da vida que arranca da realidade, inter-relacionando-se com outros sistemas de valores para a solução dos conflitos de interesses. O recurso às ciências sociais, por meio de um processo interdisciplinar, permite ainda inserir o direito civil, que é um direito de formação histórica e jurisprudencial, em uma perspectiva global da cultura, superando-se, desse modo, o mito da neutralidade científica tão caro ao positivismo e ao formalismo, tradicionalmente imperantes em nossos meios jurídicos. E também se aproxima o direito da realidade concreta, donde provém e à qual se destina, como um dos mais credenciados instrumentos de transformação social de que o homem dispõe. Essa articulação do direito, enquanto ciência relativamente autônoma, com a história e as demais ciências sociais (sociologia, economia, antropologia), leva também a urna percepção crítica do fenômeno jurídico, no sentido de o jurista considerar as condições políticas, econômicas e sociais que determinam ou condicionam as normas jurídicas, do que resulta poder verificar-se a sua adequação aos modelos da sociedade contemporânea. Coerentemente com tal concepção, conjugam-se neste livro: a) uma perspectiva científica, segundo a qual o direito civil se estuda por meio dos seus conceitos, categorias e estruturas fundamentais, assim como na realização de suas normas; b) uma perspectiva sociológica, que considera as funções do direito civil na sociedade contemporânea e c) uma perspectiva filosófica, que identifica os valores e os princípios que o fundamentam e legitimam. Tais dimensões permitem ao estudioso aprender de modo abrangente e aprofundado a experiência jurídica no campo do direito civil, entendendo-se como tal o conjunto de manifestações jurídicas com que se têm solucionado, no curso de sua existência, os conflitos de interesses que a vida em sociedade faz nascer. No que, particularmente, diz respeito à vertente científica, preocupa-se o autor em expor a matéria que constitui a chamada teoria geral do direito civil, e que se concretiza nas normas e institutos da Parte Geral do Código Civil, com a jurisprudência que resulta de sua aplicação concreta aos casos da vida real. No desenvolvimento dessa matéria adotam-se orientações metodológicas consagradas, segundo as quais pode-se estudar o fenômeno jurídico sob a perspectiva da norma jurídica, da relação jurídica e da instituição jurídica, integrando-as, porém, na visão global e mais elevada, que é a da experiência jurídica, expressão nacional do modus vivendi da nossa sociedade, no curso de sua existência. Para os que adotam a primeira perspectiva, o direito é essencialmente norma, regra de comportamento criada pelo Estado para resolver conflitos de interesses. O direito vale porque imposto pelo Estado, considerado como sua fonte exclusiva. Teoria mais identificada com o direito público, tem conotação essencialmente política, devendo refutar-se no que tem de extremado quando considera o Estado como fonte exclusiva da criação jurídica, concepção monista há muito superada. Para a teoria da relação jurídica, que preferencialmente se adota, embora consciente de suas limitações críticas, o direito é um sistema de relações juridicamente disciplinadas e ordenadas pelas regras jurídicas. Seu conceito fundamental é a relação intersubjetiva, que tc'in como idéia-chave a autonomia privada, poder dos particulares dr criar relações jurídicas e estabelecer-lhes o respectivo conteúdo (direitos e deveres). A teoria da instituição é outro endereço metodológico de estudo do fenômeno jurídico, também afim ao direito público. Para seus defensores (Hauriou, Renard, Santi Romano, etc.), o direito é, essencialmente, organização, estrutura, enfim, instituição, que se define como grupo social, dotado de uma ordem jurídica e uma organização específica. A instituição nasce de uma idéia que se realiza através de uma ordem e de uma organização jurídica, tendo uma existência objetiva e concreta, exterior e visível1. A concepção do direito como experiência jurídica, compreensiva das demais perspectivas, traduz a atividade humana em todos os sentidos e em todas as manifestações que configuram o lado humano da história, e representa o esforço máximo realizado pelo pensamento jurídico mais atual, para reunir e organizar o que se costuma chamar de vida do direito.2 Pode-se, assim dizer, que nenhuma dessas perspectivas anula as demais, sendo apropriado salientar que elas não se excluem, antes se completam, constituindo-se, porém, a norma de direito em condição necessária e suficiente para o relacionamento jurídico das pessoas ea organização e disciplina da sociedade. Tratando-se aqui de uma introdução ao direito civil, segue, entretanto, este livro, a perspectiva ainda dominante nessa matéria, que é a da relação jurídica, embora ciente das críticas atuais a tal conceito, que tem como referencial básico a experiência privada, "na qual a vida jurídica se apresenta, principalmente, como um conjunto de relações que a norma jurídica estabelece de modo típico e comum, e das quais a autonomia dos particulares estabelece o conteúdo preceptivo".3 A ordem seguida na explanação da matéria é coerente com a perspectiva adotada. Tomando-se por base a relação jurídica, expõem-se os respectivos aspectos doutrinários e normativos que se -------- 1 Santi Romano. L'ordre Juridique (Paris, Dalloz, 1975) p. 26. 2 Ricardo Orestano. Inlroduzione alio studio dei diritto romano (Bologna, II Mulino, 1987) p. 360. 3 Sergio Costa. Prospective di Filosofia del direito. 2. ed. (Torino, Giappichclli, 1974 n. 50. -------- sistematizam em torno dos seus elementos fundamentais, a saber: os sujeitos, o vínculo, o objeto e a sua causa determinante, os fatos jurídicos. O primeiro capítulo contém noções de sociologia e de filosofia do direito, dedicando-se ao conceito e às funções do direito em geral e, particularmente, às do direito civil, explicitando os seus valores fundamentais. O segundo capítulo dedica-se à teoria geral da norma jurídica de direito privado, expondo as diversas concepções teóricas acerca de sua natureza, estrutura, aplicação e classificação. O terceiro capítulo apresenta verdadeiramente o direito civil, estudando-o na sua gênese, caracterização e processo evolutivo, indicando-se ainda o seu conteúdo, isto é, as instituições fundamentais que sua disciplina contém. O capítulo quarto dedica-se à relação jurídica de direito privado, desenvolvendo-se como o estudo pormenorizado do seu conceito, fundamento doutrinário, importância atual, estrutura, conteúdo e espécies. Os capítulos subseqüentes dizem respeito aos elementos da relação, vale dizer, os sujeitos (as pessoas), o objeto (os bens), assim como os acontecimentos que os determinam (os fatos jurídicos), formulando com os princípios fundamentais que lhes são inerentes, uma teoria da personalidade, uma teoria do patrimônio e uma teoria do negócio jurídico. Com esse material doutrinário, que deve alimentar-se permanentemente com a consulta ao código e à jurisprudência, em um processo de enriquecimento recíproco da teoria com a prática jurídica — pois o direito é expressão inseparável da vida social, a cuja organização e disciplina se destina — acredito poder colocar à disposição dos meus alunos e dos estudiosos em geral um instrumento de trabalho para a pesquisa e a reflexão científica sobre o direito civil, que ainda se constitui na principal esfera de afirmação da personalidade humana e de realização dos seus mais legítimos anseios de liberdade e de igualdade material. CAPÍTULO I O Direito. Estrutura. Funções. Fundamento. Sumário: 1. O direito. Significados e perspectivas de estudo. 2. O direito. Gênese e estrutura. 3. As funções do direito. 4. O fundamento do direito. Os valores. 5. A justiça. 6. A segurança. 7. O bem comum. 8. A liberdade. 9. A igualdade. 10. A teoria do direito civil. 11. O direito civil como norma jurídica. 12. O direito civil como relação jurídica. 13. O direito civil como instituição. 14. Apreciação crítica. 15. O direito como sistema. O sistema de direito civil. 16. O método adotado. 17. O direito e a justiça. Jusnaturalismo e positivismo jurídico. 18. A metodologia da realização do direito. A decisão justa do caso concreto. 1. O direito. Significados e perspectivas de estudo. A palavra direito pode ter vários significados. É um termo po-lissêmico, donde a dificuldade de uma definição única1. --------------- l Definir o direito não é tarefa do jurista, mas do filósofo. Do primeiro espera-se que declare o que é direito (quid iuris), do segundo, o que é o direito (quid ius). Cfr. Alain Seriaux, in Droits, n2 10, p. 85. E útil, porém, ao civilista, fornecer algumas noções básicas e introdutórias, como é o conceito de direito, pressuposto de sua exposição. Cfr. Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, p. 16, Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito, p. 47. O problema da dc-l inição do direito surge na cultura jurídica moderna, como resultado do processo de posilivação, c ligiulo il idéia de que o direito pode ser estudado e classificado por meio de instrumentos análogos aos que estudam e classificam os fenômenos naturais. Cfr. Giorgio Rebuffa, Dirino, in Digesto delle Discipline Privatistiche, p. l e segs. 2 Manuel Atienza, Juridicité, in Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit, p. 322; Luiz Dicz Picazo, Experiências Jurídicas y Teoria dei Derecho, 1993, p. 6. André — Jcan Arnaud / Maria Josó Farinas Dulce, Sistemas Jurídicos: Elementos para uma análise sociológica, p. 250. --------------- Na acepção mais comum e freqüente, usa-se para designar o conjunto de prescrições com que se disciplina e organiza a vida em sociedade, prescrições essas que encontramos formuladas e cristalizadas em regras dotadas de juridicidade, isto é, de caráter jurídico, o que as diferencia das demais regras de comportamento social e lhes confere eficácia garantida pelo Estado. A juridicidade, conceito novo na ciência do direito, significando o atributo que diferencia a regra do direito das demais regras de comportamento social, serve de fronteira entre o jurídico e o não jurídico, caracterizando as normas que pertencem aos sistemas de direito, conjuntos de princípios e regras dotadas de legitimidade e obrigatoriedade2. Essas regras ou normas estão nas leis, nos costumes, na jurisprudência, nos princípios gerais do direito, constituindo o chamado direito objetivo, de ob + jectum, exterior ao sujeito, e positivo, no sentido de que é posto na sociedade por uma vontade superior. E o ius in civitate positum. E neste sentido que se utiliza para designar o direito vigente, por exemplo, o direito brasileiro, o direito civil, o direito penal etc. Toma-se aqui o direito corno conjunto de regras jurídicas. Em outra acepção, ligada à primeira e dela dependente, direito designa um poder que o sujeito tem de agir e de exigir de outrem determinado comportamento. É o chamado direito subjetivo, de sub + jectum, reconhecido e garantido pelo direito objetivo, como por exemplo, o direito de propriedade, o direito do consumidor, o direito do inquilino, do credor, do possuidor, etc. Em perspectiva mais idealista e menos freqüente, traduz um sentimento de justiça. Quem diz "não é direito o que fazem comigo", ou "isso não está direito", refere- se a um comportamento injusto. Neste caso, direito é expressão de justiça. Em outro sentido, ainda, designa a ciência jurídica, o conjunto de conhecimentos teóricos e práticos que têm como objeto o próprio direito como ordem social, na sua estrutura e função, nos seus métodos de elaboração e realização e nos seus fundamentos, enfim, na fenomenologia da sua existência, validade e eficácia3. Essa polissemia, que produz uma certa ambigüidade, dificultando uma definição precisa do direito, revela a complexidade do mundo jurídico, que é plural e diverso, como se pode verificar no curso de sua história, sendo exemplo, no ordenamento medieval, o direito dos feudos e das corporações, e hoje em dia, a multiplicidade de fontes, de sistemas e de meios de solução de conflitos (direito comunitário, direitos especiais etc.). Notas incontroversas do direito são o seu caráter humano e social4 porque ele existe em razão dos homens que se relacionam entre si. Onde houver sociedade, lá estará o direito (ubi societas, ibi ius] que, reciprocamente, também a pressupõe (ubi ius, ibi societas), sendo inconcebível uma regra jurídica que não a tenha como referência. Regulando os comportamentos humanos e sociais,é também modelo de organização social que se formaliza e estrutura segundo determinados critérios, os chamados valores, dos quais o mais importante é, para nós, a justiça. A par da humanidade e da socialidade, uma outra característica é a sua normatividade, isto é, o direito como regra ou norma5 dotada de juridicidade, própria da concepção normativista que domina a teoria jurídica, e orienta o raciocínio dos juristas que buscam soluções para os conflitos de ------------------- 3 Reale, op. cit., p. 61/64, Simone Goyard — Fabre, Lês grandes questions de Ia phílosophie du droit, p. 9. Maria Helena Diniz, A ciência jurídica, p. l e segs. 4 Digesto, 1.5.2. "... hominum causa omne ius constitutum sit, ..." 5 Ângelo Falzea, Introduzione alie scienze giuridiche, p. 16. A opinião amplamente dominante na doutrina é a da norma como sinônimo de regra. Cf. Reale, op. cit., p. 65/67; Mario Jori, Norme, e Jerzy Wroblewski, Règle, in Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie du droit, p. 399 e 520; Ricardo Guastini, Norma giuridica, in Digesto delle Discipline Privatistiche, XII, p. 155. Norberto Bobbio, Norma giuridica, in Novíssimo digesto italiano, XI, p. 330 e segs.; Franco Modugno, Norma giuridica. Teoria generale, in Enciclopédia dei diritto, XXVIII, p. 238; Jacques Guestin et Giles Goubeaux, Traité de Droit Civil. Introduction Generale, p. 5, nota 7, onde se reafirma que norma e regra usam-se como sinônimos, embora possa reconhecer-se na regra um caráter mais geral e abstrato, e na norma uma dimensão mais individual e concreta. Cfr. ainda, Jean François Perrin, Règle, in Archives de Philosophie du Droit, tome 35, p.245, e Karl Larenz, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1991, p.297 e segs. (há tradução portuguesa de José Lamego, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991), o Álvaro D'Ors. Una inlroducción ai estúdio dei de.recho, p. 24. ------------------- interesses, e constróem, com o seu trabalho, a chamada experiência jurídica de um povo.6 O direito apresenta-se, então, como um ordenamento jurídico, um conjunto de normas que rege uma comunidade7 impondo ou oferecendo modelos de comportamento. Se a polissemia do termo torna difícil uma definição única do direito, pode-se, todavia, tentar compreendê-lo no processo de sua formação histórica. O direito, particularmente o direito civil, vem se formando ao longo dos séculos como inerente à vida e à cultura dos povos, tendo como sentido e razão de ser a solução de conflitos, do que resulta o caráter de sua problematicidade, vale dizer, a sua função de pensamento chamado a resolver questões jurídicas concretas.8 É um produto histórico, que se forma ao longo dos tempos, corno cultura e como processo de solução de controvérsias, que vai da previsão dos conflitos, pela tipicidade estabelecida nas regras, até chegar a uma institucionalização dos órgãos e dos critérios de decisão, critérios esses ditados pela ética da comunidade a que se destina. Como cultura, exprime valores espirituais da sociedade humana, sendo por isso, também, fenômeno cultural. Como processo de solução de conflitos, é uma técnica a serviço de uma ética. Para a concepção normativista (o direito essencialmente como norma), surgem várias perspectivas de estudo. Tem-se, em primeiro lugar, a perspectiva científica, a da ciência do direito, "conjunto de conhecimentos ordenados segundo princípios" e com método próprio. Ocupa-se da estrutura do direito, vale dizer, de suas normas, institutos, conceitos e categorias, material com que trabalha a doutrina jurídica no processo de análise, interpretação e aplicação das regras. Estuda o direito que é, o direito positivo. Em segundo lugar, ------------- 6 Reale. O Direito como Experiência, p. XXXII, e segs; Diez-Picazo, op. cit. p. 10; Ricardo Orestano, Introduzione alio studio dei diritto romano, p.357. 7 A crítica que se faz hoje a essa concepção, o direito como norma, é no sentido de que nos revela algo já pré-estabelecido, as regras jurídicas, e posto como ponto de partida para a técnica de aplicação do direito. A essa concepção contrapõe-se a idéia de que o direito é mais do que normas, é uma prática social, um processo permanente de construção, sob a influência de considerações ético-jurídicas. Cfr. Ronald Dworkin, Talking Rights Seriously London, 1977; Francisco Viola, // diritto come pratica sociale, 1990, p. 159. 8 Antônio Castanheira Neves, Metodologia Jurídica. Problemas fundamentais, p. 71. ------------- a perspectiva sociológica, da sociologia do direito, que estuda a relação direito- sociedade, preocupando-se com a eficácia e as funções das normas jurídicas, mais propriamente, com a análise sociológica dos sistemas jurídicos, o que lhe permite apreciar o sistema em sua totalidade e em relação com o seu contexto.9 Interessa-se pelo que o direito deve ser. Em terceiro lugar, a perspectiva filosófica, que se ocupa dos fundamentos da ordem jurídica, vale dizer, dos valores que lhe dão sustentação e legitimidade, e dos quais, os mais importantes são a justiça, a segurança e o bem comum. Estuda o fundamento do direito, dando ênfase à justiça como especial valor a realizar. E ainda a perspectiva histórica, que permite conhecer a gênese e evolução das instituições jurídicas, matéria objeto da história do direito. Estuda como o direito se formou, ao longo dos séculos. Temos ainda, diretamente relacionada com a ciência e a filosofia do direito, a perspectiva metodológica, com importância crescente no estudo dos processos de aplicação e de realização do direito. A metodologia jurídica, não como disciplina autônoma,10 mas como proposta de reflexão filosófica sobre o processo de realização do direito, não procura somente definir técnicas ou estabelecer regras instrumentais para aplicá-lo, mas também refletir sobre ele de modo crítico, vendo-o mais como prática social e prudência! do que como conjunto de regras vigentes em determinada sociedade. Para seus cultores, o direito é um pensamento que se destina a resolver problemas práticos, configurando-se mais como "ciência de decisão" do que como "ciência do conhecimento". Estuda como o direito se realiza. De tudo isso conclui-se que o direito, na ambigüidade e na polissemia do seu termo, e na sua própria natureza histórico-cultural revela, mais do que uma configuração técnico-científica, uma natureza problemática e uma função prática que exigem do jurista não só o conhecimento mas, principalmente, a compreensão do seu sentido e significado, e da sua importância como instrumento de organização e disciplina social e como expressão da cultura e da experiência jurídica de um povo. O direito não é, assim, um dado, mas um processo que permite reunir as suas diversas perspectivas ---------------- 9 André — Jean Arnaud / Maria José Farinas Dulce, op. cit., p. 26. Elias Diaz, Sociologia y Filosofia dei Der acho, p. 60. 10 Nelson Saldanha, Dt.i teologia à metodologia, p. 104. ---------------- em uma construção permanente, in fieri, das normas jurídicas, superando-se a distinção entre o ser e o dever ser. São essas as perspectivas que hoje mais interessam e que, neste livro, se pretende observar, como introdução ao estudo do direito civil, na sua formulação mais teórica e geral, na compreensão de seus princípios e valores, no conhecimento das suas estruturas e de suas funções, e no processo de sua realização prática. 2. O direito. Gênese e estrutura. Ao longo do seu processo de evolução histórica, o direito vem se apresentando como um conjunto de normas que têm por objetivo a disciplina e a organização da vida em sociedade, resolvendo os conflitos de interesses e promovendo a justiça. Justifica-se, assim, o predomínio da concepção normativa do direito. A compreensão do que realmente seja o fenômeno jurídico não deve partir da visão do direito como simples conjunto de normas ou como determinado procedimento de solução de conflitos de interesses, mas dacerteza de ser ele produto de uma realidade complexa e dinâmica, que é a vida em sociedade, com seus problemas e controvérsias. Disso lhe advém a já referida natureza problemática e o reconhecimento de sua função prática. Como produto histórico e, conseqüentemente, cultural, o direito resulta de um processo de institucionalização de práticas e de comportamentos típicos, de órgãos e de critérios de decisão, que a sociedade e o Estado estabelecem, para o fim de dirimirem conflitos de interesses, previsíveis e tipificados. Como diz Reale11, "o direito surge quando os jurisconsultos romanos, com sabedoria empírica, quase intuitiva, vislumbraram na sociedade "tipos de conduta" e criaram, como visão antecipada dos comportamentos prováveis, os estupendos modelos jurídicos do direito romano". Esses modelos jurídicos, que funcionam como "diretivas para a ação", fins ou valores a realizar, formalizam-se em estruturas jurídicas, compreendendo as normas, os institutos, as instituições, os conceitos, a.s categorias, enfim, todos os elementos que, de natureza essencialmente técnica e formal, ajudam a construir o sistema de direito. -------------- 11 Reale, Liçõfis Preliminares de. Diniito, p. 185. -------------- As normas jurídicas são públicas (quando contidas nas leis, sentenças, atos administrativos) e privadas (quando nos contratos). Os institutos são conjuntos de normas que disciplinam uma determinada relação jurídica (exemplo, o casamento, a propriedade, a filiação, o contrato etc.). As instituições, termo de natureza sociológica, são grupos sociais dotados de uma determinada ordem e uma organização interna, que se criam e se justificam por um fim comum, como a família, a empresa, o Estado. Instituto é uma construção técnico-jurídica, enquanto instituição é um grupo social, dotado de ordem e organização. Conceitos e categorias são instrumentos que o jurista utiliza no seu trabalho de elaboração jurídica, isto é, na sua atividade de criação de normas e de elaboração dos sistemas e da própria terminologia da ciência do direito. Os conceitos são representações mentais de objetos, indivíduos ou fenômenos. Sua função é a de descrever, classificar ou organizar os dados da experiência concreta, no caso, a jurídica, permitindo estabelecer conexões de natureza lógica, e facilitando o raciocínio jurídico. Produto de uma atividade de abstração, o que, por vezes, os leva a desligarem-se demasiadamente da realidade, são elementos fundamentais do sistema e da ciência do direito. Sua utilidade está, no fato de permitir, não só o conhecimento teórico, indispensável à reflexão crítica, como também a subsunção de todos "os objetos que apresentam as mesmas notas compreendidas no conceito", com a formulação de regras para tudo o que se compreender no seu âmbito de aplicação. É o que se verifica, por exemplo, com os conceitos fundamentais de domicílio (C.C. art. 70), de empresário (C.C. art. 966), de pessoa, bem, relação jurídica, capacidade, contrato, direito real, direito de crédito etc., que, inseridos no sistema jurídico (na teoria ou na parte geral do Código Civil), permitem estabelecer a disciplina básica que irá reger todos os casos que venham a subsumir-se nas hipóteses conceitualmente estabelecidas, evitando repetições supérfluas12. Distinguem-se, nos conceitos, a compreensão e a extensão. Compreensão é o conjunto de notas ou características que o conceito encerra. Por exemplo, o conceito de cidadão brasileiro, compreende as características de homem, de nacionalidade brasileira, e titular de direitos de cidadania. Extensão é o conjunto de objetos ou -------------- 12 Laurenz, op. dl. p. 536. -------------- indivíduos que o conceito abarca. Por exemplo, no Código Civil, art. l2, o conceito de pessoa abrange todos os indivíduos da espécie humana. Entre os conceitos estabelecem-se relações de coordenação e de subordinação. Nestas, submetem-se os conceitos que se põem sob outros mais amplos (os subordinantes). Na subordinação há que distinguir o gênero, da espécie e do indivíduo. Gênero é conceito subordinante que compreende conceitos subordinados. Indica um conjunto de espécies de características comuns. Espécie é conceito subordinado de menor extensão que o gênero. Significa um conjunto de indivíduos, da mesma natureza. Indivíduo é o ente singular que pertence, como unidade, a uma espécie. Estas noções têm utilidade nas classificações jurídicas. Nos bens jurídicos, por exemplo, bem é gênero, móvel é espécie, e livro é indivíduo. Nos contratos, a compra e venda é um ato que se subordina às regras da espécie contrato (C.C. art. 488) que, por sua vez, se subordina às do gênero negócio jurídico. Os gêneros supremos, isto é, os conceitos mais universais, chamam-se categorias, "quadros em que se agrupam, por afinidade, os elementos da vida jurídica"13 e fora dos quais não se reconhece eficácia jurídica. São conceitos universais, por exemplo, os de direito subjetivo, de direito pessoal, de direito real, de dever, de relação jurídica, de sanção, de pessoa etc. Aplicação prática disso está por exemplo no fato de que, tendo os direitos do consumidor uma disciplina específica, basta qualificar um direito como tal, para que lhe seja aplicado o respectivo regime. Sistematizando-se tais modelos ou estruturas, chega-se na matéria civil, à construção do Código Civil, conjunto unitário e logicamente ordenado das relações jurídicas de direito privado. O Código Civil Brasileiro é uma lei que disciplina as relações entre os particulares, contendo 2.046 preceitos que se aglutinam em cinco institutos fundamentais: a pessoa ou sujeito de direito, a família, a propriedade, o contrato e a sucessão. Por influência de Teixeira de Freitas, primeiro, e depois do direito alemão, o Código divide-se em uma Parte Geral, que reúne os princípios e regras aplicáveis à generalidade das pessoas, bens e fatos jurídicos, e uma Parte Especial, que compreende o direito de obrigações, o direito de empresa, o direito das coisas, o direito de família e o direito das sucessões. --------------- 13 Orlando Cioiws, Introduçtlo no tlin-ito civil, p.9. --------------- É, assim o Código Civil, um conjunto formado de subconjuntos, ou se quisermos, um sistema composto de sub-sistemas, cada qual dedicado a uma das matérias ou institutos tradicionais do direito civil. As regras têm lugar próprio nesse sistema. Encontrá-las é determinar-lhe a natureza jurídica, tarefa preliminar da técnica de realização do direito. 3. As funções do direito. Uma outra perspectiva de estudo do fenômeno jurídico, de particular interesse para o civilista atento às transformações da ordem jurídica privada, é o das funções que o direito pode ter na sociedade contemporânea, problema teórico da sociologia do direito. Nesta perspectiva enfatiza-se a dimensão social do direito, que focaliza a relação entre ele e a sociedade, suas recíprocas influências e modificações. Considera-se, aqui, função, a tarefa, ou conjunto de tarefas que o direito desempenha, ou pode desempenhar, na sociedade humana14. ----------- 14 André-Jean Arnaud/Maria José Farinas Dulce, Sistemas Jurídicos: Elementos para un análisis sociológico, p. 133 e segs. A idéia de função exprime o conjunto de tarefas que se espera realizar com o direito, de acordo com os objetivos e propósitos de ação dos sujeitos jurídicos, que formulam, aplicam ou se utilizam do direito na sua experiência de vida em sociedade. Nesse sentido, as principais funções do direito seriam as de resolver conflitos, as de regulamentar e orientar a vida em sociedade e as de legitimar o poder político e jurídico. Quanto à primeira, o direito atua para solucionar o conflito de interesses ou restaurar o estado anterior. O direito seria, então, um instrumento de integração e de equilíbrio, oferecendo ou impondo regras de comportamento para a decisão que o caso sugere. O exercício dessa função não levaria, porém, ao desaparecimento dos conflitos, quesão inerentes à sociedade. O direito não é uma ordem de paz, mas de conflitos. Desaparecidos estes, desnecessário seria o direito (cf. no direito brasileiro a lei 9.307, de 23.9.96, lei da arbitragem). O direito serve também para orientar o comportamento social, visando evitar os conflitos. O caráter persuasivo das normas jurídicas leva-nos a agir no sentido dos esquemas ou modelos normativos do sistema jurídico. O direito visto desse modo surge como organizador da vida social e como instrumento de prevenção de conflitos. O direito tem ainda a função de organizar o poder da autoridade que decide os conflitos, legitimando os órgãos e as pessoas i. um poder de decisão o estabelecendo normas de competência e de procedimento. Por exemplo, o juiz, o árbitro, os pais, os diretores de pessoas jurídicas são legitimados a agir na forma de ordem jurídica. Outras FunçOes que se atribuem ao direito como a distributiva e a promocional, são tipos que surgiram com o advento do Estado social. Função distributiva é aquela por meio da qual se atribuem os recursos econômicos e não econômicos aos membros do grupo social. Função promocional é aquela que visa encorajar determinados comportamentos socialmente desejados. Realiza-se por meio de técnicas de incentivo, e é própria do Estado pós-liberal, assistencial. Cfr. Bobbio. Dalla strutura alia funzione. P. 103 e p. 26. Superado o Estado Social, reduziu-se a importância da função promocional. 15 Miguel Reale, O Direito como Experiência, p. 25 e segs., Antonio-Enrique Pérez Luno, Teoria dei Derecho. Una concepción de Ia experiência jurídica, p. 42; Tércio Sampaio Ferraz Jr, Introdução ao Estudo do Direito, p. 88; Castanheira Neves, Fontes do direito, in Polis-Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, II, p. 1.546; Luiz Diez Picazo, Experiências Jurídicas y Teoria dei Derecho, Barcelona, p. 6 e segs. Eurico Opocher, Esperienza giuridica, in Enciclopédia dei diritto, XV, p. 735 e segs.; Giusepe Capograssi, II problema delia scienza dei diritto, p. 25 c segs. Simone Goyard-l-abrc i-t Reno Sève, Lês grandes questions de Ia philosophie du droit, p. 23 i% sc^s.; Micliel Miaillc, Urna Introdução Crítica <4o Direito, p. 21. ----------- Dentre as várias funções que se podem atribuir ao direito, destaque-se, pela importância no direito civil, a de resolução de conflitos de natureza privada, quer pelos meios formais de procedimento judicial, quer por meio de mecanismos alternativos e informais, como a mediação e a arbitragem. Dá-se a mediação quando as partes aceitam ou solicitam a intervenção de terceiro neutro, não se obrigando a acatar sua opinião, e a arbitragem quando as partes elegem um árbitro, obrigando-se, previamente, a aceitar a sua decisão. (Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996). A vivência social que interessa ao direito, a chamada experiência jurídica, é uma concreta experiência de conflitos de interesses que o direito é chamado a disciplinar no exercício de uma das suas mais importantes funções, a de resolver tais problemas, visando garantir a realização dos ideais humanos de ordem, justiça e bem comum. Considera-se assim experiência jurídica, a concepção do direito como experiência da vida social e histórica, que se conhece e explica a partir da vivência, não de categorias lógicas, formais e abstratas. Conhecemos o direito porque o experimentamos, porque o utilizamos para garantir nossos bens e realizar nossos fins, umas vezes; porque o sofremos ao ter que adaptar novos atos a seus preceitos, outras; e porque o vivemos sempre."1" Como se realiza essa função? A vida em sociedade desenvolve-se sob a disciplina e a orientação de regras da mais variada espécie. São regras morais, religiosas, sociais, costumeiras, jurídicas, que constituem, em conjunto, vasto sistema de controle social.16 Regras, ou normas, procuram estabelecer uma determinada ordem para o comportamento dos indivíduos e dos grupos, fixando critérios de solução para as questões que se apresentam, inevitavelmente, no curso da convivência social. Surgem tais conflitos quando duas ou mais pessoas revelam pretensões antagônicas sobre o mesmo bem17, disputando a sua posse ou propriedade. A reiteração desses conflitos e a necessidade de sua solução fazem com que se estabeleçam normas definidoras do que é lícito ou ilícito, tipificando os fatos que interessam ao direito e institucionalizando os órgãos e os critérios de decisão respectiva. O conjunto dessas normas, que se dirigem ao comportamento humano e que têm no Estado a garantia de sua existência e eficácia, vem a constituir o direito, o mais institucionalizado sistema de organização e controle social, e como um dos seus mais importantes ramos, se não o mais importante, pelo menos o mais antigo, profundo e tradicional, o direito civil, conjunto de normas que protegem os interesses individuais, de natureza econômica e familiar. O direito surge, assim, ao longo de um processo histórico, dialético e cultural, como uma prática social que utiliza uma técnica, um procedimento de solução de conflitos de interesses e, simultaneamente, como um conjunto sistematizado de normas de aplicação mais ou menos contínua aos problemas da vida social, fundamentado e legitimado por determinados valores sociais. É, assim, a expressão ile um modo de vida de um povo e de sua cultura. -------------- 16 Controle Social é o conjunto da influências interiorizadas e ou restrições c-x ternas que a sociedade faz pesar sobre os comportamentos individuais e que justificam a ordem social; Franco Garelli, Controle social, in Dicionário de Política, p. 238 e segs., Elias Diaz, Sociologia y Filosofia dei Derecho, 1984, p. 14; Jean-Guy Ih-lley, Controle social, in Dictionnaire encyclopédique de théorie et de sociologie dii droit, pp. 112-116. 17 l,ui/. Diez Picazo, op. cit, p. 12. A perspectiva dos conflitos de interesse < nino ponto de partida para o estudo do fenômeno jurídico é de natureza socio-Ittyjc a, enquanto que a perspectiva da norma jurídica é o enfoque tradicionalmente l*uoiit;írio. Conforme a primeira, Jean Carbonnier Flexible droit. Textes pour une sociologia du droit sans rigueur, p. 58 e segs.; Konstantin Stoyanovitch, Lapensée nnti\.i\l<i et lê droil, p. 12; Francisco Carnelutti, Teoria generale dei diritto, p. 85 c- MT.S.; Rudoir von IluTing, La lutle pour lê droit, p. 2 e segs.; Karl Larenz, Metodologia da Ciência do Direito, p. 53 c segs. -------------- Não se limitam a isso, todavia, as funções do direito na sociedade contemporânea. As mudanças sociais decorrentes da revolução industrial e do avanço tecnológico têm exigido do Estado uma intervenção crescente em favor do bem-estar e da justiça social, acentuando-se a importância do direito como instrumento de planejamento econômico, multiplicando-se as normas jurídicas de programação social e estabelecendo-se novos critérios de distribuição de bens e serviços. O direito evolui de suas funções tradicionalmente repressivas para outras de natureza organizatória e promocional, estabelecendo novos padrões de conduta e promovendo a cooperação dos indivíduos na realização dos objetivos da sociedade contemporânea, caracterizando o chamado Estado Social. O ordenamento jurídico não pode ser visto, porém, como uma coisa em si, uma estrutura desvinculada da realidade social em que se situa e à qual se destina na sua criação e funcionamento. Dentro do vasto sistema criado pelas relações sociais, integram-se em um processo de interdependência crescente e interativa, vários subsis- temas, o jurídico, o político e o econômico, de tal modo que o direito, conjunto de normas disciplinadoras do comportamento social, passa a ter também, como efeito inexorável das exigências sociais, a função de organizar a economia e a de institucionalizar os modos de criação e exercício dos poderes públicos. Pode considerar- se, portanto, tríplice o papel do direito: resolver os conflitos de interesses, reprimindo e penalizando os comportamentos socialmenteperigosos, organizar a produção e uma justa distribuição de bens e serviços, e institucionalizar os poderes do Estado e da administração pública18; tendo sempre em vista, como causa final e superior, a realização da justiça19. Por sua íntima conexão com o sistema político, é também instrumento do poder dominante20 que, complexo e --------------- 18 Carlos Maria Carcova, Los funciones dei derecho, in Revista de Direito Público, n2 85, p. 140 e segs.; Giovanni Tarello La nozione de diritto: un approccio prudente, in La teoria generale dei diritto. Problemi e tendenze attuali, p. 344; Norberto Bobbio, Dalla strutura alia funzione, p. 110; Luis Recasens Siches, Tratado General de Filosofia dei Derecho, pp. 220/23: Werner Krawietz, Das positive Recht una seine Funktion, p. 15; Tércio Sampaio Ferraz, Função Social da Dogmática Jurídica, Paulo Dourado de Gusmão, Introdução ao Estudo do Direito, p. 109; Vicenzo Ferrari, Fonctions du droit, in Dictionnaire encyclopédique, p. 266. 19 Sérgio Cotta, Prospettive ai filosofia dei diritto, p. 135; Mário Bigotte Chorão, Justiça, in Polis Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. 3, p. 919. 20 Bobbio, Direito, in Dicionário de Política, p. 349. --------------- intitucionalizado (poderes públicos e privados), estabelece regras de comportamento e de organização social. Tais funções correspondem, se bem que de modo imperfeito, aos setores em que tradicionalmente se divide o direito: à função de institucionalizar o poder e organizar o seu exercício, o direito constitucional, o direito administrativo e, em parte, o processual; à função repressiva, o direito penal e seus ramos específicos; à função organizadora da produção e circulação de bens e serviços, o direito civil e o comercial, tendo como ponto básico de referência a pessoa humana, com sua família, seu patrimônio, e sua atividade jurídica. Considerando-se tanto a estrutura quanto as funções do direito civil, pode-se então defini-lo como o conjunto de normas que disciplinam a atividade e a realização dos objetivos fundamentais da pessoa na sociedade, protegendo os indivíduos nas suas relações pessoais e patrimoniais, assim como sua família, o grupo social básico em que a pessoa nasce e se desenvolve. De modo geral poder-se-ia dizer que todas essa funções giram em torno de fins básicos do direito contemporâneo que são a realização da justiça e o respeito aos direitos humanos. A dimensão ou perspectiva funcional do direito deve levar em conta, principalmente no que se refere à época moderna (sécs. XVIII e XIX), a correlação estreita entre direito e poder, entre direito e Estado. O direito sem poder é vazio. O poder sem direito é cego21. 4. O fundamento do direito. Os valores. As normas jurídicas não são proposições neutras, desvinculadas das razões, motivos ou finalidades que lhes justificam a criação. Toda a técnica jurídica, como conjunto de processos de realização do direito, modela-se em um projeto político-filosófico a serviço do qual se coloca.22 A finalidade desse projeto é a realização de objetivos que a sociedade considera fundamentais e que, por traduzirem uma escolha entre diversas opções, exprimem-se por meio de valores, que constituem a ética da comunidade. ------------- 21 Gregorio Peces-Barba Martinez, Derecho e derechos fundamentales, p. 17. Javier de Lucas (Coord.). Introducción a Ia teoria dei derecho, p. 120. 22 François Rigaux. Introducion à Ia science du droit, p. 382. ------------- Fundamento da norma jurídica ou do sistema de direito são, portanto, valores, idéias básicas que se apresentam como qualidades ideais dos bens e que, por isso mesmo, determinam os modos de comportamento individual e social23 "subordinando-os a um sistema de normas cujo cumprimento permite ou destina-se à realização de tais valores". O direito é, portanto, um instrumento de controle social constituído de normas que representam a escolha que o legislador faz entre diversos valores, como resposta à necessidade de solução dos conflitos ou de organização social. Justifica-se, portanto, o direito na sua existência e nos seus efeitos, pela realização dos valores que a sociedade estabelece como finalidade básica do ordenamento jurídico e que, por isso mesmo, lhe servem de fundamento. O direito é, assim, uma realidade cultural e histórica que somente se compreende com a referência e o conhecimento dos valores que constituem a sua finalidade e a razão de ser. Como diz Bobbio, o jurista que não ultrapassar o direito positivo é capaz de estabelecer o que é juridicamente válido (problema de validade), mas não é capaz de reconhecer o que vale como direito (problema do valor do direito). A única via para compreender o direito como idéia de justiça é a de abandonar o terreno empírico, ascendendo ao fundamento do direito, os valores.24 Os valores jurídicos podem classificar-se, de acordo com o seu grau de relevância, em valores jurídicos fundamentais, valores jurídicos consecutivos e valores jurídicos instrumentais.25 ----------- 23 Miguel Reale, Filosofia do Direito, p. 195 e segs. Paul Orianne, p. 49 e segs.; José Barata Moura. Para uma Crítica da Filosofia dos Valores, pp. 9/50; Michel Virally. La pensée juridique, p. 24; Werner Goldschmidt. Introducción Filosófica ai Derecho, n2 195; Luis Recaséns Siches. Tratado General de Filosofia dei Derecho, p. 58 e segs.; A. Machado Paupério. Introdução Axiológica ao Direito, p. 8 e segs.; Fritz Joachim V. Rintelen. Die Philosophie in XX lahrhundert, pp. 422/431; Eduardo Garcia Maynez. Filosofia dei Derecho, p. 413 e segs.; Christophe Grze-gorczyk. La théorie générale dês valeurs et lê droit, p. 271; Luis Cabral Moncada. Filosofia do Direito e do Estado, p. 263 e segs.; Mário Bigotte Chorão, Direito, in Polis-Enciclopedia Verbo da Sociedade e do Estado, II p. 306; Wilson de Souza Campos Batalha. Introdução ao Estudo do Direito, p. 116 e segs.; Paulo Dourado de Gusmão. Introdução ao Estudo do Direito, n2 199. 24 Bobbio. Diritto e stato nel pensiero di Emmanuel Kant, p. 111. 25 Maynez, op. cit., p. 439. A Constituição da República Federativa do Brasil enuncia, no seu preâmbulo, os valores que presidiram à sua elaboração: "(...) a libi- rdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, a justiça (••O." ----------- Valores jurídicos fundamentais são aqueles de que depende todo o sistema jurídico. Compreendem a segurança jurídica, a justiça e o bem comum. Valores jurídicos consecutivos são os que se configuram como efeito imediato da realização dos valores fundamentais. Os mais importantes são a liberdade, a igualdade e a paz social, de especial importância para o direito civil. Valores jurídicos instrumentais são os que se traduzem em meios ou processos de realização dos anteriores. Seu objetivo é possibilitar que se concretizem os valores fundamentais e os consecutivos. Consistem nas chamadas garantias constitucionais e nos procedimentos judiciais à disposição dos cidadãos. Embora os valores sejam matéria de reflexão jurídico-filosófica, interessam ao direito civil como fundamento dos principais institutos de direito privado e da prática jurídica diária. O direito é um fenômeno complexo e multidimensional. 5. A justiça. Valor fundamental é a justiça. Sua conceituação unitária é difícil. Desde os filósofos gregos, passando por Platão, Aristóteles, pelos juristas romanos, pelos mestres do direito natural e pelas modernas teorias jurídicas, uma definição precisa nunca foi possível estabelecer. De qualquer modo, como valor cultural, como standard, é produto histórico e relativo, de acordo com as épocas e os povos que estabelecem. Na cultura grega, a idéia de justiça pressupunha conformidade e igualdade; na cultura hebraico-cristã, obediência à lei de Deus; na cultura romana, uma ordem de paz através de contínuo confronto com a idéia de autoridade. Tais aspectos apresentam-se hoje, em conjunto, na problemática da justiça, o quelhe dificulta a definição. Ulpiano dizia que justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi26 (a justiça é a vontade constante e perpétua ------------- 26 Digesto, I, l, 10. Cf. Manfred Rehbinder-Salvatore Patti. Introduziam alia scienza giuridica, Padova, p.116 e segs.; Aristóteles. Ética a Nicômaco, in Os Pensadores, p.121 e segs.; Miguel Reale, Filosofia do Direito, n- 113; Nelson Saldanha, Justiça, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 47, p. 306; Machado Paupério, op. cit., p. 175 e segs.; Mário Bigotte Chorão. Justiça, in Polis-Enciclopedia Verbo da Sociedade e do Estado, IV, p. 906 e segs.; Piere Pescatore. op. cit. pp. 436 a 443; Maynez, ob. cit., pp. 439 a 477; Eurico Opocher, Giustizia (filosofia dei diritto), in Enciclopédia giuridica, XIX, p. 557 e segs.; Felix E. Oppenheim, Justiça, in Dicionário de Política, p. 661 e segs.; Enrique R. Aftálion ft alii op. cit., p. 167 e segs.; Luiz Legaz y Lacambra, Filosofia dei Derecho, p. 341 c segs.; Luiz Recaséns Siches, ob. cit., p. 479 e segs.; Michel Villey, Philosophie Jii droit, définitions et fins du droit, pp. 55 a 70; Dennis Lloyd, La Idea dei Dfmcho, p. 130; John Rawls, A theory of justice. 27 Pescatore, Introduction à Ia science du droit, 1960, p. 439; Machado Paupério, op. dt., pp. 176 e 177 ------------- de dar a cada um o que é seu). É uma virtude, uma atitude dos homens no seu relacionamento social. A justiça representa, antes de tudo, uma preocupação com a igualdade, o que pressupõe a correta aplicação das regras de direito, evitando-se o arbítrio, e com a proporcionalidade, isto é, tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, mas na proporção de sua desigualdade e de acordo com seus méritos. A cada um de acordo com suas necessidades e exigindo-se de cada um conforme suas possibilidades. O problema central consiste, todavia, em determinar o "devido", o justo meio, dando-se a cada um de acordo com seu trabalho e a utilidade social do que produz. A idéia de justiça traduz, enfim, um princípio de distribuição de bens e de ônus, que oferece três perspectivas: a justiça como virtude, realizando-se nas relações intersubjetivas; o seu objeto, o que é devido nessas relações, e a igualdade proporcional, a idéia de equivalência e de proporção. Podem-se visualizar duas espécies de justiça, uma geral, que é a conformidade do comportamento da pessoa com a lei moral, e uma particular, que se manifesta nas relações da pessoa com os demais membros da sociedade. Aristóteles distinguia a justiça particular em três espécies: a comutativa, a distributiva e a legal. A primeira visa a igualdade entre os sujeitos, a equivalência das prestações, o equilíbrio patrimonial entre as partes da relação jurídica. É a justiça dos contratos, da vida particular. A justiça distributiva "consiste em repartir proporcionalmente entre os membros da comunidade as vantagens sociais e os encargos comuns".27 Adota o princípio da proporcionalidade, o que significa dizer, a cada um conforme sua necessidade. A justiça legal (ou geral) é a justiça nas relações dos sujeitos com autoridade, que se traduz na submissão à ordem vigente. A justiça comutativa representa o ideal do cidadão; a distributiva, o ideal do governante; a legal, o ideal do cidadão- pessoa.28 A complexidade das relações e do processo de desenvolvimento econômico e social, a exigir um direito eficaz, no sentido de harmonizar os interesses dos indivíduos e dos grupos, fez surgir uma outra modalidade, a da justiça social. Revelada pela doutrina da Igreja, visa estabelecer uma conexão entre a consciência moral e a consciência social da coletividade, exigindo que a ordem jurídica se mantenha ligada à ordem moral. Defende a luta contra os privilégios e exalta a dignidade humana, no sentido de fazer com que cada um contribua para o desenvolvimento, em todos os seus aspectos, da comunidade. O direito, fundamentado nos valores da justiça social, exerce, assim, uma função corretora do individualismo, equilibrando a atividade e os interesses dos vários setores sociais. A justiça social surge não mais como virtude mas como tomada de consciência da noção de bem comum, em uma perspectiva do direito como instrumento de controle e de mudança social. No âmbito do direito civil a justiça é um dos princípios fundamentais que se manifesta, principalmente, nos contratos onerosos, como justiça comutativa, nos contratos gratuitos, como defesa da parte que pratica a liberalidade contra seus próprios excessos, e nos contratos bilaterais, em geral, como proteção da parte economica- ---------------- 28 Gianni Baget-Bozzo, Pensamento social cristão, in Dicionário de Política, pp. 918a 923. A distinção ou dicotomia — justiça comutativa — justiça distributiva, corresponde à que existe entre o direito privado e o direito público, Bobbio. Estado, Governo e Sociedade, p. 19. Na reflexão atual sobre a justiça, suscitam especial interesse, na Alemanha, Yurgen Habermas, Theorie dês Kommunikativen Handelns, Frankfurt, Suhrkamp, 1981, vol. 2 e nos EUA John Rawls, A Theory of Justice, Oxford, 1972. O primeiro tenta repropor a ética de Kant em bases mais amplas. Enquanto este considerava a ética do ponto de vista do dever, Habermas propõe que se leve em conta as necessidades e os interesses dos homens, que devem ser determinados mediante uma comunicação livre e igualitária, própria de um consenso racional e não apenas fático. Por sua vez Rawls tem a pretensão de dar ao Estado social de direito uma base filosófica, face ao utilitarismo economista, construindo uma teoria da justiça em torno da noção de eqüidade. Para esse filósofo, a eqüidade tem duas dimensões, uma formal, que inclui as idéias de liberdade, igualdade e respeito mútuo, e outra, num sentido próximo de Kant, material, que defende a distribuição dos bens sociais levando-se em conta os menos favorecidos (Cfr. De Lucas, Introduccion a Ia teoria dei derecho, p. 332. ---------------- mente mais fraca.29 Procura realizar a equivalência das prestações, segundo a qual cada parte deve receber o equivalente ao que entrega, legitimando-se o poder do credor de exigir do devedor a prestação devida. E temos ainda, com base no mesmo princípio, as limitações à autonomia da vontade, como medida de proteção à parte contratual mais fraca, que se concretiza, por exemplo, na legislação especial de defesa do consumidor (Lei n° 8.078, de 11 de setembro de 1990), da locação dos imóveis urbanos (Lei n- 8.245, de 18 de outubro de 1991), e de reforma agrária e política agrícola (Lei n° 4.504, de 30 de novembro de 1964 e Lei n° 4.947, de 6 de abril de 1966). 6. A segurança. A segurança jurídica significa a paz, a ordem e a estabilidade e consiste na certeza de realização do direito. Os sistemas jurídicos devem permitir que cada pessoa possa prever o resultado de seu comportamento, o que ressalta a importância do aspecto formal das normas jurídicas, a sua forma de expressão. O direito tem, por isso, como um dos seus valores fundamentais, para muitos o primeiro na sua escala, a segurança30, que consiste, precisamente, na certeza da ordem jurídica e na confiança de sua realização, isto é, no conhecimento dos direitos e deveres estabelecidos e na certeza de seu exercício e cumprimento, e ainda na previsibilidade dos efeitos do comportamento pessoal. A segurança jurídica, significando a estabilidade nas relações e a garantia de sua permanência, justifica o formalismo no direito e encontra no positivismo o seu principal fundamento teórico. Apresenta-se tanto como uma segurança de orientação, que se refere ao ---------------- 29 Karl Larenz / Manfred Wolf. Allgemeiner Teil dês Bürgerlichen Rechts, par. 42, segundo o qual, em matéria de contratos, o princípio da autonomia da vontade deve conjugar-se com o da boa-fé e com o da justiça contratual compensatória, significando este que, nos contratos bilaterais, sinalagmáticos, cada parte deve obter por sua prestação uma contraprestaçãoadequada, correspondente ao valor daquela (princípio objetivo da equivalência). 'M Enrique R. Aftalion, Fernando Garcia Olavo, José Vilanova. Introducción ai Derecho, p. 166; Pierre Pescatore. Introduction à Ia science du droit, p. 414; Mário Migotte Chorão. Segurança jurídica, in Polis-Enciclopedia Verbo da Sociedade e do Estado, V, pp. 642/654. ---------------- conhecimento que os destinatários têm das respectivas normas de direito, como também uma segurança de realização, ou confiança na ordem, que é a certeza do exercício dos direitos e do cumprimento dos deveres. Significa, portanto, a possibilidade de cada um compreender o que é e o que não é lícito, podendo, conseqüentemente, regular seus atos e seu comportamento. Constitui-se, por isso, no mais antigo valor, na premissa de todas as civilizações. O valor da segurança está presente e realiza-se em muitos institutos jurídicos. Quando, por exemplo, o Código de Processo Civil, no seu art. 126, dispõe que o juiz não pode deixar de dar sentença, julgando o litígio que lhe é submetido, concretiza o ideal da segurança jurídica, pois todas as pessoas têm direito à prestação jurisdicional, à decisão de uma controvérsia, sem o que a vida social se transformaria em permanente conflito. Um dos objetivos da realização do direito é, assim, a exigência de ordem e de segurança. Como outros exemplos de realização do ideal de segurança jurídica temos: a) as formalidades essenciais dos atos jurídicos. Os mais importantes atos da vida de uma pessoa, o casamento, divórcio, adoção, emancipação, testamento, escritura de compra e venda etc., devem obedecer a formalidades que a lei especificamente estabelece, para que os interessados tenham deles um conhecimento perfeito e melhor possam provar a sua existência; b) a fixação de prazos para o exercício de direitos, sob pena de extinção, como ocorre com os institutos da prescrição e da decadência; c) as normas sobre a capacidade e o estado das pessoas, a idade para emancipação e para a maioridade; d) o sistema de registros públicos, destinados a garantir a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos; e) a consagração do princípio da não-retroatividade da lei e do respeito ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada; f) o instituto da coisa julgada, isto é, a decisão judicial de que não cabe recurso e que, por isso mesmo, é imutável e indiscutível, presumindo-se verdadeira e justa a sentença, mesmo não o sendo (rés judicata pró veritate accipitur). Hoje em dia nota-se uma perda crescente da importância da segurança jurídica, em prol da realização da justiça e do bem comum. 7. O bem comum. O bem comum é o bem da comunidade, é o bem que as pessoas promovem enquanto associadas em uma ação conjunta no seu meio. Compreende o conjunto das condições sociais que permitem o desenvolvimento integral da personalidade humana, e o bem-estar material, espiritual e cultural da comunidade, pelo que se constitui em um dos objetivos fundamentais do Estado e do direito.31 O bem comum não se pode considerar nem sob uma perspectiva individualista, na qual seria apenas a soma dos bens individuais, nem sob uma coletivista, que subordina os valores da personalidade aos coletivos. Traduz um equilíbrio entre o interesse geral e os interesses privados, assim como a cooperação dos indivíduos para a obtenção dos fins comuns a todos. O bem comum é, portanto, o conjunto de condições necessárias ao bem particular dos membros da comunidade, e é também um valor social que se realiza com a participação de todos na criação das condições necessárias à existência de paz e estabilidade, presidindo ao desenvolvimento do direito em geral. Enquanto os indivíduos procuram a realização do seu bem, o fim da sociedade e da ordem social é o bem de todos. Existe, assim, um bem público individual e um bem público coletivo, social, comunitário. É preciso, por isso, um tertius que se relacione diretamente com o bem comum individual e com o coletivo, que podemos chamar de solidariedade, para exprimir a idéia de valor comum, de interesse tanto do grupo quanto dos seus membros. O valor da solidariedade é, assim, um valor de integração, como já previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 29), justificando as limitações da lei ao exercício dos direitos e ao gozo das liberdades individuais para assegurar o reconhecimento dos direitos e liberdades de outrem e para satisfazer as exigências da moral e da ordem pública. ------------ 31 Eberhard Welty. Manual de Ética Social, p. 136; Hans Heckel. Recht und Gerechtigkeit, p. 25, apud. Maynez, op. cit, p. 479. Donde poder dizer-se que o sistema de direito privado fundamenta-se em dois princípios básicos: o do individual e o do social. O primeiro concebendo o sujeito jurídico, a pessoa, como eixo central em torno do qual gira o sistema de direito privado, com sua atividade limitada apenas pela ordem pública e os bons costumes. O segundo, a idéia do social, considerando a pessoa como participante de uma comunidade, com a qual U'ni poderes mas também deveres, não apenas o sujeito jurídico como indivíduo mas também, e principalmente, como pessoa. Cf Manuel Garcia Amigo. Institu-ciones de Derecho Civil, p. 27. O fim do indivíduo é a realização de seu bem. (lorrelativamente, o fim da sociedade e da ordem social é o bem comum, Pesca-lorc, op. cit., p. 424. ------------ O que se verifica em todos os ordenamentos jurídicos contemporâneos é a conjugação harmônica do bem comum, ou da solidariedade social, com os valores da liberdade e da igualdade, "centrando-se sobre a pessoa humana, sujeito de direito, sobre a qual encontram seu ponto de reencontro e reajustamento". A liberdade não é mais possível sem igualdade e sem solidariedade. Por sua vez, a igualdade resulta do valor básico que é o bem comum. No que respeita ao direito civil, realiza-se o bem comum nos preceitos de ordem pública que limitam a autonomia da vontade e impedem os abusos no exercício dos direitos subjetivos, como ocorre, por exemplo, com as limitações no campo da locação, em favor do inquilino, e em matéria de prescrição, de direitos reais (numerus clausus), de direito de família, com a proteção da família em si e de seus membros, e em matéria sucessória, com as normas da sucessão legítima e da sucessão testamentária. 8. A liberdade. Um dos valores mais importantes para o direito em geral e para o direito civil em particular é a liberdade. Sob o ponto de vista filosófico, a liberdade significa possibilidade de opção, manifestando-se como liberdade de fazer, ou livre arbítrio. É o estado do ser que não sofre constrangimento, que age conforme sua vontade e sua natureza.32 Sob o ponto de vista sociológico, é a ausência de condicionamentos materiais e sociais. A liberdade jurídica é a que reconhece no indivíduo o poder de produzir efeitos no campo do direito. É portanto, o poder de atuar com eficácia jurídica. Consiste no poder de praticar todos os atos não-ordenados, tampouco proibidos em lei, optando entre o exercício e o não-exercício de seus direitos subjetivos. A liberdade jurídica compreende, assim, um conjunto de garantias que protegem a pessoa na sua atividade privada e social. A Constituição delimita o campo dessa liberdade, definindo o âmbito material que compete ao Estado e o que compete ao indivíduo como pessoa e como cidadão. O setor que o Estado reconhece como externo ao --------- 32 Frederich August von Hayek. A Constituição da Liberdade, p. 4; Felix E. Oppenheim. Liberdade, in Dicionário de Política, p. 708 e segs. --------- seu domínio de atuação é o do direito privado, onde o indivíduo pode exercitar sua liberdade de modo subjetivo e de modo objetivo. Esse âmbito de atuação do particular é como que uma esfera de imunidade, relativamente isenta da presença estatal. O direito privado surge, assim, como um espaço livre deixado ao particular pelo direito público. A liberdade serviu de fundamentoideológico ao liberalismo, doutrina política, econômica e social segundo a qual a liberdade deveria presidir à organização do todo social e, no plano do direito, orientar o juízo de todas as coisas.33 Confere à pessoa humana o primado em relação à sociedade em que se insere. No aspecto subjetivo, a liberdade manifesta-se, no campo do direito privado, no poder da pessoa estabelecer, pelo exercício de sua vontade, o nascimento, a modificação e a extinção de suas relações jurídicas. No aspecto objetivo, significa o poder de criar juridicamente essas relações, estabelecendo-lhes o respectivo conteúdo e disciplina. No aspecto subjetivo, autonomia da vontade, e no aspecto objetivo, como poder jurídico normativo, denomina-se autonomia privada. Instrumento de sua atuação e realização é o negócio jurídico.34 A autonomia privada manifesta-se particularmente no campo das relações jurídicas de natureza patrimonial de ordem particular, realizando-se em temas de contrato e de testamento. Não no campo do direito de família nem nos dos direitos reais, onde, não havendo campo para a sua atuação, as normas são cogentes, imperativas. Suas conseqüências mais evidentes, no campo da normatividade jurídica, são a liberdade contratual, em suas várias espécies, a natureza dispositiva da grande maioria das normas do direito das obrigações, a teoria dos vícios do consentimento (erro, dolo, coação), a indiferença quanto aos motivos do contrato, a força obrigatória do contrato e a eficácia jurídica do simples acordo de vontade, que caracteriza o consensualismo em matéria contratual.35 Princípio de grande importância no direito privado, a autonomia da vontade, como expressão de liberdade e como poder jurídico, encontra limitações crescentes na matéria de ordem pública e dos bons costumes (defesa do consumidor, contratos agrários, locação de imóveis urbanos, contratos de trabalho etc.). No campo econômico, a liberdade consubstancia-se no princípio da liberdade de iniciativa, um dos princípios básicos da ordem econômica e social prevista na Constituição brasileira.36 É a liberdade dos particulares de atuarem no domínio econômico, organizando os meios de produção e promovendo a aquisição e a circulação de bens e serviços, o que pressupõe outros direitos, a propriedade e a liberdade de contratar. Outras manifestações do mesmo princípio no âmbito do direito privado são a liberdade de associação, a atuação profissional, as liberdades consubstanciadas nos direitos da personalidade (integridade física, moral e intelectual) e, ainda, a liberdade matrimonial e a liberdade testamentária e ainda a possibilidade de se estabelecerem meios alternativos de solução de conflitos, como a arbitragem e a mediação. 9. A igualdade. A realização da justiça implica igualdade. Dizia Aristóteles que a justiça consiste em tratar de modo igual os iguais e desigualmente os desiguais, proporcionalmente à sua desigualdade. A igualdade configura-se, portanto, como um valor jurídico consecutivo, o que significa dizer que a igualdade está corretamente ligada à realização da justiça, da segurança e do bem comum. A idéia ou valor da igualdade compreende a idéia de igual dignidade de todos, combinada com a desigualdade de suas aptidões e funções. Ora, a questão da desigualdade pressupõe outra, que é a da diversidade de poderes em uma sociedade igualitária, pois as relações de subordinação são relações de poder, como as que existem -------- 33 Henrique Barrilaro Ruas, Liberalismo, in Polis, II, p. l .090. "O constitucional ismo liberal colocou a liberdade como centro da parte mais delicada das Constituições: a dos direitos e garantias. Simultaneamente, o direito privado liberal lomou a liberdade como base para o contrato e para os atos jurídicos em geral"; Nrlson Saldanha, Liberdade, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 49, p. 357. 34 Cf do Autor, Negócio jurídico, in Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 54, pp. 170/178. Cf. Carlos Alberto da Mota Pinto. Teoria Geral do Direito Civil, p. 76 e segs.; Jacques Ghestin. Traité de droit civil. La formation du contraí, p.35 35 Boris Stark. Droit civil. Obligations, p. 342. 36 Constituição Federal art. 1£, item IV. -------- entre pais e filhos, tutores e tutelados, curadores e curatelados. A igualdade traduz-se não na igualdade formal das pessoas mas na sua igualdade material em face das oportunidades da vida, pois "uma declaração formal de igualdade resulta ilusória quando os sujeitos legalmente iguais carecem de meios para exercitarem os direitos ligados a essa declaração de igualdade".37 Várias contribuições se reúnem, ao longo do processo histórico, para caracterizar o que hoje se identifica como o princípio da igualdade no direito. O cristianismo introduz a noção de pessoa, a "unidade do gênero humano". A filosofia patrística e a escolástica levam à concepção individualista do Renascimento, que se consagra na Revolução Francesa com a teoria do primado do indivíduo, liberto dos privilégios do feudalismo, proclamando a liberdade, a igualdade e a fraternidade como direitos fundamentais do homem e do cidadão. Com o constitucionalismo liberal firma-se o princípio da igualdade de todos perante a lei (geral e abstrata), que o princípio democrático estende aos direitos políticos da cidadania. E com o Estado social advoga-se a igualdade de "condições efetivas de exercício dos direitos, pois não basta a todos atribuir idênticos direitos quando divergem as situações concretas em que se encontram e que a esse exercício podem constituir obstáculo".38 Desse processo resulta que a igualdade jurídica apresenta-se sob dois aspectos: formal, que é a igualdade de todos perante a lei, e que corresponde à concepção legalista do direito39 e a igualdade material ou substancial, que é a igualdade "imposta como exigência à própria lei", a igualdade na lei, e que consiste no reconhecimento das desigualdades sociais de modo a justificar a interferência do poder público para proteger os interesses dos mais fracos, como ocorre com a legislação especial do inquilinato e do trabalho. No princípio da igualdade formal baseia-se a tendência à codificação que se verificou nos séculos XVIII e XIX no continente europeu. "Os cidadãos, para serem iguais entre si, devem sujeitar-se todos à mesma lei, para ser igual para todos, deve formular-se nos termos mais gerais e abstratos."40 Ao mesmo tempo em que o processo de codificação consagrava a estatalidade do direito (o direito como produto do Estado), afirmava também a igualdade de todos na cidadania. Não mais as diversas condições de classe, mas as diversas funções econômicas do indivíduo eram as notas distintivas da legislação que passava a considerar o indivíduo como proprietário (Código Civil), ou como comerciante (Código Comercial), ou como delinqüente (Código Penal), ou como parte em juízo (Código de Processo). E, ao contrário do que antes ocorria com a aristocracia, detentora de privilégios, a nova classe ascendente, a burguesia, que acreditava nos princípios do liberalismo econômico, acreditava também no livre jogo das forças do mercado. Ora, uma lei, igual para todos, um Código, ao mesmo tempo que extinguia os privilégios de classe, próprios da aristocracia, permitia também a criação de condições necessárias para a instauração de uma economia de mercado. "A igualdade jurídica aparecia, assim, como a condição necessária para que se constituíssem relações econômicas de mercado." Mas disto nasceriam depois outras desigualdades, não mais jurídicas, mas econômicas, não mais formais, mas, substanciais, nascendo, outros-sim, a exigência de um novo princípio de igualdade, o da igualdade substancial. A Constituição brasileira dispõe no seu art. 5- que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de sexo, raça, trabalho, credo religioso e convicções políticas", sendo punido o preconceito de raça. Trata-se aqui da igualdade perante a lei, o chamado princípio da isonomia, que seimpõe ao legislador, ao poder judiciário e à administração pública, e ern virtude do qual em matéria de hermenêutica deve preferir-se, sempre, a interpretação que iguale, não a que diferencie.41 -------- 37 Maynez. op. cit., p. 492. 38 Jorge Miranda, Princípio de igualdade, in Polis, III, p. 403. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1793, encontra-se, pela primeira vez, a proclamação do princípio de igualdade perante a lei, nestes termos: "Art. ls: Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direito. Art. 6S: A lei é a expressão da vontade geral. (...) Ela deve ser a mesma para todos, quer proteja, quer puna. Todos os cidadãos, sendo iguais perante ela, têm o direito a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, de acordo com sua capacidade e sem outra distinção que a de suas virtudes e suas qualidades. 39 Castanheira Neves. O Instituto dos Assentos e a função Jurídica dos Supremos Tribunais, p. 120, nota 251. Cfr. Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5°, exemplo de igualdade formal. E nos arts. 7°, XXX, a igualdade dos direitos dos trabalhadores, 226, par. 5°, a igualdade dos direitos e deveres conjugais, e 227, par. 6°, a igualdade de direitos dos filhos, como exemplo de igualdade material. 40 Francesco Galgano. Diritto privato, p. 36. 41 Mota Pinto, op. cit., p. 42. -------- Expressão direta do valor da igualdade no direito civil é o postulado de que todas as pessoas, significando esta expressão "como todos os seres da espécie humana", são iguais na sua capacidade jurídica, vale dizer, na sua aptidão para titulares de direitos e deveres na ordem jurídica civil (CC, art. 1°) como sujeitos ativos ou passivos de relações jurídicas. Também a lei não distingue, em princípio, os estrangeiros dos nacionais, quanto à aquisição e gozo dos direitos civis (C.F., art. 52), embora existam, na própria Constituição e em leis ordinárias, exceções a tal princípio. No corpo do Código Civil encontramos ainda alguns casos de igualdade especial, como a que existe entre credores do mesmo devedor (CC, art. 957), salvo as exceções legais que tomam o nome de privilégios (CC, art. 958), a que existe entre os herdeiros da mesma classe chamada à sucessão, salvo o direito de representação (CC, art. 1.851), entre os cônjuges, quanto aos seus direitos e deveres (CC, art. 1.566). Em princípio, a igualdade está presente em todas as relações jurídicas. Inúmeras situações de fato, porém, em que se configura flagrante desequilíbrio entre os poderes das respectivas partes, justificam o surgimento de leis especificamente destinadas a proteger a parte mais fraca, como se verifica, por exemplo, em matéria de locação, onde a falta de imóveis disponíveis exigia a intervenção do Estado para proteger os inquilinos contra as pretensões abusivas dos locadores. E também a proteção ao consumidor nos contratos de adesão; do empregado no contrato de trabalho; da companheira no reconhecimento da sociedade de fato mantida com o companheiro; do menor nas suas relações jurídicas de família; no campo das obrigações, a obrigação de contratar imposta a quem celebrar contrato preliminar (CC. art. 463), como a promessa de compra e venda (CPC, art. 639). 10. A teoria do direito civil. O direito civil é o direito comum.42 Regula as relações entre os indivíduos nos seus conflitos de interesses e nos problemas de organização de sua vida diária, disciplinando os direitos referentes ao indivíduo e à sua família, e os direitos patrimoniais, pertinentes à atividade econômica, à propriedade dos bens e à responsabilidade civil. Este livro é uma introdução ao direito civil. Como tal, visa a iniciar no estudo da doutrina e do processo de realização do nosso direito civil, contribuindo para a formação jurídica do aluno por meio dos vários ângulos de apreciação científica, que permitem conhecer o fenômeno jurídico em sua múltipla dimensão, assim como os fatores que influenciam sua gênese e determinam suas modificações. É uma obra de teoria na medida em que elabora um conjunto de conceitos, elementos e estruturas comuns aos diferentes setoresdo direito civil. À semelhança das obras de teoria geral do direito, exposição sistemática do que os ordenamentos jurídicos têm em comum43, reúnem-se aqui os conceitos e os princípios fundamentais do direito civil, de modo descritivo, explicando as noções elementares, e de modo normativo, pela referência que se faz às normas que integram e constituem a chamada Parte Geral do Código Civil, indispensáveis à realização dos institutos da chamada Parte Especial. A Parte Geral do Código Civil reúne princípios, conceitos e regras de caráter pretensamente comum aos diversos ramos da Parte Especial (Direito das Obrigações, Direito das Coisas, Direito de Família, Direito de Empresa e Direito das Sucessões). Fiel ao princípio de que o geral precede o particular e de que o gênero (genus) compreende as espécies (species), a Parte Geral é uma construção científica do direito alemão de séc. XIX, a chamada Pandectística, tendo por base o direito romano justiniâneo. A Pandectística, ou ciência das Pandectas, é uma construção abstrata, conceituai e sistemática do direito privado alemão, tendo por base o direito romano justiniâneo, feita pelos juristas alemães do séc. XIX, que possibilitaram, assim, o chamado usus modernum pandectarum por meio de ------------ 42 Francesco Santoro-Passarelli, Dottrine generali dei diritto civile, p. 19. 43 Hans Nawiasky, Algemeine Rechtslehre ais system der Rechtslichen Grundbe-griffe, p. 12; Klaus Adomeit, Introducción a Ia Teoria dei Derecho, p. 26; Tércio Sampaio Ferraz Jr., pp. 40 e 84. Javier de Lucas, p. 406. Vitorio Frosini. Teoria generale dei diritto in Novíssimo Digesto Italiano, XIX, ps. 5/7. ------------ perfeita e completa realização do método sistemático.44 Desde a sua criação, a Parte Geral tem sido objeto da crítica doutrinária, por não aplicar-se a todas as disposições da parte Especial, sendo considerada dispensável a até prejudicial45. Sendo uma obra de doutrina, adota as orientações metodológicas mais recentes, focalizando o fenômeno jurídico de direito civil sob a perspectiva da norma jurídica, da relação jurídica e da instituição, sem deixar de considerar a perspectiva sistêmica, o direito civil como um todo unitário, harmônico e coerente, subordinado a princípios e valores fundamentais, aberto porém aos problemas que a realidade da vida constantemente produz e submete ao direito. E no estudo dessa matéria tem sempre em vista a necessidade de uma perspectiva histórica, para considerar o direito como produto de um vasto processo dialético, histórico e cultural, ao longo do qual vem forjando seus princípios, noções e categorias fundamentais, e de uma perspectiva crítica, no sentido de manter presente uma atitude de busca e reflexão sobre o fundamento ideológico de suas normas e institutos, enfrentando os problemas que historicamente se têm posto quanto à origem e evolução desse ramo jurídico. A perspectiva fundamental e orientadora desta introdução ao direito civil é a da relação jurídica, vínculo intersubjetivo que contém direitos e deveres das pessoas entre as quais se desenvolve, tendo por objeto os bens sobre que tal conteúdo se exerce, e que nasce dos fatos, atos ou negócios jurídicos, acontecimentos a que o direito atribui eficácia jurídica, integrada porém numa visão mais ampla, que é a da experiência jurídica brasileira. Depois de um estudo preliminar da teoria da norma jurídica de direito privado e da técnica de sua realização, entra-se no estudo propriamente dito da gênese e da evolução do direito civil brasileiro e, em seguida, no dos conjuntos normativos, modelos ou institutos formados em torno dos elementos fundamentais da relação jurídica, isto é, as pessoas, os bens e os fatos jurídicos, pressupostos, respectivamente, de uma teoria da personalidade, de uma teoria do patrimônio e de uma teoria do ato jurídico.
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